Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
90/25.3JDLSB-A.L1-3
Relator: ALFREDO COSTA
Descritores: FORTES INDÍCIOS
MEDIDAS DE COAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Sumário (da responsabilidade do Relator):
- Interpretação do conceito “fortes indícios” como juízo de probabilidade, distinto da prova certa, fundado na coerência do plano probatório e na regra da livre apreciação (CPP 127.º), bastando um padrão factual consistente, ainda que sem quantificação exaustiva de episódios, para legitimar compressões cautelares.
- Configuração dos perigos do art. 204.º, n.º 1 CPP como prognose racional e motivada: (b) tutela da aquisição, conservação e veracidade da prova, incluindo riscos relacionais e de contaminação de DMF; (c) risco actual de reiteração inferido de padrões comportamentais e oportunidades objectivas; leitura restritiva da (a), exigindo sustentação em comportamento previsível do arguido e não em reacções de terceiros.
- Regra de escolha de medidas (CPP 193.º): necessidade, adequação e proporcionalidade em grau sequencial, preferindo-se a solução menos gravosa apenas quando suficiente para neutralizar, no caso concreto, os perigos identificados; exigência de fundamentação densa e exame crítico das alternativas.
- Natureza e limites da OPH com vigilância electrónica (CPP 201.º): controlo de presença/espaço não equivale a controlo de interacções; idoneidade depende de desenho funcional (perímetros, exclusões, proibições de contacto, gestão de dispositivos e coabitação) e não apenas de viabilidade estrutural do domicílio.
- Ónus de alegação e prova do requerente de medidas substitutivas: factos supervenientes devem ser documentados e auditáveis (plano técnico de OPH, compromissos de coabitantes, validações operacionais), não bastando intenções genéricas; revisão periódica da medida (CPP 213.º) como garantia de proporcionalidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
1.1. No âmbito de inquérito nº 90/25.3JDLSB que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Sintra - Juízo Instrução Criminal - Juiz 1, no âmbito do primeiro interrogatório judicial de ...–....2025, foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva ao arguido AA, pelos crimes fortemente indiciados de abuso sexual de menor, em múltiplas sequências, e um crime de pornografia de menor. O despacho fundou-se nos perigos do art. 204.º, n.º 1, als. a), b) e c), e reputou inidónea a OPH com VE.
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1.2. Inconformado com a decisão que lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva veio o ora arguido/recorrente interpor recurso com as seguintes conclusões: (transcrição)
(…)
1 ° O arguido encontra-se indiciado por 125 crimes de abuso de menor agravado; por um crime de abuso de menor agravado na forma tentada, e ainda por um crime de pornografia de menor, p.p, nos termos do artigo 176°, n°1, al. b) do CP.
2º Resulta do documento suporte, da apresentação do arguido detido, a primeiro interrogatório judicial, a descrição, mais ou menos detalhada de 9 crimes de abuso de menor agravado, sendo um deles na forma tentada e de 1 crime de pornografia de menor.
3° No entanto, tal documento refere que os autos indiciam fortemente a prática de mais 117 crimes de abuso de menor agravado, dividindo-os em 105 e mais 12.
4° O MP chegou à indiciação por 105 crimes de abuso sexual de menor agravado, conforme explica, através do referido nos pontos 12 a 14 da indiciação, limitando-se a efectuar a multiplicação dos actos ilícitos, pelo número de vezes que foi referido que uma das ofendidas ia a casa do arguido, tendo, efectuado a mesma aritmética quanto aos 12 crimes de abuso sexual de menor agravado, pontos 15 a 17.
5° Ora, tal Indiciação , com base numa simples questão aritmética, alegando factos concretos, que a acreditar na factualidade descrita, se teriam repetido, ou quase eternizado, pelo período de 3 anos, não se afigura minimamente verossímil, pois significaria que o arguido teria praticado os mesmíssimos actos, descritos nos pontos 13 e 14 e ainda 15, 16 e 17, sempre que se encontrava na presença da menor.
6º O vago relato de acontecimentos, não se mostra suficiente para sustentar a indiciação por estes 117 crimes, quanto à ofendida BB diz respeito, sendo uma conclusão do MP, impossível de comprovação.
7° O douto despacho, na fundamentação que antecede a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao recorrente, afirma que, apesar das versões contraditórias deste e das ofendidas, as declarações do recorrente não se afiguram credíveis, sendo prestadas sem grande convicção, pelo que se mostram fortemente indiciados os ilícitos imputados ao arguido.
8° Ora, a prisão preventiva tem natureza excepcional, desde logo assinalada no n. 2 do artigo 28.º da Constituição e, a nível infraconstitucional, no artigo 193º, nº 2 do CPP.
9° A imposição da medida de prisão preventiva, tendo carácter excepcional, depende da verificação dos requisitos gerais (aplicáveis a todas as medidas de coacção) e especiais, consignados, respectivamente, nos artigos 204° e 202º do CPP, e uma vez preenchidas as condições gerais da sua aplicação, enunciadas no artigo 192º do mesmo diploma legal.
10° Veio o douto despacho que determinou a aplicação da prisão preventiva ao recorrente, considerar existir perigo de perturbação do inquérito, na vertente de perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; perigo de continuação da actividade criminosa e ainda perigo de perturbação da ordem e tranquilidades públicas.
11 ° Quanto ao perigo de continuação da actividade criminosa, sustenta o douto despacho, que o mesmo se consubstancia, no facto de o recorrente ser "bombeiro voluntário, função esta que lhe granjeia contacto com menores e lhe concederá chances para concretizar oportunisticamente abusos sexuais de crianças com quem contacte."
12° Na realidade, o recorrente para além da função como bombeiro voluntário, dedica-se à construção civil, como atrás se demonstrou.
13° Os bombeiros voluntários, não efectuam prevenções sozinhos, estão sempre acompanhados por colegas do quadro. Assim, o facto de ser, esporadicamente bombeiro voluntário, não o coloca em posição de granjear qualquer contacto com menores, superior a qualquer um de nós.
14º De acordo com a indiciação, os últimos factos apontados remontam a 2020, sem que posteriormente a isso, se conhecessem novos factos ou novas alegadas vítimas, mesmo tendo o recorrido exercido funções como bombeiro voluntário.
15° Pelo que, tal argumento, no entender do recorrente, não se mostra suficiente para sustentar o perigo de continuação da actividade criminosa, tanto mais, que esse perigo tem que ser concreto, nos termos da al. c), do nº1 do artigo 204° do CPP.
16° Tal perigo, ainda se encontra mais afastado, pelo facto de o recorrente continuar a conviver com a sua filha menor de 8 anos, sem qualquer vigilância ou entrave. De facto, o recorrente separou-se da companheira em 2022, ou seja, após as confissões à família, em 2019 e 2021, das alegadas ofendidas.
17º Foi elaborado acordo de regulação das responsabilidades parentais em 2022 e homologado em 2023, que se junta, após a sua companheira, já ter conhecimento, por parte das suas sobrinhas, das acusações que fizeram.
18º Desse acordo, estão salvaguardadas as visitas quinzenais dos filhos menores com o progenitor, ora recorrente, com quem pernoitavam, como outras visitas durante a semana para estarem juntos e jantarem.
19º Ora, não faz muito sentido que uma mãe, conhecedora_ das ~alegadas acusações, acorde que a sua filha menor, pernoite com o seu progenitor, sabendo ela e acreditando ela, que o mesmo praticava abuso sexual de menores.
20º Em bom rigor, só fará sentido, se a mesma considerar, que as alegações das suas sobrinhas não são minimamente credíveis e não passam de fantasias, estando perfeitamente descansada acerca do comportamento do seu ex companheiro, e aqui recorrente, perante menores, nomeadamente femininas.
21º Por tudo, o acima exposto, está amplamente demonstrado que inexiste o perigo de continuação da actividade criminosa, ao contrário do que é referido pelo douto despacho.
22° Quanto ao perigo de perturbação do inquérito, na vertente de perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, este tem de surpreender-se em factos que indiciem a actuação do arguido com o propósito de prejudicar a investigação, não bastando a mera possibilidade de que tal aconteça para que possa afirmar-se a existência daquele perigo.
23° O fundamento, apontado no douto despacho, para este perigo de perturbação do inquérito, reside no facto de:" A passada opção por encobrimento dos factos por parte das ofendidas torna-as susceptíveis a influências que suscitem perigo para a aquisição e conservação da prova e, consequentemente, de perturbação de inquérito (...) "
24° O encobrimento dos factos, não resultou de nenhuma influência ou acto praticado pelo recorrente, que como refere, e bem o douto despacho, foi uma opção tomada pelas alegadas ofendidas.
25° Não bastam, as naturais dificuldades de Investigação do crime nem a mera possibilidade de o arguido agir no sentido de prejudicar a investigação para que, sem ma is, possa afirmar-se a existência do perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução.
26° Nem o despacho recorrido nem o MP apontam qualquer facto concreto, verdadeiro que indicie ter o arguido em preparação ou em marcha ou simplesmente em projecto qualquer das condutas acima referidas (pressões sobre as testemunhas e as vítimas do crime).
27° Pelo que, como atrás se demonstrou, quanto ao recorrente diz respeito inexiste o perigo de perturbação do inquérito, na vertente de perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova .
28º Quanto ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidades públicas, este, segundo o douto despacho decorre de "os crimes sexuais cometidos contra crianças (...) geram forte repúdio na sociedade e um sentimento de intranquilidade e insegurança na comunidade, de quem o arguido sofreu represálias pela notícia pública dos seus actos a ponto do seu automóvel ter sido vandalizado. "
29º Ora, o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas deve ser entendido como reportando-se ao previsível comportamento do arguido e não ao crime por ele indiciariamente cometido e à reacção que o mesmo pudesse gerar na comunidade, ou seja, exige-se que "haja perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devido a um previsível comportamento futuro do arguido", e não de terceiros.
30º Mesmo, a especial relevância dada pela comunidade ao crime imputado ao arguido, não são factores sérios de perturbação da ordem e da tranquilidade pública e muito menos poderão servir como fundamento para coartar a liberdade de uma pessoa que se presume inocente.
31º O facto do recorrente ter sofrido ou vir a sofrer represálias, isso é um comportamento de terceiros que em nada releva para o assunto em questão.
32° Razão pela qual, inexiste relativamente ao recorrente o perigo de perturbação da ordem e tranquilidades públicas.
33 ° Quanto à escolha da medida de coacção a aplicar, temos que ter em conta a natureza excepcional e subsidiária da prisão preventiva, segundo a qual "a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei".
34° A prisão preventiva, enquanto medida de coacção de natureza excepcional e de aplicação subsidiária, só pode ser determinada quando as outras medidas se revelem inadequadas ou insuficientes, devendo ser dada prioridade a outras menos gravosas por ordem crescente.
35° O douto despacho, refere que não existe nenhuma outra medida que se mostre adequada, proporcional e suficiente para acautelar os perigos dos pressupostos constantes nos artigos 202º e 204° do CPP , que não a que importe a privação da liberdade.
36º No entanto, opta pela prisão preventiva, em detrimento da prisão domiciliária, justificando; "o arguido vive em condições habitacionais precárias, habitando numa caravana de campismo, servida por um imóvel em degradadas condições, segundo se pode constatar da reportagem fotográfica, e não terá outros meios de subsistência que não provenham da sua actividade profissional, que cumpre interromper para evitar contactos com menores e pessoas especialmente vulneráveis. Não tem, portanto, meios de viver sustentadamente em confinamento domiciliário. De resto, o arguido foi já sujeito de represálias comunitárias pela divulgação da notícia da pedofilia em causa, podendo ser alvo de represálias contra a sua vida e integridade física no interior do seu domicílio, atento o seu isolamento em meio predominantemente rural e o consequente isolamento do detido, daí ser inviável a sua sujeição a obrigação de permanência na habitação. "
36° Diz o douto despacho que o recorrente vive em condições de habitação precárias: ora, o recorrente adquiriu uma habitação própria em ..., em 2023, conforme atrás se provou, para recuperar a habitação existente.
37° Para tanto, vivia no seu terreno, numa caravana, para nos seus tempos livres, e atendendo à sua profissão de construtor civil, recuperar a dita habitação, para nela residir.
38° De facto, no momento da sua detenção, a sua habitação ainda carecia de bastantes melhoramentos, situação que neste momento já não se coloca, tendo os seus familiares, efectuado todas as obras de restauro necessárias, tornando-a uma casa com todas as condições de habitabilidade.
40° Também, alega o douto despacho que o recorrente não tem outros meios de subsistência, para além daqueles que provêm do seu trabalho como bombeiro voluntário.
Tal, não corresponde de todo à verdade. Além de prestar serviço como bombeiro voluntário, o recorrente sempre trabalhou na construção civil em geral, e na área da Estores em especial, de onde auferia um rendimento mensal, conforme atrás se demonstrou.
41 ° Não colhendo assim, provimento o argumento apresentado pelo despacho, do qual se recorre.
42° Já quanto às represálias sofridas pelo recorrente, e as que eventualmente pudesse vir a sofrer, obviamente que este argumento, não pode ser esgrimido para impedir a prisão domiciliária, desde logo, porque: "As medidas de coacção visam satisfazer exigências cautelares, exclusivamente processuais, que resultem da concreta verificação dos perigos previstos no art. 204°/2 do CPP, sendo de considerar ilegítimas finalidades de natureza retributiva, preventiva, ou mesmo de protecção do arguido."
43° Aliás, intelectualmente não faria sentido nenhum colocar um arguido em prisão preventiva para o proteger, mesmo porque, a sua aplicação não contempla tal circunstância.
44°Mas, mesmo considerando que o recorrente necessita de se encontrar acompanhado durante a sua obrigação de permanência na habitação, este possui uma família numerosa, tem pais e 3 irmãos, vivendo com eles uma relação de convivência salutar e interajuda, estando os mesmos disponíveis, para o receberam na sua casa, e para lhe ajudar na sua subsistência, caso fique na sua casa.
45º Na aplicação das medidas de coacção adequadas ao caso em concreto, deverão ainda ser tidas em linha de conta, o decurso do tempo entre os alegados factos e a actualidade, relembrando que, sobre os primeiros factos relatados já decorreram 15 anos.
46° Bem como, os meios de prova apresentados, sendo que no caso em concreto, as únicas provas apresentadas, foram as declarações das alegadas ofendidas, que narram acontecimentos distantes no tempo, altura em que seriam ainda crianças, com memórias difusas e que muitas vezes, tendem a confundir sonhos com a realidade, ou mesmo a interpretar situações que aconteceram, misturando-as com relatos que ouviram de outras pessoas.
47° Tendo em conta o princípio da presunção da inocência, é por demais perigoso, assentar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, apenas em declarações, sem qualquer outro tipo de prova que as alicerce, colocando à mercê de meras declarações, qualquer pessoa que viva em sociedade, mesmo que decorridos 5/10/15 anos dos alegados factos.
48º Tal entendimento, fará que qualquer indivíduo, com sede de vingança, consiga afastar outro, colocando-o em prisão preventiva, alegando factos, sobre os quais decorreram anos e impossíveis de comprovar, por qualquer outro meio de prova.
49° Atendendo a todo o exposto, deveria o douto despacho ter aplicado uma medida de coacção menos gravosa para o recorrente, por se considerar adequada, proporcional e suficiente para acautelar os perigos aí elencados. E optando por uma medida privativa da liberdade, ter aplicado a obrigação de permanência na habitação, conforme, acima exposto.
(…)
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1.3. A Resposta do Ministério Público (1.ª instância) pugna pela confirmação integral: (i) indícios fortes, qualitativos e reiterados, extraídos de declarações das ofendidas e demais elementos certificados; (ii) concretização actual dos perigos do art. 204.º, als. b) (preservação de prova/DMF) e c) (reiteração a partir do padrão prolongado e ausência de insight), bastantes para a medida; (iii) inidoneidade estrutural e, sobretudo, funcional da OPH com VE (monitoriza presença, não interacções/contactos), sendo insuficientes medidas menos gravosas.
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1.4. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo a Srª. Procuradora Geral Adjunta sufragado os argumentos invocados pelo MP da 1ª instância, e pugna pela improcedência do recurso.
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1.5. Cumprido o artº 417°, n° 2, do CPP não houve respostas.
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1.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
Analisando e decidindo
2.1. O objecto do recurso, e, portanto, da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP.
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2.2. Face às conclusões do recurso, as questões submetidas à nossa apreciação são as seguintes:
1. Fortes indícios.
2. Perigos do art. 204.º, n.º 1 do CPP.
3. Subsidiariedade e idoneidade da OPH com VE.
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2.3. O despacho que fixou a medida de coacção de prisão preventiva, no segmento que ora nos importa, tem o seguinte teor:
(…)
O arguido foi validamente detido fora de flagrante delito por mandado emitido pelo Ministério Público.
O arguido negou a autoria dos factos ilícitos típicos que lhe são imputados, tendo contraposto que não abusou sexualmente das ofendidas BB e CC, suas sobrinhas por afinidade de união de facto, durante o tempo em que assumidamente conviveu familiarmente com elas no interior da sua casa, onde elas pernoitavam periodicamente, e durante férias em campismo, segundo um ambiente familiar de proximidade e confiança interpessoal que existia.
Sem embargo, as referidas ofendidas relataram ter sido vítimas de tais factos quando eram menores de idade e de terem revelado parcialmente a sua ocorrência a familiares nos idos 2019, no caso da ofendida BB, que então tinha 17 anos de idade, e 2021, no caso da ofendida CC, assim como na revelação à companheira do arguido de ambos os casos.
As mães das ofendidas, a par da companheira do arguido testemunharam que as vítimas então lhes confidenciaram os factos.
Todas revelaram a opção de não participarem criminalmente tais factos aquando da sua paulatina revelação em 2019 e 2021. A decisão de participarem criminalmente tais factos em janeiro de 2025 foi justificada pela ofendida BB pelo receio de que a filha do arguido pudesse estar ou vir a ser vítima de semelhantes abusos sexuais e pelo desejo de a proteger de tais atos.
As ofendidas são maiores de idade, oriundas de distintos agregados familiares e relataram nos presentes autos factos que já tinham confidenciado a familiares nos idos 2019 e 2021, apresentando ao longo do tempo versão dos factos que não apresenta contradições.
Dos seus testemunhos, bem como dos testemunhos das suas mães e das declarações do arguido não se vislumbra haver qualquer dissídio, quezília e ressentimento que motivasse uma falsa incriminação, tendo apenas o arguido afirmado, diga-se sem aparente convicção e nenhum fundamento, que estaria a ser falsamente incriminado pela ofendida BB por racismo.
Daí que, a despeito das versões contraditórias do arguido e das ofendidas e de o exame perfuntório ao telemóvel e computador apreendidos ao arguido não ter revelado informação pertinente, até porque tais equipamentos eram recentes e o arguido já sofrera represálias comunitárias pela divulgação da notícia da pedofilia em causa, se mostrem fortemente indiciados os factos ilícitos imputados ao arguido.
Tais factos consubstanciam a prática pelo arguido dos crimes de abuso sexual de crianças agravado e de pornografia de menores, previstos e punidos pelas disposições legais imputadas pelo Ministério Público, a quais antes se transcreveram e ora se dão por reproduzidas para os legais efeitos.
As condutas ilícitas do arguido são muito graves e lesivas, prolongaram-se por vários anos e foram realizadas no seio de convivência e coabitação familiar, traindo a confiança interpessoal existente entre os seus elementos.
Dessas condutas resulta que o arguido tem personalidade propensa à prática de atos sexuais desviantes da norma, manifestando interesse libidinoso por menores, sem que os vínculos familiares constituam um entrave às suas condutas ilícita.
Das declarações do arguido, corroboradas pelas fotografias que ilustram a sua atividade profissional, resulta fortemente indiciado que o arguido é bombeiro voluntário, função esta que lhe granjeia contato com menores e lhe concederá chances para concretizar oportunisticamente abusos sexuais de crianças com quem contacte.
Os crimes sexuais cometidos contra crianças, para mais de modo incestuoso, geral forte repúdio na sociedade e um sentimento de intranquilidade e insegurança na comunidade, de quem o arguido sofreu represálias pela notícia pública dos seus atos a ponto de o seu automóvel ter sido vandalizado, segundo foi dito pelo próprio e se mostra indiciado nos autos.
Daí o arguido oferecer perigo concreto de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas (art. 204.º, al. c), do Código de Processo Penal(CPP)).
A passada opção por encobrimento dos factos por parte das ofendidas e respetivas famílias torna-as suscetíveis a influências que suscitam perigo para a aquisição e conservação da prova e, consequentemente, de perturbação de inquérito, cumprindo salvaguardar a espontaneidade e sinceridade das vítimas nas respostas que darão em declarações para memória futura (art. 204.º, al. b), do CPP).
A eliminação de tais perigos somente é alcançável pela privação da liberdade do arguido, vista como único modo de o afastar das vítimas dos autos e outras potenciais com quem conviva profissional e socialmente.
A privação da liberdade, além de necessária, é proporcional à muita gravidade dos crimes e das sanções em que o arguido incorrerá pela sua prática, não obstante não ter antecedente criminais.
Os crimes em causa, atenta a sua moldura penal, permitem a aplicação de medida de coação não privativa da liberdade.
O arguido vive em condições habitacionais precárias, habitando numa caravana de campismo servida por um imóvel em degradadas condições habitacionais, segundo se pode constatar da reportagem fotográfica do seu domicílio buscado, e não terá outros meios de subsistência que não provenham da sua atividade profissional, que cumpre interromper para evitar contactos com menores e pessoas especialmente vulneráveis. Não tem, portanto, meios de viver sustentadamente em confinamento domiciliário. De resto, o arguido foi já sujeito de represálias comunitárias pela divulgação da notícia da pedofilia em causa, podendo ser alvo de represálias contra a sua vida e integridade física no interior do seu domicílio, atento o seu isolamento em meio predominantemente rural e o consequente isolamento do detido. Daí ser inviável a sua sujeição a obrigação de permanência na habitação.
Pelo exposto decide-se que o arguido AA aguardará os ulteriores termos sujeito a prisão preventiva, além de TIR prestado (cf. arts. 191.º, n.º 1, 193.º, n.ºs 1 a 3, 196.º, 202.º, n.º 1, als. a), b), e 204.º, n.º 1, als. b), e c), do Código de Processo Penal).
Emitam-se mandados de condução do arguido a Estabelecimento Prisional.
Comunique-se ao Tribunal de Execução de Penas de Lisboa.
Notifique-se.
(…)
*
2.4. Revestem-se de interesse para a decisão do recurso as seguintes ocorrências processuais:
a) Em 03–04.06.2025 realizou-se o 1.º interrogatório judicial de arguido detido.
O JIC proferiu despacho judicial, onde aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, sustentando-se em fortes indícios de múltiplos crimes de abuso sexual de menor e um crime de pornografia de menor1, com explicitação dos perigos do art. 204.º CPP: perturbação do inquérito (b), continuação da actividade criminosa e perturbação da ordem e tranquilidade públicas (c). A decisão densifica elementos concretos — padrão de actuação reiterada intrafamiliar, interesse sexual por menores, função de bombeiro voluntário e contexto de “represálias” sociais; afasta a OPH com VE invocando carências habitacionais (caravana, imóvel degradado), ausência de meios de subsistência e risco acrescido no domicílio.
b) In casu, os factos suficientemente indiciados pelo despacho recorrido são os seguintes: (transcrição)
(…)
Relativamente a vítima BB
1. A ofendida BB, nascida em ...-...-2002, tinha à data dos factos infra discriminados que ocorreram entre ...-...-2010 a ...-...-2013, entre oito (oito) a 11 (onze) anos de idade, sendo filha de DD e de EE.
2. Por seu turno, a ofendida CC, nascida em ...-...-2007, tinha à data dos factos infra discriminados que ocorreram entre ...-...-2018 a ...-...-2020, cerca de 11 (onze) a 13 (treze) anos de idade, sendo filha de FF e de GG e é prima da ofendida BB.
3. Por seu turno, o arguido AA, nascido em ...-...-1986, tinha à data dos factos, entre 24 (vinte e quatro) a 34 (trinta e quatro) anos de idade, desempenhando funções como Bombeiro de 3.º na ... até ao presente momento.
4. Desde data não concretamente apurada, mas anterior a ...-...-2010, o arguido manteve uma relação amorosa com HH, vivendo como se de marido e mulher se tratassem, a qual é tia materna de BB e de CC, e residiram na ..., juntamente com os filhos de ambos, II, nascido em ...-...-2008, e JJ, nascida em ...-...-2015.
5. Em data não concretamente apurada, mas entre ...-...-2010 a ...-...-2011, o arguido formulou o propósito de manter actos sexuais e relações sexuais de cópula completa com a ofendida BB, conhecendo a idade da mesma e sabia que a ofendida era sobrinha da sua companheira.
6. Assim, em data não concretamente apurada, mas entre ...-...-2010 a ...-...-2011, a ofendida que tinha à data dos factos, cerca de oito anos de idade, foi passar a noite a casa dos seus tios, sita na ..., ficando aos cuidados do suspeito.
7. Nessa sequência, a ofendida foi dormir sozinha, no quarto do primo, trajando um pijama.
8. Com o intuito de satisfazer os seus instintos libidinosos e aproveitando-se da circunstância da ofendida se encontrar a dormir sozinha num dos quartos existentes na habitação, o arguido deslocou-se até essa divisão.
9. Aí chegado, o arguido apercebeu-se que a ofendida se encontrava a dormir em posição de decúbito lateral.
10. Acto contínuo, o arguido colocou as mãos no interior da roupa que a ofendida trajava, tocando no corpo da mesma, mexendo na vagina e no ânus com os dedos, apalpando-a.
11. No momento em que se apercebeu que a ofendida estava a mexer-se, o arguido cessou e disse-lhe a que tia a estava a chamar.
12. No período entre ...-...-2010 a ...-...-2011, com frequência de duas vezes por semana, a ofendida ia dormir a casa do suspeito.
13. Nessas ocasiões, aproveitando-se da circunstância da ofendida se encontrar sozinha num dos quartos aí existentes, o arguido entrava no interior do mesmo, colocava as mãos dentro da roupa que a ofendida trajava, tocando no corpo da mesma, mexendo-lhe na vagina e no ânus com os dedos, apalpando-a.
14. No dia ...-...-2010, no interior da residência sita na ... e de ..., Sintra, o arguido puxou a ofendida, sentando-a ao seu colo e colocou a mão entre a zona das duas pernas da ofendida, tocando-a na zona vaginal, por cima da roupa, durante dez minutos.
15. No período entre ...-...-2011 a ...-...-2012, com frequência mensal, em casa do arguido em algumas ocasiões, ou noutras ocasiões, na casa da avó materna da ofendida, o arguido aproveitando-se da circunstância da ofendida se encontrar sozinha, colocou as mãos no interior da camisola que a ofendida trajava, tocando no peito da mesma, apalpando os seus seios com força, cansando-lhe dores.
16. Acto contínuo, o arguido colocou as mãos no interior da roupa que a ofendida trajava, tocando no corpo da mesma, mexendo na vagina e no ânus com os dedos, apalpando-a.
17. Em seguida, o arguido introduzia os dedos no interior da vagina da ofendida e agarrava numa das mãos da ofendida e colocava-a no seu pénis erecto, por cima da roupa que o mesmo trajava.
18. No ..., no período entre ... de ... de 2013 a ... de ... de 2013, a ofendida foi de férias com o arguido juntamente com a sua tia materna e com o seu primo II para o parque de campismo de ....
19. Já no parque de campismo, e aproveitando-se da circunstância de HH, tia materna da ofendida, estar na tenda a adormecer o filho menor de ambos, o arguido abordou a ofendida que se dirigia aos balneários, pedindo-lhe que o acompanhasse até à zona comum de lavar a loiça, a qual acatou.
20. Aí chegados e aproveitando-se da circunstância de se encontrar sozinho com a mesma, sentou-a ao seu colo, colocou as mãos no interior da roupa que a ofendida trajava e introduziu os dedos no interior da sua vagina com força, causando-lhe dores e sangramento vaginal.
21. Apercebendo-se do sucedido, o arguido cessou com tal conduta.
22. No dia seguinte, quando se encontrava na piscina localizada no exterior do parque de campismo, em ..., com a sua esposa, com o seu filho e com a ofendida, o arguido, sob o pretexto de colocar protector solar na face de BB, levou-a para a tenda.
23. Aí chegado, o arguido colocou introduziu os dedos no interior da vagina da ofendida BB.
24. Em seguida, o arguido que já se encontrava com os calções de banho ligeiramente para baixo e com o pénis exposto, colocou o seu corpo por cima do corpo da ofendida.
25. Em seguida, o arguido afastou ligeiramente a cuecas do biquíni que BB trajava, encostando o seu pénis à vagina da ofendida.
26. Acto contínuo, o arguido introduziu o pénis erecto no interior da vagina da ofendida, sem utilização de preservativo, a qual começou a chorar e a gritar, por sentir dores e estar com sangramento vaginal.
27. Nessa sequência, o arguido cessou, dizendo-lhe para regressarem para a piscina, tendo a ofendida recusado.
28. Em data não concretamente apurada, entre ... a ... de ... de 2013, no período da tarde, no interior da residência sita na ..., HH saiu, tendo o arguido ficado sozinho com a ofendida, a qual trajava um vestido roxo.
29. Aproveitando-se dessa circunstância, o arguido puxou as calças e as cuecas que trazia vestidas para baixo, retirando o seu pénis.
30. Após, o arguido dirigiu-se para a sala, onde a ofendida se encontrava jogar playstation, exibindo-lhe o pénis.
31. Após, o arguido abordou a ofendida, dizendo-lhe “já viste o musculo do tio” e sentou-se no sofá aí existente.
32. Acto contínuo, o arguido colocou as mãos nos ombros da ofendida enquanto a mesma continuava a jogar playsation e disse-lhe “deita aqui”, a qual acatou por receio.
33. Acto continuo, o arguido colocou o seu corpo por cima do corpo da ofendida, encostando o seu pénis à vagina de BB.
34. Em seguida, o arguido afastou as cuecas que a ofendida trajava, e tentou introduzir o pénis no interior da vagina da ofendida, a qual pediu-lhe para o mesmo parar e desferiu-lhe um empurrão.
35. Contudo, e apesar se ter apercebido das súplicas da ofendida, o arguido prosseguiu nos seus intentos, continuando com o seu corpo por cima da ofendida, introduziu o pénis erecto no interior da vagina da ofendida, sem utilização de preservativo, causando-lhe muitas dores e sangramento vaginal, tendo a ofendida começado a gritar em tom elevado e o arguido parou.
36. O arguido sabia que a menor tinha entre 8 (oito) a 11 (onze) anos de idade e que era sobrinha da sua companheira.
37. Ao actuar do modo descrito, o arguido aproveitou-se do ascendente e da confiança que tinha sobre BB, confiança que enquanto companheiro da tia da menor que lhe era votada pela progenitora e demais familiares e que possibilitava que o arguido estivesse sozinho com a mesma.
38. Ao actuar do modo descrito nas ocasiões acima mencionadas, o arguido agiu com o propósito, concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos e a sua lascívia, explorando a proximidade que lhe advinha da sua condição de ser companheiro da tia da menor e aproveitando-se da ingenuidade, imaturidade, inexperiência e incapacidade de defesa em razão da idade da ofendida, bem sabendo que aqueles seus actos não eram desejados, nem consentidos por BB que os mesmos eram idóneos a incomodá-la e a afectar, como afectaram, os seus sentimentos de recato e de pudor sexual, com apenas na idade compreendida entre 8 (oito) a 11(onze) anos de idade, circunstância essa que bem conhecia e que, por causa dessa idade, aquela não tinha capacidade e o discernimento necessário a uma livre decisão, e que esses actos prejudicavam o normal desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual e, desse modo, a ofendia na sua liberdade e desenvolvimento sexual, no seu sentimento de timidez e vergonha.
39. Ao actuar do modo descrito, o arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as supra descritas condutas, eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.
Relativamente a vítima CC
40. Em data não concretamente apurada, mas anterior a ...-...-2018, o arguido formulou o propósito de manter actos sexuais e relações de cópula completa com a ofendida CC, conhecendo a idade da mesma e sabia que a mesma era sobrinha da sua companheira.
41. Desde data não concretamente apurada, mas anterior a ... de ... de 2018, a ofendida juntamente com o seu primo II, filho do arguido, frequentava um centro de estudos e após as actividades, deslocava-se para casa de AA, onde aguardava que a sua mãe a fosse buscar.
42. Em data não concretamente apurada, no período entre ... de ... de 2018 a ... de ... de 2018, a ofendida, que tinha onze anos de idade à data dos factos, foi de férias com o arguido juntamente com a sua tia materna e com os seus primos para ..., ficando a pernoitar numa caravana.
43. Numa dessas noites, o arguido aproveitando-se que CC se encontrava sozinha a dormir na posição de decúbito dorsal numa das camas do beliche existente na caravana, deslocou-se para junto da mesma.
44. No momento em que se aproximou da mesma, o arguido ligou a luz do telemóvel e agarrou na gola da camisola que a ofendida trajava, puxando-a para baixo para visualizar e tocar nos seios da menor CC, porém a mesma despertou e virou-se de lado, impedindo que o ofendido prosseguisse com os seus intentos, tendo o arguido se afastado da mesma.
45. Em data não concretamente apurada, mas entre ...-...-2019 a ...-...-2020, no interior da caravana, em ..., AA convenceu CC que se encontrava de minissaia, a deixar o arguido tirar-lhe fotografias ao corpo da mesma.
46. Acto continuo, o arguido utilizando equipamento fotográfico, tirou várias fotografias da zona genital da ofendida, tapada pelas cuecas que a mesma trajava.
47. Em data não concretamente apurada, mas entre ...-...-2019 a ...-...-2020, no período da tarde, no interior da residência acima referida, o arguido apercebeu-se da chegada da ofendida CC e dos seus filhos, II e JJ.
48. Nessa sequencia, o menor II deslocou-se para o quarto enquanto a ofendida permaneceu na sala com o arguido e com a filha do mesmo, JJ.
49. No momento em que avistou CC deitada no solo da sala, na posição de decúbito ventral, a brincar com a menor JJ, com quatro anos de idade à data dos factos, o arguido deitou-se em cima da ofendida, colocando o seu corpo por cima do corpo da mesma e esfregou o seu pénis nas nádegas da ofendida, por cima da roupa da mesma, simulando movimentos de cópula, a qual tentou-se libertar de imediato do arguido e pediu-lhe para o mesmo parar, porém o arguido prosseguiu os seus intentos, sob o pretexto de se tratar de uma brincadeira.
50. Em, pelo menos, duas ocasiões, mas entre ...-...-2019 a ...-...-2020, no período da tarde, no interior da residência acima referida, o arguido apercebeu-se da chegada da ofendida CC.
51. Aproveitando-se da circunstância de estar sozinho com a ofendida, o arguido colocou o seu corpo por cima do corpo da ofendida, que estava em posição de decúbito ventral e esfregou o seu pénis no rabo da ofendida, por cima da roupa da mesma, simulando movimentos de cópula, a qual tentou-se libertar do arguido e pediu-lhe para o mesmo parar, porém o mesmo prosseguiu os seus intentos, sob o pretexto de se tratar de uma brincadeira.
52. Em data não concretamente apurada, mas entre ...-...-2019 a ...-...-2020, no período da tarde, no interior da residência acima referida, o arguido apercebeu-se da chegada da ofendida CC.
53. Nessa sequencia, a ofendida permaneceu na sala com o arguido, enquanto HH estava na cozinha.
54. Aproveitando-se da circunstância de se encontrar sozinho na sala com a ofendida, o arguido convenceu a menor CC a ver um filme, sentando com o mesmo no sofá aí existente.
55. Sem que nada o fizesse prever, o arguido deitou-se no sofá, apoiando a cabeça nas pernas da ofendida que trajava umas calças de ganga.
56. Acto continuo, com uma das mãos tocou no corpo de CC, fazendo deslizar essa mão pelas pernas da ofendida até à zona da vagina, por cima da roupa.
57. Seguidamente, o arguido pediu à ofendida para a mesma mexer no seu cabelo, a qual acatou, porém CC contraiu as suas pernas para impedir o arguido de acariciar a sua vagina.
58. Apercebendo-se da resistência oferecida pela ofendida, o arguido fez força com a mão para tocar e acariciar a vagina da ofendida, por cima da roupa.
59. O arguido sabia que a menor tinha entre 11 (onze) a 13 (treze) anos de idade.
60. No dia ...-...-2025, entre as 07h05 e as 07h40, no interior da roulotte, estacionada no logradouro frontal da habitação sita na ..., o arguido tinha na sua posse, um computador portátil da marca ..., modelo ASPIRE 3 (N20C5) e um telemóvel da marca ..., modelo Galaxy A21s, com os IMEI’s ... e ....
61. Ao actuar do modo descrito, o arguido aproveitou-se do ascendente e da confiança que tinha sobre CC, confiança que enquanto companheiro da tia da menor que lhe era votada pela progenitora e demais familiares e que possibilitava que o arguido estivesse sozinho com a mesma.
62. Ao actuar do modo descrito nas ocasiões acima mencionadas, o arguido agiu com o propósito, concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos e a sua lascívia, explorando a proximidade que lhe advinha da sua condição de ser companheiro da tia da menor e aproveitando-se da ingenuidade, imaturidade, inexperiência e incapacidade de defesa em razão da idade da ofendida, bem sabendo que aqueles seus actos não eram desejados, nem consentidos por CC que os mesmos eram idóneos a incomodá-la e a afectar, como afectaram, os seus sentimentos de recato e de pudor sexual, com apenas na idade compreendida entre 11 (onze) a 13 (treze) anos de idade, circunstância essa que bem conhecia e que, por causa dessa idade, aquela não tinha capacidade e o discernimento necessário a uma livre decisão, e que esses actos prejudicavam o normal desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual e, desse modo, a ofendia na sua liberdade e desenvolvimento sexual, no seu sentimento de timidez e vergonha.
63. Ao actuar do modo descrito, o arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as supra descritas condutas, eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.
(…)
c) É de considerar o seguinte acervo probatório que sustenta os indícios suficientes e que determinaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva: (transcrição)
(…)
PROVA:
TESTEMUNHAL:
- BB, melhor identificada a fls. 25.
- CC, melhor identificada a fls. 32.
- HH, melhor identificada a fls. 62 a 69.
- JJ, melhor identificada a fls. 70.
- GG, melhor identificada a fls. 79.
- EE, melhor identificada a fls. 83.
DOCUMENTAL, toda a constante dos autos, nomeadamente:
- Auto de denúncia de fls. 9 a 13.
- Auto de notícia de fls. 45 a 46.
- Informação do IMTT de fls. 47.
- Fotografias de fls. 51 e 54.
- Informação de fls. 52, 53, 55 a 61.
- Parecer técnico de fls. 74 a 75.
- Pesquisas de fls. 89 a 90.
- Ficha de registo automóvel de fls. 91.
- Suporte fotográfico de fls.94.
- Informação da Segurança Social de fls. 95.
- Assento de nascimento de fls. 132.
- certificado do registo criminal de fls. 133.
- Auto de busca e apreensão de fls. 138 a 139.
- Reportagem fotográfica de fls. 140 a 154.
- Auto de pesquisa e análise sumária de fls. 169.
(…)
*
2.5. Apreciando:
2.5.1. Fortes indícios
A Constituição consagra a liberdade pessoal como regra (CRP, art. 27.º), a presunção de inocência (CRP, art. 32.º, n.º 2) e o princípio da proporcionalidade (CRP, art. 18.º). Medidas de coacção privativas da liberdade, pela sua natureza gravosa, só se justificam quando estritamente necessárias à tutela de relevantes interesses processuais e colectivos e quando a lei o permita, sob garantias de motivação e controlo judicial.
A “presunção de inocência” não obstaculiza o recurso a “medidas cautelares”, mas apenas veda a “proibição de antecipação de pena”. A presença de fortes indícios responde ao requisito de fiabilidade mínima da imputação e ao escrutínio de não arbitrariedade, enquanto a proporcionalidade (adequação, exigibilidade, necessidade) opera no plano da medida concreta. Assim, a tese do recorrente que absolutiza a presunção de inocência como óbice a qualquer restrição omite que a CRP aceita compressões proporcionadas quando o fumus commissi delicti atinge o patamar de “fortes indícios” e os pericula libertatis se mostram actuais e individualizados.
No sistema do CPP, “fortes indícios” desempenham uma dupla função: i) condição habilitante de medidas de coacção que afectam gravemente a liberdade (prisão preventiva: CPP, art. 202.º) e ii) patamar de fiabilidade que legitima a compressão de direitos em face de perigos tipificados (CPP, art. 204.º). A escolha e graduação de medidas obedece aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (CPP, art. 193.º). Não se exige prova para além de dúvida inultrapassável (conexionada ao julgamento), mas uma probabilidade robusta da imputação, baseada em elementos objectivos e subjectivos verosímeis, lidos à luz da experiência e segundo a livre apreciação da prova (CPP, art. 127.º). A textualidade do CPP conjuga um requisito substantivo (fortes indícios) com um requisito cautelar (perigos). A densidade de motivação requerida para a decisão cautelar, embora distinta da sentença, deve exibir exame crítico, indicação das fontes e coerência. A falta de indicação exaustiva de actos, sobretudo em criminalidade de actos contínuos, não descaracteriza a suficiência indiciária quando a narrativa indiciária estabelece um padrão consistente de condutas tipificadas, temporal e espacialmente plausíveis, corroboradas por depoimentos cruzados, DMF e contextos objectivos.
Fortes indícios são considerados como probabilidade elevada de verificação do facto e da autoria, excedendo a mera plausibilidade, mas aquém da certeza efectiva do julgamento.
Importa a coerência das narrativas, a estabilidade das versões, a compatibilidade com dados exteriores, o comportamento pós-factum e a resistência do conjunto a hipóteses alternativas razoáveis. Em criminalidade sexual intrafamiliar, a questão probatória reconhece a fragmentação temporal e a revelação tardia, factores que exigem leitura especificamente prudente da prova.
A narrativa das vítimas, avaliada por critérios de credibilidade e corroborada por elementos periféricos (consistência entre ofendidas; confidências espontâneas; DMF; reacções comportamentais), pode, por si e com mais, sustentar “fortes indícios” sem necessidade de indicação numérica exaustiva de cada acto. A “aritmética” é, quando muito, um conceito de escala; não constitui requisito legal.
Fortes indícios não equivalem a prova plena, nem a um catálogo milimétrico de factos, mas a um juízo de probabilidade qualificada sustentado em elementos idóneos e motivação controlável. Valoriza-se a palavra das vítimas, quando coerente, persistente e isenta de contradições insanáveis, sobretudo em crimes ocorridos na intimidade doméstica, em que a prova directa é escassa e os vestígios desaparecem. Também a indicação de múltiplos episódios sem exactidão numérica não inutiliza o juízo indiciário se o padrão é suficientemente densificado por coordenadas temporais aproximadas, locais, modos de actuação e contexto relacional. O controlo em recurso incide na suficiência da motivação e razoabilidade da inferência, não na reconstituição integral da matéria de facto.
O recorrente sustenta que a decisão recorrida limitou-se a somar a indiciação, como se tratasse de mera aritmética, substituindo prova por contagem. A objecção falha por uma dupla razão. Primeiro, o CPP não exige enumeração exaustiva de todas as ocorrências para se perfazer “fortes indícios”; exige-se uma matriz fáctica robusta e coerente, e não a liquidação pontual de cada acto (CPP, art. 202.º, conjugado com 127.º). Segundo, a decisão recorrida, tal como sintetizada, não assenta na aritmética como fundamento autónomo, mas num padrão qualitativo: contexto intrafamiliar, reiteração ao longo de anos, convergência de testemunhos e necessidade de preservar a genuinidade das DMF. A indicação “105+12/117” é um marcador de escala da actividade ilícita alegada, não o seu fundamento. Mesmo que se expurgasse qualquer referência numérica, subsistiria o núcleo indiciário: narrativa consistente de abusos, confidências prévias, dinâmica relacional de proximidade, e indícios compatíveis. O que é vedado é a aritmética como sucedâneo de motivação; não veda a referência a quantidades enquanto expressão do grau de gravidade, quando a base qualitativa está densificada.
O recorrente afirma que as declarações das ofendidas, por si só, não bastariam. Ora a palavra da vítima pode, em determinadas tipologias de crime, fundar a convicção — e, a fortiori, a indiciação — quando submetida a exame crítico rigoroso, com avaliação de persistência temporal, espontaneidade, detalhes sensoriais plausíveis, ausência de ganhos e compatibilidade com reacções comportamentais e testemunhos indirectos. As DMF (CPP, arts. 271.º e 294.º) existem precisamente para estabilizar prova pessoal em contextos de vulnerabilidade, reforçando a credibilidade e protegendo a memória. A “corroboração” exigível ao nível indiciário é periférica e de consistência, não a duplicação fotográfica do núcleo factual. No caso-tipo, confidências feitas em 2019/2021 a familiares, a persistência narrativa e a compatibilidade com o contexto doméstico e oportunidades de contacto superam largamente o limiar de “fortes indícios”. A objecção confunde questão de julgamento com questão cautelar e imporia um nível de prova que o CPP não exige nesta fase.
O recorrente critica a invocação de elementos contextuais, como a profissão de bombeiro voluntário e o repúdio social, para sustentar “fortes indícios”. Importa separar planos. Elementos externos que não se sustentem no comportamento do arguido são irrelevantes para o perigo da alínea a) do art. 204.º (ordem e tranquilidade públicas) e não devem pesar no juízo indiciário. Todavia, a referência a oportunidades objectivas de contacto com menores (resultantes de rotinas profissionais/associativas) não é, por si, base de indiciação; é um factor de consistência do padrão narrado quando conjugado com os demais elementos. A decisão recorrida não deduz autoria a partir da profissão; antes, avalia riscos a partir de um padrão já indiciado por declarações e contexto familiar. Assim, mesmo expurgando a profissão, permanece incólume o juízo de “fortes indícios” que assenta no núcleo narrativo credível. Quanto ao “alarme social”, a sua eventual invocação é irrelevante para os indícios e, se autonomizada, deve ser neutralizada ao nível dos perigos; mas o elemento indiciário não cai com a eliminação desse segmento.
O art. 127.º CPP consagra a regra da livre apreciação: o julgador decide segundo as regras da experiência e a sua convicção, mas deve explicitar, ainda que sumariamente, as razões de ciência. Em sede cautelar, a motivação bastante implica: identificação das fontes (depoimentos, documentos, perícias, DMF), enunciação do padrão factual e explicitação dos nexos que conduzem do material probatório ao juízo de probabilidade qualificada. A crítica do recorrente que reclama uma descrição tabelar de cada acto troca o dever de exame crítico por um formalismo inútil. O que o direito exige é que o conjunto resista a explicações alternativas razoáveis e que a inferência seja proporcional ao material disponível. Nos crimes intrafamiliares, a coerência intersubjectiva das ofendidas, a persistência, a espontaneidade inicial de algumas revelações, a ausência de animosidade instrumental e a compatibilidade cronológica e ambiental constituem pilares frequentemente reputados suficientes para “fortes indícios”.
O recorrente pretende ligar a indeterminação do número de actos à impossibilidade de antecipar, sequer em termos abstractos, a pena aplicável e, por arrastamento, negar a aplicação do art. 202.º do CPP. O argumento confunde pressupostos. A exigência do art. 202.º centra-se na moldura penal abstracta do crime ou crimes indiciados e não na liquidação exacta do cúmulo jurídico. A reiteração releva para a medida da pena e para os perigos do art. 204.º do CPP, mas, ao nível dos “fortes indícios”, basta a existência de um padrão probatório robusto de crimes cuja moldura preenche o requisito. Ainda que o número de episódios venha a ser precisado em julgamento, a probabilidade qualificada de que o arguido praticou, reiteradamente, actos de abuso sexual de menor é suficiente para a questão cautelar. A indeterminação parcial de episódios não obsta à prisão preventiva quando subsiste, com qualidade, o núcleo típico e a autoria.
Conclui-se que, em sede de medidas de coacção, “fortes indícios” equivalem a um juízo de probabilidade qualificada da verificação do facto e da autoria, sustentado por um conjunto probatório coerente, credível e motivadamente apreciado, sem necessidade de quantificação exaustiva de todos os episódios. No domínio da criminalidade sexual intrafamiliar, a palavra das vítimas, sujeita a critérios estritos de credibilidade e corroborada por elementos secundários e DMF, é apta a ultrapassar o limiar. A crítica do recorrente — aritmética, falta de corroboração estrita, utilização de contexto — ou resulta de um erro de conceitos (confusão com a prova de julgamento), ou ataca elementos secundários que, mesmo expurgados, não infirmam o núcleo indiciário.
Termos em que improcede esta parte do recurso.
*
2.5.2. Perigos do art. 204.º, n.º 1 do CPP
O art. 204.º, n.º 1, identifica riscos processuais específicos cuja prevenção pode legitimar restrições à liberdade se coexistirem “fortes indícios” (CPP 202.º) e observância de necessidade, adequação e proporcionalidade (CPP 193.º). In casu, a ratio não é sancionar condutas passadas, mas impedir danos à integridade do processo (al. b)), ao bem jurídico colectivo da paz pública (al. c)) e à protecção de bens jurídicos via prevenção da reiteração (al. c)). A natureza antecipatória dos “perigos” impõe um juízo de prognose: não se exige a ocorrência já consumada de pressões/retaliações/novos crimes, mas a demonstração, com base em factos idóneos, de uma probabilidade relevante de esses resultados ocorrerem sem a medida. O tribunal deve explicitar a base empírica da prognose, articulando padrão comportamental, contexto relacional, oportunidades objectivas de contacto e vulnerabilidades das fontes de prova. É neste quadro que as argumentações do recorrente — exigindo facto concreto actual de influência ou novo acto — falham, por deslocarem a questão para uma prova de consumação incompatível com a função cautelar.
A alínea b) abrange risco para a aquisição, conservação ou veracidade da prova e para a descoberta da verdade. Não circunscreve a risco de pressão física directa; inclui também influências subtis próprias de contextos intrafamiliares — reaproximações instrumentais, mensagens indirectas, aliciamentos, reactivação de vínculos de dependência, contaminação de memórias e efeito “silenciador”. O recorrente invoca que não há qualquer facto concreto que aponte qualquer intenção de perturbar o inquérito e que o anterior encobrimento foi “opção das ofendidas”, não imputável ao arguido. Tal raciocínio negligencia: (i) o histórico de revelação tardia e encobrimento familiar documentado, indicador de vulnerabilidade probatória; (ii) a proximidade relacional e canais de contacto potenciais; (iii) a necessidade de salvaguardar DMF e espontaneidade remanescente; e (iv) a lógica de risco cumulativo em crimes ocultos. O perigo previsto na alínea b) do artº. 204 do CPP está fortemente fundado no caso, importando preservar a autenticidade de prova pessoal sensível em ambiente relacional complexo. O recorrente exige acto preparatório identificado quando o legislador exige prognose baseada em elementos objectivos.
O núcleo da objecção (arts. 24.º–27.º da motivação) postula que, sem actos presentes de pressão, inexiste o perigo previsto na alínea b) do artº. 204º do CPP. Porém, nos autos: (1) existe registo de encobrimento intrafamiliar e de necessidade de preservar DMF, sinal de susceptibilidade a influências futuras; (2) existem relações familiares e sociais que potencialmente reactivam dependências; (3) a própria natureza dos crimes (intrafamiliares, sem testemunhas externas) intensifica a fragilidade da prova pessoal; (4) a OPH não neutraliza comunicações digitais, terceiras pessoas, nem contactos indirectos. A OPH é vista como inidónea, em casos semelhantes, precisamente por não controlar interacções, apenas presença/espaço delimitado. Portanto, a crítica do recorrente cai por erro de qualificação daquilo que conta como “fato indiciário do perigo”: não é só o gesto explícito de ameaça; é todo o conjunto de elementos objectivos que torna provável a afectação da prova se o arguido não for afastado. Dito em termos de padrão: bastam factores de risco concretos articulados (proximidade, canais) para preencher a al. b) do nº 1 do artº. 204º do CPP.
A alínea c) exige risco actual de reiteração — não “certeza de reincidência”, mas probabilidade qualificada fundada em padrão indiciário, orientação comportamental, oportunidades e ausência de limitações internas. O recorrente opõe: (i) ser bombeiro voluntário “não o coloca em contacto superior a qualquer pessoa”; (ii) os últimos factos indiciados remontam a 2020; (iii) convive com filha menor “sem entraves”. Nenhuma destas linhas, isolada ou conjunta, derruba o juízo de perigo quando: a) há padrão prolongado indiciado em contexto de proximidade relacional; b) ausência de insight — indicador criminológico de risco —; c) a OPH não neutraliza dinâmicas relacionais nem acesso digital; e d) a “antiguidade relativa” de alguns episódios não apaga a natureza de ocultação destes crimes. O argumento de contacto sempre acompanhado no bombeiro é de baixa valia: as oportunidades de reiteração não se cingem ao quartel; decorrem de redes pessoais, familiares e comunitárias.
O recorrente insiste que, sendo os “últimos factos” de 2020, o perigo previsto na al. c) enfraquece. Erra duplamente: (1) a actualidade do perigo não se mede pela proximidade cronológica do último facto, mas pela existência presente de condições estruturais que tornam provável a reiteração (padrão indiciário, oportunidades, ausência de insight, manutenção de laços); (2) nos crimes intrafamiliares, a revelação e a variação das vítimas são a regra, não a excepção — a demora probatória aumenta, não diminui, a necessidade de medidas robustas de prevenção. A OPH permitiria, a partir do domicílio, manter contactos e prosseguir actividade ilícita, atributos que traduzem actualidade do risco. Logo, a crítica temporal é aparente: o que releva é a configuração presente do risco, não a data do último episódio.
A alínea c) deve ser lida restritivamente: a perturbação relevante é a imputável ao previsível comportamento do arguido, não a reacções de terceiros (alarme social). O recorrente tem razão em abstracto ao recusar que repúdio social e vandalização por terceiros operem como fundamento autónomo de al. c). Porém, duas clarificações são decisivas: (i) a invocação deste perigo não contamina os restantes; pode ser expurgada sem afectar b) e c); (ii) há situações em que a al. c) se sustenta em condutas futuras do arguido com reflexo directo na paz pública (v.g., condutas intimidatórias ou ostensivas), o que não é o caso típico em discussão.
O recurso apela à subsidiariedade (CPP 193.º) e propõe OPH com VE, sustentando-se em alegadas obras na habitação e em rendimentos: (i) “obras concluídas”, (ii) “meios económicos”, (iii) “rede familiar”. Duas ordens de razões impõem a recusa: A) Estruturais — a prova dessas alegadas melhorias é incerta/superveniente e, em sede de recurso, não basta a proclamação; B) Funcionais — mesmo com condições domésticas, a OPH não bloqueia contactos humanos e digitais, nem protege a prova pessoal em ambiente intrafamiliar. A OPH permitiria, a partir do domicílio, manter contactos e continuar a actividade indiciada; a VE controla presença, não interacções, e é por isso inidónea face aos perigos b) e c). Acresce que “proibições de contacto” e “apresentações periódicas” são, em ambiente relacional denso, de eficácia limitada.
O recorrente insiste que não se aponta qualquer acto em marcha de pressão sobre vítimas/testemunhas. Contudo, o risco para a veracidade e conservação da prova — em especial na preparação/ DMF — é maximizado em situações de proximidade afectiva e hierárquica. A prevenção do risco probatório não depende da demonstração de um telefonema específico, mas da constatação de “condições de influência” (acesso, autoridade percebida, dependências, ambivalência afectiva) tipicamente presentes em abusos intrafamiliares. O legislador, ao formular a al. b), protege o processo de degradação qualitativa da prova, não apenas de sua destruição física. Por isso, a ausência de um “gesto de ameaça” não apaga a probabilidade de erosão da veracidade testemunhal.
O recorrente argumenta que o convívio com a filha menor “sem entraves” seria indício contra a actualidade do perigo c). Trata-se de inferência sem relevância consistente. Primeiro, o risco de reiteração não se avalia por um único vínculo familiar, mas pelo padrão relacional global e pelas oportunidades objectivas de aceder a vítimas potenciais. Segundo, a ausência de incidentes conhecidos num período temporal não neutraliza uma trajectória indiciada de condutas anteriores com outras vítimas e não reconstrói insight ou autocontrolo. Terceiro, do ponto de vista de tutela da infância, a coexistência de um vínculo parental não é bloqueio contra a repetição — pode até, em certos perfis, facilitar proximidades não escrutinadas. Por fim, a ausência de insight como marcador de risco para b) e c): quem não reconhece gravidade/ilicitude tem menor capacidade de autolimitação. Logo, a “filha menor” não prova segurança; prova apenas um dado fáctico irrelevante para a neutralização do risco previsto.
A compressão da liberdade pessoal (CRP 27.º, 28.º) exige: (i) fortes indícios (fumus), (ii) perigos concretos (periculum) e (iii) necessidade/adequação/proporcionalidade (instrumentalidade estrita).
A proporcionalidade favorece a prisão preventiva quando a OPH é inidónea e as demais medidas não neutralizam riscos de influência/continuação. A al. c) pode — e deve — ser lida com parcimónia: reacções de terceiros não bastam; mas a eventual debilidade deste vector não contamina os outros.
Refuta-se integralmente a argumentação do recorrente: (1) Quanto à al. b), não é necessária a prova de actos já praticados de obstrução; basta a demonstração de condições concretas de risco probatório em contexto intrafamiliar, presentes nos autos e afirmadas com consistência pelo despacho recorrido. (2) Quanto à al. c), a alegada falta de actualidade por distância temporal e a irrelevância da condição de bombeiro não afastam a prognose de reiteração quando subsiste padrão indiciário, oportunidades, e ausência de insight; a OPH não é mecanismo de neutralização de contactos/comunicações. (3) Quanto à al. c), mesmo adoptando a interpretação estrita e expurgando reacções de terceiros como fundamento autónomo, o edifício cautelar mantém-se com b) e c). Deste modo, a prisão preventiva é necessária, adequada e proporcional, face à insuficiência/ineficácia das medidas não detentivas. A solução preserva a integridade do inquérito e previne danos graves a bens jurídicos, sem sacrificar indevidamente a presunção: mantém-se a natureza cautelar, com revisão periódica e reponderação se e quando o ora recorrente comprove, com prova efectiva e verificável, eliminação dos riscos.
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2.5.3. Subsidiariedade e idoneidade da OPH com VE
O art. 193.º do CPP estatui que as medidas de coacção se escolhem “de acordo com a sua necessidade, adequação e proporcionalidade”, devendo preferir-se a menos gravosa quando, ainda assim, satisfizer as finalidades processuais. Em termos analíticos, o juiz cumpre um teste sequencial: 1) identifica necessidades cautelares concretas (proteger a prova, evitar fuga, prevenir reiteração); 2) determina o conjunto de medidas potencialmente aptas a neutralizá-las; 3) afere, por comparação, qual a solução mínima suficiente; 4) fundamenta, com exame crítico, por que motivo alternativas propostas falham. Não há presunção a favor da OPH+VE; há um dever de ponderação séria. Onde a OPH não assegura, em termos operacionais, as finalidades — por fragilidade estrutural (habitação imprópria, logística deficiente, coabitação incontrolável) ou por insuficiência funcional (controla presença/espaço, mas não canais de contacto, interacções mediadas por terceiros, dispositivos digitais) — a medida falha o critério de idoneidade e, por isso, também o de subsidiariedade. A argumentação do recorrente de que “sempre que possível deve preferir-se a OPH” inverte o ónus: a preferência só acciona quando a suficiência esteja demonstrada.
A OPH com VE é uma medida de permanência coactiva em local determinado, fiscalizada por meios electrónicos, que controlam essencialmente a “presença/ausência” do agente dentro de espaços e tempos fixados. Por desenho, a VE oferece: (i) georreferenciação (estática/dinâmica), (ii) alarmística de violação de espaço/horário, (iii) registos de conformidade. O que a VE não oferece: (a) bloqueio de contactos presenciais dentro do domicílio; (b) censura de interacções digitais (voz, mensagem, plataformas, redes); (c) filtragem de acessos por terceiros; (d) isolamento ambiental em contexto de coabitação; (e) “vigilância social” sobre círculos relacionais. A idoneidade, portanto, não se mede por “funciona o dispositivo?”, mas por “o desenho concreto da medida neutraliza os vectores de risco que justificam a compressão da liberdade?”. A insistência do recorrente em itens patrimoniais (obras, materiais, equipamento) e económicos (rendimentos) é lateral; a suficiência da OPH depende de arquitectura e gestão do risco, não de mera habitabilidade.
O recorrente, quando invoca “obras feitas” e “rendimento”, fala apenas à estrutura e nem sequer o prova de forma detalhada; nada diz — ou diz em termos genéricos — sobre o eixo funcional, onde residem os desempenhos da OPH+VE. Mesmo que o eixo estrutural estivesse comprovado, a ausência de um plano funcional verificável (com compromisso de coabitantes, validação de exclusões, auditoria a dispositivos, protocolos de fiscalização de proibições de contacto) mantém a medida inidónea.
Quem requer a substituição por OPH+VE invocando superveniências (obras; novo domicílio; emprego; rede familiar) suporta um ónus de alegação e prova bastante, actual e verificável: plantas, contratos, comprovativos de titularidade/uso, facturação de serviços, relatórios técnicos de viabilidade, declarações formais de coabitantes/terceiros compromissários, plano de rotinas e controlo. Meras afirmações ou “protestos para exibição” não bastam em sede de recurso; prevalece a imagem probatória da decisão recorrida, salvo prova superveniente séria e sujeita a contraditório.
A proporcionalidade exige “mínimo suficiente” para o fim processual: se a OPH não neutraliza de forma fiável os vectores de risco, não satisfaz o crivo. Argumentos como “a prisão é demasiado gravosa” invertem o raciocínio: a gravidade da compressão só releva após estabelecida a suficiência das alternativas. Do ponto de vista de gestão de risco, três indicadores são decisivos para afastar a OPH: (A) risco sistémico — quando as oportunidades de incumprimento são múltiplas e de baixo custo, o “enforcement” torna-se errático; (B) opacidade — quando o tribunal não dispõe de visibilidade operacional (coabitação, terceiros não vinculados, canais digitais não auditáveis), a certeza de cumprimento é baixa; (C) fragilidade sancionatória — quando violar regras tem probabilidade de não detectar ou de ser racionalmente compensador para o agente. O recorrente não enfrenta nenhum destes indicadores.
Alegar “obras concluídas” não diz nada sobre gestão de risco; um domicílio reabilitado pode ser excelente para cumprir presença e péssimo para controlar interacções. Alegar “rendimentos” é irrelevante para o quadro cautelar e pode até criar novos vectores (deslocações, terceiros, trocas). Invocar “rede familiar” sem termos de compromisso, sem avaliação de idoneidade e sem mecanismos de enforcement transforma o suposto “suporte” num canal adicional não controlado. Em sede de subsidiariedade, o tribunal coteja finalidades processuais com meios: se os meios invocados não se relacionam causalmente com a neutralização do risco, não pesam.
Na perspectiva constitucional, rejeitar a OPH quando não é idónea não significa preferir o mais gravoso, mas sim cumprir o princípio da proporcionalidade em sentido correcto: a medida menos gravosa só tem primazia se realizar o fim. A OPH não é “substituto natural” da medida de coacção de prisão preventiva e não deve ser imposta quando os riscos exigem isolamento integral ou quando a fiscalização tecnológica não cobre canais relevantes de incumprimento.
A argumentação do recorrente não procede: a subsidiariedade não lhe atribui um “crédito” de OPH+VE; atribui-lhe a possibilidade de demonstrar que essa medida é, no caso, suficiente. Não o fez. A sua narrativa sobre obras, rendimentos e apoio familiar é lateral e não auditável; não há plano técnico, nem compromisso verificável de coabitantes, nem governação de dispositivos e contactos, nem articulação operacional com serviços. A OPH proposta é, pois, funcionalmente inidónea e, por isso, não atendível. A decisão correcta é manter a prisão preventiva, com a revisão legal. Até lá, a OPH não passa no teste do art. 193.º e não pode ser acolhida sem violar a própria lógica da subsidiariedade.
Nestes termos, o recurso do arguido terá de improceder in totum.
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III-DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção desta Relação em negar provimentos ao recurso interposto pelo arguido e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 4 Ucs.
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Lisboa e Tribunal da Relação, 22 de outubro de 2025
Alfredo Costa
Ana Rita Loja
Mário Pedro M.A. Seixas Meireles.
Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP).
O relator escreve de acordo com a anterior grafia
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1. - 1 (um) crime de abuso sexual de menor agravado, previsto e punido, nos termos do artigo 171, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal (factos descritos de 1 a 11);
- 105 (cento e cinco) crimes de abuso sexual de menor agravado, previsto e punido, nos termos do artigo 171.º, 1 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal (factos descritos de 12 a 14)
- 12 (doze) crimes de abuso sexual de menor agravado, previstos e punidos, nos termos do artigo 171.º, 1 e n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal (factos descritos de 15 a 17);
- 1 (um) crime de abuso sexual de menor agravado, previsto e punido, nos termos do artigo 171.º, 1 e n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal (factos descritos de 18 a 21);
- 1 (um) crime de abuso sexual de menor agravado, previsto e punido, nos termos do artigo 171.º, 1 e n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal (factos descritos de 22 a 27);
- 1 (um) crime de abuso sexual de menor agravado, previsto e punido, nos termos do artigo 171.º, 1 e n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal (factos descritos de 28 a 35);
Relativamente a vítima CC:
- 1 (um) crime de abuso sexual de menor agravado, na forma tentada, previsto e punido, nos termos do artigo 171, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Pena e artigo 23.º do mesmo diploma legal (relativamente aos factos descritos de 40 a 44)
- 1 (um) crime de pornografia de menor, previsto e punido, nos termos, do artigo 176.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal (relativamente aos factos constantes de 45 a 46)
- 4 (quatro) crimes de abuso sexual de menor agravado, previstos e punidos, nos termos do artigo 171, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Pena e artigo 23.º do mesmo diploma legal (relativamente aos factos descritos a 47 a 59)