Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
292/25.2T8LSB.L1-2
Relator: SUSANA MESQUITA GONÇALVES
Descritores: PRESCRIÇÃO DA OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
RESPONSABILIDADE DO AVALISTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário:
(elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil)
I - Tendo o Autor subscrito, na qualidade de avalista, uma livrança emitida para garantia do cumprimento de obrigações decorrentes de um contrato de locação financeira imobiliária, sem que tenha nesse contrato qualquer intervenção, apenas garante o pagamento dessa livrança, tal como resulta do disposto no art.º 30º da LULL, ex vi do art.º 77º do mesmo diploma, pois desse contrato não resulta, para si, qualquer obrigação;
II - Uma vez prescrita a obrigação cambiária, o valor da livrança, enquanto quirógrafo, apenas se estende aos sujeitos da relação causal, sendo que apenas abrangerá o avalista se este se tiver igualmente obrigado como fiador da obrigação principal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
A veio intentar a presente ação declarativa de processo comum contra (…) – Sociedade de Titularização de Créditos, S.A., pedindo:
a) a declaração de prescrição e inexigibilidade de todos os créditos comunicados pela Ré à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal;
b) a condenação da Ré no reconhecimento de tal prescrição e inexigibilidade;
c) a condenação da Ré a comunicar ao Banco de Portugal que tais dívidas são inexigíveis e não responsabilizam o Autor, solicitando a sua eliminação imediata da Central de Responsabilidades de Crédito;
d) a condenação da Ré no pagamento ao Autor da quantia de 300,00 € por cada dia de atraso na comunicação acima referida, a título de sanção pecuniária compulsória.
Para o efeito alega, em síntese:
- Pretende obter financiamento junto de instituição financeira, tendo sido informado que o seu nome está inscrito na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal;
- Constatou, então, que ali consta a seguinte informação, reportada a 31.10.2024:
a) dívida no valor de 21.126,34 €, respeitante a um contrato de locação financeira imobiliária em incumprimento desde 20.11.2012, figurando o Autor como avalista/fiador;
b) dívida no valor de 35.175,05 €, respeitante a um contrato de locação financeira imobiliária em incumprimento desde 19.09.2016, figurando o Autor como avalista/fiador;
c) dívida no valor de 23.697,80 €, respeitante a um financiamento à atividade empresarial em incumprimento desde 10.12.2010, figurando o Autor como avalista/fiador;
d) dívida no valor de 2.730,30 € respeitante a cartão de crédito em incumprimento desde 01.01.2012, figurando o Autor como devedor;
- Tais informações foram inseridas na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal por comunicação da Ré, com quem o Autor nunca celebrou qualquer contrato;
- Os contratos de locação financeira imobiliária referidos em a) e b) foram celebrados em Junho de 2010 e Dezembro de 2009, respetivamente, entre a Caixa Económica Montepio Geral e a sociedade comercial C (…), S.A., de quem o Autor era administrador. Para garantia desses contratos, a C (…) subscreveu livranças em branco por si avalizadas. Essa sociedade veio a ser declarada insolvente em 21.02.2011, não tendo o Autor recebido qualquer comunicação da Ré ou dos seus antecessores relativamente a tal contrato. Os incumprimentos da sociedade C (…) tiveram lugar em Novembro de 2010;
- No que respeita ao crédito identificado em c), o mesmo é proveniente de um contrato de mútuo no montante de 20.000,00 €, celebrado entre a Caixa Económica Montepio Geral e a sociedade comercial C (…), S.A. em 10 de Dezembro de 2009, sendo o Autor fiador da devedora. Este contrato foi incumprido em 10.11.2010;
- O crédito descrito em d) inexiste, uma vez que foi integralmente cumprido pelo Autor;
- O Autor foi citado para a ação executiva que correu termos pelo Juízo Local Cível de Ponta Delgada, Juiz 1, sob o n.º (…), na qual o banco Montepio Geral deu à execução as livranças números (…), no montante de 5.460,14 €, e (…), no montante de 6.338,82 €, ambas emitidas a 20.11.2009 e com data de vencimento a 14.04.2011, que haviam sido subscritas pelo Autor no âmbito dos contratos referidos em a) e b);
- Nessa ação executiva foi igualmente dado à execução o contrato de mútuo referido em c) e reclamando o pagamento da quantia de € 18.448,37;
- Essa instância executiva foi declarada extinta, por inutilidade superveniente, por decisão de 05.07.2018;
- Conclui o Autor que os créditos se encontram prescritos, nos termos do artigo 310º do Código Civil e 70º da LULL, sendo-lhe lícito opor à Ré tal exceção uma vez que as livranças em causa não entraram em circulação, encontrando-se ainda no domínio das relações imediatas;
- Por carta registada com aviso de receção de 24.03.2022 o Autor interpelou a Ré para corrigir a informação inscrita na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal, de modo que aí deixasse de constar qualquer dívida à Ré, o que não aconteceu.
Regularmente citada a Ré não apresentou contestação.
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Em 19.03.2025 foi proferida sentença, cujo segmento decisório se reproduz:
Face ao exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente por provada e, em consequência:
1. Declara-se a prescrição do crédito que fundamenta o registo de incumprimento constante da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal no valor de € 23.697,80, respeitante a um financiamento à atividade empresarial em incumprimento desde 10/12/2010, figurando o A. como avalista/fiador;
2. Declara-se a inexigibilidade do crédito que fundamenta o registo de incumprimento constante da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal no valor de € 2.730,30 respeitante a cartão de crédito em incumprimento desde 01/01/2012, figurando o A. como devedor;
3. Condena-se a Ré no reconhecimento da prescrição e inexigibilidade dos créditos identificados em 1 e 2, na sua comunicação ao Banco de Portugal e na eliminação dos registos de incumprimentos respetivos, existentes na Central de Responsabilidades de Crédito, no prazo de 15 dias após o trânsito em julgado da presente decisão;
4. Condena-se a Ré no pagamento ao Autor a quantia de € 100,00 (cem euros) por cada dia de atraso na comunicação referida em 3, a título de sanção pecuniária compulsória.
Absolve-se o R. do demais peticionado.
Custas pelo Autor e pelo Réu na proporção do decaimento, que se fixa em 68%-32%, nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Registe e notifique”.
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Não se conformando com essa decisão, o Autor dela veio recorrer, formulando as seguintes conclusões:
A) A decisão recorrida fez uma interpretação incorreta da norma jurídica aplicável ao concluir que o crédito emergente de contrato de locação financeira imobiliária prescreve no prazo de 20 anos, e não no prazo de 5 anos merecendo, por isso, censura.
B) Nos casos em que as livranças não entraram em circulação, encontrando-se ainda no domínio das relações imediatas, isto é, entre o subscritor, o beneficiário e os avalistas, como sucede na situação subjacente aos presentes autos, não valem os princípios cambiários da literalidade e abstração, sendo lícito ao Autor opor à Ré qualquer exceção fundada na obrigação causal, sendo que a extinção por prescrição das obrigações principais, causais e subjacentes às mencionadas livranças, extinguem, necessariamente, as obrigações cambiárias.
C) O Recorrente pode, pois, invocar a exceção da prescrição da obrigação subjacente, ao abrigo do artigo 301.º do Código Civil, que determina que a prescrição aproveita a todos os que dela podem tirar benefício.
D) O prazo de prescrição da obrigação subjacente decorrente de contrato de locação financeira imobiliária é de 5 anos, conforme decidido por Acórdão Uniformizador do STJ n.º 13/2024, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
E) O que significa que as obrigações das relações materiais subjacentes à emissão das aludidas livranças estão totalmente prescritas ou, dito de outro modo, os créditos resultantes dos contratos de locação financeira imobiliária identificados nas alíneas a) e b) do artigo 3.º e artigos 6.º e 14.º da petição inicial estão irremediavelmente prescritos.
F) In casu, conforme decidido na sentença recorrida, é facto assente que as duas livranças em causa têm data de vencimento a 14/04/2011 e, também, pacífico que se encontra prescrito o prazo para o exercício do direito de ação da Ré contra o Autor com base nessas livranças.
G) É jurisprudencialmente pacífico que uma livrança prescrita deixa de valer como título executivo de natureza cambiária e passa a constituir mero documento particular, quirógrafo da dívida causal ou relação subjacente, caso em que, se pretender executar tal título, tem o credor/exequente de alegar (e provar), no requerimento executivo, os factos constitutivos da relação material subjacente.
H) E extinta a obrigação cartular resultante do aval, por efeito da prescrição, têm de ser alegados factos demonstrativos de que o avalista se constituiu como sujeito passivo na relação material jurídica subjacente da qual resulte o direito à prestação reclamada pelo exequente.
I) E se o fizer, além de outros meios de defesa, naturalmente que poderá o avalista executado invocar a seu favor o benefício da exceção da prescrição da obrigação subjacente, ao abrigo do artigo 301.º do Código Civil.
J) A sentença (na parte) impugnada é, pois, uma decisão errada.
K) Normas jurídicas violadas: artigo 301.º e alínea e) do artigo 310.º, ambos do Código Civil.
L) Sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas: Prescrevem no prazo de 5 anos, por aplicação analógica da alínea e) do artigo 310.º do Código Civil, as rendas do locatário no contrato de locação financeira, podendo o avalista em livrança garantia — ainda para mais prescrita a obrigação cartular —, invocar em seu benefício a exceção da prescrição da obrigação causal ou subjacente”.
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O recurso foi corretamente admitido, com o efeito e modo de subida adequados.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante apenas designado de CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se colocam à apreciação deste Tribunal é a seguinte:
- Da prescrição dos créditos que fundamentam, relativamente ao Autor, o registo de incumprimentos na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal nos valores de € 21.126,34 e € 35.175,05.
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III. Fundamentação de Facto:
Na sentença recorrida, face à ausência de contestação, foram julgados reconhecidos e assentes os factos alegados em sede de petição inicial, nos termos do art.º 567º, n.º 1, do CPC.
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IV. Mérito do Recurso:
- Da prescrição dos créditos que fundamentam, relativamente ao Autor, o registo de incumprimentos na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal nos valores de € 21.126,34 e € 35.175,05.
O Autor intentou a presente ação peticionando, designadamente, a declaração de prescrição e inexigibilidade de todos os créditos comunicados pela Ré à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal; a condenação da Ré no reconhecimento de tal prescrição e inexigibilidade; e, a sua condenação a comunicar ao Banco de Portugal que tais dívidas são inexigíveis e não responsabilizam o Autor, solicitando a sua eliminação imediata da Central de Responsabilidades de Crédito.
No que releva para o presente recurso, estão em causa os registos de duas dívidas, nos valores de € 21.126,34 e € 35.175,05, pelas quais é imputada responsabilidade ao Autor na qualidade de “Avalista/fiador”, sendo o “Produto financeiro” em causa, em ambos os casos, um contrato de locação financeira imobiliária.
Conforme resultou demonstrado nos autos, entre a Caixa Económica Montepio Geral e a sociedade C (…), S.A. foram celebrados dois contratos de locação financeira imobiliária, um em junho de 2010 e outro em dezembro de 2009, sendo que para garantia do cumprimento das obrigações deles decorrentes foi emitida, relativamente a cada um desses contratos, livrança em branco, subscrita pela C (…) e avalizada pelos seus administradores, entre eles o aqui Autor.
Sucede que a C (…) entrou em incumprimento definitivo relativamente a ambos os contratos em novembro de 2010 e veio a ser declarada insolvente em 21.02.2011.
Por seu lado, o Montepio Geral deu à execução as livranças que haviam sido subscritas pelo Autor como avalista, no âmbito da qual foi citado, sendo que essa execução veio a ser declarada extinta, por inutilidade superveniente da lide, em 05.07.2018.
O Tribunal a quo, na sentença recorrida, concluiu pela prescrição do direito de ação contra o Autor com base nessas livranças, mas considerou que “não se encontram prescritas as obrigações do A. que deram origem aos incumprimentos”.
A tal propósito, na sentença recorrida, no respetivo relatório, é referido que o Autor “foi informado que o seu nome está inscrito na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal. Veio a constatar que ali constam os seguintes incumprimentos:
a) € 21.126,34 respeitante a um contrato de locação financeira imobiliária em incumprimento desde 20/11/2012, figurando o A. como avalista/fiador;
b) € 35.175,05 respeitante a um contrato de locação financeira imobiliária em incumprimento desde 19/09/2016, figurando o A. como avalista/fiador”.
Depois, em sede de fundamentação de direito, é dito que “Os dois primeiros créditos, enunciados no relatório, decorrem da celebração por pessoa coletiva de dois contratos de locação imobiliária, tendo o A. subscrito uma livrança na qualidade de avalista.
Uma vez que não assume a posição de locatário nos contratos que estão na origem dessa livrança, não lhe cabia proceder ao pagamento de quotas de amortização do capital pagáveis com juros. A sua obrigação é decorrente do título de crédito que assinou e, nessa medida, autónoma e independente da obrigação garantida, mantendo-se mesmo que esta seja nula por qualquer razão que não seja vício de forma, conforme previsto no artigo 32.º da LULL.
Em face deste princípio de independência recíproca, não são aplicáveis à obrigação cartular as regras a que se encontra sujeita a obrigação avalizada, designadamente o disposto no artigo 310.º, al. e) do Código Civil.
A este respeito, veja-se a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça em 07.12.2023, Relatora Juíza Conselheira Dra. Maria da Graça Trigo, onde se pode ler: «A prescrição do direito de crédito emergente da relação causal é um efeito adveniente da inércia, prolongada no tempo, do próprio titular do direito, efeito esse que, operando na relação fundamental, não apresenta vias comunicantes com a relação cambiária em que intervém o avalista, no âmbito da qual a vicissitude do decurso do tempo poderá redundar na prescrição do próprio direito de ação cambiária apenas ao abrigo do art. 70.º da LULL.»
Nos termos do artigo 38.º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças, o portador de uma letra pagável em dia fixo ou a certo termo de data ou de vista deve apresentá-la a pagamento no dia em que ela é pagável ou num dos dois dias úteis seguintes.
Se apesar de cumprido tal prazo o pagamento não for efetuado, pode o portador exercer os seus direitos de ação contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados durante o período de 3 anos, contados desde a data de vencimento, sob pena de prescrição do direito de ação (artigos 43.º e 70.º da LUC).
Este regime é aplicável às livranças por via do artigo 77.º do mesmo diploma.
Assim, para contabilizar o prazo de prescrição é necessário, antes de mais, conhecer o prazo de vencimento do título que incorpora a obrigação do A. que, de acordo com o requerimento executivo junto com a petição inicial, é de 14.04.2011.
Apesar de ser desconhecida a data em que o A. foi citado na ação executiva, facto interruptivo da prescrição, atenta a data em que tal ação veio a ser extinta e o período decorrido desde então, conclui-se que se encontra prescrito o prazo para o exercício do direito de ação pelo R. contra o A. com base nas duas livranças.
Contudo, o prazo do direito de ação não se confunde com o prazo de prescrição da obrigação que, não lhe sendo aplicável qualquer outra disposição legal, é o prazo ordinário previsto no artigo 309.º do Código Civil.
Em face do exposto, não se encontram prescritas as obrigações do A. que deram origem aos incumprimentos constantes de a) e b)”.
O Autor/Apelante discorda desse entendimento, pugnando pela prescrição dos direitos de crédito em causa.
Em defesa da sua posição alinha, no essencial, os seguintes argumentos:
- Nos casos em que as livranças não entraram em circulação, encontrando-se ainda no domínio das relações imediatas, isto é, entre o subscritor, o beneficiário e os avalistas, como sucede na situação dos autos, é lícito ao Autor opor à Ré qualquer exceção fundada na obrigação causal, sendo que a extinção por prescrição da obrigação causal, subjacente às livranças, extingue as obrigações cambiárias (alínea B) das conclusões recursivas);
- O Recorrente pode invocar a exceção da prescrição da obrigação subjacente, ao abrigo do art.º 301º do Código Civil, o qual determina que a prescrição aproveita a todos os que dela podem tirar benefício (alínea C) das conclusões recursivas);
- O prazo de prescrição da obrigação subjacente decorrente de contrato de locação financeira imobiliária é de 5 anos, conforme decidido por Acórdão Uniformizador do STJ n.º 13/2024 (alínea D) das conclusões recursivas);
- Conforme decidido na sentença recorrida, é pacífico que se encontra prescrito o prazo para o exercício do direito de ação da Ré contra o Autor com base nas livranças (alínea F) das conclusões recursivas);
- É jurisprudencialmente pacífico que uma livrança prescrita deixa de valer como título executivo de natureza cambiária e passa a constituir mero documento particular, quirógrafo da dívida causal ou relação subjacente, caso em que, se pretender executar tal título, tem o credor/exequente de alegar (e provar) os factos constitutivos da relação material subjacente (alínea G) das conclusões recursivas);
- E, se o fizer, poderá o avalista executado invocar a seu favor o benefício da exceção da prescrição da obrigação subjacente, ao abrigo do artigo 301º do Código Civil (alínea I) das conclusões recursivas);
Analisemos.
Como se assinala na sentença recorrida, o Autor não assume a posição de locatário em nenhum dos dois contratos de locação financeira imobiliária acima identificados. E dos autos também não resulta que tenha assumido nesses contratos a qualidade de fiador. O Autor não o alega em ponto algum e a Ré também não, pois nem sequer contesta. Ou seja, o Autor não tem qualquer intervenção nesses dois contratos, dos quais não emerge para si qualquer obrigação, designadamente, de pagamento das rendas neles previstas, seja como devedor principal, seja como fiador.
Dos autos apenas resulta que o Autor subscreveu, na qualidade de avalista, as livranças emitidas para garantia das obrigações decorrentes desses contratos de locação financeira imobiliária, o que significa que o Autor apenas garantiu o pagamento dessas livranças, tal como resulta do disposto no art.º 30º da LULL, ex vi do art.º 77º do mesmo diploma.
Como vimos, a sentença recorrida concluiu que se encontra “prescrito o prazo para o exercício do direito de ação pelo R. contra o A. com base nas duas livranças”, o que não foi questionado em sede de recurso.
Atento esse facto, importa ter presente que uma vez prescrita a obrigação cambiária, o valor da livrança, enquanto quirógrafo, apenas se estende aos sujeitos da relação causal, pelo que apenas abrangeria o avalista se este se tivesse igualmente obrigado como fiador da obrigação principal.
Veja-se no sentido exposto o Acórdão da RE de 06.06.2022, processo n.º 1884/19.4T8ENT-A.E1, disponível em www.dgsi.pt, no qual se pode ler: “(…) como resulta do contrato que juntou, e onde se localiza o pacto de preenchimento da livrança, os embargantes intervieram nesse contrato, expressamente, na qualidade de avalistas, autorizando o preenchimento que veio a ser feito, e na sequência dessa intervenção assinaram como avalistas a livrança em questão.
Por conseguinte, eles garantiram, solidariamente com a empresa avalizada, o cumprimento por esta da obrigação cambiária que esta assumiu.
Prescrita a obrigação cambiária, pelo decurso do tempo e inércia da exequente, não pode valer como título executivo contra eles a referida livrança, visto que a obrigação por eles assumida se extinguiu e eles não são sujeito na obrigação subjacente.
Na verdade, nada nos permite considerar que eles se obrigaram como fiadores no contrato, assumindo a obrigação da empresa nessa condição.
E esta circunstância afigura-se inultrapassável, dado que aquilo que a exequente pode executar, com base no título executivo que possui, é a obrigação que pesa sobre a empresa executada, que foi a obrigação subjacente aquando da emissão da livrança agora prescrita – sendo certo que eles não são sujeitos nessa obrigação.
Não sendo os embargantes obrigados extracartulares não podem eles ser executados nas situações em que a livrança já não vale como tal.
O quirógrafo que vale como título executivo contra a sociedade executada não tem esse valor contra os aqui embargantes, meros garantes de uma obrigação extinta.
Julgamos, portanto, que decidiu bem a primeira instância.
Como sublinha a sentença impugnada, “é praticamente unânime ao nível da jurisprudência dos tribunais superiores a defesa do seguinte entendimento: uma vez extinta a obrigação cartular resultante do aval por efeito da prescrição da letra ou da livrança, estas só podem considerar-se títulos executivos nos termos do sobredito artigo 703.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil se o exequente alegar factos concretos demonstrativos de que o avalista se assumiu como fiador pelo cumprimento das obrigações do avalizado (por todos, vide os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 10-03-2016, do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-09-2019, do Tribunal da Relação do Porto de 11-02-2020, do Tribunal da Relação de Guimarães de 07-05-2020 e de 26-11-2020, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-06-2021: respetivamente, Processos n.ºs 58/14.5TBSTR-A.E1, 2296/17.0T8PBLA.C1, 2841/18.3T8PRT-A.P2, 2063/10.1TBBRG.G1, 7891/19.0T8VNF-A.G1, 8309/16.5T8LRS-A.L1-7).”.
Como se constata nos factos provados, nada nos presentes autos permite sustentar que os embargantes em algum momento assumiram obrigações como fiadores, não sendo lícito confundir esta condição com a de avalistas na obrigação cartular extinta.
Não se discute que quem presta o aval pode assumir-se, paralelamente, como fiador da obrigação fundamental extracartular; mas não é isso que encontramos na situação dos autos.
O aval, por si só, não pode reconduzir-se à fiança.
O aval é uma garantia cambiária que não garante a relação subjacente e por isso tal relação subjacente não pode concluir-se da simples prestação do aval - a aposição de assinatura em título cambiário é somente constitutiva da respectiva obrigação cambiária.
Como se refere na sentença recorrida, “a existir, a fiança teria que ser demonstrada por outro meio que não a simples declaração cambiária do avalista aposta na letra/livrança, tendo em conta o que dimana do artigo 628.º, n.º 1, do Código Civil, e que se apresente como um plus, isto é, uma garantia acrescida à que resulta da garantia cambiária inerente ao aval.
Concordamos em absoluto, conforme resulta do acima exposto, com a posição assumida nesse acórdão.
Assim, uma vez que considerou prescritas as referidas obrigações cambiárias, e sendo de todo irrelevante a eventual prescrição das obrigações decorrentes dos contratos de locação financeira imobiliária, pois não vinculam o Autor, deveria o Tribunal a quo ter declarado a prescrição dos créditos que fundamentam, relativamente ao Autor, os registos de incumprimento existentes na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal nos valores de € 21.126,34 e de € 35.175,05, identificados nas alíneas a) e b) do artigo 3º da petição inicial.
Atento o exposto, conclui-se pela procedência do presente recurso.
Por fim, pese embora tal não releve para a presente decisão, não poderemos deixar de esclarecer que, conforme refere o Apelante, o prazo de prescrição aplicável às rendas devidas pelo locatário no contrato de locação financeira é o prazo de 5 anos previsto no art.º 310º, e), do CC e não o prazo ordinário de 20 anos previsto no art.º 309º do mesmo diploma, conforme se considerou na decisão recorrida. Efetivamente, de acordo com o AUJ n.º 13/2024, proferido pelo STJ em 12.09.2024 no Processo n.º 2218/18.0T8CHV-A.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt (publicado no DR n.º 200/2024, I Série, de 15.10.2024), “Prescrevem no prazo de 5 anos, por aplicação analógica do art. 310.º/e) do C. Civil, as rendas do locatário no contrato de locação financeira”. Refira-se ainda que esse AUJ não delimitou a sua aplicação no tempo, pelo que se aplica a todas as situações em que se discuta a questão.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem o coletivo desta 2.ª Secção Cível abaixo identificados em julgar procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida no segmento em que absolve a Ré “do demais peticionado” e, em sua substituição:
a) Declara-se a prescrição dos créditos que fundamentam, relativamente ao Autor, os registos de incumprimento constantes da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal nos valores de 21.126,34 € e 35.175,05 €, identificados nas alíneas a) e b) do artigo 3º da petição inicial;
b) Condena-se a Ré no reconhecimento da prescrição desses créditos, na sua comunicação ao Banco de Portugal e na eliminação dos respetivos registos de incumprimento, existentes na Central de Responsabilidades de Crédito, no prazo de 15 dias após o trânsito em julgado da presente decisão;
c) Condena-se a Ré no pagamento ao Autor da quantia de € 100,00 (cem euros) por cada dia de atraso na realização das comunicações referidas em 3 da sentença e na antecedente alínea b), a título de sanção pecuniária compulsória.
Custas pela Ré.
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 23.10.2025,
Susana Mesquita Gonçalves
Pedro Martins
Ana Cristina Clemente