Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | RENATA WHYTTON TERRA | ||
Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA VIOLAÇÃO CONCURSO DE CRIMES | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/23/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1–Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se diz no artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal, mas que constituem um único crime, ou seja, a execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime. A soma dos eventos parcelares constituirá um único crime. O crime de violência doméstica enquadra-se neste tipo de crimes. 2–Nas situações em que a um facto isolado corresponde uma pena superior à que corresponde à previsão do n.º 1 do 152.º do CPenal, existe concurso efectivo de crimes. O que vale para a situação em que concorre com a violência doméstica um ou mais crimes de violação, igualmente puníveis com pena superior à prevista para o crime de violência doméstica. 3–No caso sub judice os dois crimes de violação cometidos pelo recorrente na pessoa da sua companheira apresentam autonomia relativamente aos demais actos ilícitos que praticou contra a mesma ofendida e que por sua vez se subsumem à prática do crime de violência doméstica. 4–As sucessivas leis de politica criminal têm vindo a definir o combate aos crimes de violência doméstica, entre outros, como prioritários. No anexo à Lei 96/2017, de 23.8, que define os objectivos de politica criminal para o biénio 2017-2019, escreve-se que de acordo com os dados do Relatório Anual de Segurança Interna de 2016, a violência doméstica contra cônjuge ou análogos subiu 1,4 % (22.469 casos em 2015 e 22.773 em 2016) e os outros crimes de violência doméstica subiram 3 % (3.651 casos em 2015 e 3.762 em 2016). Já no anexo à Lei 55/2020, de 27.8, que define os objectivos de politica criminal para o biénio 2020-2022, consta no seu anexo que a “violência doméstica contra cônjuge ou análogos conheceu um significativo aumento de 10,6 % (22 423 casos em 2018 e 24 793 em 2019), o que, conjugado com o número de homicídios de mulheres ocorridos em 2019, torna incontornável a necessidade de reforçar as respostas para prevenir e combater a violência contra as mulheres e a violência doméstica, em todas as suas dimensões, tomando em consideração o previsto na Resolução do Conselho de Ministros n.º 139/2019, de 19 de agosto. De entre as tipologias que integram a categoria de crimes de violência doméstica, merece destaque a violência doméstica contra o cônjuge ou análogo que corresponde a 84 % de todas as participações por violência doméstica. No que se refere a subidas, todas as tipologias registam aumentos, sendo que os mais significativos são os verificados na violência doméstica entre cônjuges e análogos (22 423 participações em 2018 e 24 793 em 2019) e na violência doméstica contra menores (3573 participações em 2018 e 4123 em 2019)”. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I.–Relatório: No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Colectivo n.º 482/21.7PBSNT a correr termos no Juízo Central Criminal de Sintra- Juiz 4, foi julgado e condenado o arguido A, pela prática, em autoria material e em concurso real, na forma consumada de: –um crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a) e 164º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de três anos de prisão; –dois crimes de violação p. e p. pelo art. 164, n.º 1, al a), na pena de 2 anos de prisão por cada um dos crimes; –um crime de introdução em lugar vedado ao público p. e p. pelo art. 191º do Código Penal, na pena de um mês de prisão; –Em cúmulo jurídico das penas parcelares supra enunciadas foi o arguido condenado na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão. Foi ainda o arguido condenado na pena acessória de proibição de contacto com a ofendida pelo período de 4 anos e 6 meses, nos termos do disposto no art. 152º, n.º 4 e 5 do CPenal. *** Desta decisão veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 554 a 561 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões: 1.a)-Vem o presente recurso interposto do acórdão que condenou o arguido pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de violência doméstica, p.p., pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b), e n.º 2 al. a) do Código Penal, e artigo 164.º n.º 1 al. a), do mesmo diploma legal; de dois crimes de violação, p.p., pelo artigo 164.º, n.º 1, al. a), do Código Penal; de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p.p., pelo art. 191.º do Código Penal, na pena acessória de contactos com a ofendida, na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão. b)-A pagar à ofendida B, a quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a presente data até integral recebimento (art.º.82.º- A do Código de Processo Penal e art.º 16.º n.ºs 1 e 2 da Lei 130/2015, conjugado com o art. 67.º - A, n.º 1, al. b) e n.º 3 do CPP e art.º 1.º alínea j) do mesmo diploma legal). 2.–O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, ordenou (..) a reabertura da audiência de discussão e julgamento para cabal cumprimento do disposto no art. 358, n.º 1 e 3 do CPP ditando-se em acta quais os factos a alterar e quais os crimes a aditar ou alterar, permitindo-se ao arguido o exercício do contraditório (…). 3.–O que se verifica no seguimento da decisão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, por parte do Tribunal a quo, não é a reabertura da audiência de discussão e julgamento, para cabal cumprimento do disposto no art.º 358, n.º 1 e 3 do CPP ditando-se em acta quais os factos a alterar e quais os crimes a aditar ou alterar, permitindo-se ao arguido o exercício do contraditório, mas sim de uma alteração de factos, provados, constantes do Douto Acórdão do Tribunal a quo. 4.–O que se exigia, era que, como relatado no Acórdão 356/05 do Tribunal Constitucional, o Tribunal a quo, procedesse à exigida alteração da qualificação jurídica, dos factos constantes da acusação, ditando para a acta os quais os factos a alterar e quais os crimes as aditar ou alterar, permitindo ao arguido, em sede de audiência de discussão e julgamento, exercer o direito ao contraditório, o que não se verificou nos presentes autos. 5.–Motivo pelo qual o vicio de nulidade que afectou o Douto Acórdão anterior não foi sanado, mantem-se, sendo pois a decisão proferida pelo Tribunal a quo nula, nos termos do art.º 379, n.º 1 alínea b) do Código de Processo Penal. 6.–Impõe-se a reabertura da audiência de discussão e julgamento para cabal cumprimento do disposto no art. 358, n.º 1 e 3 do CPP ditando-se em acta quais os factos a alterar e quais os crimes a aditar ou alterar, permitindo-se ao arguido o exercício do contraditório. 7.–Ao proceder à alteração de factos constantes no Douto Acórdão, sem que ao arguido fosse dada a possibilidade de em audiência de discussão e julgamento, com a devida produção de prova, contraditar os factos pelos quais é acusado, violou o Tribunal a quo, o princípio básico do processo penal, o princípio do acusatório, constante no n.º 5 do art.º 32, da Constituição da Republica Portuguesa, bem como o seu n.º 1. 8.–O Tribunal a quo deu como provado nos pontos 20.º, e, 25.º, do Douto acórdão que - (“Aproveitando-se da sua maior força física, contra a vontade de B, tirou-lhe a roupa e introduziu o seu pénis na vagina dela, efetuando movimentos sucessivos com o mesmo, para a frente e para trás, até ejacular”).;(…)(“Não obstante a oposição de B, que lhe disse, expressamente, que não queria fazê-lo, o arguido, mais uma vez, aproveitando-se da sua maior força física, tirou-lhe as calças, introduziu o seu pénis na vagina da mesma, efetuando movimentos sucessivos com ele, para a frente e para trás, até ejacular(…)., sustentando a sua decisão com base no depoimento da ofendida, prestado em inquérito, a título de declarações para memória futura. 9.–As declarações da ofendida são tudo menos claras e esclarecedoras do que se passou entre ela e o arguido, no que ao crime de violação diz respeito, aliás, diz peremptoriamente que, em casa da mãe daquele, este nunca a obrigou a ter relações sexuais com ele. 10.–A testemunha ouvida, com quem a arguida partilha a sua vida, sua irmã, ..., diz que a ofendida pretende prosseguir a sua vida com o arguido. 11.–Mais, a ofendida, sai de casa da mãe do arguido, com quem vivia em união de facto, não por lhe ser impossível viver com o arguido, mas por se ter desentendido com a mãe deste, facto provado no Douto acórdão, ponto 18.º. 12.–Pelo que, a prova produzida nos presentes autos impunha ao Tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta do acórdão recorrido, considerando que o arguido não havia cometido qualquer crime de violação. 13.–Desta forma, o Tribunal a quo violou, entre outros: - O art.º 32.º, n.º 2 (in dúbio pro reo), da Constituição da Republica Portuguesa; - Os arts.º 97.º, n.º 5, 127.º, 340.º, 365,º, n.º 3 e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal. 14.–Acresce o facto, do texto do acórdão recorrido resultar a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a al. a), do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal. 15.–Viola a norma contida no artigo 32.º, n.º 1.º e 5.º da Constituição da Republica Portuguesa, a interpretação que se fizer do artigo 358.º, n.º 1 e n.º 3 do CPP, no sentido de valorar a que a alteração da qualificação jurídica e a alteração não substancial dos factos contidos na acusação, se basta com a mera comunicação em audiência de discussão e julgamento, sem que no seu seguimento se proceda à produção de prova e se dê ao arguido o direito a exercer o contraditório, para defesa dessa alteração da qualificação jurídica ou alteração não substancial dos factos, violação do principio básico do processo penal, o principio do acusatório. 16.–O artigo 152.º n.º 1 al. b, e al. e) in fine, do Código Penal, estabelece uma relação de subsidiariedade entre este crime e o crime de violação, p. e p. pelo art.º 164°, n.º 1 al. a) do Código Penal, devendo o agente ser punido, pela globalidade dos factos, apenas pelo crime de violação, por ser o mais grave, e não por ambos em concurso real, como aconteceu. 17.–Nos termos do artigo 50.º do Código Penal, a execução da pena de prisão pode ser suspensa na sua execução, o que se requer. 18.–O arguido está preso, preventivo, desde 18/06/2021. 19.–O arguido tem asseguradas em liberdade todas as condições para prover aos seu sustento e garantir a obtenção de rendimentos para satisfazer a condenação indemnizatória. 20.–Submetendo-se o arguido a regime de prova, sujeita a revogação, permitirá ao arguido a sua reintegração no meio familiar, no laboral, logrando obter rendimentos para o seu sustento e poder cumprir com o pagamento da indemnização a que foi condenado. Em suma, nos presentes autos não ficou provado, antes pelo contrário, que houvesse sido dado cumprimento ao decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que devem os presentes autos ser devolvidos à primeira Instância para cabal cumprimento do decidido por aquele Tribunal Superior. Não ficou também cabalmente provado, nos presentes autos que, o arguido houvesse praticado os crimes de violação em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos factos pelos quais o arguido vinha acusado e quanto à culpa deste, pelo que deve ser absolvido dos dois crimes de violação. No entanto admitindo-se, por mera hipótese que o arguido os cometeu, dever considerada a relação de concurso aparente entre os crimes violência doméstica, com os crimes de violação, devendo ser condenado apenas pelo crime de violação, por ser o mais grave. *** O Mº Pº na sua resposta ao recurso interposto pelo arguido apresentou as seguintes conclusões: 1–O Recorrente A foi condenado, por Acórdão proferido no âmbito dos presentes autos, pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de:
2.–Conforme já se referiu na resposta ao recurso interposto pelo Recorrente em 7.10.2022, compulsados os autos constata-se que foi proferido acórdão, no âmbito do presente processo, em 8.02.2022, tendo o Tribunal a quo, previamente à sua leitura, procedido a uma comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos e a uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 358.º do CPP. 3.–Nada tendo sido oposto ou requerido, o Tribunal a quo procedeu à sua leitura. 4.–Não obstante, o arguido recorreu desse acórdão alegando que o mesmo era nulo, nos termos do art.º 379.º, n.º 1 al. b) do CPP, uma vez que não teria sido expressamente comunicado ao arguido que lhe assistia o direito a exercer o contraditório. 5.–Sobre esse recurso recaiu o acórdão de 9.06.2022, proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu conceder provimento ao mesmo e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, determinando a reabertura da audiência de discussão e julgamento para cabal cumprimento do disposto no art.º 358.º, n.º 1 e 3 do CPP ditando-se em acta quais os factos a alterar e quais os crimes a aditar ou alterar, permitindo-se ao arguido o exercício do contraditório e substituindo-se o acórdão revogado por outro que venha a decidir em conformidade. 6.–Em cumprimento do determinado, o tribunal a quo, designou nova data para a leitura do acórdão – dia 07.10.2022 -, tendo sido, uma vez mais, comunicada uma alteração da qualificação jurídica dos factos, bem como à alteração não substancial dos factos descritos na acusação (cfr. Acta de Audiência de Discussão e Julgamento de 07.10.2022). 7.–Nessa altura foi requerido, pelo Ilustre Defensor do arguido, prazo para apreciar todo o proferido pelo Tribunal a quo, por 20 dias. 8.–O que foi deferido, mas pelo prazo de 10 dias, tendo a consulta do processo, fora da secretaria do tribunal, sido deferido pelo prazo de 5 dias. 9.–Nada tendo sido requerido posteriormente pelo Recorrente, foi então designado o dia 02.11.2022 para a leitura do acórdão. 10.–O que veio a ocorrer. 11.–Do exposto, há que concluir que, se o Recorrente não requereu qualquer elemento de prova, exercendo o contraditório, foi porque não quis. 12.–Foi-lhe dada essa oportunidade, pelo menos por duas vezes e nada requereu. 13.–Face à sua inércia, não pode pretender, sistematicamente, que lhe seja dado novo prazo para o fazer. 14.–A produção de prova tem de ser requerida. 15.–Não é o tribunal que, oficiosamente, a vai determinar. Tanto mais que, para o tribunal a quo, a prova dos factos alterados foi cabalmente produzida. 16.–Pelo que a sua sucessiva pretensão e a respectiva motivação apresentada raiam a má fé e a deslealdade processuais dado que, desde a primeira data lhe foi dada a possibilidade de apresentar prova suplementar quanto à alteração não substancial de factos comunicado, bem como relativamente à alteração da qualificação jurídica dos factos e nada fez. 17.–Pretendendo, uma vez mais, fazer recair sobre o tribunal a responsabilidade de o não ter feito. 18.–Assim, há que concluir não lhe assistir razão, não padecendo o acórdão proferido de qualquer vicio, nomeadamente da nulidade prevista no art.º 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, nem viola, tão pouco, o art.º 32.º, ns.º 1 e 5 da CRP ou a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa. 19.–O Recorrente vem impugnar a factualidade dada como provada nos pontos 20 e 25, por entender que não foi feita prova da mesma. 20.–E baseia o seu entendimento no facto do arguido os ter negado e de ser expectável que a ofendida tivesse abandonado o lar onde vivia em união de facto com o arguido por não suportar os “maus tratos” que este supostamente lhe infligia, mas nunca por se não entender com a mãe daquele, o que se verificou. 21.–Analisadas as conclusões e a respectiva motivação, afigura-se-nos que o recorrente incorre numa confusão muito frequente ao confundir o âmbito dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, com o recurso versando a matéria de facto, isto é, com o chamado erro de julgamento, pois o que o recorrente questiona é o modo como o tribunal a quo valorou a prova produzida, ou seja, o uso que o tribunal recorrido fez do princípio da livre apreciação da prova. 22.–Trata-se, na verdade, de opções processuais distintas, reclamando tratamento diferenciado. 23.–Ora, na motivação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal a quo explicou e fundamentou a sua decisão de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência comum. 24.–Para a prova de tais factos, e na ausência de melhor colaboração por parte do arguido com vista à descoberta da verdade material, considerou o Tribunal a quo o depoimento da ofendida, prestado em sede de inquérito, a título de declarações para memória futura. 25.–E justificou a razão de ter dado credibilidade a tais declarações, atenta a coerência do relato que fez e respectiva componente afectiva. 26.–E não se diga, como pretende o Recorrente, que o facto de ter saído da residência onde vivia consigo, em união de facto, por se ter desentendido com a sua mãe e não devido aos maus tratos que lhe infligia (e que ficaram provados), significa que não a violava. 27.–Sendo certo que os factos dados como provados nos pontos 20 e 25 ocorreram após esta ter saído daquela casa (não obstante também já se verificarem em data anterior). 28.–De todo o modo, diga-se que, do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação dos apontados vícios posto que daquele decorre que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e dele não resulta qualquer incompatibilidade entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão, assim como nele não se detecta qualquer equívoco ostensivo contrário a facto do conhecimento geral ou ofensivo das leis da física, da mecânica, da lógica ou de conhecimentos científicos criminológicos e vitimológicos. 29.–No caso em apreço, nenhuma dúvida se suscitou ao tribunal quanto aos factos que deveria dar como provados ou não provados, tendo a prova sido reputada suficiente para a decisão da causa, isto é, foi considerada bastante e não dando margem para dúvidas quanto à autoria, por parte do arguido, dos crimes por cuja prática foi condenado. 30.–Pelo que o tribunal a quo, ao considerar que o recorrente praticou os factos em causa, não violou o princípio in dubio pro reo, uma vez que, apreciada a prova, não permanece em aberto uma qualquer hipótese factual alternativa à dada como provada na sentença sub judice. Ou seja, em face de toda a prova produzida, não teve o tribunal a quo qualquer dúvida de que o arguido praticou, em autoria material, os factos dados como assentes no acórdão recorrido. 31.–Sendo recorrente, em termos jurisprudenciais, o tema da distinção entre concurso real de infracções e o concurso aparente, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27.05.2010 (procº nº 474/09.4.L1.S1 in dgsi.pt) que: “I-A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no art. 30.º do CP, a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. II-O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico. III-A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal. IV-Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção). V-O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado). VI-Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. VII-A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração – concurso impróprio, aparente ou unidade de lei. VIII-A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção. IX-Há consumpção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cf. H. H.-Jescheck e Thomas Weigend, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, pág. 788 e ss.). X-A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.” 32.–No vertente caso, está em causa saber se existe concurso real ou aparente entre o crime de violência doméstica e os crimes de violação pelos quais o Recorrente foi condenado. 33.–O bem jurídico protegido no crime de violação p. e p. pelo art.º 164.°, n.° 1, al. a) do CP é a liberdade de determinação sexual. 34.–O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo, visando essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrangendo também a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. Esse bem jurídico, por conseguinte, é susceptível de ser afectado por toda uma diversidade de comportamentos, desde que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge. 35.–Mas, se o crime de violência doméstica visa acautelar o que podemos chamar de um bem jurídico complexo ou multifacetado, podendo nele ser integrado uma série de comportamentos que, isoladamente, também são alvos de tutela penal, há que compreender quando é que essa tutela global, ínsita no crime de violência doméstica, abrange de forma adequada todo o comportamento criminal do agente, numa tutela eficaz da vítima e quando há que punir, autonomamente, outros comportamentos do agente embora eventualmente perpetrados no mesmo contexto. 36.–O crime de violência doméstica é punível com a moldura penal de 2 a 5 anos (nº 2 do art.º 152.º do CP). 37.–No crime de violação a moldura penal é de 1 a 6 anos de prisão. 38.–Se considerássemos que o crime de violação era consumido pelo crime de violência doméstica, porque pode efectivamente integrar o quadro de humilhação, maus-tratos e subjugação da vítima, na figura de “ofensa sexual” prevista no respectivo tipo legal, então, claro se torna ver que a punição do agente apenas pelo art.º 152.º do Código Penal fica muito aquém da tutela penal prevista para o crime de violação tomado isoladamente. 39.–É certo que, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 152.º do CP, vem prevista uma cláusula de salvaguarda através da qual o legislador determinou que a punição do crime de violência doméstica é de 1 a 5 anos de prisão “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. 40.–Mas, nesta situação, embora se possa aplicar ao agente a moldura penal mais elevada dos crimes que isoladamente possa ter perpetrado, o mesmo continua a ser punido por um único crime, passando o crime de violação, por exemplo, a absorver o crime de violência doméstica o que retira por completo a tutela deste crime que merece um enquadramento próprio. 41.–Na prática absorver o crime de violação no crime de violência doméstica ou absorver o crime de violência doméstica no crime de violação, nunca permitirá a efectiva tutela de todos os bens jurídicos visados pelas respectivas incriminações penais (neste sentido, vd. Acórdão do TRL de 21.10.2020, disponível em dgsi.pt). 42.–Também tem sido jurisprudência constante do STJ o entendimento de que o crime de violação, quando concretamente delimitado, e o crime de violência doméstica estão em situação de concurso efectivo (Cfr. Acórdãos de 10-11-2016 (procº nº 163/14.8GBSTC.S1), de 20-04-2017 (procº nº 2263/15.8JAPRT.P1.S1), de 07-02-2018 (procº nº 312/15.9POLSB.S1), de 27-06-2018 (procº nº 131/17.8JAPRT.S1), de 04-07-2018 (procº nº 274/16.5GAMCN.P1.S1) e de 21-11-2018 procº nº 574/16.4PBAGH.S1). 43.–Ora, no caso em apreço, dúvidas não restam que os factos que permitem integrar a pratica, pelo Recorrente, de um crime de violação separam-se, de forma muito clara, dos restantes factos que dão origem à verificação do crime de violência doméstica. 44.–Estamos, assim, claramente perante dois crimes autónomos, quer em termos de resolução criminal, quer em termos de significado e sentido sociais de ilicitude, razão pela qual deverá o Recorrente ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º nº 1 al. b) e nº 2 al. a) e de dois crimes de violação ps. e ps. pelo art.º 164.º nº 1 al. a) do Código Penal, em concurso real ou efectivo de crimes. 45.–Apesar de, atenta a pena em que o Recorrente foi condenado – 4 anos e 6 meses de prisão - ser admissível a suspensão da sua execução (art.º 50.º do Código Penal), o Tribunal a quo ao não suspender a execução da pena, teve em consideração as necessidades de prevenção geral, as várias condenações anteriores, mesmo que por diversa tipologia de crime, sendo que já havia cumprido, recentemente, uma pena de 8 meses de prisão, executada em regime de permanência na habitação, com vigilância electrónica. A acrescer os défices que o arguido demonstra ao nível da consciência crítica e autoanálise, tendo sido clara em julgamento a prevalência de uma atitude de negação incompatível com qualquer juízo de autocensura. 46.–Pelo que entendeu que, mesmo não se ignorando o seu percurso laboral relativamente regular, a execução da prisão é exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, desaconselhando as circunstâncias “supra” referidas qualquer juízo de prognose favorável que permita concluir em sentido contrário. 47.–Efectivamente, é patente a gravidade das condutas levadas a efeito pelo Recorrente, como muito bem se fundamenta no acórdão recorrido, revelando-se as necessidades de prevenção geral elevadas e as de prevenção especial, igualmente, muito elevadas, atendendo a que aquele atingiu a integridade física, a honra, a consideração, a liberdade pessoal/sexual e a saúde psíquica/mental da vitima. 48.–É evidente a completa ausência de interiorização da gravidade dos actos perpetrados por parte do Recorrente, o qual demonstra falta de espírito crítico e de motivação para adoptar um comportamento normativamente adequado, sendo tal persistência relevante para aferir do pronóstico sobre a insuficiência da suspensão da execução da pena para acautelar os fins da punição. 49.–Razão pela qual os fundamentos apresentados pelo tribunal a quo para não suspender a execução da pena de prisão aplicada se mostram ajustados, congruentes e completos, perante o quadro circunstancial descrito e em face da personalidade do arguido e, atentas as circunstâncias do crime, nem seria expectável que a confiança da comunidade na validade da norma violada fosse restabelecida sem o cumprimento efectivo de uma pena de prisão. 50.–Em suma, é a revelada personalidade do recorrente, a sua persistência criminosa e a falta de interiorização da gravidade dos factos perpetrados que ditam a necessidade de cumprimento da pena de prisão efectiva em função das exigências de prevenção especial. 51.–Impondo-se o cumprimento da pena aplicada, de forma contínua e em estabelecimento prisional, sob pena de, de outra forma, não se confrontar o arguido com suficiente contra-motivação para resistir a novas tentações desviantes, ficando, então, aquém do limiar mínimo das exigências preventivas, mormente no domínio da prevenção especial de socialização. 52.–Assim, concorda-se inteiramente com o veredicto condenatório, por se entender que foi feita justiça e o direito bem aplicado. 53.–No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito. 54.–Nesta conformidade, negando-se provimento ao recurso e mantendo-se o douto acórdão recorrido, será feita justiça. *** A 9.6.2022 foi decidido por acórdão desta Relação que a audiência de julgamento fosse reaberta para cumprimento do disposto no art. 358º, n.º 1 e 3 do CPP relativamente aos crimes a aditar e aos factos a alterar, produzindo-se novo acórdão. Reaberta a audiência e publicado novo acórdão veio o arguido interpor novo recurso, com as conclusões de recurso que reproduzimos supra e que agora se conhece. Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra a fls. 588 dos autos, pugna pela improcedência do recurso. Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada foi respondido. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito. II–Fundamentação: Fundamentação de facto São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª Instância: “1.–O arguido e B iniciaram uma relação de namoro, um com o outro, há cerca de dois anos. 2.–A partir de data não concretamente apurada, mas pelo menos situada em janeiro de 2020, passaram ambos a viver em comunhão de mesa, leito e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, sendo numa primeira fase na casa da mãe do arguido, situada na Avenida ..., tendo em fevereiro de 2020 mudado de residência para um anexo onde vivia o pai da então companheira. 3.–Sensivelmente a partir de junho de 2020, o arguido passou a maltratar B, física e psicologicamente. 4.–Acedendo, constantemente e sem autorização da mesma, ao conteúdo do seu telemóvel, a fim de controlar-lhe as chamadas, mensagens e redes sociais. 5.–Apodando-a, por diversas vezes, designadamente, de “puta”, “filha da puta”, e “Cabra”. 6.–E molestando-a fisicamente, também por várias vezes, com apertões do pescoço, puxões de cabelo e chapadas e pontapés em diversas partes do corpo. 7.–Como não pretendesse continuar a ser vítima das referidas condutas do arguido, B pediu-lhe, por diversas vezes, que se fosse embora do local onde então residiam, a saber, o referido anexo da habitação pertencente ao progenitor dela. 8.–Continuando, não obstante, os dois a viver juntos e a manter a relação entre eles, em virtude de o arguido pedir desculpa pelos seus atos e B o desculpar. 9.–Em julho de 2020, como o referido anexo não tivesse quaisquer condições de habitabilidade, foram ambos acolhidos no Centro de Acolhimento .... 10.–Nessa altura, B fazia limpezas numa casa particular. 11.–Como não pretendesse que ela trabalhasse, o arguido seguia-a até à paragem do autocarro e fazia pressão para que a mesma não fosse trabalhar, para assim se manter dependente dele. 12.–Em setembro de 2020, o arguido abandonou aquele Centro de Acolhimento e foi trabalhar para França. 13.–Decorrido cerca de um mês, regressou e disse a B que a ajudaria com o filho dela, com cerca de 5 anos de idade, caso a mesma fosse viver com ele para a residência da progenitora deste. 14.–Durante o período em que se manteve a residir com o arguido, em casa da mãe deste, o arguido forçou, por diversas vezes, B a ter relações de cópula completa com o mesmo. 15.–Dizendo-lhe que, caso ela não anuísse, a mesma não fumaria nem comeria. 16.–Em data não concretamente apurada, mas posterior à referida em 13, o arguido apoderou-se de várias facas de cozinha, encostou uma delas ao pescoço de B e disse-lhe, com foros de seriedade, que, se a mesma não era dele, não seria de mais ninguém. 17.–Sendo que, ao tentar afastar o arguido e repelir a ameaça, B cortou-se num dedo. 18.–Em data não concretamente apurada, B abandonou a residência da progenitora do arguido, devido a desentendimentos com a mãe de A, passando a habitar na residência de um tio. 19.–Posteriormente, em data não concretamente apurada, por ocasião de um encontro fortuito entre ambos, ocorrido no Fórum Sintra, o arguido logrou conduzir B a uma casa abandonada, ali próxima. 20.–Aproveitando-se da sua maior força física, o arguido, contra a vontade de B, tirou-lhe a roupa e introduziu o seu pénis na vagina dela, efetuando movimentos sucessivos com o mesmo, para a frente e para trás, até ejacular. 21.–Entretanto, B passou a residir no Centro C... V..., sendo que no início de abril de 2021 regressou ao Centro de Acolhimento .... 22.–Em data não concretamente determinada, mas situada cerca de dois dias depois do mencionado ingresso/regresso, B encontrou-se com o arguido na rua, tendo-se deslocado a um café com ele e, nessa ocasião, recebido do mesmo, tabaco e 1 (um) euro. 23.–No dia seguinte, o arguido telefonou-lhe, tendo-lhe dito para se encontrar com ele no parque sito naquela localidade de .... 24.–Cerca das 17 horas, encontraram-se, tendo-se deslocado para uma casa abandonada, aí existente. 25.–Não obstante a oposição de B, que lhe disse, expressamente, que não queria fazê-lo, o arguido, mais uma vez, aproveitando-se da sua maior força física, tirou-lhe as calças, introduziu o seu pénis na vagina da mesma, efetuando movimentos sucessivos com ele, para a frente e para trás, até ejacular. 26.–Após o que B regressou ao Centro de Acolhimento, sendo seguida pelo arguido, que avistou um outro utente a dar uma festa com a mão na face daquela. 27.–Ato contínuo, o arguido enviou uma mensagem escrita, por telemóvel, para o telemóvel de B, com o seguinte teor: “vou apanhar o teu amigo” 28.–No dia seguinte, o arguido efetuou uma chamada telefónica para o telemóvel de B, dizendo-lhe que teria um minuto para chegar ao café onde ele já se encontraria. 29.–Nessa sequência, assim que B ali chegou, o arguido dirigiu-se-lhe, nos seguintes termos: “andas a passear com o teu amigo, filha da puta?”. 30.–E, de pronto, desferiu-lhe uma chapada na face. 31.–No dia 26.04.2021, cerca das 19 horas, o arguido, através do respetivo portão das traseiras por onde entrou, logrou introduzir-se no referido Centro de Acolhimento, sem autorização e contra a vontade da(o) responsável pelo mesmo. 32.–Procurando, desde logo, B. 33.–Nessa sequência, assim que a avistou, a mesma fugiu para o interior do refeitório, onde o arguido, correndo, a alcançou, agarrando-a pelo braço e pelos cabelos. 34.–Após, o arguido arrastou-a para o exterior do Centro de Acolhimento e até junto do Centro de Saúde, em ..., tendo esta, ao ser arrastada, perdido os chinelos que calçava, seguindo descalça. 35.–No trajeto percorrido entre um local e outro, o arguido disse, repetidamente, a B, com foros de seriedade: “não és minha, não és de mais ninguém, vou-te fazer a folha” 36.–Sendo que, numas escadas onde viriam a sentar-se, o arguido, depois de entregar os seus ténis a B, disse-lhe que a mesma era uma “grande filha da puta” que “andava a vender o corpo para ter tabaco e beber café” e que “andava com o Horácio e com outros homens”. 37.–No dia 27.04.2021, quando B fazia a limpeza da ala feminina do referido Centro de Acolhimento, o arguido compareceu, novamente, aí, junto ao muro. 38.–Dizendo-lhe que queria falar com ela. 39.–Tendo B fugido, de imediato, com medo dele, reportando o facto a uma das assistentes sociais. 40.–O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de atingir, designadamente, a integridade física, a honra, a consideração, a liberdade pessoal/sexual e a saúde psíquica/mental de B. 41.–Bem como de lhe causar medo e inquietação e perturbar a sua liberdade de determinação. 42.–Fazendo-a temer, inclusivamente, pela própria vida. 43.–Ao atuar do modo descrito sob os pontos 31 e seguintes, supra, o arguido agiu, ainda, livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, concretizado, de se introduzir nas referidas instalações, bem sabendo que as mesmas se encontravam vedadas e que não dispunha de permissão para aí entrar. 44.–O arguido sabia que todas as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei. * Mais se provou: 45.–O arguido prestou declarações em julgamento e apenas confessou parcialmente a prática dos factos. * Condições Pessoais: 46.–Aquando da sua prisão preventiva à ordem dos presentes autos, arguido residia na casa da progenitora, sendo o clima relacional descrito como de adequação, estabelecendo igualmente contactos regulares com as duas irmãs germanas mais novas que se encontram autonomizadas e residem na mesma localidade. 47.–Profissionalmente, encontrava-se desempregado há cerca de 2 semanas devido à pandemia do Covid19, tendo permanecido anteriormente ativo a desenvolver funções como servente da construção civil para a mesma entidade patronal que, segundo a sua mãe, se mostra disponível para o readmitir aquando da sua restituição à liberdade. 48.–Com um quotidiano que refere sobretudo confinado à habitação, decorrente das suas caraterísticas pessoais, o arguido assume o consumo de substâncias psicoativas (haxixe) em contexto de convívio com amigos, com regularidade mensal. Mantém este hábito aditivo desde os 18 anos, referindo que o mesmo não tem interferido negativamente na sua vida. Igualmente desvaloriza o consumo de álcool, que não reconhece como excessivo, não assumindo qualquer necessidade de sujeitar-se a um tratamento. 49.–Natural de Sintra, quando A nasceu, no agregado viviam os dois irmãos consanguíneos mais velhos, caracterizando-se o ambiente intrafamiliar por desestruturação acentuada decorrente da problemática de alcoolismo da mãe, que infligia maus-tratos físicos e psicológicos aos descendentes. O pai assumia uma atitude tendencialmente mais passiva no agregado, descrevendo o arguido um clima relacional negativo com a figura materna. A subsistência dos diferentes elementos do agregado registava algumas dificuldades e dependia dos rendimentos do pai enquanto trabalhador na construção civil, sendo a mãe doméstica. 50.–Com um percurso escolar iniciado em idade própria, A registou duas retenções na antiga 2ª classe por absentismo e no 6º ano por desinteresse, abandonando a escola após conclusão desse ano letivo com cerca de 13 anos para ingressar no mercado de trabalho, inicialmente junto do pai no setor da construção civil. Prosseguiu depois um percurso laboral relativamente regular, com hábitos de trabalho, sobretudo na mesma área de atividade, para diferentes entidades patronais, embora tenha também desenvolvido funções como operário fabril. 51.–Com cerca de 21 anos, A autonomizou-se do agregado de origem e viveu com um irmão consanguíneo mais velho na localidade de Mem-Martins durante cerca de 1 ano, tendo posteriormente arrendado um quarto onde residiu sozinho até ter conhecido a mãe da sua filha. Aos 26 anos o arguido iniciou a referida relação amorosa, vivendo o casal em união de facto até agosto/2019, tendo o casal uma filha em comum, atualmente com 6 anos de idade aos cuidados da respetiva progenitora, continuando o arguido a estabelecer contactos com a descendente. 52.–A cumpriu anteriormente uma Pena de Prisão na Habitação com Vigilância Eletrónica, justificando o desgaste da relação com o confinamento na habitação a que esteve sujeito, tendo em outubro/2019 conhecido a ofendida no presente processo (B) através das redes sociais, referindo que a mesma se encontrava internada na Casa de Saúde da Idanha, instituição direcionada sobretudo a doentes psiquiátricos. O casal iniciou vivência em comum na habitação da mãe de A, tendo em fevereiro/2020 mudado de residência para um anexo onde vivia o pai da então companheira, que viria a falecer umas semanas depois. O arguido e a ofendida permaneceram na referida habitação até que o arguido ficou desempregado, ficando o agregado numa situação de carência financeira e sem recursos que assegurassem as condições básicas de subsistência. Em julho de 2020, ambos foram acolhidos num abrigo em Mem-Martins através da Santa Casa de Misericórdia de Sintra onde o arguido permaneceu até setembro/2020, altura em que emigrou para França para desenvolver atividade laboral na construção civil. O arguido permaneceu naquele país durante cerca de 1 mês, tendo depois o casal reintegrado o agregado materno do arguido, acabando a ofendida por sair da referida habitação devido a desentendimentos com a mãe de A. O arguido permaneceu no mesmo agregado materno embora mantivesse o relacionamento amoroso com a ofendida, apesar do descontentamento da sua mãe, afirmando continuar a apoiá- -la financeiramente através dos rendimentos que auferia no exercício profissional na construção civil. 53.–Embora negue conflitualidade no decurso da relação e vivência em comum com a ofendida, A reconhece um episódio isolado de desadequação na interação decorrente da tentativa de conversar com a então companheira após esta ter terminado unilateralmente o relacionamento amoroso sem qualquer justificação. O arguido não se revê na ilicitude relativa aos restantes factos constantes na acusação, afirmando manter um relacionamento anterior pautado por adequabilidade com a mãe da sua filha. 54.–O presente contacto com o sistema judicial não se constitui o único da trajetória de A, sendo que entre 15/09/2018 e 14/09/2019 cumpriu pena de prisão na habitação com vigilância eletrónica no âmbito do processo n.º 36/16.0GTCSC, do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Sintra, Juiz 2, pela prática, em autoria material de um crime de condução sem habilitação legal. No decurso da referida pena de prisão na habitação com vigilância eletrónica, A demonstrou globalmente capacidade para o cumprimento das regras e obrigações inerentes à situação judicial a que se encontrava sujeito. No entanto, após a rutura com a companheira e consequente saída desta da habitação, o arguido demonstrou alguma desestabilização emocional que se traduziu em incumprimentos de horários no regresso do trabalho, num deles ocorrido em 20/08/2019, regressando à habitação cerca de 6 horas após o horário estipulado, permanecendo em local desconhecido, o que motivou a remessa de dois relatórios de incidentes ao tribunal. No decurso do cumprimento do Plano de Reinserção Social, A integrou a resposta de reinserção social de condução, o arguido apesar de ter licença de aprendizagem há mais de um ano, demonstrou acentuada resistência na frequência das aulas de código, alegadamente por questões económicas e de tempo, frequentando, apenas pontualmente, algumas aulas. 55.–A encontra-se preso pela primeira vez desde 18/06/2021 no Estabelecimento Prisional de Caxias à ordem dos presentes autos, cumprindo globalmente as regras institucionais, tendo mantido ocupação laboral como faxina até dezembro/2021, altura em que foi suspenso da referida atividade após ter sido detetado canabinóide na urina. O arguido refere um impacto significativamente negativo decorrente da atual privação da liberdade, sobretudo na impossibilidade de desenvolver atividade profissional e na sua estabilidade psicoemocional, mantendo um quotidiano sobretudo mais isolado e confinado à cela. 56.–Em termos de futuro, A perspetiva reintegrar o agregado materno na morada dos autos e retomar atividade profissional na área da construção civil para a mesma entidade patronal, prosseguindo o seu percurso de vida. * Antecedentes Criminais 57.–Do certificado de registo criminal do arguido constam as seguintes condenações anteriores: a.-Condenação no processo n.º 436/02.2PBSNT do Tribunal Judicial de Sintra, por sentença transitada em julgado em 02.03.2007, pela prática em 01.07.2002, de um crime de furto de uso de veículo, numa pena de 60 dias de multa à razão diária 3 euros. A pena foi declarada extinta por prescrição. b.-Condenação no processo n.º 107/09.9GDSNT do Juízo de Média Instância Criminal de Sintra, por sentença transitada em julgado em 10.12.2012, pela prática em 28.03.2009, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa, à razão diária de 6 euros. A pena foi declarada extinta por prescrição. c.-Condenação no processo n.º 47/09.1SGLSB do 2.º Juízo Criminal de Lisboa, por sentença transitada em julgado em 19.12.2012, pela prática em 22.01.2009, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 80 dias de multa, à razão diária de 7 euros. A pena foi extinta pelo pagamento. d.-Condenação no processo n.º 1827/10.0GLSNT do Juízo de Média Instância Criminal de Sintra, por sentença transitada em julgado em 05.04.2013, pela prática em 02.10.2010, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa, à razão diária de 6 euros. A pena foi declarada extinta por prescrição. e.-Condenação no processo n.º 10838/12.0T2SNT do Juízo de Grande Instância Criminal de Sintra, por acórdão transitado em julgado em 15.04.2013, pela prática em 05.06.2008, de um crime de condução sem habilitação legal, de três crimes de roubo e de um crime de roubo sob a forma tentada, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova. A pena foi declarada extinta, nos termos do disposto no artigo 57.º, n.º 1 do Código Penal. f.-Condenação no processo n.º 615/09.1GLSNT do Juízo Local Criminal de Sintra, por sentença transitada em julgado em 10.09.2014, pela prática em 12.04.2009, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 horas de trabalho. A pena foi declarada extinta por prescrição. g.-Condenação no processo n.º 36/16.0GTCSC do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Sintra, por sentença transitada em julgado em 16.05.2016, pela prática em 04.04.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de oito meses de prisão, executada em regime de permanência na habitação, com vigilância eletrónica. FACTOS NÃO PROVADOS Do julgamento realizado nos presentes autos não resultou demonstrada a seguinte factualidade constante da acusação: a.-Sem prejuízo da matéria assente em 12, que tanto tivesse ocorrido em agosto de 2020. b.-Sem prejuízo da matéria assente em 13, que tanto tivesse tido lugar decorridos cerca de 15 dias. c.-Sem prejuízo da matéria assente em 31, que tanto tivesse ocorrido através do escalamento pelo arguido do muro circundante ao referido Centro de Acolhimento. d.-Sem prejuízo da matéria assente em 34, que então o arguido tivesse desferido várias chapadas na face de B. * CONVICÇÃO DO TRIBUNAL No que respeita à matéria de facto dada como provada e não provada formou o Tribunal a sua convicção na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como em toda prova documental constante dos autos e considerada igualmente analisada naquela sede. Teve ainda em conta este Tribunal as regras da vida e da experiência comum, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova ínsito no art. 127.º do Código de Processo Penal. 1–Os presentes autos iniciaram-se com a denúncia que constitui fls. 4 a 9, apresentada pela ofendida B contra o arguido. A consequente investigação culminou com a prisão preventiva do arguido à ordem dos presentes autos, no passado dia 18 de junho de 2021. Em primeiro interrogatório judicial o arguido não prestou declarações. Já em julgamento, fê-lo. Porém, negou a prática dos factos principais, limitando-se a esclarecer questões de pormenor, como por exemplo, o mês em que foi trabalhar para França (segundo ele setembro e não agosto), bem como o tempo de permanência nesse local. No mais, assumiu uma atitude de negação e de diminuição da vítima, procurando transmitir a ideia de que esta era uma pessoa desequilibrada (tal como também resultou do depoimento da irmã desta última, trazida pela defesa, a saber, a testemunha ..., ao afirmar, como afirmou, que estava mais estabilizada quando vivia com o Samuel Não obstante, e quanto ao episódio ocorrido no dia 26.04.2021, assumiu o arguido que de facto entrou no Centro de Acolhimento onde a ofendida então se mostrava acolhida, mas que apenas a puxou contra a sua vontade para fora daquele local, uma vez que tão só queria falar com ela para resolver as coisas, tendo-lhe esta dito que não queria mais nada consigo. Tudo traduzindo uma confissão meramente parcial, ainda se insistiu, sem qualquer relevância prática, na questão de a ofendida estar ou não descalça, quando aquilo que de facto resultou foi que a mesma, ao ser arrastada, perdeu os chinelos que calçava, seguindo descalça. 2–Na ausência de melhor colaboração por parte do arguido com vista à descoberta da verdade material, assentou a convicção deste tribunal, essencialmente, no depoimento da ofendida B, com quem o arguido chegou a viver em união de facto, depoimento esse prestado em fase de inquérito, a título de declarações para memória futura e que, no fundamental, convenceu este tribunal, sendo ainda com abertura do depoimento que constitui fls. 95/96, conforme decorreu dessas mesmas declarações (cf. fls. 255 verso). Nessa medida, tornou-se evidente, nos termos considerados assentes, que o relacionamento entre ambos foi tudo menos harmonioso, sendo patentes os desequilíbrios de parte a parte, mas também uma clara atitude de aproveitamento e de dominância imputável ao arguido, em face das maiores fragilidades da ofendida que a transformaram na vítima perfeita. Acresce, atestando o comportamento violento e dominante do arguido, a invasão pelo mesmo do espaço correspondente ao Centro de Acolhimento, onde então a vítima era residente, e o que depois se lhe seguiu e que consta fotografado nos autos (cf. autos de visionamento de fls. 112/115-A), nos termos descritos pela própria, mas também testemunhados por IF..., trabalhadora no centro em questão. Na verdade, e não obstante a defesa tenha pretendido, nomeadamente através da testemunha trazida a julgamento (..., irmã da ofendida,) enaltecer o comportamento do arguido enquanto companheiro e estabilizador da própria vítima, procurando transferir a atenção deste tribunal para os problemas de saúde mental desta última de modo a retirar-lhe credibilidade, não deixou este tribunal de estar especialmente atento à coerência do relato da ofendida e respetiva componente afetiva, ao descrever, como descreveu, o modo como o arguido tentou controlar-lhe a vida, a insultou, agrediu e molestou sexualmente, tudo decorrente de um claro aproveitamento pelo arguido dessas suas fragilidades. Relatou, pois, a ofendida, na perspetiva deste tribunal de forma credível, os sentimentos de inquietação por si vivenciados por via da conduta do arguido, associada a uma evidente tentativa de manipulação da sua parte, a par das estratégias e condutas de controlo, sendo tudo com o propósito concretizado de a maltratar psicologicamente, mas também fisicamente e sexualmente. Acresce, a este último título (sexual), e com clara relevância, serem perfeitamente identificáveis, já fora da vivência conjugal, dois episódios autónomos deste tipo, para além da frequência, não concretizada, dessas mesmas agressões sexuais durante o período em que a ofendida se manteve a residir com o arguido, em casa da mãe deste. Tudo visto e conjugado, e porque na perspetiva deste tribunal aquilo que foi credível foi o relato da ofendida, devidamente contextualizado e corroborado pelo episódio que culminou com a invasão pelo arguido do espaço por aquela habitado, temos como assente e relevante esse seu relato, em detrimento da simples negação dos factos proposta pela defesa do arguido. 3–Finalmente, e independentemente da factualidade não demonstrada, concretamente que a entrada do arguido no Centro de Acolhimento tivesse ocorrido através do escalamento do muro aí circundante, mas antes (conforme alteração não substancial a propósito) através do portão das traseiras do referido centro, (nos termos temos como certo que essa entrada não foi autorizada, de acordo com o expressamente esclarecido pela respetiva coordenadora, a testemunha ..., tudo cumprindo enquadrar juridicamente em conformidade. 4–Já a propósito das condições pessoais do arguido, foi considerado o relatório social para julgamento produzido pela DGRSP, onde se abordam as respetivas condições sociais e pessoais, sendo tanto, e também, em conjugação com a prova produzida em julgamento. 5–Por último, foram as condenações sofridas pelo arguido alcançadas a partir do respetivo certificado de registo criminal, nos termos considerados assentes. *** Fundamentos do recurso: Questões a decidir no recurso É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso. Questões que cumpre apreciar: –reitera o recorrente a invocação da nulidade da decisão nos termos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. b) do CPP, por o tribunal a quo ter procedido a uma alteração da qualificação jurídica, tendo condenado o arguido pela prática dos crimes de violência doméstica e introdução em local vedado ao público, crimes pelos quais vinha acusado, e ainda pela prática de dois crimes de violação, sem que tivesse cumprido cabalmente o disposto no art. 358º n.º 1 e 3 do CPP, entendendo não ter sido cumprido o ordenado pelo Acórdão de 9.6.2022 deste Tribunal da Relação- conclusões 1 a 7 e 15; - impugnação da matéria de facto no que respeita aos pontos 20º e 25º, factos relativos aos crimes de violação- conclusões 8 a 13; - insuficiência da matéria de facto para a decisão, nos termos previstos no art. 410º, n.º 2, al. a) do CPP;- conclusão 14; - concurso entre o crime de violência doméstica e o crime de violação- conclusão 16; - se a pena de prisão aplicada deve ser suspensa na sua execução- conclusões 17 a 20. Vejamos. O recorrente reitera a invocação da nulidade da decisão nos termos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. b) do CPP, por o tribunal a quo ter procedido a uma alteração da qualificação jurídica, tendo condenado o arguido pela prática dos crimes de violência doméstica e introdução em local vedado ao público, crimes pelos quais vinha acusado, e ainda pela prática de dois crimes de violação, sem que tivesse cumprido cabalmente o disposto no art. 358º n.º 1 e 3 do CPP, entendendo não ter sido cumprido o ordenado pelo Acórdão de 9.6.2022 deste Tribunal da Relação- conclusões 1 a 7 e 15; Relativamente a esta questão, já analisada no nosso acórdão de 9.6.2022, não tomaremos muito mais tempo a analisá-la. Dispõe o art. 358º do CPP: “1.–Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2.–Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3.–O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”. No nosso acórdão de 9.6.2022 decidiu-se reabrir a audiência de discussão e julgamento “para cabal cumprimento do disposto no art. 358º, n.º 1 e 3 do CPP, ditando-se em acta quais os factos a alterar e quais os crimes a aditar ou alterar, permitindo-se ao arguido o exercício do contraditório, e substituindo-se o acórdão revogado por outro que venha a decidir em conformidade”. A 7.10.2022 (a fls. 503 a 507) o Tribunal a quo deu cumprimento ao ordenado comunicando ao arguido a alteração da qualificação jurídica relativamente aos dois crimes de violação e ainda a alteração não substancial dos factos. Aliás, contrariamente ao alegado pelo recorrente, o tribunal na parte final da acta faz consignar as alterações aos factos que se havia considerado pertinentes pelo acórdão supra referido. Nessa sequência o defensor do arguido requereu que lhe fosse concedido o prazo de 20 dias para apreciação e a confiança do processo. O tribunal concedeu ao arguido e seu defensor o prazo de 10 dias e a confiança do processo por 5 dias. A 2.11.2022 (fls. 512 a 514) em acta fez-se consignar que o arguido nada requereu, nem produziu qualquer prova, pelo que se passou à leitura do acórdão. O arguido na pessoa do seu defensor requereu prazo para a preparação da defesa e nada fez, pelo que sibi imputet. Não pode agora pretender imputar a terceiros a responsabilidade pela sua ausência de actuação. Quanto ao que alegadamente terá requerido oralmente no dia 2.11.2022, tal não consta da acta, o que significa que o Sr. Advogado nada ditou para a acta, pelo que manifestamente nada cumpre conhecer. Compulsados os autos verifica-se que o arguido nada requereu no prazo que lhe foi concedido para o efeito. Não pode agora vir insurgir-se contra o Tribunal porque não foi produzida mais prova e não foi exercido o contraditório. Para o Tribunal Constitucional o sentido essencial do principio do contraditório está em que “nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo só interlocutória) deve ai ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dado ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra a qual é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar” (acórdão do TC n° 171/92, BMJ 427, p. 57; e Parecer n° 18/81 da Comissão Constitucional, em Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16°, p. 147). Concluindo, o Tribunal a quo cumpriu o determinado por este Tribunal, foi dada a possibilidade do arguido exercer o contraditório e este não o fez. Não se verifica, pois, qualquer nulidade, tendo sido garantido o efectivo exercício do contraditório. - impugnação da matéria de facto no que respeita aos pontos 20º e 25º, factos relativos aos crimes de violação - conclusões 8 a 13; Funda o recorrente a sua discordância relativa ao acórdão proferido nos autos na alegação de erro de julgamento e de que os factos provados padecem de insuficiente respaldo na prova produzida. Para tanto, alega o recorrente que apenas a ofendida depôs quanto a esses factos e que as suas declarações são tudo menos claras e esclarecedoras. Sucede que, conforme há muito entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores, o recurso em matéria de facto previsto no nosso sistema processual, não se destina à obtenção de um segundo julgamento sobre tal matéria, mas antes está concebido, tão só, como um remédio jurídico destinado a corrigir eventual ilegalidade cometida. Alega o recorrente que: “9.–As declarações da ofendida são tudo menos claras e esclarecedoras do que se passou entre ela e o arguido, no que ao crime de violação diz respeito, aliás, diz peremptoriamente que, em casa da mãe daquele, este nunca a obrigou a ter relações sexuais com ele. 10.–A testemunha ouvida, com quem a arguida partilha a sua vida, sua irmã, ..., diz que a ofendida pretende prosseguir a sua vida com o arguido. 11.–Mais, a ofendida, sai de casa da mãe do arguido, com quem vivia em união de facto, não por lhe ser impossível viver com o arguido, mas por se ter desentendido com a mãe deste facto provado no Douto acórdão, ponto 18.º.” E é tudo o que alega a este respeito, o que convenhamos, é escasso. Considerou o Tribunal a quo o depoimento da ofendida, prestado em sede de inquérito, a título de declarações para memória futura, como credível. E justificou a razão de ter dado credibilidade a tais declarações, atenta a coerência do relato que a ofendida fez e a respectiva componente afectiva. Alega o recorrente, que o facto de a ofendida ter saído da residência onde vivia consigo, em união de facto, por se ter desentendido com a sua mãe e não devido aos maus tratos que lhe infligia, significa que não a violava. Verifica-se que os factos dados como provados nos pontos 20 e 25 ocorreram, após a vitima ter saído daquela casa, pelo que mais não fosse por esta razão não colhe minimamente o argumento do recorrente. Cumpre ainda recordar que o Tribunal recorrido deu como provados os factos apurados na sequência do que foi relatado pela ofendida e por IF..., como resulta do seguinte excerto, que se transcreve: “Na ausência de melhor colaboração por parte do arguido com vista à descoberta da verdade material, assentou a convicção deste tribunal, essencialmente, no depoimento da ofendida B, com quem o arguido chegou a viver em união de facto, depoimento esse prestado em fase de inquérito, a título de declarações para memória futura e que, no fundamental, convenceu este tribunal, sendo ainda com abertura do depoimento que constitui fls. 95/96, conforme decorreu dessas mesmas declarações (cf. fls. 255 verso). Nessa medida, tornou-se evidente, nos termos considerados assentes, que o relacionamento entre ambos foi tudo menos harmonioso, sendo patentes os desequilíbrios de parte a parte, mas também uma clara atitude de aproveitamento e de dominância imputável ao arguido, em face das maiores fragilidades da ofendida que a transformaram na vítima perfeita. Acresce, atestando o comportamento violento e dominante do arguido, a invasão pelo mesmo do espaço correspondente ao Centro de Acolhimento, onde então a vítima era residente, e o que depois se lhe seguiu e que consta fotografado nos autos (cf. autos de visionamento de fls. 112/115-A), nos termos descritos pela própria, mas também testemunhados por IF..., trabalhadora no centro em questão.” Verifica-se que em relação aos factos, a decisão do tribunal recorrido, que beneficiou da imediação, não merece qualquer censura, sendo de assinalar, como decidido na jurisprudência dos tribunais superiores que “quando da atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se basear em opção assente na imediação ou oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras de experiência comum”. Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2002, in CJ, ano XXVII, Tomo II, pág. 44. Assim, “ao tribunal superior cumpre verificar a existência da prova e controlar a legalidade da respectiva produção, nomeadamente no que respeita à observância dos princípios da igualdade, oralidade, imediação, contraditório (…) verificando, outrossim, a adequação lógica da decisão relativamente às provas existentes. Assim, só em caso de existência de provas, para se decidir em determinado sentido, ou de violação das normas de direito probatório (nelas incluindo as regras da experiência comum ou da lógica) cometida na respectiva valoração feita na decisão de primeira instância, esta pode ser modificada, nos termos do art.º 431º do CPP”, cfr. Ac. do TRL, de 22.11.2005, no processo nº 3717/05.5. No caso concreto ora em apreciação, não se vislumbra, que o tribunal haja violado as regras de experiência comum ou da lógica, em que se funda a livre apreciação da prova, nem que haja violado qualquer das normas do direito probatório, o que recorrente também não invoca. O arguido limitou a sua impugnação da matéria assente, na sua pessoalíssima e diversa interpretação da prova, unicamente na negação dos factos assentes por indiciados na decisão recorrida, pelo que a interpretação da prova efectuada pelo recorrente, nos termos expostos, não tem sequer a virtualidade de abalar o julgamento da matéria de facto efectuada em primeira instância, como declarado pelo Tribunal Constitucional, no processo nº 198/04, publicado in DR II Série, de 2 de Junho de 2004, onde se afirma que: “A impugnação da decisão em matéria de facto terá de assentar na violação dos factos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma seria a inversão dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela de quem espera a decisão”. Também no mesmo sentido, e como corolário dos entendimentos jurisprudenciais referidos, se afirmou no Acórdão de 15.5.2005, do TRE, in www.dgsi.pt, que: “A impugnação da matéria de facto não se basta com a pretensão de se dar como provada a versão pretendida pelo recorrente, com base nas provas produzidas e diferentemente valoradas por quem recorre. A impugnação da matéria de facto, além de se dever estruturar nos termos definidos pelo art.º 412º nºs 3 e 4 do CPP, terá de ser equacionada com a livre convicção do tribunal a quo, face ao princípio da livre apreciação da prova. De outra forma, ficaria prejudicada a livre apreciação da prova pelo julgador que proferiu a sentença recorrida e prejudicada ficava a função da motivação da sua convicção e, por conseguinte, a natureza do recurso como remédio jurídico e a independência do tribunal a quo na sua livre convicção”. Alega ainda o recorrente que foi violado o disposto no art. 32º, n.º 2 da CRP. Com assento no art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República, o princípio da presunção de inocência surge articulado com o princípio in dubio pro reo, na medida em que, quando aplicado à apreciação da matéria de facto, impõe a absolvição, quando haja dúvida acerca da culpabilidade do arguido (esta culpabilidade, na acepção de facto criminalmente punível, abrangendo, pois, todos os elementos constitutivos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, circunstâncias agravantes e excludentes da ilicitude e da culpa). Donde, o aludido princípio, previsto no artigo 32.º, n.° 2, da CRP, tem o significado de que o juiz quando não tiver a certeza sobre a ocorrência de factos relevantes que prejudiquem o arguido, e subsistir a dúvida, deverá decidir em favor do arguido. Porém, nesse caso, terá de tratar-se de uma dúvida razoável, inultrapassável, que impeça a convicção do tribunal. O princípio in dubio pro reo constituí, deste modo, um limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127.º do CPP, na medida em que a dúvida que lhe subjaz, sendo insuperável, impõe-se com carácter vinculativo. Sucede que no caso dos autos a invocação por parte do recorrente do princípio do in dubio pro reo carece totalmente de sentido. Nem a fundamentação do acórdão demonstra que o colectivo de juízes se encontrou numa situação de dúvida inultrapassável, antes que formou a sua convicção da forma que explicitou, nem é caso em que possa concluir-se que o Tribunal recorrido considerou como provados factos relevantes desfavoráveis ao arguido relativamente aos quais, numa análise racional, objetiva e criteriosa da prova, se impunha que tivesse dúvidas inultrapassáveis. Improcede, pois, o pedido do recorrente nesta parte. - insuficiência da matéria de facto para a decisão, nos termos previstos no art. 410º, n.º 2, al. a) do CPP- conclusão 14. Dispõe o art. 410º, n.º 2, do CPP: “2–Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c)- Erro notório na apreciação da prova”. Os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, são vícios da decisão que devem ser apreciados à luz do texto da decisão recorrida, devem resultar do texto, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. O seu regime legal não inclui a reapreciação da prova, como sucede com a impugnação ampla da matéria de facto, limitando-se o tribunal de recurso à detecção do defeito que a sentença revela e, não podendo saná-la, determinar o reenvio. Como se escreve no Acórdão da Relação de Coimbra de 12.6.2019 (in dgsi.pt): “I–Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. (negrito nosso) II–Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69). Apenas na conclusão 14. o recorrente alude ao vício do art. 410º, n.º 2, al. a) do CPP, sem que esclareça em seu entender porque é que se verifica tal vício na decisão em crise. Compulsados os autos conclui-se que a matéria de facto dada como provada é manifestamente suficiente para se concluir pela prática pelo arguido dos crimes por que foi condenado, nomeadamente a matéria dos artigos 20 e 25, no que respeita aos crimes de violação e dos artigos 3 a 8 e 11 a 18 relativamente ao crime de violência doméstica. Improcede, pois, a pretensão do recorrente. - concurso entre o crime de violência doméstica e o crime de violação- conclusão 16; Alega o recorrente que “o artigo 152.º n.º 1 al. b, e al. e) in fine, do Código Penal, estabelece uma relação de subsidiariedade entre este crime e o crime de violação, p. e p. pelo art.º 164°, n.º 1 al. a) do Código Penal, devendo o agente ser punido, pela globalidade dos factos, apenas pelo crime de violação, por ser o mais grave, e não por ambos em concurso real, como aconteceu”. Nada mais diz. A este propósito seguimos aqui de perto o douto acórdão do STJ, de 21.11.2018 (processo n.º 574/16.4PBAGH.S1), sumário: “IV-O n.º 1 do art. 152.º do CP, com o segmento «se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal», consagra, de modo expresso, regra da subsidiariedade, significando, segundo alguns, que a punição por este crime apenas terá lugar quando ao crime geral a que corresponde a ofensa não seja aplicada uma pena mais grave. V-Neste entendimento, se a punição do(s) crime(s) concorrente(s) for superior a 5 anos – pena mais elevada do que a máxima abstracta prevista para a violência doméstica – estaremos perante um concurso aparente de crimes, sendo a incriminação do art. 152.º afastada em resultado da regra da subsidiariedade. VI-Uma aplicação meramente formal e positivista da regra da subsidiariedade expressa no citado art. 152.º, do CP poderá traduzir-se numa injustiça material de muitas decisões e num benefício para o infractor-arguido dificilmente tolerável. VII-A prática mais ou menos constante e reiterada das condutas descritas no art. 152.º, do CP desde que cada uma dessas condutas não permita a sua autonomização, dará origem a uma unicidade normativo-social, tipicamente imposta, pelo que o agente terá praticado um só crime, desde que esteja em causa uma só vítima. VIII-Esta unidade pode vir a cindir-se, no entanto, quando algum dos actos isolados permita a verificação do tipo social de um crime mais grave – ofensa à integridade física grave, violação, homicídio -, devendo o agente ser punido em concurso efectivo com os crimes de violência doméstica. IX-Na relação do crime de violência doméstica com outros de pena mais elevada, considera-se, pois, que a prática de crime mais grave é um factor de cisão da unicidade do crime, devendo concorrer, em concurso efectivo, o crime mais grave e a violência doméstica.” Com efeito, se for possível autonomizar outros crimes punidos com pena mais gravosa do que aquela que está prevista para o crime de violência doméstica e se houver pluralidade de resoluções criminosas então, a nosso ver, verifica-se um concurso efectivo de crimes, a punir autonomamente. Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se diz no artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal, mas que constituem um único crime, ou seja, a execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime. A soma dos eventos parcelares constituirá um único crime. O crime de violência doméstica enquadra-se neste tipo de crimes. Nas situações em que a um facto isolado corresponde uma pena superior à que corresponde à previsão do n.º 1 do artigo 152.º, existe concurso efectivo de crimes. O que vale para a situação em que concorre com a violência doméstica um ou mais crimes de violação, igualmente puníveis com pena superior à prevista para o crime de violência doméstica. O que é aqui o caso. Da análise dos factos provados verifica-se que nos factos 3 a 8 e 11 a 18 resulta provada a prática do crime de violência doméstica. No entanto, nos factos 19 e 20 é possível autonomizar a prática de outro crime, o de violação p. e p. pelo art. 164º, n.º 1, al. a) do CPenal e nos factos 24 e 25 cumpre autonomizar ainda outro crime de violação previsto e punido nos mesmo moldes do anterior. Assim, no caso sub judice os dois crimes de violação cometidos pelo recorrente na pessoa da sua companheira apresentam autonomia relativamente aos demais actos ilícitos que praticou contra a mesma ofendida e que por sua vez se subsumem à prática do crime de violência doméstica. Neste sentido, entre outros, Ac. Relação de Coimbra de 16.2.2022 (processo n.º 76/20.4GGCVL.C1), Ac. da Relação de Lisboa de 21.10.2020 (processo n.º 689/19.7PCRGR.L1) e de 24.11.2022 (processo n.º 799/21.2PBAGH.L1), todos in www.dgsi.pt. Também neste sentido, para além do já citado acórdão do STJ de 21.11.2018, Acórdãos do STJ (in wwww.dgsi.pt) de:
- se a pena de prisão aplicada deve ser suspensa na sua execução- conclusões 17 a 20. Para concluir pelo cumprimento efectivo da pena de prisão o tribunal a quo atendeu a que “São elevadas as necessidades de prevenção geral a que já aludimos, sendo ainda certo registar o arguido registar várias condenações anteriores, mesmo que por diversa tipologia de crime (furto de uso de veículo, condução sem habilitação legal e roubo), tendo inclusive cumprido, recentemente, uma pena de oito meses de prisão, executada em regime de permanência na habitação, com vigilância eletrónica. A tanto acresce os défices que o arguido demonstra ao nível da consciência crítica e autoanálise, tendo sido clara em julgamento a prevalência de uma atitude de negação incompatível com qualquer juízo de autocensura. Nestes termos, e mesmo não se ignorando o seu percurso laboral relativamente regular, consideramos que a execução da prisão é exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, desaconselhando as circunstâncias “supra” referidas qualquer juízo de prognose favorável que permita concluir em sentido contrário.” Estando verificado o requisito formal da suspensão da execução da pena (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos), há que indagar se ocorre o respetivo pressuposto material, isto é, se se pode concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, designadamente se bastarão para afastar o arguido da criminalidade, pois é esta a finalidade precípua do instituto da suspensão. As finalidades que estão na base da suspensão da execução da pena de prisão consistem, no essencial, na reintegração plena do agente na sociedade através de um comportamento responsável e sem praticar crimes. Subjacente à suspensão da execução da pena de prisão está sempre um juízo de prognose favorável, traduzido numa expectativa fundada, mas assente num compromisso responsável com o condenado, de que a mera censura do facto e a ameaça da prisão sejam bastantes para que não sejam cometidos novos crimes. Decorre do art.º 50.º, n.º 1, do CPenal que a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos é suspensa se o Tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição em sentido próprio, uma vez que que o seu cumprimento é feito em liberdade e pressupõe a prévia determinação da pena de prisão, em lugar da qual é aplicada e executada. Tem como pressuposto formal da sua aplicação que a medida da pena imposta ao agente não seja superior a cinco anos de prisão e como pressuposto material a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daquele, em que o Tribunal conclua que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as respetivas circunstâncias, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal). O juízo de prognose favorável reporta-se ao momento em que a decisão é tomada e pressupõe a valoração conjunta de todos os elementos que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, no sentido de que irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando o eventual cometimento de novos crimes prevenido com a ameaça da prisão, daí se extraindo, ou não, que a sua socialização em liberdade é viável. A aplicação desta pena de substituição só pode e deve ter lugar quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, como decorre do mencionado art.º 50.º do Código Penal. Circunscrevendo-se estas, de acordo com o art.º 40.º do Código Penal, à proteção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, é em função de considerações de natureza exclusivamente preventivas – prevenção geral e especial – que o julgador tem de se orientar na opção ora em causa. A aplicação de uma pena de substituição não é uma faculdade discricionária do tribunal, mas, pelo contrário, constitui um verdadeiro poder/dever, sendo concedida ou denegada no exercício de um poder vinculado. Na jurisprudência, tanto no Tribunal Constitucional como no Supremo Tribunal de Justiça, foi defendida a necessidade de fundamentação, face à versão anterior, justificando-se de pleno a mesma posição face à nova lei, em que apenas foi alterado o pressuposto formal passando do limite de 3 para 5 anos de prisão. Assim, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 61/2006, de 18.01.2006, in Diário da República, II Série, de 28-02-2006, julgou inconstitucionais, por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as normas dos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2 e 375.º, n.º 1, do CPP, interpretados no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos. O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, de forma pacífica, tratar-se a suspensão da execução de um poder-dever, de um poder vinculado do julgador, tendo o tribunal sempre de fundamentar, especificadamente, quer a concessão quer a denegação da suspensão. Por todos, veja-se a fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência - Acórdão n.º 8/2012 -, proferido no âmbito do processo n.º 139/09.7IDPRT.P1-A.S1, da 3.ª Secção, de 12 de setembro de 2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 206, de 24 de outubro. A caracterização da suspensão da execução da pena de prisão como um poder vinculado conduz à necessidade de fundamentação da decisão que a aplica, ou a desconsidera, incorrendo em nulidade a decisão que não contemple tal injunção, de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 379.º, n.ºs 1, al. c) e 2, do Código de Processo Penal. Considerando o exposto, vejamos o caso concreto. Contra o arguido há a ponderar que o mesmo, em sede de julgamento, quando prestou declarações quanto aos factos em causa nos autos admitiu apenas a veracidade de alguns factos, mormente os motivos das discussões que tinha com a ofendida, assumindo alguns episódios como a ida ao Centro de Acolhimento e pouco mais. Relativamente à restante factualidade revelou uma postura manipuladora, fugindo às questões. Teve um discurso de desresponsabilização em relação aos factos constantes da acusação, com consequente atribuição de culpas à ofendida, procurando inculcar a ideia de que se trata de uma pessoa desequilibrada. Nega, no mais, ter protagonizado os factos em apreço, não demonstrando arrependimento pela prática dos factos que resultaram provados, e demonstrando que ainda não interiorizou o desvalor, a gravidade e censurabilidade da sua conduta. O arguido agiu com dolo directo. Os factos praticados foram graves, pois praticou três crimes contra a vítima, sua companheira, sendo que os factos relativos ao crime de violência doméstica se prolongaram no tempo, ao longo de todo o ano de 2020. À data da prática destes factos o arguido tinha sete condenações criminais, cinco pela prática do crime de condução sem habilitação legal, uma pela prática de 3 crimes de roubo, um crime de roubo na forma tentada e um crime de condução sem habilitação legal e outra pela prática de um crime de furto de uso de veículo. Todas as penas se encontram extintas, à excepção da que foi aplicada no processo n.º 36/16.0GTCSC, cuja declaração de extinção não se encontra averbada no CRC. Concluímos que o arguido evidencia dificuldades de descentração e de autoanálise. Acompanhamos o tribunal a quo no sentido de que existe risco considerável de em liberdade o recorrente voltar a cometer o mesmo delito (referimo-nos essencialmente ao crime de violação), não se destacando elementos que permitam formular um juízo favorável quanto às virtualidades que a pena suspensa na sua execução poderia ter. Tem que se ter em conta aqui também as necessidades de prevenção geral face ao bem jurídico em causa e cuja validade da norma que o protege tem de ser reafirmada. Relembre-se que as sucessivas leis de politica criminal têm vindo a definir o combate aos crimes de violência doméstica, entre outros, como prioritários. No anexo à Lei 96/2017, de 23.8, que define os objectivos de politica criminal para o biénio 2017-2019, escreve-se que de acordo com os dados do Relatório Anual de Segurança Interna de 2016, a violência doméstica contra cônjuge ou análogos subiu 1,4 % (22.469 casos em 2015 e 22.773 em 2016) e os outros crimes de violência doméstica subiram 3 % (3.651 casos em 2015 e 3.762 em 2016). Já no anexo à Lei 55/2020, de 27.8, que define os objectivos de politica criminal para o biénio 2020-2022, consta no seu anexo que a “violência doméstica contra cônjuge ou análogos conheceu um significativo aumento de 10,6 % (22 423 casos em 2018 e 24 793 em 2019), o que, conjugado com o número de homicídios de mulheres ocorridos em 2019, torna incontornável a necessidade de reforçar as respostas para prevenir e combater a violência contra as mulheres e a violência doméstica, em todas as suas dimensões, tomando em consideração o previsto na Resolução do Conselho de Ministros n.º 139/2019, de 19 de agosto. De entre as tipologias que integram a categoria de crimes de violência doméstica, merece destaque a violência doméstica contra o cônjuge ou análogo que corresponde a 84 % de todas as participações por violência doméstica. No que se refere a subidas, todas as tipologias registam aumentos, sendo que os mais significativos são os verificados na violência doméstica entre cônjuges e análogos (22 423 participações em 2018 e 24 793 em 2019) e na violência doméstica contra menores (3573 participações em 2018 e 4123 em 2019)” Veja-se a este propósito entre muitos outros acórdão do STJ de 12.7.2018 em www.dgsi.pt. A conjunção de necessidades de prevenção geral face ao bem jurídico questionado e cuja validade da norma que o protege tem de ser reafirmada, bem como de outras de prevenção especial que as qualidades da personalidade do arguido não comprovam, e, pelo contrário, antes infirmam, não permitem por forma alguma preencher o juízo de prognose favorável quanto à sua capacidade para não voltar a delinquir. A circunstância de a pena privativa da liberdade surgir no nosso sistema punitivo sempre como a ultima ratio, não significa, porém, que não haja casos em que só essa pena é adequada a satisfazer os fins das penas. Se deve privilegiar-se a socialização em liberdade, não é menos certo que a defesa do ordenamento jurídico não pode ser postergada, sob pena de se sacrificar a função de tutela de bens jurídicos que a pena, irrenunciavelmente, desempenha. Não é, pois, possível formular um juízo de prognose favorável relativamente ao arguido, pelo que deverá cumprir a pena de prisão efectiva em que foi condenado, tal como decidiu o tribunal de 1ª instância. III.–Decisão: Acordam os juízes da 9ª secção desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, confirmando a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça - arts. 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e arts. 1.º, 2.º, 3.º e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este diploma legal). Lisboa, 23 de Março de 2023 Lídia Renata Goulart Whytton da Terra -(relatora) (assinatura digital) Maria José Cortes -(adjunta) (assinatura digital) Paula de Sousa Novais Penha -(adjunta) (assinatura digital) |