Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa  | |||
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| Relator: | IVO NELSON CAIRES B. ROSA | ||
| Descritores: |  IRREGULARIDADE PROCESSUAL NULIDADE PROCESSUAL ARGUIÇÃO CONGELAMENTO DE SALDOS BANCÁRIOS SEGREDO DE JUSTIÇA DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO INDÍCIOS CONTRADITÓRIO  | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/23/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: |  Sumário (da responsabilidade do Relator): I - Quanto às irregularidades processuais, assim como quanto às nulidades processuais, com exceção das nulidades insanáveis, as mesmas não podem, no âmbito do processo penal, ser arguidas em sede de recurso, mas sim em sede de reclamação perante o juiz do processo e só após decisão proferida por este sobre tal nulidade é que poderá eventualmente haver recurso. II - Tendo em conta o disposto no nº 6 do artigo 49º da Lei 83/2017 de 18 de agosto a medida cautelar de congelamento de saldos bancários depende da verificação cumulativa de dois pressupostos: É necessário, em primeiro lugar, a existência de indícios de que os fundos em causa são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo; É necessário, também, que se verifique o perigo concreto dos fundos serem dispersos na economia legitima. III - Quando na fase de inquérito, para a aplicação de uma medida restritiva de direitos fundamentais, como é o caso do congelamento de saldos bancários, se alude à presença de indícios, o que se pretende afirmar é que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas, como acontece com a SOB, mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma base de sustentação segura quanto aos factos. Naturalmente que essa base de sustentação segura deverá ser constituída por elementos de prova os quais deixem já uma impressão nítida da responsabilidade do suspeito ou arguido objetivadas a partir dos elementos recolhidos no inquérito. IV – A aplicação do segredo de justiça, que constitui um desvio à regra da publicidade, não é absoluto e jamais poderá sobrepor-se a outros princípios igualmente com proteção constitucional, como é o caso do contraditório, do direito ao recurso, do acesso à justiça e a um processo justo e equitativo, nas situações em que são proferidas medidas restritivas de direitos fundamentais, como é o caso concreto, e jamais poderá servir de justificação, como resulta do despacho recorrido, para não cumprir uma imposição legal decorrente do artigo 97º nº 5 do CPP e 205º da CRP.  | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: |  Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório Nos autos acima identificados foi proferido, no âmbito de atos jurisdicionais em sede de inquérito, o despacho do JIC, datado de ...-...-2025, através do qual o Tribunal a quo decretou o congelamento do saldo da conta bancária titulada pela recorrente junto do Banco ZZ, com o n.º …567. *** Não se conformando com essa decisão, a ... recorreu para este Tribunal da Relação tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição): O presente Recurso vem interposto do Despacho proferido pelo Tribunal Central de Instrução Criminal de ........2025 (com a referência 9264495, a fls. 1118 e ss. dos autos), através do qual foi determinado o congelamento do saldo da conta bancária identificada a fls. 1113 dos autos (conta titulada pela ... junto do Banco ZZ, com o n.º …567). DA VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO 2§. No Despacho recorrido, o Tribunal a quo, em violação do quadro constitucional e legal (artigo 32.º, nºs 1 e 5 da CRP), e inversamente ao entendimento da jurisprudência dos tribunais superiores, decidiu determinar a aplicação da medida de congelamento a proferir nestes autos sem contraditório prévio da visada. 3§. A eficácia da medida de congelamento de forma alguma seria prejudicada pelo exercício do contraditório, uma vez que os valores a ser congelados sempre estariam salvaguardados pela vigência da medida prévia obrigatória de suspensão temporária. 4§. A interpretação do artigo 49.º, n.º 6, da Lei 83/2017, de 18 de agosto, no sentido de que é admissível, mediante solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, sem antes conceder a possibilidade de exercício de contraditório ao visado pela medida, redunda em norma materialmente inconstitucional por violação dos artigos 1.º, 2.º, 12.º, nºs 1 e 2, 18.º, n.º 2, 20, n.º 1 e 4 e 32.º nºs 1, 2 e 5, todos da CRP. 5§. Assim sendo, o Despacho recorrido é irregular por preterição do contraditório, nos termos do disposto no artigo 123.º do CPP, razão pela qual devem V. Exas. reconhecer a sobredita irregularidade e, consequentemente, revogar o Despacho recorrido e ordenar a prolação de novo despacho após a concessão de prazo adequado para o exercício do contraditório relativamente ao referido na promoção do Ministério Público de fls. 1107 a 1114 dos autos. Sem prejuízo, DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO 6§. Nos termos do disposto nos artigos 205.º da CRP e 97.º, n.º 5, do CPP, legal e constitucionalmente, era exigível ao Tribunal a quo fundamentar devidamente o Despacho recorrido, procedendo de forma expressa a uma análise crítica dos fundamentos avançados pelo titular da ação penal e pela defesa, após ter cumprido, claro está, o dever de notificação para contraditório. 7§. Todavia, o Tribunal a quo limitou-se a fazer afirmações genéricas e conclusivas, decalcadas da promoção do Ministério Público, remetendo novamente em grande medida para o conteúdo desta última, o que é ainda mais grave, porque a própria promoção é vaga, é genérica, é tabelar, é conclusiva, pelo que o que nela se arrima, além de não ser um juízo próprio e fundamentado, constitui uma remissão para algo que não está minimamente fundamentado, nem quanto à alegação de factos concretos, individualizados e circunstanciados, nem quanto a meios probatórios. 8§. Verifica-se uma total ausência crítica dos argumentos aduzidos pelo Ministério Público, que “transpareça, de forma inequívoca, que o julgador, depois de ter ajuizado da pertinência, da relevância factual e jurídica de uns de outros, tomou uma decisão autónoma, da sua própria autoria e não por simples escolha acrítica, ou, pelo menos, não objetivada numa explicação inteligível para os seus destinatários e para as autoridades judiciárias de recurso”. 9§. É para a Recorrente incompreensível o motivo pelo qual, e com base em que provas, afirma o Tribunal a quo (i) estar indiciada a prática de atividades criminosas donde alegadamente provêm fundos, valores ou bens e/ou (ii) indiciado o perigo de os mesmos serem dispersos na economia legítima. 10§. O critério do artigo 49.º, n.º 6, da Lei 83/2017, de 18 de agosto, certamente não ficará suficientemente preenchido com a mera e genérica afirmação de que se verificam indícios, é preciso explicar, referir os concretos elementos de prova, os factos concretos atinentes a cada empresa, os movimentos financeiros, o que aqui não foi feito. 11§. A necessidade de fundamentação das decisões (de facto e de direito) é uma exigência constitucional num verdadeiro Estado de Direito (artigo 205.º da CRP), permitindo o controlo da sua legalidade e, sobretudo, a sua sindicância, especialmente quando as mesmas restringem direitos fundamentais. 12§. A fundamentação é no caso do congelamento especialmente exigente, e exigível, por não se tratar já da renovação de uma medida anteriormente vigente ― suspensão temporária de operações e bloqueio ―, mas sim da adoção de uma nova medida ― o congelamento dos fundos ―, cujos pressupostos legais, são mais exigentes, não se bastando com uma ou duas generalidades e uma ou outra vaguidade. 13§. A interpretação do artigo 49.º, n.º 6, da Lei 83/2017, de 18 de agosto, no sentido de que é admissível, mediante solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, sem fundamentação que demonstre que se mostra suficientemente indiciado que esses mesmos fundos, valores ou bens são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima, redunda em norma materialmente inconstitucional por violação dos artigos 1.º, 2.º, 12.º, nº 1 e 2, 18.º, nº 2, 20, n.º 1 e 4 e 32.º nºs 1, 2 e 5, todos da CRP. 14§. O Despacho recorrido é irregular por falta de fundamentação, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, do CPP, razão pela qual devem V. Exas. declarar a referida irregularidade e ordenar a prolação de novo despacho fundamentado de forma que a Recorrente consigam compreender os factos, provas, e raciocínios jurídicos que conduziram à aplicação da medida de congelamento, Sem prejuízo de tudo o que vai dito, e sem nunca prescindir dos vícios invocadas nos capítulos antecedentes, OS PRESSUPOSTOS DA MEDIDA DE CONGELAMENTO 15§. Para que o Juiz de Instrução Criminal possa determinar o congelamento dos fundos, nos termos do n.º 6 do artigo 49.º da Lei n.º 83/2017, a exigência legal afigura-se acrescida em comparação com a medida de suspensão temporária e bloqueio, passando pela indiciação de que esses mesmos fundos são provenientes ou estão relacionados com as atividades descritas e pelo perigo de esses mesmos fundos serem dispersos em economia legítima, caso o seu congelamento não seja decretado. 16§. In casu, não se verifica a mínima indiciação e concretização dos ilícitos precedentes ao alegado branqueamento, nem a concretização dos perigos de esses mesmos fundos serem dispersos em economia legítima, ao que se soma uma autêntica “indigência probatória” que se tem vindo a verificar nos presentes autos, em linha com o que acontece no “processo-mãe”, o NUIPC 405/18.0..., pois como facilmente se alcança da promoção do Ministério Público e do Despacho recorrido, em termos de prova nada se invoca, nada consta. 17§. O Despacho recorrido e a promoção do Ministério Público são praticamente decalcados das promoções de aplicação e renovação da medida de suspensão temporária e bloqueio, o que demonstra como (não) avançou a investigação levada a cabo ao longo dos últimos mais de 13 (treze) meses, pretendendo-se, agora, com base nessas considerações repetidas vezes sem conta, sustentar que meras suspeitas se converteram em indícios, isto sem nunca se invocar uma prova. 18§. Quanto ao perigo de os fundos serem dispersos na economia legítima, o Despacho recorrido limita-se a afirmar que; “mantém-se o perigo de as quantias […] serem dispersadas pela económica legítima”., o que é irremediavelmente insuficiente e, mais ainda, não se encontra alicerçado em quaisquer factos concretos nem em quaisquer elementos probatórios concretos. 19§. De modo que, outra não pode ser a conclusão senão a de que o congelamento determinado à conta da Recorrente é ilícito por não estarem verificados os requisitos para a sua aplicação. Não obstante o que via dito, A FACTUALIDADE E A (FALTA DE) FUNDAMENTAÇÃO PARA APLICAÇÃO DA MEDIDA DE CONGELAMENTO 20§. Os fundamentos oferecidos pelo Ministério Público e acolhidos pelo Tribunal a quo não são idóneos à aplicação da medida restritiva de direitos fundamentais em causa, pelo que era e é insustentável a vigência da medida de congelamento aplicada à .... 21§. Os fundamentos avançados para aplicação da medida de congelamento respaldam-se em meras suposições, distantes da realidade, donde resulta que a medida de congelamento foi aplicada acolhendo um enquadramento que não é verdadeiro e, por isso, não é válido, ou seja, não só as alegações avançadas são insuficientes, como são falsas, o que implica que a medida de congelamento deva cair em qualquer cenário. (i) A CONTA DA ... NO BANCO ZZ 22§. Os valores depositados na conta no Banco ZZ não têm nenhuma proveniência ilícita. 23§. O valor proveniente do resgate do papel comercial da ... e o valor proveniente da ... têm origem documentada, racional e lícita. (ii) O PAPEL COMERCIAL DA ... DO ... 24§. O crédito de € 1.996.340,00, com origem no resgate do papel comercial emitido pela ..., resultou de uma decisão de investimento legítima da ..., dadas as vantajosas condições de remuneração oferecidas ao mercado, pelo que o investimento foi racional, vantajoso e sem qualquer substrato ilícito. 25§. Uma vez findo o período de maturação do papel comercial, como aliás é da natureza dos investimentos, adveio retorno financeiro que entrou na esfera da .... 26§. Os fundos em causa não têm qualquer origem ilícita, não estando em causa qualquer atividade que consubstancie a prática de crimes, sendo que o Ministério Público nem se digna a estabelecer o nexo de ilicitude entre o recebimento do resgate do papel comercial do ... e qualquer facto alegadamente ilícito… 27§. A inserção do produto do papel comercial surgiu na fundamentação do Ministério Público à pressão, como que um estratagema para bloquear a totalidade do valor da conta, pois o que espoletou este processo foi unicamente a operação de transferência da ... para a ..., sem qualquer conexão com o papel comercial do .... 28§. Não é possível alcançar, da promoção do Ministério Público e muito menos do Despacho recorrido, os motivos pelo qual se associam os valores investidos em papel comercial do ... a negócios entre as sociedades ... ou ... e o grupo XX, e muito menos as razões de facto e de direito para esses negócios serem considerados ilícitos. (iii) A ..., O ... E A ... 29§. O ... é um fundo de investimento que foi essencialmente alavancado (mas não só) com património das empresas de AA, sendo participado legitimamente por uma série de outros investidores, de entre os quais algumas sociedades comerciais, como é o caso da ..., sendo, por isso mesmo, falacioso querer dar a entender que AA “controla as entidades participantes no referido Fundo”, pois apenas controla societariamente e sempre ao abrigo da Lei alguns dos participantes, sendo ainda certo que esse controlo não se pode confundir com o controlo dos destinos do ... 30§. A decisão de investimento do ... na ... foi uma decisão tomada autónoma e unicamente ― como não poderia deixar de ser ― pela sociedade gestora, a ..., que determina, como é natural, onde aplicar o património do fundo de investimento, sem que os participantes possam tomar qualquer decisão ou interferir (cf. regime do Decreto-Lei n.º 27/2023, de ..., que aprova o regime da gestão de ativos). 31§. A amortização da participação social da ... na ..., pelo valor de € 2.051.735,77 (dois milhões, cinquenta e um mil, setecentos e trinta e cinco euros e setenta e sete cêntimos), deveu-se ao facto de na sequência do processo n.º 405/18.0..., se terem suscitado temas de compliance e principalmente por questões de índole reputacional dos bancos, os principais clientes do produto comercializado pela .... 32§. A entrada de fundos na esfera da ... no valor de €2.050.000,00, com origem no ..., respeita a uma operação de um aumento de capital decidido pelos acionistas, entre os quais já não se incluía a ..., em virtude da amortização das suas ações em momento anterior. 33§. A decisão de aumentar o capital da ... coube única e simplesmente aos sócios. 34§. E a decisão de entrar com mais capital na ... por parte do ... coube única e simplesmente à entidade gestora do fundo e respetivos administradores, conforme as regras legais aplicáveis que o Ministério Público, tanto quanto é do conhecimento da Recorrente, não entende terem sido violadas pela ... 35§. Deste modo, contrariamente ao afirmado pelo Ministério Público na sua promoção, não existiu uma “circulação de fundos, para satisfazer a pretensão de liquidez da ...”, nem sequer “uma apropriação do capital do ... para finalidades estranhas ao seu objeto”. 36§. Em face do exposto, é também irrelevante que um dos beneficiários efetivos do ... seja o mesmo beneficiário efetivo da ..., que amortizou a sua quota na .... 37§. A saída da ... da ... está devidamente enquadrada e justificada, não fazendo qualquer sentido o que vem afirmando o Ministério Público. (iv) A ... E O ... 38§. Os valores recebidos pela ..., provenientes de sociedades controladas por AA, têm uma origem legítima, pois resultaram de serviços que foram efetivamente contratados por algumas empresas detidas por AA e a estas prestados, no desenvolvimento das suas normais atividades. 39§. Esses serviços não foram prestados unicamente à XX, foram também prestados, por exemplo, ao ..., coisa que o Ministério Público e, por inerência, o Tribunal a quo ignoram pura e simplesmente. 40§. Aliás, será de evidenciar que a ... continua a prestar serviços em obras em curso de empresas pertencentes a AA, agora que, como é sabido, estas já não têm qualquer relação com grupo XX. 41§. A ... no âmbito do desenvolvimento do seu negócio decidiu, motu propriu, investir no ... os montantes que considerou serem do seu interesse, tendo-se limitado a intervenção de AA ao facto de ter sido este que falou, no âmbito da sua relação de amizade, ao Senhor BB da oportunidade de negócio. 42§. É completamente desfasado da realidade e sem substrato lógico entender-se que AA, através das suas empresas, colocou dinheiro na ... –CC, para depois esse dinheiro ser colocado no ... 43§. A verdade corresponde, portanto, ao seguinte: a ... recebeu legitimamente dinheiro através de serviços que efetivamente prestou e decidiu investir no ..., por forma a conseguir o maior lucro possível na prossecução independente do seu propósito societário. (v) O CONTRATO DE MÚTUO CELEBRADO ENTRE A ... E A ... 44§. Não só não houve apropriação indevida de fundos do ... por parte da Recorrente, como o contrato de mútuo não tem qualquer problema do ponto de vista legal nem serviu para fazer circular fundos suspeitos de terem origem ilícita. 45§. Na origem deste contrato está o facto de também a ... se encontrar sujeita a uma série de medidas de bloqueio de contas bancárias, no âmbito do processo n.º 405/18.0..., além da situação de estrangulamento financeiro gerada pelo abalo reputacional resultante do aludido processo. 46§. O contrato de mútuo tinha como propósito, por um lado, cobrir os montantes devidos pela ... às sociedades ... e ..., S.A. (...), bem como o valor do IVA respeitante às faturas emitidas por aquelas empresas à ..., e devido à Autoridade Tributária e Aduaneira; e 47§. Por outro lado, alavancar um investimento imobiliário, através do qual se pretendia/pretende procurar dar continuidade à atividade da sociedade e a geração de lucro (o objetivo de qualquer sociedade comercial). 48§. Como tal, a transferência em causa tinha como único intuito o auxílio à ..., para esta poder fazer face às suas responsabilidades contratuais e fiscais e prosseguir a sua normal atividade social, não almejando qualquer dispersão de capital da ..., até porque contratualmente a ... tem o direito a receber o valor mutuado acrescido de juros. 49§. Atentando ao tipo de ilícito que configura o crime de branqueamento constante do artigo 368.º-A, do Código Penal, não é possível afirmar que, observando a realidade dos factos, estejamos perante uma situação típica de branqueamento, pois o Ministério Público enquadra o momento da transferência do montante contratualizado pela ... com a ... como pertencendo à fase de camuflagem ou de circulação, contudo, conceptual e doutrinariamente, o momento da circulação tem subjacente um motivo desprovido de racionalidade económica, meramente utilitarista e dissimulado, que visa a transferência dos fundos branqueados tendo em vista a sua posterior integração. Este não é manifestamente o caso. (vi) O PROCESSO 405/18.0... E A AQUISIÇÃO DE IMÓVEIS 50§. Os fundos provenientes da venda do imóvel sito na ..., não provêm de qualquer ato de corrupção, pois os preços praticados na transação eram, à data, os adequados ao valor de mercado, ou seja, nenhum valor foi simulado ou corresponde a um preço de favor, nem houve qualquer tipo de comparticipações ilícitas na celebração deste negócio. 51§. Mesmo que estivesse em causa um crime de corrupção ― o que não se admite e por cautela de patrocínio se coloca em hipótese ―, não basta um negócio estar sob investigação para então todo o dinheiro dessa empresa ser de proveniência ilícita e bloqueável... 52§. É imperativo que se demonstre o trato sucessivo entre o dinheiro na conta e os atos ilícitos, porque o dinheiro, como se sabe, é fungível e a ... tinha outras fontes de rendimento além da XX. 53§. Razão pela qual, também quanto a este ponto, tem que improceder a fundamentação para a manutenção da suspensão temporária de operações bancárias. Tudo isto dito: 54§. Em nenhuma das transações acima mencionadas existe qualquer indício da prática de qualquer atividade criminosa, não havendo, portanto, também por estas razões, motivo para a determinação e/ou manutenção da medida de congelamento aplicada à conta da ... junto do Banco ZZ. 55§. Isto porque existem, como já se referiu, contraindícios suficientemente fortes (e devidamente documentados) que permitem afastar a presunção de branqueamento aqui operada pelo Ministério Público. 56§. É falso que: “os fundos aportados à conta da ... junto do Banco ZZ têm exclusiva origem em entidades e negócios com o Grupo XX, que apenas foram celebrados por ter sido viciado o processo de formação da vontade negocial desse grupo, em particular por via de pagamentos indevidos a responsáveis desse Grupo, factos ilícitos que são objeto do NUIPC 405/18.0...” (cf. fls. 1112 dos autos). 57§. Sem margem para dúvidas, não estão “reunidos os pressupostos de indiciação da origem de fundos em atividade ilícitas e de risco de dispersão na economia legítima”, que estão previstos no artigo 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto. DA NÃO VERIFICAÇÃO DOS TIPOS INDICIARIAMENTE IMPUTADOS 58§. Os “factos” ditos indiciados não são idóneos a concluir que foi suficientemente indiciada a prática do crime de corrupção no setor privado, burla qualificada e fraude fiscal. i) Corrupção no setor privado 59§. Relativamente ao crime de corrupção ativa no sector privado (n.os 1 e 2 do artigo 9.º da Lei n.º 20/2008), o Tribunal a quo nada diz quanto à verificação em concreto dos elementos típicos do ilícito em causa, não há um mínimo esforço de rigor ou concretização. 60§. A consumação do crime de corrupção ativa implica a existência de uma ligação sinalagmática entre a oferta e o ato a realizar; mesmo no caso em que se verifique uma oferta sem aceitação, existe necessariamente um fito na oferta: a realização pelo trabalhador do setor privado de determinada conduta. 61§. A ausência da interdependência da vantagem e do concreto ato ou omissão, que possam ter servido como contrapartida, apenas é subsumível ao crime de recebimento indevido de vantagem (artigo 372.º do CP), o qual não é punível na esfera do setor privado. 62§. Não está identificado na promoção do Ministério Público, nem no Despacho recorrido, uma ligação sinalagmática, ou seja, um dos elementos essenciais para a conclusão de que estão suficientemente indiciados os crimes de corrupção passiva ou ativa, nos termos dos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 20/2008, pelo que não pode à Recorrente ou a outros agentes ser imputada a prática de um qualquer crime de corrupção ativa no setor privado, sob pena da violação do princípio da legalidade (artigo 29.º, n.os 1 e 3 da CRP). 63§. O n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 20/2008, interpretado no sentido de que para a consumação do crime de corrupção ativa no sector privado não é necessária a existência de um sinalagma ou interdependência entre a vantagem prometida ou oferecida e o concreto ato ou omissão visado, redundam em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 3, 18.º, n.os 1, 2 e 3 e 29.º, n.os 1 e 3, da CRP. 64§. Os n.os 1 e 2 do artigo 9.º da Lei n.º 20/2008, interpretados conjuntamente no sentido de que para a consumação do crime de corrupção ativa no sector privado não é necessária a existência de um sinalagma ou interdependência entre a vantagem prometida ou oferecida e o concreto ato ou omissão visado, redundam em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 3, 18.º, n.os 1, 2 e 3 e 29.º, n.os 1 e 3, da CRP. Mais, 65§. Por faltar dignidade e carência de tutela penal, a norma incriminadora em análise afigura-se violadora dos artigos 2.º e, principalmente, 18.º, n.º 2, da CRP, o que não se pode deixar de invocar. 66§. Assim sendo: a) o artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, ao punir o trabalhador do sector privado que, por si ou, mediante o seu consentimento ou ratificação, por interposta pessoa, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer ato ou omissão que constitua uma violação dos seus deveres funcionais com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias, redunda em norma materialmente inconstitucional por violação dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da CRP. b) o artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, ao punir com pena de um a oito anos o agente que praticou a conduta prevista no n.º 1 do mesmo artigo, se o ato ou omissão for idóneo a causar uma distorção da concorrência ou um prejuízo, patrimonial para terceiros, redunda em norma materialmente inconstitucional por violação dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da CRP. c) o artigo 9.º, n.º 1, da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, ao punir quem, por si ou, mediante o seu consentimento ou ratificação, por interposta pessoa, der ou prometer a pessoa prevista no artigo anterior, ou a terceiro com conhecimento daquela, vantagem patrimonial ou não patrimonial, que lhe não seja devida, para prosseguir o fim aí indicado com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, redunda em norma materialmente inconstitucional por violação dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da CRP. d) o artigo 9.º, n.º 2, da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, ao punir com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias o agente que praticou a conduta prevista no n.º 1 do mesmo artigo, se a conduta prevista no número anterior visar obter ou for idónea a causar uma distorção da concorrência ou um prejuízo patrimonial para terceiros, redunda em norma materialmente inconstitucional por violação dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da CRP. 67§. Em face do referido, cai qualquer imputação indiciária do crime de corrupção no setor privado que o Despacho recorrido (possa) ter entendido estar suficientemente indiciado. ii) Burla qualificada 68§. Segundo é referido pelo Tribunal a quo, está indiciada nos presentes autos a prática de crimes de burla na forma simples e qualificada. 69§. Não se vislumbra dos factos constantes da promoção do Ministério Público a possibilidade de preenchimento dos elementos do tipo de crime em questão. 70§. É impercetível quem alegadamente determinou uma pessoa (e que pessoa), por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou (foi erro? Foi engano?), à prática de atos que causem um prejuízo patrimonial a essa pessoa ou a um terceiro (quais atos? Que prejuízo? A quem?). 71§. Por um lado, haverá agentes ― rectius, AA através das suas sociedades ― indiciados de terem atribuído vantagens indevidas a dirigentes e colaboradores do GRUPO XX em troco da contratação de sociedades do grupo AA para negócios vários (seja com o próprio GRUPO XX, seja com fornecedores), nomeadamente noutros países. 72§. Por outro lado, são esses mesmos agentes simultaneamente indiciados de astuciosamente enganarem a o grupo XX, ao ponto de esta praticar atos que lhe causaram prejuízo patrimonial. 73§. Das duas uma: ou os dirigentes do GRUPO XX ― que formam a vontade das sociedades comerciais, como é evidente ― tinham pleno conhecimento de todos os factos em crise e receberam vantagens indevidas, daí terem decido o que decidiram e como decidiram, ou desconheciam todo este cenário e foram enganados pelos agentes. 74§. O que não se consegue aceitar, por ser factual e juridicamente impossível, é que um caso de corrupção no setor privado possa, concomitantemente, consubstanciar um caso de burla, pelo simples motivo que os pressupostos da burla excluem a verificação dos pressupostos da corrupção no setor privado e vice-versa. 75§. Numa palavra, são tipos e realidades inteiramente antagónicos. 76§. Em face do referido, cai qualquer imputação indiciária do crime de burla que o Despacho recorrido entendera estar suficientemente indiciado. iii) Fraude fiscal qualificada 77§. O Ministério Público entendeu estar indiciada a prática do crime de fraude fiscal, sem detalhar, todavia, à partida, levantam-se diversas questões nucleares a que a Recorrente, lendo os Despacho recorrido e a Promoção, fica sem conseguir obter uma resposta: (iv) Quais são os factos que preenchem os elementos do tipo? (v) Os crimes são crimes praticados por quem? (vi) Os factos foram praticados em Portugal e lesaram o sistema tributário português? 78§. Como vem sendo habitual nos presentes autos, há nas promoções do Ministério Público uma intensa e propositada ausência de concretização. Tal não é admissível. 79§. Muitas das perguntas formuladas supra não têm resposta, e não têm porque não se compreende do Despacho recorrido e da promoção do Ministério Público a amplitude dos entendimentos jurídicos das autoridades. Assim, 80§. Em face do referido, cai qualquer imputação indiciária do crime de fraude fiscal, na forma simples e, sobretudo, qualificada, que o Despacho recorrido possa ter entendido estar suficientemente indiciado para a aplicação da medida de congelamento. 81§. Contrariamente ao dito no Despacho recorrido, os avanços processuais dos presentes autos apontam exatamente no sentido do esmorecimento das suspeitas inicialmente alvitradas. 82§. O Tribunal a quo, no âmbito do processo 405/18.0..., por despacho datado de ........2024, em resposta a um pedido de alteração do âmbito de bloqueio das contas para, entre o mais, se proceder a pagamento de impostos, decidiu indeferir o pedido porque, inter alia, “querendo, [a ... (...)] poderá negociar a cobrança dos montantes de crédito que continua a deter sob o universo XX…” (sublinhado nosso). 83§. Se assim é, e considerando as palavras do próprio M.mo Juiz de Instrução Criminal citadas supra, neste momento apenas se pode concluir ― sem margem para outra interpretação ― que se encontram afastadas as suspeitas que, alegadamente, maculavam de ilicitude as relações contratuais das empresas do universo AA, como a ora Recorrente, com as empresas do grupo XX, pois, não fora assim, e não se perceberia como é que Juiz de Instrução Criminal e o Ministério Público estariam a mandar a ... cobrar ao Grupo XX o que lhe seria devido em virtude das relações contratuais havidas ― e já cessadas ―, uma vez que, se as mesmas estivessem manchadas por aquela mácula, não poderiam ser pagos os créditos gerados de que é credora a .... 84§. O Ministério Público e o Tribunal a quo nem diligenciaram no sentido de aferir quais dos valores depositados nas contas bancárias consubstanciavam essas “percentagens de intermediação indevidas e ilícitas”, tendo bloqueado discricionária e arbitrariamente todos os valores. 85§. O congelamento não só é ilícito por não estarem verificados os requisitos para a sua aplicação, como, mesmo tendo como certa aquela possível tese do Ministério Público ― o que não se concede ―, peca por (largo) excesso, devendo, no limite ― e sempre sem conceder ― o congelamento cingir-se aos valores que o Ministério Público e o Tribunal a quo entendam corresponder a “percentagens de intermediação indevidas e ilícitas”. 86§. Dito de outro modo: a medida de congelamento em causa viola o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), que determina que a restrição de direitos fundamentais deve ser mínima. *** Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal o MP pronunciou-se pela improcedência do recurso tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição): 1ª - No presente recurso, que recai sobre a decisão de folhas 1118 e verso, suscitam-se questões relativas à alegada ausência de contraditório prévio e de omissão de fundamentação, sendo certo que sobre as mesmas foi posteriormente proferida nova decisão judicial, constante de folhas 1162 e seguinte, proferida na data de ...-...-2025, decisão sobre a qual foi já interposto novo recurso, pelo que entendemos que as referidas questões devem ser apreciadas em sede desse outro recurso, sem prejuízo de, desde já, tomarmos posição. 2ª - A motivação agora apresentada recupera os mesmos argumentos que já haviam sido invocados, também em sede de recurso e pela mesma Recorrente, para procurar colocar em causa a medida de suspensão de operações a débito sobre a mesma conta bancária, que antecedeu a medida de congelamento aplicada pela decisão recorrida, tendo a medida de suspensão de operações sido mantida por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 5ª Secção, proferido na data de ...-...-2025. 3ª - Defende a ora Recorrente que a decisão de congelamento deveria ter sido precedida de contraditório, mas não existe base legal, em sede da letra do art. 49.°-6 da Lei 83/2017, de 18 de Agosto, que suporte a exigência de tal contraditório prévio, nem que essa necessidade de contraditório resulta de imposição das regras gerais ou dos princípios com consagração na Constituição da República. 4ª- A medida de congelamento não é um prolongamento da medida de suspensão de operações, uma vez que esta significa o bloqueio de determinado tipo de movimentos, quando aplicado a uma conta bancária, enquanto a medida de congelamento deve ser entendida como dirigida ao saldo existente na conta, não impossibilitando o recebimento de novos fundos e a sua movimentação. 5ª- A aplicação da medida de congelamento implica, tal como foi decidido no caso dos autos, a cessação da medida de suspensão de operações, havendo uma substituição que não se traduz apenas na mudança do nome da figura jurídica, mas que representa uma nova medida com um diferente objeto. 6ª - A transição entre as duas medidas não é compatível com um período de interregno, no qual os titulares das contas visadas já saibam que a medida de suspensão de operações irá ser cessada, discutindo-se se será substituída ou não por uma medida de congelamento, uma vez que o pré-aviso sobre a promoção da medida de congelamento gera o risco de serem apresentadas instruções para a realização de operações que o banco poderá ser levado a executar. 7ª - Uma vez que a medida de congelamento se suporta numa avaliação dos indícios recolhidos no inquérito, não faz sentido conferir um contraditório prévio sobre esses indícios numa fase em que o processo decorre sob segredo de justiça 8ª - Tal não significa que o contraditório não deva existir, mas sim que o mesmo deve ser feito à posteriori, isto é, depois de pacificados os efeitos da medida de congelamento, designadamente quanto ao apuramento do saldo que remanesce na conta, porque é sobre esse saldo que passa a vigorar a medida de congelamento, sendo essa possibilidade de reação dotada de eficácia e conforme com as exigências da Constituição da República 9ª - A decisão recorrida, de folhas 1118, reflete ser a continuação da ponderação já desenvolvida ao longo da fase anterior, em que esteve vigente a medida de suspensão de operações a débito, pelo que a mesma decisão não repete o narrativo dos factos indiciados, que já vinha a ser sedimentado ao longo do inquérito, mas reafirma o crescente de indiciação desses mesmos factos, com a consequente evidenciação da origem ilícita dos fundos. 10ª — A narração dos factos indiciados foi concretizada na decisão recorrida pela referência à promoção que a antecede, da qual foi aliás remetida cópia à ora Recorrente, tendo esses factos sido transmitidos de forma transparente e fazendo a decisão recorrida a integração jurídica dos factos ilícitos subjacentes, que se indicia estarem na origem dos fundos, com referência expressa a ilícitos de burla qualificada e corrupção privada, para além de fraude fiscal. 11ª - A decisão recorrida reconhece ainda que os referidos fundos foram surpreendidos em manobras de branqueamento e que estavam a ser destinados a entidades terceiras, concretizando o perigo de as quantias virem a ser dispersas na economia legítima, risco acrescido em face de ter sido atingido o prazo máximo de vigência da medida de suspensão de operações a débito. 12ª - Todas as críticas aportadas pela motivação quanto á referência e à apreciação dos indícios recolhidos, conclusões 9 e 10 da motivação, esbarram na circunstância de existir um elenco detalhado, cronológico e documentado de factos indiciados, narrados na promoção de folhas 1107 e seguintes, aos quais a decisão recorrida adere e que foram transmitidos à ora Recorrente. 13ª - Por outro lado, a decisão recorrida é expressa na apreciação de cada um dos pressupostos da medida de congelamento, a saber: - serem fundos previamente sujeitos a medida de suspensão de operações; - verificar-se a indiciação da origem ilícita dos fundos, o que significa um acréscimo de prova relativamente à suspeita que é necessária para a suspensão de operações; - indiciação do perigo de dispersão dos fundos na economia legítima. 14ª - A decisão de congelamento, que foi comunicada com cópia da promoção que a antecedeu, satisfaz cabalmente as exigências de transparência e convencimento que devem estar subjacentes ao tipo de decisão em causa, sendo evidente que a visada por essa decisão, a ora Recorrente, compreendeu os fundamentos que a suportam e ficou habilitada para a discussão dos mesmos em sede de recurso, encontrando-se assim satisfeitas as exigências da Constituição da República em sede de fundamentação das decisões judiciais. 15ª - As contas tituladas pela sociedade ... junto do Banco ZZ, associadas ao n° …567, começaram por ser bloqueadas, no presente inquérito, por decisão judicial proferida a ...-...¬2024, que aplicou uma medida de suspensão de operações a débito. 16ª - A suspeita inicial nos presentes autos foi despoletada por se ter verificado uma tentativa de transferência, no montante de € 1.700.000,00, a partir dos fundos recebidos na conta da ... junto do banco ZZ e com destino a uma conta da entidade ... junto do .... 17ª - No momento em que foi pretendida realizar a transferência de fundos entre a ... e a ..., suportada num alegado contrato de empréstimo entre as duas entidades, a conta da ... junto do Banco ZZ registava um saldo de cerca de 4,3 milhões de euros, que se verificou ter sido gerado através das seguintes duas operações: - crédito de € 2.051.735,77 por via de depósito de um cheque bancário cuja aquisição havia sido debitada em conta, junto do ..., da entidade ..., operação lançada com data valor de ...-...-2024; - crédito de € 1.996.340,00, na data de ...-...-2024, com origem no resgate de papel comercial emitido pela ..., cuja subscrição havia ocorrido em .... 18ª - As sociedades acima referidas são controladas, de facto, por AA, sendo a ... através da sua filha DD, e a ... através de EE, que sucedeu a FF. 19ª — Os referidos AA e FF são arguidos no NUIPC 405/18.0... ... (caso XX), no qual é também visada a atividade desenvolvida a coberto da sociedade ..., em particular por via de negócios celebrados por sociedades participadas pela mesma com o Grupo XX, incluindo negócios imobiliários, e em face de transferências recebidas em contas da mesma ..., sendo receitas sem manifestos fiscais congruentes e favorecidas pela deslocação forjada da sede da sociedade para a .... 20ª — A ... foi utilizada para deter participações em sociedades beneficiárias de contratos de fornecimento ao Grupo XX, caso da ... e da ... em Portugal e da ..., em ..., para além de deter participação na ..., que interveio em negócio imobiliário com imóvel da XX, em condições vantajosas e que permitiram o gera de mais valias. 21ª - Foi reunida evidência de que os montantes supra referidos, creditados na conta da ... junto do Banco ZZ, haviam sido sujeitos a várias operações de circulação, desde o momento em que entraram na esfera das sociedades controladas por AA, tendo a última fase dessas operações ocorrido, já em ..., com a montagem de novas justificações para a origem dos fundos, seja por via da ... seja por via da aquisição e resgate de valores mobiliários emitidos pela ... C. Porto. 22ª — No que se reporta à ... a mesma é uma sociedade tecnológica, que começou por atrair investidores da área dos fundos de capital risco, os quais acresceram capital aos sócios iniciais do projeto. 23ª - No segundo semestre de ..., a ... procedeu à aquisição de várias participações na ..., tendo ficado a deter uma participação equivalente a 26,70% do capital social da ..., visando aproveitar o crescimento desta última sociedade e levar a XX a contratar serviços à mesma, dentro da estratégia desenvolvida por AA de tirar proveito da circunstância de deter o controlo do procedimento de contratação pelo Grupo XX, aliás conquistado pela prática ilícita de atribuição de contrapartidas indevidas a responsáveis daquele mesmo Grupo. 24ª - Os pagamentos feitos aos vendedores de participações sociais na ... estão refletidos nas contas da sociedade ora Recorrente, designadamente na conta ... do apenso bancário 1-A, conta n° 0-5784996.000.001, e na conta ... da mesma sociedade, conta n° ..., apenso bancário 1-B, 25ª - Tais pagamentos foram feitos a partir de fundos transferidos para as contas da ..., nos meses anteriores, por sociedades, controladas por AA, que beneficiaram de lhes terem sido atribuídos contratos de fornecimento ao Grupo XX, em particular fundos gerados por essa via em sociedades como a ..., a ..., a ... e a .... 26ª - Acresce que, pelo menos a partir de ... (aumento de capital da ... deliberado a ...-...-2021), AA levou a que também o fundo ..., participado exclusivamente por sociedades por si controladas, direta e indiretamente, viesse também a investir na ..., envolvendo um aporte inicial de 5 (cinco) milhões de euros, a realizar até final de ... — acta n° 22 da Assembleia Geral da ... constante de folhas 1341 e seguintes. 27ª - Após as detenções ocorridas no processo 405/18.0... ..., em ..., onde foram bloqueados fundos de várias sociedades controladas por AA, este, de forma a obter liquidez, com aparente justificação lícita, fez com que a própria ... tomasse a iniciativa de pedir, em ..., a amortização da sua participação na ..., visando obter liquidez — folhas 1084 e seguintes e carta de folhas 1348. 28ª - A contrapartida pedida pela ... pela amortização da sua participação foi no montante de € 2.051.735,771, aparentemente correspondente à soma dos valores investidos com a aquisição de participações sociais, preço que veio a ser aceite por deliberação unânime por escrito da ..., datada de ...-...-2023 — ata n° 26 constante de folhas 1344 e seguintes. 29ª - No entanto, na mesma data de ...-...-2023, a ... veio a deliberar também, através de nova deliberação unânime por escrito (a que corresponde a Ata 27), aprovar um aumento de capital, sendo o montante de aumento de € 7.332,14, com um prémio de emissão de € 2.042.667,86, exclusivamente a realizar pelo acionista ... — acta n° 27, constante de folhas 1386 e seguinte. 30ª - Não corresponde à verdade o alegado distanciamento da ... e de AA relativamente à deliberação de aumento de capital da ... a realizar apenas pelo ..., desde logo porque se trata de deliberações, a de amortizar e a de aumentar o capital, proferidas na mesma data — ao contrário do afirmado no ponto 196 da motivação e nas conclusões dos parágrafos 29 e seguintes. 31ª - Indicia-se que o ... se ofereceu, com o agrado dos demais acionistas, para suportar o pagamento do preço da amortização da participação da ..., assumindo um encargo de aportar um montante total de € 2.050.000,00, praticamente coincidente com o montante a pagar à .... 32ª - A alegada autonomia de gestão do ..., que a motivação procura realçar, parágrafos 181 e seguintes das conclusões da motivação, não é mais que uma forma de encobrir a real prevalência dos interesses de AA, conforme resulta da sua disponibilidade para pagar à ... a amortização da sua participação na ... e resulta claro do relatório do OPC de folhas 840 e seguintes. 33ª - O pagamento do preço de amortização foi feito pela emissão de um cheque bancário, naquele montante de € 2.051.735,77, a favor da ..., que, como acima referido, foi depositado na conta desta última junto do Banco ZZ. 34ª — A emissão de tal cheque bancário foi debitada na conta ... da ..., na data de ...-...-2024, tendo, na mesma data, a referida conta da ... sido creditada por várias transferências, no montante total de € 2.050.000,00, com origem no ... 35ª — Entendemos ser evidente que a operação de pagamento da ... à ... representa, na realidade, uma transferência de fundos entre o ... e a ..., em que a conta da ... serviu apenas como conta de passagem. 36ª - Tal operação desenvolvida pelo ..., ao colocar fundos na ... sabendo que esta os iria utilizar para fazer um pagamento à ..., encontra explicação no facto de o referido Fundo ter apenas como participantes entidades controladas, de facto, pelo mesmo AA ou entidades que eram fornecedoras do Grupo XX por via da capacidade do mesmo AA condicionar as decisões de contratação da XX. 37ª - Com efeito, o ..., gerido pela entidade ..., foi constituído por iniciativa de AA, em ..., sendo essencialmente participado por sociedades por si controladas, mas sem exposição direta do seu nome, caso das ... e da ..., ambas com sede formal na ..., para além da própria ... — conforme listagem de entidades subscritoras do Fundo constante de folhas 305 e seguintes. 38ª - Para além dessas, indicia-se que o ... foi ainda participado por entidades muito próximas do AA, caso da ... — ..., que subscreveu uma entrada de capital correspondente a € 500.000,00, mas com montantes recebidos de sociedades controladas por AA, caso da GG e da ... — ao contrário do referido nos pontos 210 e seguintes da motivação e nos parágrafos 38 e seguintes das conclusões. 39ª - Sendo o ... um fundo ..., isto é, destinado a proporcionar vantagens fiscais aos participantes no mesmo, tem por contrapartida a obrigação de que os montantes que o Fundo invista sejam destinados a investigação e desenvolvimento (sigla I&D), o que não foi manifestamente o caso do aporte de capital acima referido — aporte que se revelou ser uma mera passagem de fundos para a conta da ... e que esta se preparava para fazer passar para investimentos imobiliários. 40ª - Tal destinação indevida dos fundos aportados pelo ... resulta claramente dos movimentos espelhado no extrato da conta da ... junto do ..., constante de folhas 118, onde se verifica que, na data de ...-...-2024, o referido fundo transfere, em cinco operações, um total de € 2.050.000,00, para, na mesma data, ser emitido o um cheque bancário, no montante de € 2.051.735,77, que veio a ser depositado na conta da ... agora bloqueada — de onde resulta a violação da vinculação dos fundos ... a investimentos em investigação e desenvolvimento, conforme decorre dos arts. 35.° e seguintes do Código Fiscal do Investimento, na redação da Lei 2/2020, de .... 41ª - Acresce que a própria ... é uma sociedade já visada na investigação em curso no inquérito 405/18.0... ..., em particular quanto à realização de negócios imobiliários com a aquisição e venda de imóveis que eram do Grupo XX, caso de um imóvel, adquirido em nome da ... à ..., correspondente ao edifício sito na ..., pelo preço de € 7.000.000,00, no final do ano de ..., que veio a ser vendido pela mesma ..., cerca de um ano depois, a uma outra entidade do Grupo AA, no caso a ..., pelo preço declarado de € 7.500.000,00. 42ª - Concluímos assim, nesta parte dos fundos bloqueados na conta da ... que tiveram origem na ..., estarem em causa montantes com origem última em ilícitos de corrupção privada, burla e fraude fiscal, que foram feitos circular por conta da mesma ... como forma de aproveitar a idoneidade da mesma para criar a aparência de uma nova justificação, num claro procedimento de transferência e conversão desses mesmos fundos, típica de uma manobra de branqueamento. 43ª — Relativamente aos restantes fundos existentes na conta sujeita a medida de congelamento e que, como acima referimos, tiveram origem na ..., traduzindo-se num crédito de € 1.996.340,00, na data de ...-...-2024, os mesmos tiveram origem no resgate de papel comercial emitido pela mesma ... e que havia sido subscrito inicialmente em .... 44ª - Entendemos resultar dos autos que os montantes investidos pela ... em papel comercial emitido pela ..., num total de 1.500.000,00, cuja devolução foi acima também identificada como recebida na conta congelada, junto do Banco ZZ, tiveram origem em montantes recebidos de outras sociedades também controladas por AA, no caso a ... e a ..., que, por sua vez, obtiveram esses fundos em resultado de negócios celebrados com o Grupo XX. 45ª — Verifica-se ter existido uma sucessão de quatro conjuntos de operações de investimento/resgate/reinvestimento, que se sucederam no tempo, pelo menos desde ..., tendo essa primeira operação sido realizada a partir de fundos colocados em conta titulada pela sociedade junto do ... (conta no ..., Apenso Bancário 1-B), tendo-se traduzido então na subscrição de 20 (vinte) unidades no valor nominal de € 50.000,00, num valor nominal total de € 1.000.000,00, tendo a ... utilizado montantes que, por sua vez, havia recebido da entidade ... 46ª - Note-se que a conta da ... no Banco ZZ havia iniciado movimentos apenas no dia ...-...-2021, com o recebimento de uma transferência de € 505.000,00 com origem na conta titulada pela mesma ... junto do ..., conta na qual havia sido recebida, a 02¬...-...21, uma transferência com origem na ..., no valor de 355.196,32€. 47ª - Com o produto do resgate da primeira aplicação em papel comercial, acrescido de novo montante recebido da ..., a ... procedeu, a ...-...-2021, a duas novas subscrições de papel comercial emitido pela ... do F C PORTO, nos montantes de € 1.000.000,00 e € 500.000,00, correspondentes a 20 e 10 unidades, respetivamente. 48ª - Note-se que, na data de ...-...-2021, a mesma ... havia recebido na sua conta junto do ... (com o n.º 0-5784996.000.001, Apenso Bancário 1-A) quatro transferências, no montante total de € 3.000.000,00, com origem na sociedade ..., também controlada pelo AA, montante que teve origem no produto da venda do imóvel sito na ..., imóvel esse que foi então vendido pela mesma ... pelo preço de € 3.600.000,00 e que havia sido adquirido pela mesma ..., em .../.../2020, pelo preço de 2.100.000,00€, à ..., sociedade do Grupo XX. 49ª - Já na data de .../.../2022, ocorre uma terceira subscrição pela ... de papel comercial da ..., desta feita realizado através de duas operações nos montantes de € 1.350.000,00 e € 650.000,00, correspondentes a 27 e 13 unidades, respetivamente, num montante total de € 2.000.000,00, realizada a partir dos fundos gerados com o vencimento da anterior aplicação e com uma nova transferência no montante de € 650.000,00, com origem na conta titulada pela mesma ... junto do ... (conta n° 0-5784996.000.001), isto é, a partir da conta para onde haviam sido transferidos os ganhos gerados com a revenda do imóvel adquirido em condições vantajosas à XX. 50ª - Por fim, já em ..., veio a ocorrer a quarta operação de subscrição de papel comercial da ... por parte da ..., então no montante de € 3.000.000,00 correspondente a 60 unidades, de valor nominal unitário de 50.000,00€, pago por débito na conta do ..., na data de ...-...-2023. 51ª - Uma vez que os valores mobiliários correspondentes à terceira subscrição não haviam ainda sidos resgatados, a conta da ... junto do Banco ZZ foi provisionada, nesse período de ..., por novas transferências com origem noutras contas da ..., assim acontecendo com duas transferências realizada a partir da conta junto do ..., conta n.º 0-5784996.000.001 (Apenso Bancário 1¬A), no montante total de € 1.250.000,00 e com várias transferências a partir da conta no ..., conta n.º ... (Apenso Bancário 1-B), no montante total de € 1.750.000,00, contas que, como acima referido, haviam recebido pagamentos de entidade prestadora de serviços para o Grupo XX, a ... e da sociedade .... 52ª - Em ... verificou-se a venda/amortização do total de 60 unidades de papel comercial que haviam sido adquiridas em .../.../2023, bem como crédito dos juros correspondentes, tendo a ... arrecadado o montante total com juros de 3.038.126,27, creditado através de duas operações lançadas na conta do Banco ZZ, com datas de ...-...-2023 e de ...-...-2023 — tratou-se portanto de uma operação de curto prazo. 53ª - Em ... verificou-se uma troca das participações adquiridas em ... (denominadas por ªFCPPL 7,00 08/23 a 100,0000ª, num valor global de 2.000.000,00€), por 40 unidades de papel comercial com a denominação ª40,00000 de FCPPL 7,00 08/23ª, bem como o pagamento de juros, no total de € 112.112,70. 54ª - Em .../.../2024 ocorreu, por fim, o movimento de amortização das 40 unidades que tinham ficado em carteira com a troca de ..., por um valor de 1.996.340,00€, acrescido de juros (de € 17.357,55), pelo que nessa data a ... deixou de ser titular de papel comercial do ..., sendo esta a operação em causa nos presentes autos, a qual coincide temporalmente com o depósito do cheque com origem na ... 55ª - Concluímos assim, que a operação a crédito com origem no resgate de valores mobiliários emitidos pela ..., na data de ...-...-2024, representa o culminar de um encadeamento de aquisições e resgates de diferentes emissões daquele tipo de papel comercial, que se haviam iniciado em ..., tendo na sua origem fundos provenientes dos ganhos gerados pelos negócios imobiliários celebrados pela ... e pela ... com o Grupo XX e nos ganhos gerados pela ..., como fornecedora do mesmo Grupo. 56ª - Esta ... é uma sociedade dos ... que integrou o Grupo XX até ..., desenvolvendo essencialmente a atividade de instalação de fibra ótica e construção de torres de telecomunicações móveis, tendo sido adquirida, pelo preço de cerca 1,6 milhões de Euros pela sociedade portuguesa ..., sociedade detida por AA, através da sociedade ... 57ª - A tomada de controlo da ... por parte de AA inseriu-se no seu relacionamento privilegiado com o Grupo XX, uma vez que este Grupo continuou a ser o principal cliente da ..., com uma faturação, já em ..., de cerca de mais de 124 milhões de USD. 58ª - Face ao acima exposto, fica explicada a indiciação sobre a origem ilícita dos fundos aportados à conta da ... junto do Banco ZZ, que foi congelada nos presentes autos, podendo utilizar-se a expressão de estarmos perante fundos que representam o ªpelo do próprio cãoª, uma vez que são fundos gerados pelos negócios conquistados com a XX, por viciação da vontade dos então dirigentes da mesma, quer através da disponibilização de vantagens indevidas, quer através da relação privilegiada entre AA e HH, detentor de uma participação relevante dentro do próprio Grupo XX, quer em Portugal quer nos ... através do seu genro II. 59ª - Isto é, indicia-se que foram gerados, de forma ilícita, designadamente por via de crimes de corrupção privada e de fraude fiscal, fundos na esfera da sociedade ... que estiveram na origem dos montantes que foram colocados, em ..., na ... e na aquisição de papel comercial emitido pela ..., e que foram feitos regressar para a esfera da mesma ... — ao contrário do afirmado no parágrafo 26 das conclusões da motivação. 60ª - No que se reporta à indiciação do crime de corrupção privada, começam os ora Recorrentes por recuperar uma visão retrógrada da exigência de um sinalagma, caso a caso, entre a oferta indevida e o ato a praticar, mas o que é pressuposto do crime e se indicia nos autos é a existência um acordo entre o corruptor ativo principal, o identificado AA, e um ªinsiderª, o identificado HH, com poderes, enquanto acionista da XX, para influenciar as decisões dos administradores, mas necessitando do comprometimento dos mesmos. 61ª - O referido HH recebe vantagens indevidas e participa nos ganhos das sociedades de AA, que são contratadas pela XX, conforme lhe foi imputado no primeiro interrogatório judicial em sede do inquérito 405/18.0... ..., mas evidencia-se que esses dois intervenientes tiveram que comprar o comprometimento de outros dirigentes da XX para a produção das decisões de contratação pretendidas. 62ª - Quanto a esses outros dirigentes, caso de JJ e de KK, verifica-se uma clara contemporaneidade e proporcionalidade entre as vantagens oferecidas indevidamente (na aquisição de imóveis e no pagamento de alegados serviços de consultoria) e o tipo de negócios relativamente aos quais se pretendia uma decisão favorável (veja-se o caso das decisões de venda de imóveis pela XX a sociedades do arguido AA). 63ª - Isto é, a produção das decisões de contratação e de venda de imóveis por parte da XX em favor de sociedades de AA, é uma consequência da atribuição das vantagens indevidas a esses dirigentes do mesmo Grupo, havendo uma clara correspondência entre o recebimento dessas vantagens e o início da produção de decisões sobre a venda de imóveis. 64ª - Essa é a relação sinalagmática que é exigida para a prática do crime de corrupção privada nos arts. 8.° e 9.° da Lei 20/2008, de 21 de Abril, e que se verifica entre as atribuições indevidas realizadas pelo arguido AA através das suas sociedades (caso da ... que vende um imóvel a JJ sem receber o preço) e as decisões de contratação, produzidas no seio da XX, favoráveis ás sociedades do mesmo arguido e prejudiciais dos interesses da XX que os referidos funcionários deveriam acautelar. 65ª - Em face das formas de viciação da vontade contratual da XX que se mostram indiciadas e da indiciada tomada de controlo de sociedades que já eram fornecedoras da XX, garantindo a sua prevalência sobre outras sociedades do mesmo ramo, evidencia-se o propósito de desprezar o respeito e o aproveitamento das vantagens das regras da concorrência, com o prejuízo de terceiros e dos próprios consumidores, pelo que se entende verificada a forma de corrupção privada ativa prevista no n° 2 do art. 9.° da Lei 20/2008, de 21 de Abril. 66ª - A indiciação do crime de corrupção privada foi já discutida em sede de recurso anterior interposto pelo arguido AA, com referência às medidas de coação aplicadas após primeiro interrogatório judicial, tendo sido reconhecida a existência de indícios por parte do Tribunal da Relação de Lisboa, conforme acórdão proferido no âmbito do processo 405/18.0... ..., na data de ...-...-2023, pela 5a Secção, do Tribunal da Relação de Lisboa. 67ª - A motivação acresce ainda a invocação da falta de dignidade penal para a incriminação do fenómeno da corrupção entre privados, conclusões dos parágrafos 65 e seguintes da motivação, mas entendemos não estar perante comportamentos socialmente adequados ou tolerados que possam justificar a tese da inconstitucionalidade defendida na motivação, associada ao princípio da intervenção mínima que deve condicionar o direito penal. 68ª - O bem jurídico tutelado pelos crimes de corrupção privada é a lealdade e a confiança imprescindíveis para as relações privadas, por se entender que o núcleo do injusto reside na violação dos deveres funcionais por parte do trabalhador do sector privado, mas também se visa tutelar o funcionamento concorrencial dos mercados e os interesses de outros fornecedores e dos consumidores finais, conforme decorre da previsão dos arts. 8.°-2 e 9.°-2 da referida Lei 20/2008. 69ª - Não estamos perante meros incumprimentos de obrigações decorrentes de um contrato laboral, mas sim perante a venda dessas funções dentro da empresa contra o recebimento de vantagem atribuída por terceiro, pelo que a incriminação em causa visa a tutela da autonomia decisória, aplicada ao processo negocial privado entre estruturas societárias, aceitando que a mesma tem suporte em direitos e liberdades constitucionalmente consagrados e que a sua violação, por via do mercadejar dos deveres inerentes aos colaboradores (principalmente os dirigentes), é suscetível de gerar consequências para além da esfera das sociedades envolvidas, ao nível do mercado, da concorrência e dos direitos dos consumidores. 70ª - A criminalização das práticas de corrupção entre privados não deixa assim de ter por base a proteção da sã concorrência, reconhecida como potenciadora das organizações empresariais e geradora de benefícios para os consumidores, visando impedir que aqueles que têm capacidade económica e de influência viciem a produção de decisões contratuais noutras sociedades. 71ª - Na mesma conta bancária congelada nos presentes autos encontram-se também fundos que foram subtraídos aos devidos manifestos fiscais, reafirmando-se a indiciação da prática de crimes de fraude fiscal qualificada, aliás também já reconhecida no processo 405/18.0... ..., em sede da decisão de anterior recurso interposto pelo arguido AA - acórdão proferido na data de ...-...-2023, pela 5ª Secção, do Tribunal da Relação de Lisboa. 72ª - A ..., ora Recorrente, obteve benefícios fiscais indevidos, quer por via de manifestos fiscais apresentados ou omitidos, quer por via da deslocalização fictícia da sua sede formal para a ..., com completo desprezo sobre a real localização da direção efetiva da sociedade e sobre o local onde é gerado o produto da sua atividade, resultando dos autos que a ... tinha a sua direção efetiva em ... e era com base nessa localização que deveriam ter pago impostos, factos que são objeto do NUIPC 405/18.0... .... 73ª - Acresce a essa localização fictícia para efeitos fiscais, indiciar-se ter havido o recurso a práticas de contratação forjada, não só entre a própria sociedade ora Recorrente e as que realizaram pagamentos para as suas contas bancárias em USD junto do ... e do ..., das quais vieram parte dos fundos creditados na conta congelada nos autos, como entre a mesma ... e as entidades instrumentais terceiras, caso das alegadas entidades de ªtradingª, registadas nos ..., onde se incluem as designadas LL e ..., gerando uma aparência de justificação de custos, que são, na realidade, inexistentes. 74ª - Só em ..., a conta no Banco ZZ que se encontra sujeita a medida de congelamento recebeu cerca de 3 (três) milhões de euros com origem nas demais contas da mesma titular, a ..., junto do ... e do ..., onde, por sua vez, se verificou terem sido recebidos fundos com origem em entidades como a ..., a ..., a ... e a ..., todas fornecedoras da XX, mas sem ligações comerciais reais com a ... que possam justificar o aporte de fundos para as contas da mesma. 75ª - No que se reporta ao preenchimento do ilícito de burla, como origem dos fundos congelados nos autos, entendemos que o mesmo resulta de se indiciar a encenação de entidades fornecedoras da XX, que intervêm como sendo idóneas e necessárias, quando, na realidade, se mostra terem sido acrescidas à cadeia de fornecedores, sem aportarem à mesma qualquer nova e melhor valia, mas servindo apenas para ocultarem a intervenção de AA e permitirem apenas a cobrança de mais comissões e o acréscimo de custos à XX. 76ª - Com efeito, o comprometimento de alguns dos colaboradores e dirigentes da XX aos interesses das entidades controladas por AA, como é o caso da ora Recorrente, conduziu, em alguns contratos (caso dos negócios imobiliários), à viciação da própria decisão de contratar, enquanto que noutras situações (compras de equipamentos através de intermediários) conduziu à adulteração, por encenação, das circunstâncias em que foi produzida a decisão de contratar, levando a XX estabelecer relações contratuais em situação de engano sobre a idoneidade e necessidade das contrapartes. 77ª - Nesses casos, entendemos que é a própria entidade XX que é vítima de engano provocado pelos seus colaboradores, através da encenação e apresentação de fornecedores providenciais, mas que nada acrescentam à cadeia de fornecimento, acabando a XX por ser levada a realizar pagamentos em excesso e assim sofrendo um prejuízo, o que nos reconduz ao preenchimento do tipo de crime de burla, previsto nos arts. 217.° e 218.° do Cod. Penal. 78ª - Assim acontece, face à melhor compreensão dos factos que tem sido possível obter, com os negócios de aquisição pela XX de equipamentos aos fornecedores ... e ..., uma vez que se mostram feitos, desnecessariamente e com prejuízo para a XX, através de sociedades controladas pelo arguido AA, impostas como intermediárias, mas que se limitavam a ser uma caixa de correio. 79ª - No caso dos presentes autos e no que se reporta aos fundos originados na ... indicia-se mesmo a indução em engano do Grupo XX, por ter sido levado a vender a participação que detinha na mesma sociedade, para depois realizar contratos de fornecimento com a mesma, que envolveram dezenas de milhões de Euros, revertendo os ganhos para a esfera de AA, incluindo por via da entrada de fundos nas contas da ora Recorrente. 80ª - A ora Recorrente faz eco, na sua motivação, de um argumento usado em vários dos recursos interpostos no âmbito do processo 405/18.0... ..., segundo o qual teria sido admitida a legitimidade de ganhos obtidos por uma outra sociedade de AA, no caso a ..., no âmbito dos seus negócios com a XX, parágrafos 81 e seguintes das conclusões da motivação, mas tal argumentação resulta de uma interpretação abusiva do afirmado em decisão judicial proferida sobre requerimento apresentado pela ... no âmbito daquele processo, sem que exista paralelo com a matéria de facto em causa nos presentes autos. 81ª - Com efeito, por requerimento apresentado pela ..., constante de folhas 18396 e seguintes daquele outro processo, a mesma entidade reconheceu ter procedido a auto liquidações de impostos que atingiam um montante de € 19.975.609,95, pretendendo ser autorizada a mobilizar fundos sobre as contas bloqueadas para fazer esses pagamentos, apesar de admitir prever receitas futuras e ser credora de facturas emitidas à XX, relativa à intermediação de fornecimentos efetivamente realizados por terceiros. 82ª - O que então foi admitido foi que deveriam ser salvaguardados os interesses de terceiros, de boa fé, por serem os efetivos fornecedores da XX, pelo que deveria ser apurado, antes de permitir a mobilização dos fundos bloqueados nas contas da ..., qual o montante a cobrar e por quem junto da XX, não podendo ser admitido o pagamento das percentagens de intermediação indevidas e ilícitas - decisão de folhas 18537, ponto IV, daquele processo 405/18.0... .... 83ª - A leitura que a ora Recorrente faz dessa decisão, no sentido de que a admissão de créditos da ... sobre o Grupo XX exclui a suspeita de atos de corrupção privada, não tem cabimento, até porque foi a própria ... que, no seu requerimento, veio invocar a existência desses créditos, sendo uma situação factual não replicável nos presentes autos. 84ª - A medida de congelamento aplicada revela-se adequada à realização do objetivo de acautelar o risco de dispersão dos fundos que subsistem na conta da ... junto do banco ZZ, na medida em já esgotado o prazo de vigência da medida de suspensão de operações a débito, sem prejuízo da revisão dos limites da medida caso venham a ser apresentadas necessidades legítimas de pagamento. 85ª - A medida de congelamento aplicada é ainda proporcional à gravidade dos ilícitos em causa e à dimensão temporal e financeira das condutas sob investigação, pelo que deve subsistir o bloqueio da conta da ... junto do Banco ZZ. Em face do acima exposto, entendemos que a decisão recorrida não merece reparo e deve ser mantida, porquanto faz correta apreciação dos indícios e aplica a Lei realizando o Direito. *** Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado e com efeito devolutivo. *** Neste Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, a Sra. PGA aderiu aos fundamentos da posição do MP junto da 1ª instância, motivo pelo qual não se determinou o cumprimento o artigo 417º nº 2 do CPP. *** Colhidos os vistos legais foi o processo à conferência, onde se deliberou nos termos vertidos neste Acórdão. II - Delimitação do objeto do recurso. Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995]. Desta forma, tendo presentes tais conclusões é a seguintes a questão a apreciar: Da violação do contraditório. Da inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 49.º, n.º 6, da Lei 83/2017, de 18 de agosto, no sentido de que é admissível, mediante solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, sem antes conceder a possibilidade de exercício de contraditório. Da irregularidade do despacho por falta de fundamentação. Da inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 49.º, n.º 6, da Lei 83/2017, de 18 de agosto, no sentido de que é admissível, mediante solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, sem fundamentação que demonstre que se mostra suficientemente indiciado que esses mesmos fundos, valores ou bens são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima, redunda em norma materialmente inconstitucional por violação dos artigos 1.º, 2.º, 12.º, n.os 1 e 2, 18.º, n.os 2, 20, n.º 1 e 4 e 32.º n.os 1, 2 e 5, todos da CRP. Dos pressupostos para a aplicação da medida de congelamento dos saldos bancários. Os factos indiciados não são idóneos a concluir que foi suficientemente indiciada a prática do crime de corrupção no setor privado, burla qualificada e fraude fiscal. O n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 20/2008, interpretado no sentido de que para a consumação do crime de corrupção ativa no sector privado não é necessária a existência de um sinalagma ou interdependência entre a vantagem prometida ou oferecida e o concreto ato ou omissão visado, redundam em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 3, 18.º, n.os 1, 2 e 3 e 29.º, n.os 1 e 3, da CRP. Os n.os 1 e 2 do artigo 9.º da Lei n.º 20/2008, interpretados conjuntamente no sentido de que para a consumação do crime de corrupção ativa no sector privado não é necessária a existência de um sinalagma ou interdependência entre a vantagem prometida ou oferecida e o concreto ato ou omissão visado, redundam em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 3, 18.º, n.os 1, 2 e 3 e 29.º, n.os 1 e 3, da CRP. III- Fundamentação O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição): “Veio o Ministério Público, invocando o disposto no art. 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18.08, requerer que se determine o congelamento do saldo existente na conta bancária identificada a fls. 1113. Investiga-se nestes autos a prática do crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.º-A, n.os 1, proémio, a 4, do Código Penal, surgindo como ilícito antecedente deste, para além do mais, o crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), com referência ao art. 202.º, al. b), ambos do Código Penal. As suspeitas que conduziram à confirmação da suspensão temporária de operações bancárias têm vindo a ser corroboradas pela investigação em curso, mostrando-se neste momento indiciado que o saldo da conta bancária acima referida está relacionado com a prática dos referidos ilícitos criminais. Na ponderação que neste momento terá de ser feita entre, por um lado, a circunstância de os presentes autos se encontrarem sujeitos ao regime do segredo de justiça e, por outro lado, o dever de fundamentação dos atos decisórios (art. 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal), pode concluir- se, como o faz o Ministério Público na promoção de fls. 1107 a 1114, que os fundos aportados à conta da ... junto do Banco ZZ têm exclusiva origem em entidades e em negócios com o Grupo XX, que apenas foram celebrados por ter sido viciado o processo de formação da vontade negocial desse grupo, em particular por via de pagamentos indevidos a responsáveis desse Grupo, factos ilícitos que são objeto do NUIPC 405/18.0... Por seu turno, com a cessação da vigência da medida de suspensão temporária de operações bancárias, mantém-se o perigo de as quantias que se indicia terem sido obtidas ilicitamente, e que estão depositadas na conta bancária em causa, serem dispersas pela economia legítima. Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art. 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18.08, defere-se o requerido e, consequentemente: - Determina-se o congelamento do saldo da conta bancária identificada a fls. 1113; Declara-se cessada, por inutilidade superveniente, a medida de suspensão temporária de operações bancárias relativa à referida conta bancária” *** Cumpre apreciar os fundamentos do recurso A análise que iremos realizar quanto às questões recursivas não será pela ordem com que foram sendo apresentadas pelo recorrente, mas pela ordem que permitirá o melhor dilucidamento das mesmas. Assim, importa que comecemos pela invocada violação do direito de defesa do arguido. Da violação do principio do contraditório Começa a recorrente por alegar que no Despacho recorrido, o Tribunal a quo, em violação do quadro constitucional e legal (artigo 32.º, nºs 1 e 5 da CRP), e inversamente ao entendimento da jurisprudência dos tribunais superiores, decidiu determinar a aplicação da medida de congelamento a proferir nestes autos sem contraditório prévio da visada. Efetivamente, como se constata dos autos, o tribunal recorrido, na sequência da promoção do Ministério Público a pedir a aplicação da medida de congelamento, determinou, sem audição prévia da visada, a aplicação da medida peticionada e após a efetivação da medida foi determinada a notificação da recorrente quanto ao teor do despacho judicial assim como quanto à promoção do Ministério Público. O princípio do contraditório, em traços gerais, significa que o tribunal, antes de proferir uma decisão, deve ouvir a acusação e a defesa e que a estas deve ser concedida a possibilidade de tomar posição sobre a atuação ou conduta processual realizada pelo outro sujeito processual. Nas palavras de Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Coimbra: Almedina, p. 74 “o dever de ouvir qualquer sujeito do processo penal ou mero participante processual quando deva tomar-se qualquer decisão que pessoalmente o afete. A participação processual penal que este princípio permite, correspondendo-lhe, em bom rigor, um verdadeiro direito de audiência, significará mesmo uma forma de participação constitutiva na declaração do direito do caso quando o participante tenha o estatuto de sujeito processual”. O princípio do contraditório encontra-se constitucionalmente consagrado no artigo 32º, n.º 5 da Constituição, representando, deste modo, uma exigência axiológica estruturante do processo penal. Não obstante ser um principio constitucional, o mesmo, conforme resulta do artigo 32º nº 5 da CRP, não funciona com a mesma dimensão em todas as fases do processo, dado que apenas a audiência de julgamento e alguns atos instrutórios estão subordinados ao princípio do contraditório. Daqui decorre que algumas fases do processo penal, ou melhor alguns atos processuais, não estão necessariamente sujeitas ao princípio do contraditório, sendo que a exigência axiológica do contraditório é geral e absoluta apenas quanto à audiência de julgamento. Daqui decorre que a fase de inquérito tem uma estrutura dominantemente acusatória e não contraditória, fazendo com que o principio do contraditório tenha uma incidência limitada, sendo apenas convocado quando estão em causa necessidades de concordância prática de interesses conflituantes. Deste modo, só quando estão em causa aspetos nucleares do direito de defesa em concretos atos processuais, mais precisamente em sede de aplicação de medidas de coação, é que se torna necessário dar conhecimento prévio ao arguido, não só dos factos imputados, como dos meios de prova que fundamentam os indícios, para que aquele possa exercer um pleno direito de defesa reativo quanto a uma eventual medida restritiva de direitos, liberdades e garantias. No caso em apreço, não obstante estarmos perante uma medida restritiva de direitos fundamentais, como é o direito de propriedade, a mesma não tem a dimensão e a restrição que decorre da aplicação de uma medida de coação, pelo que não se justifica, em termos de concordância prática quanto aos interesses em confronto, a aplicação de um contraditório prévio à aplicação da medida de congelamento de saldos bancários. Há que dizer que apesar da lei não exigir a prévia audição do visado, isso não significa que este não possa, através de meios reativos, reagir à aplicação da medida e trazer ao processo todos os elementos necessários para que o tribunal repondere a decisão. Desde logo, tem ao seu dispor o direito ao recurso, como também o direito a apresentar requerimento dirigido ao juiz de instrução criminal onde, com fundamento em elementos de prova ou em argumentos jurídicos, procure demonstrar que não se justifica a manutenção da medida em causa. Assim sendo, quanto à alegada violação do princípio do contraditório, é manifesta a improcedência da pretensão da recorrente, visto que não é constitucionalmente imposto que o suspeito seja ouvido previamente ao decretamento da medida de congelamento de saldos bancários. Cumpre dizer, ainda, que a interpretação normativa do artigo 49.º, n.º 6, da Lei 83/2017, de 18 de agosto, no sentido de que é admissível, mediante solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, sem antes conceder a possibilidade de exercício de contraditório ao visado pela medida,, não constitui qualquer violação dos artigos 1.º, 2.º, 12.º, nºs 1 e 2, 18.º, n.º 2, 20, n.º 1 e 4 e 32.º nºs 1, 2 e 5, todos da CRP pelo que não verifica a aplicação de norma materialmente inconstitucional. *** Da irregularidade do despacho por falta de fundamentação. Vejamos agora a segunda questão colocada pela recorrente e que se traduz na invocada falta de fundamentação do despacho recorrido. Começando pelo regime das irregularidades constata-se que este vício, por apresentar uma menor gravidade, possui um regime de invocação distinto do regime dos restantes vícios processuais, como é o caso das nulidades que podem ser deduzidos em qualquer altura (nulidade absolutas ou insanáveis) ou então num lapso de tempo mais contido (nulidade relativa ou sanável). Quanto às nulidades sanáveis, o regime de arguição encontra-se previsto no artigo 120º nº 3 do CPP. Em relação às irregularidades, tendo em conta o regime previsto no artigo 123º do CPP, a mesma deve ser invocada, tratando-se de uma irregularidade a que o interessado não tenha assistido, nos três dias seguintes à sua notificação para qualquer termo do processo. Daqui decorre, que a invocação das nulidades sanáveis, assim como das irregularidades, terá de ser feita dentro do prazo previsto na lei e perante o tribunal onde o vício foi praticado e não, como fez o recorrente, em sede de recurso. De acordo com o regime processual vigente, somente as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em sede de recurso, conforme resulta do artigo 379º nº 2 do CPP. Segundo o artigo 97º do CPP, os atos decisórios dos juízes tomam a forma de: Sentenças, quando conhecerem a final do objeto do processo; Despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior. De acordo com a definição prevista no artigo 97º nº 1 al a), conjugada com os requisitos da sentença previstos no artigo 374º, ambos do CPP, para fins penais, sentença é essencialmente a decisão judicial condenatória ou absolutória. Nos demais casos, estaremos perante um mero despacho. Assim sendo, aplicando a definição prevista no artigo 97º nº 1 al. a) do CPP, o ato decisório em causa constitui um despacho e não uma sentença e, como tal, não está sujeito às regras do artigo 379º do CPP quanto aos vícios processuais. O dever de fundamentação é uma garantia integrante do conceito de Estado de Direito Democrático, previsto no artigo 205 nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 97º nº 5 do Código de Processo Penal, que pressupõe a densificação do substrato probatório destinado a sustentar os factos e imputações apresentados em juízo. Conforme consta dos normativos referidos, todos os atos decisórios têm de ser fundamentados, entendendo-se de forma expressa que a fundamentação tem que conter a especificação dos motivos de facto e de direito subjacentes à decisão proferida, enquanto condição essencial para a produção de efeitos dos atos decisórios. Assim sendo e tendo o presente o caso concreto, conclui-se que o despacho em causa é um ato decisório e, como tal, está sujeito, por força da exigência geral prevista no nº 5 do artigo 97º do CPP, ao dever de fundamentação. Atento o princípio da legalidade consagrado no artigo 118.º, n.º 1, CPP, «nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular», a invocada falta de fundamentação quanto ao caso concreto, (artigo 205º nº 1 da CRP e 97º, nos 3 e 5, CPP), é suscetível de conduzir à irregularidade do despacho em causa sendo, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, CPP. Tendo em conta a natureza do vício em causa – irregularidade – o mesmo terá de ser invocado pelo interessado no prazo de 3 dias, conforme impõe o artigo 123º do CPP, sob pena de se considerar sanado pelo decurso do prazo, e perante o tribunal onde o ato foi praticado e não em sede de recurso. Quanto às irregularidades processuais, assim como quanto às nulidades processuais, com exceção das nulidades insanáveis, as mesmas não podem, no âmbito do processo penal, ser arguidas em sede de recurso, mas sim em sede de reclamação perante o juiz do processo e só após decisão proferida por este sobre tal nulidade é que poderá eventualmente haver recurso. Assim sendo, não compete ao Tribunal da Relação, como pretende a recorrente, conhecer, em primeira mão, da irregularidade processual em causa, tanto mais que a existir recurso, como existiu no caso concreto, nunca poderia ter como fundamento a prática desse vício processual, mas sim sindicar, em sede de recurso, a decisão do juiz que incidir sobre vícios processuais perante ele invocados. Em suma, a apreciação, em sede de recurso, da irregularidade prevista no artigo 123º CPP - por falta de fundamentação do despacho - pressupõe que tal irregularidade foi previamente arguida perante o tribunal a quo e por este decidida. Se essa questão não foi suscitada na 1.ª instância, nem o tribunal recorrido sobre ela se pronunciou, não pode a mesma ser suscitada na motivação do recurso que tem por objeto a apreciação da decisão que determinou o congelamento dos saldos bancários. O tribunal da relação é, assim, materialmente incompetente para conhecer, em primeiro mão, dos vícios de irregularidade ou nulidades sanáveis praticados em atos processuais da autoria dos tribunais de 1ª instância. Deste modo, quanto a este segmento do recurso, profere-se decisão de rejeição do mesmo. Quanto à suscitada inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 49.º, n.º 6, da Lei 83/2017, de 18 de agosto, no sentido de que é admissível, mediante solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, sem fundamentação que demonstre que se mostra suficientemente indiciado que esses mesmos fundos, valores ou bens são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima, redunda em norma materialmente inconstitucional por violação dos artigos 1.º, 2.º, 12.º, nº 1 e 2, 18.º, nº 2, 20, n.º 1 e 4 e 32.º nº 1, 2 e 5, todos da CRP. Uma vez que esta questão está dependente da decisão a incidir sobre a irregularidade processual por falta de fundamentação fica, naturalmente, prejudicado o seu conhecimento. *** Dos pressupostos para a aplicação da medida de congelamento dos saldos bancários. Segundo a recorrente, in casu, não se verifica a mínima indiciação e concretização dos ilícitos precedentes ao alegado branqueamento, nem a concretização dos perigos desses mesmos fundos serem dispersos em economia legítima, ao que se soma uma autêntica “indigência probatória” pois como facilmente se alcança da promoção do Ministério Público e do Despacho recorrido, em termos de prova nada se invoca, nada consta. Os presentes autos tiveram origem na sequência de uma comunicação efetuada pelo Banco ZZ dando conta de uma operação de transferência de 1.700,000,00 Euros entre a conta titulada pela recorrente e a conta titulada pela ..., junto do .... O saldo bancário da conta titulada pela recorrente era de 4,3 milhões de Euros. Este saldo bancário teve origem no crédito de 1.996.340,00 Euros no resgate do papel comercial emitido pela ..., e no crédito de 2.051.735,77 Euros em depósito de cheque sacado sobre a conta da entidade .... Segundo o MP indicia-se que os fundos em causa foram gerados de forma ilícita, designadamente por crimes de corrupção privada e fraude fiscal. O MP determinou a suspensão da operação em causa. Por despacho judicial de ...-...-2024, com os fundamentos indicados pelo MP, foi confirmada a suspensão provisória e determinado, pelo período de três meses, o bloqueio de todos os movimentos e de todas as operações a débito sobre a conta bancária identificada na douta promoção do MP (conta bancária da recorrente). Esta medida foi sucessivamente prorrogada, a cada três meses, até ao dia ... de ... de 2025, data em que foi proferido o despacho de congelamento do saldo da conta bancária em causa. Cumpre referir que esta medida, conforme resulta do artigo 49º nº 2 da lei 83/2017 de 18-08, apenas pode ser aplicada por 3 meses e renovada dentro do prazo do inquérito, o que evidencia o carácter precário com que a mesma pode ser aplicada e mantida. Assim, o presente inquérito tem o prazo máximo de duração de 14 meses, nos termos do artigo 276º nº 3 al. a) do CPP, o que faz com a medida de suspensão de operação bancária caduque decorridos que estejam 14 meses contados desde o início do inquérito. Antes de entramos na análise dos fundamentos do recurso importa compreender a natureza da medida em causa e os pressupostos para a sua aplicação. Para além da tradicional abordagem repressiva do tipo de crimes que geram vantagens suscetíveis de serem branqueadas, o sistema atual, sobretudo na sequência dos fenómenos do terrorismo internacional e da criminalidade organizada e transnacional, tem vindo a caminhar para uma abordagem preventiva. Nessa abordagem preventiva, o legislador tem vindo a impor obrigações às entidades financeiras, bem como às demais entidades sujeitas, identificadas no artigo 3º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto. Dispõe o artigo 43º da citada lei o seguinte: 1 - As entidades obrigadas, por sua própria iniciativa, informam de imediato o Departamento Central de Investigação e Ação Penal da Procuradoria-Geral da República (DCIAP) e a Unidade de Informação Financeira sempre que saibam, suspeitem ou tenham razões suficientes para suspeitar que certos fundos ou outros bens, independentemente do montante ou valor envolvido, provêm de atividades criminosas ou estão relacionados com o financiamento do terrorismo. 2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, as entidades obrigadas comunicam todas as operações que lhes sejam propostas, bem como quaisquer operações tentadas, que estejam em curso ou que tenham sido executadas. 3 - As entidades obrigadas conservam, nos termos previstos no artigo 51.º, cópias das comunicações efetuadas ao abrigo do presente artigo e colocam-nas, em permanência, à disposição das autoridades sectoriais. Um dos deveres impostos às entidades obrigadas é o dever de abstenção previsto no artigo 47º que dispõe o seguinte: - As entidades obrigadas abstêm-se de executar qualquer operação ou conjunto de operações, presentes ou futuras, que saibam ou que suspeitem poder estar associadas a fundos ou outros bens provenientes ou relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo. No domínio preventivo são, sem qualquer dúvida, as entidades financeiras as que melhor estão posicionadas para detetar comportamentos ilícitos e usos indevidos do sistema financeiro, nomeadamente, operações de branqueamento de produtos ou vantagens de um crime. Com efeito, num primeiro momento, são as instituições financeiras quem melhor conhece os seus clientes, quem melhor conhece as operações e transações realizadas, quem melhor está em condições de analisar, perante operações suspeitas, essas mesmas operações. É no decurso destes deveres impostos às entidades financeiras e da análise feita pelas mesmas, que teremos as medidas processuais especiais de controlo de contas bancárias e de suspensão de operações a débito e/ou a crédito. Entre essas medidas está a suspensão temporária prevista no artigo 48º da Lei 83/2017 de 18 de Agosto. Por sua vez, dispõe o nº 6 do aludido normativo que “A solicitação do Ministério Público, o juiz de instrução pode determinar o congelamento dos fundos, valores ou bens objeto da medida de suspensão aplicada, caso se mostre indiciado que os mesmos são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo e se verifique o perigo de serem dispersos na economia legítima” As medidas de suspensão de movimentos e de congelamento de fundos previstas no artigo 48º configuram natureza cautelar, cuja imposição resulta das regras relativas à prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento ao terrorismo. O pressuposto de aplicação destas medidas assenta na possibilidade de formulação de um juízo indiciário de que as operações detetadas (realizadas ou em curso), sejam particularmente suscetíveis de estarem relacionadas com a prática de crime de branqueamento de capitais ou de terrorismo, conforme disposto no artigo 1º da citada lei. Assim, através das normas em causa, pretendeu o legislador adotar medidas preventivas de combate aos referidos fenómenos – branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, o que fez por ter entendido que os instrumentos e mecanismos já disponíveis, designadamente os previstos pelo Código de Processo Penal, eram insuficientes e desadequados para a prossecução de tais fins preventivos, donde se poderá concluir que se tratam, na verdade, instrumentos diversos e dependentes de pressupostos igualmente distintos. Estas normas especiais de natureza cautelar, em nosso entender, resultam do facto de o legislador ter compreendido que o fenómeno do branqueamento de capitais e do financiamento ao terrorismo deve ser visto como um processo e não como um ato isolado, uma vez que se visa ocultar ou dar nova justificação para um conjunto de fundos de indiciada origem ilícita, finalidade que apenas é alcançada por um somatório de operações/manobras de colocação, de circulação e de integração, que, a final, pode permitir quebrar a ligação dos fundos com a sua real origem ilícita. Esta abordagem preventiva, que é comum a outras legislações da União Europeia, é o assumir, por parte do legislador, que os esforços em matéria de prevenção desenvolvidos ao nível do sistema financeiro podem produzir bons resultados no que concerne ao combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Deste modo, forçoso será concluir que os referidos instrumentos estão dependentes da verificação de pressupostos diferentes dos previstos no CPP e destinados a condutas bem mais graves e organizadas que ponham em risco a segurança nacional e internacional. Na verdade, os crimes em causa (branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo), atenta a sua gravidade e dimensão internacional, justificam a imposição de um sacrifício acrescido ao visado pela medida, pois que fica sujeito a uma mora na disponibilização de determinada quantia que é, em regra avultada e circula, por vezes, a grande velocidade e com recurso a entidades fictícias que apenas servem para o branqueamento das quantias provenientes da prática de crimes e destinadas à prática de outros crimes. As medidas em causa, incluindo naturalmente o congelamento de saldos bancários, são aplicadas através de despacho do Juiz, no âmbito de um inquérito criminal, mediante impulso do titular da ação penal, ou seja, o Ministério Público. Esta medida, atenta a sua natureza cautelar e preventiva, não faz apelo aos pressupostos de que dependem a aplicação das medidas de coação e de garantia patrimonial, bem como aos meios de obtenção de prova disciplinados pelo artº 181º do CPP, relativamente a apreensões em estabelecimento bancário. Para além dessa natureza cautelar, não restam dúvidas de que se tratam, também, de instrumentos de obtenção de prova instituídos para superar alguns pontos de bloqueio na investigação da criminalidade relacionada com o branqueamento de capitais e do terrorismo. Tendo em conta o disposto no nº 6 do artigo 48º da Lei 83/2017 de 18 de agosto a medida cautelar de congelamento de saldos bancários depende da verificação cumulativa de dois pressupostos. É necessário, em primeiro lugar, a existência de indícios de que os fundos em causa são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo. Quando na fase de inquérito, para a aplicação de uma medida restritiva de direitos fundamentais, como é o caso do congelamento de saldos bancários, se alude à presença de indícios, o que se pretende afirmar é que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas, como acontece com a SOB, mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma base de sustentação segura quanto aos factos. Naturalmente que essa base de sustentação segura deverá ser constituída por elementos de prova os quais deixem já uma impressão nítida da responsabilidade do suspeito ou arguido objetivadas a partir dos elementos recolhidos no inquérito. É necessário, também, que se verifique o perigo concreto dos fundos serem dispersos na economia legitima. Ao inscrever este requisito, o legislador pretendeu acautelar o risco dos fundos, valores ou bens, não só o produto direto das atividades criminosas, mas também todos os seus ganhos indiretos, incluindo o reinvestimento ou a transformação posterior de produtos diretos, sejam integrados no sistema financeiro legal, dificultando, deste modo, a sua deteção e recuperação. Daqui resulta, desde logo, que os pressupostos para a aplicação desta medida são mais exigentes do que aqueles para a aplicação e manutenção da medida de suspensão das operações bancárias. Na verdade, onde antes apenas se exigia a existência de suspeitas, ou seja, circunstâncias anómalas que poderiam apontar para existência de operações de natureza ilícita, agora exige-se a presença de indícios, a extrair dos elementos factuais e probatórios disponíveis nos autos, que apontem nesse sentido. O grau de maior exigência em termos da presença dos pressupostos resulta, ainda, do caráter precário com que é aplicada a medida de suspensão – apenas por 3 meses, sujeita a reexame e por um prazo máximo de, em regra, 14 meses. Esta menor exigência em relação à SOB é ainda compreensível pelo facto de ser aplicada numa fase muito embrionária do processo, muito vezes como primeiro ato processual, onde a investigação está no início e os elementos de prova são, naturalmente, escassos. Deste modo, atento o caráter não precário da medida de congelamento e não estar sujeita, como acontece com a SOB, a prazos de caducidade, o seu impacto, em termos de compressão do direito fundamental de propriedade do visado, é muito maior e maior se torna tivermos em conta que os prazos máximos de duração inquérito fixados no CPP são, muitos vezes, especialmente neste tipo de criminalidade, largamente excedidos fazendo com que esta medida consubstancie, nessas situações, um verdadeiro “confisco” antecipado pelo Estado. Como sabemos, o art.º 276 do CPP fixa prazos de duração máxima para o inquérito, fazendo-os variar em função da situação processual do arguido, da gravidade dos crimes e da excecional complexidade do próprio processo. Conforme vem sendo sustentando pela doutrina e jurisprudência, os prazos máximos de duração do inquérito não são perentórios, sendo válidos os atos processuais praticados ainda que depois de findo o prazo, o mesmo é dizer, o termo do prazo não tem qualquer efeito preclusivo, mormente no que respeita à imposição da medida de congelamento dos saldos bancários. Daqui decorre que as consequências do decurso do prazo máximo do inquérito, sem prejuízo de questões de prescrição do procedimento criminal, são de ordem meramente administrativa, permitem a possibilidade de fixação de um prazo necessário para conclusão do inquérito ou avocação do processo pelo superior hierárquico imediato do titular do processo ou de dedução do incidente de aceleração processual (n.º 6 a 8 do art.º 276.º e 109.º, do CPP), bem como, ainda, do fim do segredo de justiça interno (n.º 6 do art.º 89.º do CPP). Deste modo, o juiz de instrução, atuando como juiz das garantias, ao aplicar uma medida restritiva de direitos fundamentais, como é no caso concreto a medida de congelamento de saldos bancários, ciente do impacto que essa medida acarreta, terá de exteriorizar e tornar cognoscíveis, não só por razões de legitimidade da própria decisão, mas também para garantir um efetivo exercício do direito de defesa dos visados, as concretas razões pelas quais determina essa restrição. Cumpre referir, também, que a especificidade das medidas em causa, e por restringirem um direito fundamental, como é o direito de propriedade, não dispensa o apelo a princípios gerais da necessidade da aplicação de medidas restritivas de direitos e da sua criteriosa proporcionalidade e busca da verdade material, critérios, aliás, orientadores de qualquer outra intervenção investigatória ou judicial. De todo o exposto resulta que medida do congelamento é uma medida cautelar, em termos de impacto para os visados e em termos de pressupostos (mais exigentes) naturalmente distinta da medida da suspensão de operações bancárias. O grau de exigência, em termos de fundamentação da decisão que decreta o congelamento, é, necessariamente, maior, tanto mais que o congelamento é aplicado numa fase avançada do inquérito onde já estão (ou deveriam estar) reunidos elementos probatórios que suportem um juízo de indiciação fundado. A medida de congelamento também não é um sucedâneo necessário e automático da SOB quando esta, por decurso do prazo, se extingue por caducidade e nem foi desenhada para salvaguardar os efeitos da caducidade da SOB e, muito menos, pode ser encarada como uma solução de recurso quando o MP, decorrido o prazo de 14 meses, não conseguiu recolher elementos probatórios que sustentem as suspeitas iniciais que justificaram o recurso à medida de suspensão. Regressando ao caso concreto, cumpre verificar, dado que a recorrente coloca esse aspeto em causa, se está verificado o primeiro pressuposto para que a medida de congelamento possa subsistir, ou seja, a presença de indícios de que os fundos em causa, isto é, o montante de 4, 3 milhões de Euros existente na conta titulada pela recorrente, é proveniente ou está relacionado com a prática de atividades criminosas. Cumpre referir que até ao momento não ocorreu a constituição como Arguida da sociedade recorrente. O despacho recorrido qualificou, em temos de enquadramento jurídico-penal, que os factos em investigação indiciam a prática do crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.º-A, nºs 1 a 4, do Código Penal, surgindo como ilícito antecedente, para além do mais, o crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), com referência ao art. 202.º, al. b), ambos do Código Penal. Daqui decorre que, de acordo com o despacho recorrido, o saldo bancário é, em termos de indícios, produto ou vantagem da prática de um crime de burla qualificada e as operações bancárias realizadas constituem manobras de branqueamento. Da análise do despacho recorrido não se consegue alcançar, dada a total ausência de elementos probatórios e factuais, de onde se extrai a presença de indícios quanto à prática do crime subjacente (crime de burla qualificada), gerador de vantagens, e que as operações bancárias efetuadas na conta bancária da recorrente são manobras destinadas a integrar na economia lícita os montantes em causa e evitar a sua deteção ou perda a favor do Estado. Com efeito, o despacho recorrido, para além de não identificar qualquer elemento de prova existente no processo que permitiu a convicção quanto à presença de indícios do crime de burla qualificada, não faz, ainda que de forma sintética, qualquer exame crítico em relação aos elementos de prova. Como se pode ver, o despacho recorrido justificou a evolução das suspeitas iniciais em indícios pela seguinte forma: “As suspeitas que conduziram à confirmação da suspensão temporária de operações bancárias têm vindo a ser corroboradas pela investigação em curso, mostrando-se neste momento indiciado que o saldo da conta bancária acima referida está relacionado com a prática dos referidos ilícitos criminais”. Daqui decorre, apesar de existir uma convicção do julgador que o saldo bancário está relacionado com a prática de um crime de burla qualificada e de branqueamento, uma total ausência de identificação dos elementos de facto existentes no processo que permitiram a referida convicção do juiz de instrução criminal. Não podemos ignorar que a fundamentação é sinónimo de exteriorização do discurso jurídico no qual a autoridade judiciária baseou a sua decisão, cognoscibilidade dos elementos e fundamentos em que o decisor assentou a sua decisão de autorizar o ato de ingerência e na forma como o concedeu. Prossegue o despacho recorrido referindo o seguinte: “ Na ponderação que neste momento terá de ser feita entre, por um lado, a circunstância de os presentes autos se encontrarem sujeitos ao regime do segredo de justiça e, por outro lado, o dever de fundamentação dos atos decisórios (art. 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal), pode concluir- se, como o faz o Ministério Público na promoção de fls. 1107 a 1114, que os fundos aportados à conta da ... junto do Banco ZZ têm exclusiva origem em entidades e em negócios com o Grupo XX, que apenas foram celebrados por ter sido viciado o processo de formação da vontade negocial desse grupo, em particular por via de pagamentos indevidos a responsáveis desse Grupo, factos ilícitos que são objeto do NUIPC 405/18.0...”. Há que dizer, antes de mais, que a aplicação do segredo de justiça, que constitui um desvio à regra da publicidade, não é absoluto e jamais poderá sobrepor-se a outros princípios igualmente com proteção constitucional, como é o caso do contraditório, do direito ao recurso, do acesso à justiça e a um processo justo e equitativo, nas situações em que são proferidas medidas restritivas de direitos fundamentais, como é o caso concreto, e jamais poderá servir de justificação, como resulta do despacho recorrido, para não cumprir uma imposição legal decorrente do artigo 97º nº 5 do CPP e 205º da CRP. Para além disso, resulta do despacho recorrido que os fundos aportados na conta bancária da recorrente, ou seja, os fundos congelados, têm origem em entidades e em negócios com o Grupo XX e que apenas foram celebrados por ter sido viciado o processo de formação da vontade negocial desse grupo, em particular por via de pagamentos indevidos a responsáveis do Grupo XX. Mais uma vez, não consta do despacho recorrido os elementos de facto existentes no processo que permitem a indiciação que os fundos existentes na conta da recorrente têm origem ilícita, nomeadamente nos ilícitos que estão a ser investigados em outro processo (NUIPC 405/18.0...), no qual foram detidos, em ..., vários arguidos, entre os quais AA beneficiário final da sociedade recorrente e da .... Sobressai do despacho recorrido, embora não resulte que a fundamentação da decisão tenha sido feita por remissão e adesão à promoção do MP, que foram utilizados os argumentos da referida promoção. Em todo o caso, ao lermos a promoção que precedeu ao despacho recorrido, não se mostra identificado um único elemento de prova, sendo que a promoção é, no essencial, uma descrição de operações bancárias seguida de conclusões sem qualquer suporte probatório identificado. Deste modo, não se compreende, dada a ausência de indicação de elementos de prova, como se pode passar da existência de suspeitas que justificaram a aplicação da SOB, para presença dos indícios que justificaram a aplicação da medida de congelamento. O facto de AA estar a ser investigado, desde ..., no âmbito do inquérito NUIPC 405/18.0..., o facto de ter sido detido para interrogatório em ... no âmbito daquele inquérito e o facto de ser beneficiário da recorrente e da ..., por serem dados já conhecidos aquando da aplicação da SOB, não podem, naturalmente, ser considerados como elementos novos dos quais se possa inferir um juízo de indiciação que justifique a aplicação da medida de congelamento. Para além disso, o decorrer do tempo, entre o momento em que foi aplicada a SOB e o momento em que foi aplicada a medida de congelamento, não pode, por si só, justificar um juízo de indiciação distinto daquele que foi feito inicialmente, quando entre um momento e outro não foram produzidos elementos de prova (pelo menos não se mostram identificados na decisão) que permitam reforçar esse juízo de indiciação. Conforme resulta da promoção do MP que precedeu o despacho recorrido, no momento em que foi pretendido realizar a transferência de fundos entre a ... e a ... (1.700.000,00 Euros), suportada num alegado contrato de empréstimo entre as duas entidades, a conta da ... junto do Banco ZZ registava um saldo de cerca de 4,3 milhões de euros, com origem nas seguintes operações: crédito de € 2.051.735,77 por via de depósito de um cheque bancário cuja aquisição havia sido debitada em conta, junto do ..., da entidade ..., operação lançada com data valor de ...-...-2024; um crédito de € 1.996.340,00, na data de ...-...-2024, com origem no resgate de papel comercial emitido pela ..., cuja subscrição havia ocorrido em .... Quanto aos fundos com origem no resgate do papel comercial emitido pela ... Porto, a promoção do MP, sendo que o despacho recorrido nada refere a esse propósito, refere que os mesmos têm origem em quatro transferências, no montante total de € 3.000.000,00, com origem na sociedade ..., também controlada pelo AA, montante que teve origem no produto da venda do imóvel sito em Lisboa, imóvel esse que foi então vendido pela mesma ... pelo preço de € 3.600.000,00 e que havia sido adquirido pela mesma ..., em .../.../2020, pelo preço de 2.100.000,00€, à ..., sociedade do Grupo XX. Segundo o Ministério Público, o negócio imobiliário em causa lesou o grupo XX. Do despacho recorrido, assim como da promoção do MP, não constam factos e, muito menos, elementos probatórios, dos quais se possa concluir, em termos de indícios, que o negócio imobiliário em causa consubstanciou a prática de um ilícito criminal, nomeadamente um crime de burla qualificada ou um crime de corrupção privada. Dizer-se que os fundos tiveram origem em negócios celebrados com o Grupo XX e dizer-se que esses negócios apenas foram celebrados por ter sido viciado o processo de formação da vontade negocial desse grupo, em particular por via de pagamentos indevidos a responsáveis desse Grupo, desacompanhada da descrição de factos concretos, ainda que de forma sintética, que nos permitam inferir essa conclusão, bem como a ausência de elementos de prova que os sustentem, é manifestamente insuficiente para se concluir pela presença de indícios concretos de que os fundos em causa são produto, vantagem ou estão relacionados com a prática de crimes de burla qualificada ou corrupção privada. Quanto aos restantes fundos existentes na conta da recorrente, agora congelados, o Ministério Público alegou que os mesmos tiveram origem na ... e que estão em causa montantes com origem última em ilícitos de corrupção privada, burla e fraude fiscal, que foram feitos circular por conta da mesma ... como forma de aproveitar a idoneidade da mesma para criar a aparência de uma nova justificação, num claro procedimento de transferência e conversão desses mesmos fundos, típica de uma manobra de branqueamento. Segundo a promoção do MP, uma parte desses fundos tem origem na amortização da participação da ..., no montante de 2.051.735,77 Euros, na ..., sendo que o montante pago pela ... tem, por sua vez, origem nos novos aportes de fundos da ... à .... Quanto a estes fundos, com origem na ..., nem o despacho recorrido, nem a promoção do MP indicam qualquer facto concreto ou elemento de prova através dos quais se possa concluir, em termos indiciários, que os mesmos são produto, vantagem ou estão relacionados com os crimes de burla qualificada, fraude fiscal e corrupção privada. Na verdade, para além da conclusão e convicção do MP, nada mais é dito. Na verdade, do despacho recorrido, assim como da promoção do MP, não resulta minimamente quem determinou e o quê, uma pessoa e a quem, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou à prática de atos que causem um prejuízo patrimonial a essa pessoa ou a um terceiro, o que faz com que esteja afastada a presença de factos suscetíveis de preencher o crime de burla qualificada. Quantos aos restantes fundos existentes na conta da recorrente, segundo a promoção do MP, os mesmos tiveram origem no negócio imobiliário, relativo ao imóvel sito na ..., adquirido no final do ano de ... pela recorrente à ..., pelo valor de 7.000.000,00 Euros que veio a ser vendido cerca de um ano depois, por 7.500.000,00 Euros à ..., entidade do Grupo AA. Mais uma vez o MP conclui, na sua promoção, que os fundos em causa foram gerados de forma ilícita designadamente por crimes de corrupção privada e fraude fiscal. O despacho recorrido, a este propósito, é totalmente omisso em termos de descrição factual e motivação de facto, sendo que até diverge, embora sem justificar o motivo, da promoção do MP quanto ao ilícito criminal subjacente gerador das vantagens ilícitas. Com efeito, segundo o MP, os fundos em causa foram gerados de forma ilícita, designadamente por crimes de corrupção privada e fraude fiscal, enquanto que o despacho judicial considera que os fundos têm origem na prática de um crime de burla qualificada. Em todo o caso, o que se nota é que nem o despacho judicial nem a promoção do MP indicam factos concretos, nomeadamente quanto aos preços de mercado, por forma a que se possa inferir que o valor da transação (7.000.000,00 Euros), relativo ao imóvel sito na ..., era inadequado, que o preço obtido foi simulado ou que corresponde a um preço de favor. Para além disso, não se mostra descrito qualquer facto que indicie que o negócio imobiliário em causa só foi realizado mediante a promessa de vantagem ou pagamento de qualquer vantagem por parte da recorrente aos vendedores (trabalhador do setor privado). Na verdade, tratando-se de um crime de corrupção privada isso implica a existência de uma ligação sinalagmática entre a oferta e o ato a realizar, neste caso a venda (crime de corrupção privada nos arts. 8.° e 9.° da Lei 20/2008, de 21 de Abril). Em suma, os “factos” descritos na promoção do MP não são idóneos a concluir, quer pelo preenchimento, quer pela presença de indícios, da prática do crime de corrupção no setor privado, burla qualificada e fraude fiscal. Conclui-se, assim, pela ausência do primeiro requisito exigido para a aplicação da medida de congelamento, ou seja, não se mostra alegado, nem indiciado, em termos claros e inequívocos, que os fundos congelados são provenientes ou estão relacionados com a prática de atividades criminosas ou com o financiamento do terrorismo. Em face de todo o exposto, não se mostram reunidos os pressupostos de indiciação da origem de fundos em atividade ilícitas e de risco de dispersão na economia legítima, previstos no artigo 49.º, n.º 6, da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto pelo que se impõe a procedência do recurso. Fica prejudicado, deste modo, o conhecimento das demais questões suscitadas pela recorrente. IV – Decisão Por todo o exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pela sociedade ... e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se o imediato levantamento da medida de congelamento do saldo da conta bancária, junto do Banco ZZ, titulada pela ... associada ao número …567. Oficie, de imediato, ao Banco ZZ o levantamento da medida de congelamento do saldo sobre a conta nº …567 titulada pela recorrente. Sem custas Notifique Lisboa, 23 de outubro 2025 (Elaborado e integralmente revisto pelo relator) Ivo Nelson Caires B. Rosa Rosa Maria Cardoso Saraiva Joaquim Manuel da Silva  |