Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13467/21.4T8LSB.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: PROTECÇÃO DE DADOS
DIREITO AO APAGAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) A junção ao processo do documento comprovativo da formulação de pedido de escusa pelo patrono, nomeado ao abrigo de apoio judiciário, interrompe o prazo que estiver em curso, o qual começará a correr por inteiro a partir da notificação da decisão que aprecie tal escusa – cfr. artigos 34.º, n.º 2 e 24.º, n.º 5, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho (Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais), com a redação conferida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto.
II) Verificando-se, relativamente à impugnação de facto deduzida pelo apelante, a falta de posição expressa sobre o resultado pretendido e sobre os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados – não se mostrando, por isso, observados os ónus de impugnação consignados nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC – a impugnação da matéria de facto deve ser rejeitada.
III) O direito ao “apagamento de dados”, previsto no n.º 1 do artigo 17.º do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016 ou RGPD) concretiza um dos principais objetivos do RGPD, designadamente, o de assegurar um alto nível de proteção de dados, dotando os titulares de dados pessoais de poder efetivo sobre os seus próprios dados, reconhecendo-lhes o direito de controlo dos dados pessoais e de eliminação dos dados, caso o titular assim o entenda, nomeadamente, quando as finalidades pelas quais foram recolhidos, tenham sido atingidas.
IV) Solicitado que seja o exercício do referido direito ao apagamento, o responsável pelo tratamento terá, por sua vez, a obrigação de apagar os dados pessoais, sem demora injustificada, nomeadamente quando o titular retire o consentimento em que se tinha baseado o tratamento dos seus dados e se não existir outro fundamento jurídico para a manutenção do referido tratamento.
V) Não procederá o “direito ao apagamento”, “na medida em que o tratamento se revele necessário:
a) Ao exercício da liberdade de expressão e de informação;
b) Ao cumprimento de uma obrigação legal que exija o tratamento prevista pelo direito da União ou de um Estado-Membro a que o responsável esteja sujeito, ao exercício de funções de interesse público ou ao exercício da autoridade pública de que esteja investido o responsável pelo tratamento;
c) Por motivos de interesse público no domínio da saúde pública, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, alíneas h) e i), bem como do artigo 9.º, n.º 3;
d) Para fins de arquivo de interesse público, para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, nos termos do artigo 89.º, n.º 1, na medida em que o direito referido no n.º 1 seja suscetível de tornar impossível ou prejudicar gravemente a obtenção dos objetivos desse tratamento; ou
e) Para efeitos de declaração, exercício ou defesa de um direito num processo judicial” (cfr. artigo 17.º, n.º 3, do RGPD).
VI) Ficando demonstrado que o autor efetuou operações com o cartão de fidelização nas lojas da 1.ª ré, até pelo menos, março de 2017 (adquirindo bilhetes – compras e vendas) à 1.ª ré assiste o direito a conservação dos dados respeitantes ao autor, em razão do estabelecimento de tais relações jurídicas e das consequências que delas advêm, se, nomeadamente, se mantiver a vigência das obrigações legais que determinam tal conservação.
VII) Nos termos do artigo 21.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, “o prazo de conservação de dados pessoais é o que estiver fixado por norma legal ou regulamentar ou, na falta desta, o que se revele necessário para a prossecução da finalidade” (n.º 1), sendo que, “nos casos em que existe um prazo de conservação de dados imposto por lei, só pode ser exercido o direito ao apagamento previsto no artigo 17.º do RGPD findo esse prazo” (n.º 5).
VIII) Estabelecendo o artigo 125.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas que, “os sujeitos passivos com sede ou direção efetiva em território nacional, bem como aqueles que aí possuam estabelecimento estável, estão sujeitos às obrigações de faturação e de conservação de livros, registos e respetivos documentos de suporte nos termos previstos no Código do IVA e no Decreto-Lei n.º 28/2019, de 15 de fevereiro” - e prevendo-se no artigo 52.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) que “os sujeitos passivos são obrigados a arquivar e conservar em boa ordem durante os 10 anos civis subsequentes todos os livros, registos e respetivos documentos de suporte, incluindo, quando a contabilidade é estabelecida por meios informáticos, os relativos à análise, programação e execução dos tratamentos”, e no artigo 19.º, n.º 1, do D.L. n.º 28/2019, de 15 de fevereiro (alterado pelo D.L. n.º 48/2020, de 3 de agosto) que, “os sujeitos passivos são obrigados a arquivar e conservar em boa ordem todos os livros, registos e respetivos documentos de suporte por um prazo de 10 anos, se outro prazo não resultar de disposição especial”- , a 1.ª ré mantém, na atualidade, o direito de conservação dos documentos relevantes para fins fiscais, uma vez que, ainda, não decorreram desde a data das operações negociais com o autor (a última em 25 de março de 2017), os respetivos prazos de conservação dos documentos fiscais e, consequentemente, assiste-lhe o direito a conservar – operando o respetivo tratamento – os dados pessoais do autor, sem que este possa fazer valer, com êxito, o direito ao apagamento de tais dados.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

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1. Relatório:
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1. JC, identificado nos autos, instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra FNAC PORTUGAL - ACTIVIDADES CULTURAIS E DISTRIBUIÇÃO DE LIVROS, DISCOS, MULTIMÉDIA E PRODUTOS TÉCNICOS, LDA. e CAIXABANK PAYMENTS & CONSUMER, E.F.C., E.P., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, também identificadas nos autos, pedindo o seguinte:
“a) Condenar-se as Rés a eliminar definitivamente os dados pessoais do Autor, uma vez que não subsistem motivos legais para o seu tratamento lícito;
b) Condenar-se as Rés a pagar ao Autor, de forma solidária, a quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros), ou em quantia diferente de acordo com o prudente juízo equitativo do douto tribunal;
c) Condenar-se as Rés em sanção pecuniária compulsória de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros) por cada dia de atraso no pagamento da indemnização prevista na alínea anterior, nos termos do art.º 829.º-A do Código Civil;
d) Condenar-se as Rés nas custas, procuradoria e demais encargos legais”.
Para tanto alegou, em suma, que:
- No dia 07-11-2014, o Autor aderiu ao programa de Fidelização da Ré FNAC, que permitia ao Autor acumular pontos em função do valor das compras de bens e de serviços efetuados nas lojas exploradas pela FNAC (físicas e online) em Portugal, bem como beneficiar de todas as vantagens oferecidas aos aderentes em cada momento, programa que é propriedade da FNAC e é gerido por uma entidade terceira contratada por aquela, que poderia propor ao titular vantagens e serviços complementares;
-O Autor, ao aderir ao programa de fidelização, nos termos do ponto 9.2 do mencionado contrato, deu autorização à utilização e cedência dos dados pessoais que disponibilizou para o efeito, sob absoluta confidencialidade, à entidade gestora Banco BNP Paribas Personal Finance, S.A. (Cetelem), ou a outra que a FNAC viesse a nomear, para a gestão do programa de fidelização da FNAC;
- Sucede que, no dia 10-11-2020, o Autor foi interpelado para o pagamento da renovação do cartão relativo ao programa de fidelização da FNAC pela entidade Caixa Bank Payments & Consumer, E.F.C., E.P, S.A. - Sucursal em Portugal do Grupo CaixaBank, tendo tal interpelação surpreendido o Autor, uma vez que não tinha qualquer relação negocial com a mesma, nem nunca lhe foi comunicada qualquer cedência de posição contratual;
-A Ré Caixa Bank Payments & Consumer, E.F.C., E.P, S.A. - Sucursal em Portugal do Grupo CaixaBank estaria a agir na qualidade de gestora da FNAC, sendo que, para enviar a mencionada carta, a Ré FNAC teve de ceder dados pessoais do Autor para o efeito, o que fez sem autorização do Autor e sem que lhe fosse dado conhecimento desse facto;
- Em 04-12-2020, o Autor diligenciou por denunciar o contrato com a Ré FNAC, exigindo a eliminação dos seus dados pessoais, quer por parte da Ré FNAC, quer por parte de entidades terceiras, designadamente a Segunda Ré e o BNP - Paribas Personal Finance, S.A., sendo que a Ré FNAC informou, posteriormente, o Autor de que tinha procedido ao cancelamento do cartão, mas nada disse quanto aos seus dados pessoais;
-Após a insistência do Autor, a Ré FNAC respondeu que, desde 07-08-2019, era a Segunda Ré que, em parceria com a FNAC, efectuava a cobrança do valor da renovação do cartão FNAC e geria o processo de atribuição de plafond de crédito associado ao cartão FNAC, situação que teria sido comunicada ao Autor por carta, que este nunca recebeu, remetendo ainda para o link onde consta a sua política de privacidade, referindo que apenas procedia ao tratamento de dados pessoais para os fins expressamente indicados na respetiva política de privacidade;.
-Mais tarde, a Ré FNAC informou o Autor de que havia desativado o envio de comunicação promocional e que tratava apenas os dados “decorrentes da relação estabelecida com a FNAC e na medida do estritamente necessário para garantir o cumprimento de obrigações legais e/ou contratuais a que a FNAC se encontra vinculada, nomeadamente para efeitos de comprovação dos registos contabilísticos e fiscais”;
-O Autor respondeu à Ré Fnac, informando-a que não era cliente, que nunca recebeu promoções e que não fez compras na FNAC, reiterando que nunca autorizou, nem teve conhecimento da cedência dos seus dados a terceiros, razão pela qual a justificação de conservação e tratamento de dados para fins contabilísticos e fiscais não procedia, sendo que o Autor expressamente recusou prestar consentimento a que os seus dados pessoais pudessem ser tratados, quer pela Ré FNAC, quer por entidades terceiras, para efeitos de marketing direto;
-As Rés fazem uso abusivo dos dados pessoais do Autor contra a sua vontade e contra a lei e, nos termos da cláusula 4.3 do contrato, as alterações às condições gerais deveriam ter sido comunicadas ao Autor com a antecedência de 30 dias antes da renovação da adesão ao programa de fidelização, permitindo-se ao titular resolver o contrato em caso de não concordância; e
-Concluiu que assiste ao Autor o direito à eliminação dos seus dados pessoais e a ser indemnizado pelos danos não patrimoniais sofridos em virtude da conduta das Rés, por violação dos seus direitos de personalidade.

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2. A Ré FNAC contestou, pugnando pela improcedência da ação, sustentando que não houve tratamento ou cedência ilícita dos dados pessoais do Autor e que assiste à Ré o direito a manter os dados pessoais do Autor para efeitos fiscais e para defesa em processo judicial, sendo que o Autor, contrariamente ao que afirma, celebrou contratos de compra e venda com a FNAC.

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3. A Ré CAIXABANK contestou a ação, pugnando pela sua improcedência.

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4. Realizou-se audiência prévia, tendo sido fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova e foi emitida decisão sobre os requerimentos probatórios das partes.

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5. Teve lugar audiência de discussão e julgamento, com produção probatória.

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6. Após, por requerimento de 24-11-2022, o autor veio desistir da instância, pretensão que não foi aceita pelas rés, que arguiram a litigância de má fé do autor.

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7. Seguidamente, em 12-12-2022, foi, nomeadamente, proferido despacho no qual foi consignado não poder ser homologada a desistência da instância, julgada improcedente a pretensão das rés de condenação do autor como litigante de má fé e foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo as rés dos pedidos.

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8. Não se conformando com esta decisão, dela apela o autor, pugnando no sentido de ser anulada a sentença recorrida, sendo a mesma substituída por outra que condene as rés “ao imediato apagamento dos dados do A., em poder de cada uma delas e comprová-lo ao tribunal, para além de quaisquer dúvidas, para segurança jurídica” e que “sejam ambas as RR., condenadas a pagar uma indemnização justa e equitativa ao A., por não terem em tempo adequado procedido ao apagamento dos dados do A.”, tendo formulado as seguintes conclusões:
“A. Tem o autor direito ao apagamento dos seus dados, quer na base de dados dos cartões de fidelização da Fnac, quer no sistema do Caixa Bank.
B. No caso concreto já não existem justificações legais que impeçam o apagamento/eliminação dos dados do A., quer no que toca ao cumprimento de legislação fiscal, quer no que respeita a necessidade de prevenção de demandas em juízo.
C. Para efeitos de legislação fiscal, a Ré Fnac dispõe do documento relevante em arquivo digital, em Palmela.
D. Para efeitos de necessidades judiciais, pelo presente processo já estão asseguradas essas situações.
E. Pelo que inexistem obstáculos ao total apagamento dos dados disponíveis em ambas as RR..
F. Ambas as RR., devem comprovar, para além de qualquer dúvida, que já apagaram os dados do A., de todos os seus sistemas e aplicações informáticas, demonstrando inequivocamente esse facto.
G. O A., deve receber uma indemnização de valor a definir pelo Tribunal para compensação da demora injustificada em apagar os seus dados, nos termos do art.º 82º, n.º 1, do RGPD”.

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9. A ré FNAC contra-alegou, invocando, nomeadamente, a inobservância pelo recorrente do disposto no artigo 640.º do CPC e concluindo pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.

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10. Também a ré CAIXABANK apresentou contra-alegações, invocando, nomeadamente, a extemporaneidade do recurso apresentado e a inobservância pelo recorrente do disposto no artigo 640.º do CPC e concluindo pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.

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11. O requerimento recursório foi admitido por despacho de 05-09-2023.

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12. Remetidos os autos a este Tribunal de recurso, em 11-01-2024, e inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais.

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2. Questões a decidir:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
Em face do exposto, identificam-se as seguintes questões a decidir:
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I) Questão prévia:
A) Se o recurso apresentado pelo autor é extemporâneo?
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II) Impugnação da decisão de facto:
B) Se o recurso atinente à impugnação da matéria de facto deve ser rejeitado, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC?
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III) Impugnação da decisão de direito:
C) Se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por decisão que condene as rés ao apagamento dos dados do autor e ao pagamento da indemnização por aquele peticionada?

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3. Fundamentação de facto:

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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. Em 7 de Novembro de 2014, o Autor subscreveu a “Proposta de Adesão ao Programa de Fidelização FNAC”, junta com a petição inicial como documento n.º 1, cujo teor se dá aqui por reproduzido, tendo fornecido o seu nome completo, indicado a sua data de nascimento, sexo, nacionalidade, número do cartão do cidadão, número de contribuinte, estado civil, o número de dependentes, a morada e o telemóvel, proposta que a 17 Ré aceitou, da qual consta: “O Programa de Fidelização FNAC permite ao seu titular (...) cumular pontos em função das compras de bens e de serviços efectuadas nas lojas exploradas pela FNAC (...), bem como beneficiar de todas as vantagens oferecidas aos aderentes em cada momento (...) O Programa de Fidelização FNAC é propriedade da FNAC, sendo gerido por uma entidade Terceira contratada pela FNAC para o efeito (doravante designada “Entidade Gestora”) (...) O Titular pode aderir somente ao Programa de Fidelização FNAC, caso em que lhe será atribuído o Cartão, ou ao Programa de Fidelização FNAC e à vertente de crédito, caso em que lhe será atribuído um Cartão de Crédito FNAC, cartão que acumula a funcionalidade fidelização com a funcionalidade de crédito (...) O Cartão terá um prazo de validade que figurará impresso na frente do mesmo (...) será automaticamente renovado, por iguais períodos (...) excepto se alguma das partes o denunciar ou resolver (...) Caso haja alterações das Condições Gerais do Programa de Fidelização FNAC estas serão comunicadas ao TITULAR até 30 (...) dias antes da renovação automática (...) Caso não concorde com o teor das mesmas ou não pretenda a renovação (...) O TITULAR deverá comunicar a resolução do contrato à FNAC (...) o titular autoriza igualmente a consulta, utilização e cedência dos dados pessoais disponibilizados, sob absoluta confidencialidade, à entidade gestora, Banco BNP Paribas Personal Finance, S.A. (Cetelem), ou outra que a FNAC venha a nomear, bem como a outras entidades terceiras de reconhecida idoneidade, para fins de informação e promoção de bens e serviços comercializados por estas entidades, bem como para a gestão do Programa de Fidelização FNAC.”
2. Da proposta referida em 1. consta que a adesão ao programa de fidelização é por 3 anos, tinha o custo de 15,00€ e a renovação, por igual período, tinha o mesmo custo, tendo o Autor assinalado na proposta “Não autorizo que os meus dados sejam tratados para efeitos de marketing directo pela FNAC” e “Não autorizo que os meus dados sejam tratados para efeitos de marketing directo por entidades terceiras ou pela Entidade Gestora: Banco BNP Paribas Personal Finance, S.A., (Cetelem)”.
3. Em 1 de Agosto de 2019, a 1.ª Ré celebrou com a 2.ª Ré o acordo que denominaram de “Contrato de Colaboração com Intermediação de Crédito”, junto com a contestação da 1.a Ré como documento n.º 1, cujo teor se dá aqui por reproduzido, com efeito a 7 de Agosto de 2019, nos termos do qual a 2.ª Ré, de acordo com o Anexo V, passou a ser responsável por “(i) Emitir os cartões de fidelização FNAC provisórios e definitivos (Cartões FNAC, bem como as respetivas renovações, que permitem aos respetivos titulares (doravante, os “Clientes Fidelização”) beneficiar do Programa de Fidelização, de acordo com as indicações que lhe tenham sido prestadas pela FNAC a esse respeito. (ii) Proceder ao débito das quantias acordadas entre a FNAC e os Clientes Fidelização relativamente à adesão ao Cartão FNAC. (iii) Proceder ao envio, em papel ou outro suporte duradouro, do aviso de cobrança dos valores supra previstos aos Clientes Fidelização. (iv) Proceder à custódia e ao arquivo dos contratos celebrados entre os Clientes Fidelização e a FNAC com vista à adesão por parte do primeiro ao Programa de Fidelização e respetivas autorizações de débito direto. (v) Processar e tratar a correspondência enviada pelo CaixaBank Payments & Consumer a pedido da FNAC no âmbito da gestão operacional do Programa de Fidelização (...) a FNAC assume as seguintes funções (...) Transmitir toda a informação necessária e atualizada ao CaixaBank (...), nomeadamente dados dos Clientes Fidelização, i.e., nome, morada, IBAN e número de cartão FNAC (...) A FNAC tem conhecimento que o CaixaBank (...) assumindo nos termos do contrato a função correspondente à gestão operacional do Programa de Fidelização nos termos da Cláusula anterior subcontratado pela FNAC, actua em nome e por conta da FNAC (...) Os dados fornecidos pela FNAC ao CaixaBank Payments & Consumer devem ser os dados necessários para a referida gestão operacional do Programa de Fidelização. Quando estes dados deixarem de ser necessários para este efeito, o CaixaBank Payments & Consumer deve notificar imediatamente a FNAC (...) Obrigações do subcontratado (...) o CaixaBank Payments & Consumer utilizará os dados pessoais sujeitos a tratamento única e exclusivamente para a gestão operacional do Programa de Fidelização, não podendo, em caso algum, ser utilizados para fins próprios (...) o CaixaBank Payments & Consumer tratará os dados de acordo com as instruções da FNAC e abster-se-á de qualquer tratamento, seja de gravação, reprodução, utilização, conservação, etc., dos mesmos para finalidades distintas do estrito cumprimento da referida gestão operacional do Programa de Fidelização (...) São obrigações da FNAC, na qualidade de responsável pelo tratamento de dados: (...)”.
4. Para efeitos do contrato referido em 3, a 2.ª Ré tem acesso a uma base de dados espelho da base de dados dos clientes do Cartão Fidelização da 1.ª Ré, apenas podendo aceder aos dados que lhe são facultados, através da base de dados espelho, pela 1.ª Ré.
5. A partir do momento em que o cliente denuncia o contrato relativo ao Cartão Fidelização, a 1.a Ré bloqueia o acesso e utilização dos dados pessoais do cliente pela 2.a Ré.
6. Em 10 de Novembro de 2020, a 2.ª Ré enviou ao Autor a carta junta com a petição inicial como documento n.º 2, cujo teor se dá aqui por reproduzido, nos termos da qual solicitava ao Autor o pagamento de 15,00€ para renovação do cartão FNAC, constando de tal carta “O CaixaBankPayments & Consumer (...) está encarregue de proceder à cobrança da comissão pelo Programa de Fidelização da FNAC, no âmbito da colaboração que ambas mantêm ”.
7. Em 4 de Dezembro de 2020, o Autor, através do correio electrónico, cuja cópia foi junta com a petição inicial e que se dá qui por reproduzida, comunicou à 1.a Ré que não desejava “renovar o cartão FNAC. Assim cancelo e revogo o referido contrato. Nunca dei autorização para os meus dados pessoais tenham sido fornecidos à CaixaBank (...) Assim, queiram imediatamente comunicar a essa entidade para eliminar, suprir, remover integralmente todos os meus dados pessoais, sem excepção (...) Incluindo que seja comunicado à Cetelem (...) a remoção de todos os meus dados pessoais associados ao cartão Fnac (...) ”.
8. Por carta datada de 7 de Dezembro de 2020, enviada à 1.a Ré, o Autor reiterou o pedido referido em 7.
9. Em 7 de Dezembro de 2020, a 1.a Ré respondeu ao Autor confirmando que tinha cancelado o cartão.
10. Em 7 de Dezembro de 2020, o Autor enviou à 1.a Ré novo correio electrónico, exigindo desta “resposta pronta e precisa dos meus dados fornecidos às duas entidades financeiras, sendo a última CaixaBank Payments que desconheço, não autorizei e nunca tive (nem quero) ter relações financeiras. Os meus dados devem ser eliminados. Relativamente aos meus dados na Fnac Portugal Lda os meus dados devem ser igualmente supridos e eliminados. Aguardo uma resposta ainda hoje. (...)”.
11. A 1.ª Ré respondeu a informar que iria encaminhar o assunto para o seu Encarregado de Proteção de Dados.
12. No dia 6 de Janeiro de 2021, o Autor recebeu e-mail de resposta por parte do Encarregado de Dados Pessoais da Ré FNAC, junto com a petição inicial como documento n.º 9, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
13. Em 9 de Fevereiro de 2021, a 1.ª Ré enviou ao Autor nova comunicação por correio electrónico, no qual reiterava que “o Cartão Fnac indicado já se encontra cancelado, conforme nos foi solicitado” e que, de acordo com a legislação de protecção de dados pessoais, a 1.a Ré “informa que apenas poderá efectuar tratamento de dados decorrentes da relação estabelecida com a FNAC e na medida do estritamente necessário para garantir o cumprimento de obrigações legais e/ou contratuais a que a FNAC se encontra vinculada, nomeadamente para efeitos de comprovação dos registos contabilísticos e fiscais. Fora deste âmbito, a FNAC não efectuará tratamento de quaisquer dados que sejam titularidade de V.Exa.”.
14. Por correio electrónico de 9 de Fevereiro de 2021, o Autor comunicou à 1.a Ré que “eu não sou vosso cliente. Nunca recebi promoções (...) Eu não tenho compras na Fnac, como tal esses registos igualmente é uma falsa questão (...)”.
15. Após a denúncia do contrato pelo Autor, a 1.ª Ré bloqueou o acesso e utilização dos dados pessoais do Autor por parte da 2.a Ré.
16. O Autor realizou diversas aquisições de bilhetes para concertos na 1.ª Ré, utilizando o Cartão Fidelização, entre 2014 e até pelo menos 25 de Março de 2017.

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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
- A 1.ª Ré cedeu à 2.ª Ré a sua posição no contrato referido em 1.;
- O Autor não autorizou a cedência dos dados pessoais fornecidos aquando da celebração do contrato referido em 1. a entidade gestora do programa de Fidelização que a 1.a Ré viesse a nomear;
- A Autor ficou angustiado, apreensivo e receoso em relação à forma como as Rés estariam a tratar os seus dados pessoais, tendo sofrido desconforto, nervosismo e inquietação.
O Tribunal recorrido consignou ainda que:
“À restante matéria alegada não se responde por ser mera impugnação, matéria de direito, conclusiva ou irrelevante para os autos”.

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4. Fundamentação de Direito:

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I) Questão prévia:

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A) Se o recurso apresentado pelo autor é extemporâneo?
A recorrida CAIXABANK, nas contra-alegações, invocou como “questão prévia” a da extemporaneidade do recurso de apelação interposto pela contraparte.
Alegou, para tanto, que:
“(…)6. O Autor vem juntar as suas alegações de recurso ao presente processo em 26/03/2023.
7. Após notificação às partes, da sentença, ocorrida em 14/12/2022.
8. Considerando que, nos termos do artigo 638º nº 1 do CPC, com a dilação prevista nos termos do nº 7 do artigo 638º do CPC, por estar em causa a reapreciação da prova gravada, o prazo para interposição do recurso foi de 40 dias.
9. E que houve duas suspensões da instância para nomeação de novos patronos do A., ocorridas entre 19/12/2022 e 13/01/2023 e entre 13/02/2023 e 15/02/2023.
10. Conclui-se que, consideradas as férias judiciais e as suspensões resultantes das escusas de patrocínio, o prazo para interpor recurso terminou no dia 23/02/2023.
11. Sendo que, as alegações de recurso foram apresentadas pelo A. em 26/03/2023, ou seja, quase um mês após o termo do prazo disposto no art.º 638º nº 1 do CPC.
12. Daqui resulta, que o recurso deverá ser recusado por ser extemporâneo”.
Nos termos do despacho proferido em 05-09-2023, o recurso interposto foi liminarmente admitido.
Vejamos se o recurso interposto é extemporâneo, sabendo-se que, nos termos do artigo 641.º, n.º 5, do CPC, “A decisão que admita o recurso, fixe a sua espécie e determine o efeito que lhe compete não vincula o tribunal superior (…)”:
Sobre o prazo para a interposição de recurso de apelação, estabelece o artigo 638.º do Código de Processo Civil (CPC) o seguinte:
“1 - O prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º e no artigo 677.º.
2 - Se a parte for revel e não dever ser notificada nos termos do artigo 249.º, o prazo de interposição corre desde a publicação da decisão, exceto se a revelia da parte cessar antes de decorrido esse prazo, caso em que a sentença ou despacho tem de ser notificado e o prazo começa a correr da data da notificação.
3 - Tratando-se de despachos ou sentenças orais, reproduzidos no processo, o prazo corre do dia em que foram proferidos, se a parte esteve presente ou foi notificada para assistir ao ato.
4 - Quando, fora dos casos previstos nos números anteriores, não tenha de fazer-se a notificação, o prazo corre desde o dia em que o interessado teve conhecimento da decisão.
5 - Em prazo idêntico ao da interposição, pode o recorrido responder à alegação do recorrente.
6 - Na sua alegação, o recorrido pode impugnar a admissibilidade ou a tempestividade do recurso, bem como a legitimidade do recorrente.
7 - Se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias.
8 - Sendo requerida pelo recorrido a ampliação do objeto do recurso, nos termos do artigo 636.º, pode o recorrente responder à matéria da ampliação, nos 15 dias posteriores à notificação do requerimento.
9 - Havendo vários recorrentes ou vários recorridos, ainda que representados por advogados diferentes, o prazo das respetivas alegações é único, incumbindo à secretaria providenciar para que todos possam proceder ao exame do processo durante o prazo de que beneficiam”.
Não tendo o presente processo natureza urgente, nem tendo sido interposto nos termos previstos nos artigos 644.º, n.º 2 ou 677.º do CPC e tendo o recorrente visado impugnar matéria de facto, o prazo de recurso a considerar é o de 40 dias.
O prazo para interposição do recurso conta-se a partir da notificação da decisão (cfr. n.º 1 do artigo 638.º do CPC).
Conforme resulta dos factos pertinentes para a apreciação da questão em apreço, o recorrente, por requerimento e alegações apresentadas em juízo em 26-03-2023, veio interpor recurso da sentença prolatada em 12-12-2022.
Esta decisão foi notificada ao autor, por ofício de 14-12-2022.
A notificação referida no parágrafo precedente tem-se por efetuada em 19-12-2022 – cfr. artigos 132.º, n.º 2, 138.º, 139.º, 247.º e 248.º do CPC.
Sucede que, nessa data, a então Patrona do autor apresentou requerimento de escusa do patrocínio.
Por ofício datado de 12-01-2023, a Ordem dos Advogados comunicou ao presente processo ter deferido o pedido de escusa e procedido à nomeação de novo patrono ao autor, que foi notificado nessa data.
Em 26-01-2023, foi formulado nos autos pelo Patrono nomeado requerimento para que fosse disponibilizada a gravação dos depoimentos prestados em audiência, pretensão reiterada em 27-01-2023.
Conforme cota de 31-01-2023, a referida gravação foi disponibilizada ao autor.
Sucede que, em 13-02-2023, foi apresentado nos autos novo requerimento de escusa do patrocínio do autor.
Em 15-02-2023, a Ordem dos Advogados comunicou aos autos que procedeu à notificação do novo patrono, notificado de tal nomeação nessa data.
Ora, para a decisão da questão em apreço interessa ter presente o que se dispõe no artigo 34.º - com a epígrafe “Pedido de escusa” - da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho (Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais), com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º. 47/2007, de 28 de agosto:
“1 - O patrono nomeado pode pedir escusa, mediante requerimento dirigido à Ordem dos Advogados ou à Câmara dos Solicitadores, alegando os respectivos motivos.
2 - O pedido de escusa, formulado nos termos do número anterior e apresentado na pendência do processo, interrompe o prazo que estiver em curso, com a junção dos respectivos autos de documento comprovativo do referido pedido, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 24.º
3 - O patrono nomeado deve comunicar no processo o facto de ter apresentado um pedido de escusa, para os efeitos previstos no número anterior.
4 - A Ordem dos Advogados ou a Câmara dos Solicitadores aprecia e delibera sobre o pedido de escusa no prazo de 15 dias.
5 - Sendo concedida a escusa, procede-se imediatamente à nomeação e designação de novo patrono, excepto no caso de o fundamento do pedido de escusa ser a inexistência de fundamento legal da pretensão, caso em que pode ser recusada nova nomeação para o mesmo fim.
6 - O disposto nos n.ºs 1 a 4 aplica-se aos casos de escusa por circunstâncias supervenientes”.
Salienta Salvador da Costa (O Apoio Judiciário; 8.ª ed., Almedina, 2012, pp. 202-203), a respeito do referido 34.º, que:
“Prevê o n.º 2 deste artigo uma das consequências jurídicas do pedido de escusa formulado pelo patrono nomeado para o patrocínio na pendência da ação, e estatui que a junção ao processo do documento comprovativo da sua formulação interrompe o prazo que estiver em curso e que se aplicará o disposto no n.º 5 do artigo 24.º deste diploma (…).
A aplicação, na espécie, do disposto no n.º 5 do artigo 24.º desta Lei significa que o prazo que estiver em curso aquando da apresentação do pedido de escusa pelo patrono se reinicia com a notificação ao requerente do patrocínio e ao novo patrono nomeado da sua designação (…)”.
De facto, nos termos do artigo 24.º, n.º 5, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, o prazo que estiver em curso é objeto de interrupção.
Assim, o prazo que estiver em curso, “começa a correr por inteiro a partir da notificação da decisão” (cfr., Salvador da Costa; O Apoio Judiciário; 8.ª ed., Almedina, 2012, p. 155), que conhecer do apoio judiciário.
Ou seja: “A interrupção inutiliza o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo, ou seja, o prazo “inicia” a partir da notificação do patrono nomeado da sua designação (art.º 24º n.º 4 e 5 al. a) da Lei 34/2004 de 29/07).” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-05-2022, Pº 76987/21.4YIPRT-A.E1, rel. ANABELA LUNA DE CARVALHO).
Pode sintetizar-se o referido, nos seguintes termos: A junção ao processo do documento comprovativo da formulação de pedido de escusa pelo patrono, nomeado ao abrigo de apoio judiciário, interrompe o prazo que estiver em curso, o qual começará a correr por inteiro a partir da notificação da decisão que aprecie tal escusa – cfr. artigos 34.º, n.º 2 e 24.º, n.º 5, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho (Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais), com a redação conferida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto.
Ora, como se viu, em 15-02-2023, a Ordem dos Advogados comunicou ter procedido à notificação do novo patrono do autor, notificado de tal nomeação, nessa data.
Assim, o autor poderia apresentar recurso de apelação da decisão recorrida até 27-03-2023.
O requerimento de interposição de recurso, acompanhado da respetiva alegação, apresentado em 26-03-2023, antes do decurso do prazo de 40 dias, que reiniciou, integralmente, a sua contagem em 15-02-2023, é, pois, tempestivo.
A questão prévia atinente à arguida extemporaneidade do requerimento de interposição do recurso merece, pois, resposta negativa, não sendo extemporânea a respetiva interposição.

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II) Impugnação da decisão de facto:

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B) Se o recurso atinente à impugnação da matéria de facto deve ser rejeitado, por inobservância do disposto no artigo 640.º do CPC?
Estatuem os n.ºs 1 e 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil, sobre os poderes vinculados da Relação, o seguinte:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2- A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Para que a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso ocorra deve, previamente, o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir os ónus a seu cargo, plasmados no artigo 640.º do CPC, preceito onde se dispõe que:
“1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efetivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois, só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no artigo 639.º, n.º 3 do CPC (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC (de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exatidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob ---pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art.º 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Como resulta do n.º 1 do já citado artigo 640.º do CPC, no caso de impugnação sobre a decisão de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, bem como, os concretos meios de prova que impunham diversa decisão, indicando a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre tais questões de facto.
De acordo com o previsto no n.º 2 do mesmo artigo, quando os meios de prova invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, cabe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso na parte respetiva, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso (sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Do mesmo modo, se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-04-2018 (processo 1716/15.2T8BGC.G1, relatora MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO) escrevendo-se o seguinte:
“1. O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
2. Ao impor tal artigo um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância.
3. Ao cumprimento do ónus da indicação dos concretos meios probatórios não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação do que possam ter dito ou impugnar de forma meramente genérica os factos em causa, devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise, indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4.
4. Se o recorrente não cumpre tais deveres, não é exigível ao Tribunal que aprecia o recurso que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique concretos erros de julgamento da peça recorrida que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Refira-se, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-06-2018 (Processo 123/11.0TBCBT.G1, rel. JORGE TEIXEIRA) concluindo que: “Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivá-lo através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão dissemelhante da que foi proferida pelo tribunal “a quo”. Nestas situações, não podendo o Tribunal da Relação retirar as consequências que a impugnação da matéria de facto, deve entender-se que essa omissão impõe a rejeição da impugnação do pertinente recurso, por não cumprimento dos ónus estabelecidos no art.º 640º do CPC e consequente inviabilização do cumprimento do princípio do contraditório por parte do recorrido, quando a esses pontos da matéria de facto não concretizados”.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-09-2012 (processo 245/09.8 GBACB.C1, relator BRÍZIDA MARTINS): “O recorrente que queira impugnar a matéria de facto tem que (…) indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência”.
Assim, pode concluir-se que, “como decorre do art.º 640.º do CPC o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objecto do recurso” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-09-2018, Pº 2611/12.2TBSTS.L1.S1, rel. SOUSA LAMEIRA).
De todo o modo, de harmonia com o princípio da prevalência da substância pela forma a que se refere o artigo 6.º do vigente CPC (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2018, p. 32, nota 5), tem-se admitido que, se da conjugação da motivação e das conclusões é viável a percepção de quais os pontos da matéria de facto impugnados, não deverá ter lugar a rejeição da impugnação: “Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640º do CPC, os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal. Tendo a recorrente identificado, no corpo das alegações e nas conclusões, os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, identificando e transcrevendo parcialmente os depoimentos das testemunhas, em conjugação com a prova documental, que, no seu entender, impõem decisão diversa e retirando-se da leitura das alegações e conclusões, qual a decisão que deve ser proferida a esse propósito, mostra-se cumprido, à luz da orientação atrás referida, o ónus de impugnação previsto no artigo 640º do CPC” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2020, Pº 274/17.8T8AVR.P1.S1, rel. ILÍDIO SACARRÃO MARTINS, na linha do Acórdão do mesmo Tribunal de 12-07-2018, Pº 167/11.2TTTVD.L1.S1, rel. FERREIRA PINTO).
Sobre a indicação concreta de meios de prova que se pretendem utilizar, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2018 (Processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2, rel. GONÇALVES ROCHA) decidiu que: “A alínea b), do nº 1, do art.º 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.
E, conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015 (Processo 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), não observa o ónus legalmente exigido, “o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”.
Quanto ao ónus previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, a jurisprudência entendia que, “limitando-se o Recorrente a afirmar, tanto na alegação como nas conclusões, que, face aos concretos meios de prova que indica, “se impunha uma decisão diversa”, relativamente às questões de facto que impugnara, deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por não cumprimento do ónus processual fixado na alínea c), do n.º 1 do artigo 640º, do CPC” (cfr., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2018, Pº 1474/16.3T8CLD.C1.S1, rel. FERREIRA PINTO e do Tribunal da Relação do Porto de 10-01-2019, Pº 126528/16.6YIPRT.P1, rel. CARLOS PORTELA).
Presentemente, haverá que, todavia, ter em conta o entendimento formulado no Acórdão do STJ n.º 12/2023, de 14 de novembro, em recurso para uniformização de jurisprudência, decidindo que: “Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa”.
Finalmente – refira-se – que, conforme se deu nota no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2018 (Pº 552/13.5TTVIS.C1.S1, rel. PINTO HESPANHOL): “A rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto prevista no n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil não está dependente da observância prévia do princípio do contraditório. Para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorretamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre tais pontos de facto”.
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Ora, no caso, o impugnante – na motivação das alegações do recurso que apresentou – enunciou, singelamente, o seguinte:
“3º Do depoimento da testemunha PP, contabilista certificado da FNAC – ficheiro 103629, do minuto 04,45 s ao minuto 12,16 s, constam as seguintes afirmações:
- “…. Houve um documento emitido em 2017, com nome e NIF, onde constava um pagamento de cartão bancário…”;
- “…São documentos da base de dados da Fnac…”;
- “…era um documento de março de 2017 no valor de 240 euros…”
- “…. Tem correspondência com lista de conta cartão…”,
- “…a única transação em que indicou o seu NIF foi apenas esta…”,
- “… é aquilo que consta no site da AT…”.
4º Deste depoimento, tido pelo tribunal “a quo” como idóneo para prova dos factos, resulta inequivocamente:
a) que o A., desde 07.11.2014 apenas efetuou uma transação com o seu NIF no valor de 240 euros, em março de 2017.
b) Que o documento referente a essa transação se encontra arquivado fisicamente em Palmela, numa entidade contratada pela Fnac para guardar por 10 anos os documentos, por razões fiscais.
c) Que apenas por consulta ao site da AT foi possível à Ré Fnac obter o comprovativo dessa transação, pelo que o mesmo, necessariamente já não consta do sistema informático da Fnac.
d) Que, para além dessa transação, a Fnac apenas dispõe do registo de movimentos no serviço de bilheteira, por via do uso do cartão de fidelização.
e) Que essas transações em que o cartão cliente teve utilidade, foram efetuadas como mera venda a dinheiro sem indicação de NIF, ou seja, como consumidor final.
5º Tal corrobora a legitimidade da pretensão do A., também explicitada no seu depoimento na Audiência de Julgamento., quando afirma que usava o cartão de fidelização apenas (entenda-se, essencialmente) para aquisição de bilhetes de espetáculos. Ou seja,
6º O A., manteve com a Fnac, no essencial, com exceção de uma operação única em 2017, uma relação de serviço de bilheteira, onde usufruía de isenção de comissão pelo facto de ter aderido ao cartão de fidelização.
7º Donde resulta, necessariamente, que pelos motivos expressos nos artigos precedentes, não existe fundamento para que a Fnac mantenha os dados do A., uma vez denunciado o contrato do cartão de fidelização.
8º Uma coisa é manter em arquivo documentos com relevância fiscal, como são as faturas.
9º Outra completamente diferente é pretender manter os dados do ex-cliente num registo de cartões de fidelização, quando o cliente solicita o esquecimento desses dados, que não são relevantes fiscalmente. Ou seja, dito de outro modo,
10º Uma questão é a necessidade de guardar o documento de 2017 durante 10 anos, outra completamente diferente é a falta de necessidade de manter os dados do A., uma vez resolvido o contrato que o ligava à Ré Fnac.
11º Da apreciação da prova resultante do depoimento da testemunha PP, deverão constar como factos provados as questões inerentes que são relevantes para a boa decisão da causa.
12º Estes factos são relevantes para determinar a legitimidade de serem guardados os dados do A., nos sistemas informáticos e físicos das RR., retirando-se todas as devidas conclusões. Porquanto,
13º Quanto à Ré Fnac, por questões de legalidade fiscal, é admissível a manutenção do arquivo físico da fatura de 25.03.2017, onde constam os dados do A., até que se decorram 10 anos.
14º Mas já não é legitimo e legal, por violar o RGPD, que no sistema de gestão dos cartões de fidelização da Fnac se mantenham os dados do A., que não têm qualquer relevância fiscal, uma vez que apenas demonstram transações de consumidor final sem identificar o A..
15º A denúncia ou não renovação do cartão de fidelização tem de ter como consequência a retirada dos dados do seu titular do sistema de gestão de cartões da Fnac, que, de resto, nem sequer é o sistema legal de faturação. É um sistema complementar ao sistema de faturação a que correspondem bases de dados diferentes.
16º Como afirmou a testemunha PP, para a Fnac aferir se tinham existido movimentos do A., teve de recorrer à base de dados da AT. Certamente porque não dispunham desses dados no sistema de faturação da Fnac. E o original da fatura já está arquivado fisicamente.
17º E quanto aos demais movimentos, esses constam do sistema complementar de gestão dos cartões de fidelização e não estão sujeitos a guarda por 10 anos.
18º Pelo que, andou mal o Douto Tribunal “a quo” quando não detetou esta diferença de questões legais e analisou tudo sem cuidar de diferenciar as situações.
19º No que respeita à Ré Caixa Bank não se vislumbra quaisquer motivos que justifiquem a manutenção de dados deste cliente da Fnac.
20º Uma vez que com a Ré Caixa Bank não se chegou a efetuar qualquer transação, não se antevê porque motivo ainda agora essa entidade mantém dados do A., dados que não devia dispor, se como se alegou o acesso aos mesmos só se fazia por via do espelho dos ficheiros da Ré Fnac.
21º Se como foi alegado e aceite pelo tribunal, esta Ré apenas teve acesso limitado aos dados do A., para efeitos de gestão do cartão de fidelização.
22º E se, como alegado pela Ré o acesso aos dados do cartão de fidelização da Fnac, relativos ao A., apenas se deu enquanto a Fnac os manteve no seu sistema, que era acedido pelo Caixa Bank, via espelho, então por que motivo e com que fundamento o A., ainda consta como cliente?
23º Como é que o A., ainda é tido como cliente no sistema do Caixa Bank, quando ele nunca abriu lá qualquer conta, nunca lá fez movimentos – depósitos, créditos, depósitos, investimentos, de qualquer natureza. Note-se que o contrato do Caixa Bank com a Fnac só foi concretizado em 2019 e não existem dados de movimentos de faturação ao A., desde 2017.
24º Resulta claro, dos autos, que o Tribunal “a quo” mal apreciou a prova e concluiu de maneira errada a apreciação do pleito, impondo-se, pelo exposto, a revisão da douta sentença prolatada no sentido do A., ver judicialmente reconhecido o seu direito ao apagamento de dados nas bases de dados das RR..
25º Nada dos restantes depoimentos iludem as presentes apreciações, pelo que não são relevantes para a boa decisão das questões centrais da causa.
26º O depoimento da Dra. AC, DPO da Fnac desde 2019, presta assessoria de compliance e a proteção de dados, refere, aliás informação útil que, se bem apreciada, corrobora plenamente a legitimidade da pretensão do A..
27º Gravação 104956, do minuto 10,16 s ao minuto 23,55 s.
- “…a regra é nós não transmitimos dados…”
- “…neste caso o que existiu foi uma alteração de entidade gestora, o Caixa Bank substituiu o Cetelem...”
- “…não é uma base de dados de todos os dados, só os estritamente necessários que tinham de transitar para a sociedade gestora, esta não tem acesso à base total de dados … só ao nome NIF e morada essencialmente…”
- “…havia aviso prévio de cobrança, depois aviso de cobrança, a entidade gestora está a atuar em nome e por conta da Fnac para fazer processo de cobrança…”
- “…a primeira coisa que fazemos é cancelar o cartão e apagar os dados da base de dados. Não iria existir tratamento de dados pela Fnac…”
- “…limpeza de base de dados…”
- “…não temos legitimidade para guardar dados do cliente…”
28º Depoimento de MN, gestor de projeto, gravação 111540, minutos 02,31 s a minutos 0.35 s, sob a aplicação da base de dados.
- “…é um processo simples de dados de aderentes fornecido pela Fnac para nós fazermos a gestão do programa…”;
- “…a informação necessária é o email, a morada, IBAN……não temos acesso à base de dados da Fnac... só a estes dados ….”;
- “…a base de dados espelho só tem os clientes que estão ativos… ficheiro noturno elimina os dados dos aderentes que deixaram de o ser… deixam de estar ativos… não sabemos quais são os aderentes … nem quais os aderentes que têm de pagar no próximo mês…”.
29º Também este depoimento nada contradiz a causa de pedir do A., e também não explica por que motivo e como é que o A., ainda consta da base de dados da Ré Caixa Bank.
30º Existem, pelo exposto, diversas questões que não foram devidamente esclarecidas pelo Tribunal e que obstam a uma boa apreciação e decisão sob a causa.
31º Também não andou bem o Douto Tribunal “a quo” quando recusou que se realizasse a perícia demandada pelo A., consistente em que um oficial de justiça comprovasse “in loco” junto das entidades o apagamento dos seus dados. Pois,
32º Se tal se tem concretizado, provavelmente a situação que ainda hoje se verifica na 2ª Ré já não subsistiria (…)”.
E, nas conclusões da apelação limitou-se o autor a invocar que lhe assiste o direito ao apagamento dos seus dados, quer na base de dados dos cartões de fidelização da Fnac, quer no sistema do Caixa Bank, inexistindo motivos que o impeçam, nos termos que concretizou, sem efetuar qualquer alusão a qualquer questão ou ponto atinente à impugnação da matéria de facto.
Conforme decorre das considerações antecedentes, o apelante tece diversas afirmações relacionadas com a prova produzida, bem como, sobre decisões proferidas nos autos – que não foram objeto de oportuna impugnação – considerando, genericamente, que “Da apreciação da prova resultante do depoimento da testemunha PP, deverão constar como factos provados as questões inerentes que são relevantes para a boa decisão da causa”.
Convoca, igualmente, outros meios de prova, mas deles não tira alguma consequência para o julgamento da matéria de facto, sendo que, tal impugnação, embora significando uma declaração de vontade da apelante no sentido de colocar em crise a matéria de facto aquilatada pelo Tribunal recorrido, não comporta, nem a indicação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, nem, igualmente, a decisão que, em alternativa, deveria ser proferida.
Conforme refere Abrantes Geraldes, (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pp. 199-200) impõe-se a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto”, designadamente quando se verifique “(…) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; (…) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); (…) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação (…)”, concluindo que, a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
A impugnação de facto deduzida pelo apelante, por não observar os ónus de impugnação consignados nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, não passa de “mera manifestação de inconsequente inconformismo”, sobre o resultado probatório alcançado pelo Tribunal.
Em suma: Verificando-se, relativamente à impugnação de facto deduzida pelo apelante, a falta de posição expressa sobre o resultado pretendido e sobre os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados – não se mostrando, por isso, observados os ónus de impugnação consignados nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC – a impugnação da matéria de facto deve ser rejeitada.
O supra exposto conduz, inelutavelmente, a que deva ser rejeitado o recurso, nos segmentos em que visou colocar em crise a matéria de facto aquilatada pelo Tribunal recorrido, circunscrevendo-se, desse modo, o objeto do recurso à apreciação da impugnação da matéria de direito deduzida na decisão recorrida.

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III) Impugnação da decisão de direito:

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C) Se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por decisão que condene as rés ao apagamento dos dados do autor e ao pagamento da indemnização por aquele peticionada?
Nos termos da sentença recorrida, o Tribunal de 1.ª instância, veio a julgar improcedente a ação, tendo absolvido as rés dos pedidos por aquele formulados.
Elencaram-se na decisão recorrida, como questões a decidir, as de saber “qual o contrato celebrado entre o Autor e a 1.a Ré”, “da ilicitude do tratamento de dados pessoais do Autor pelas Rés”, “da ilicitude do comportamento da 1.a Ré ao manter os dados pessoais do Autor após a denúncia do contrato” e “se assiste ao Autor o direito a ser indemnizado pelas Rés”.
E, depois de efetuar a seleção factual - com a enunciação dos factos considerados como provados e não provados e de indicar a respetiva motivação, acerca de tal seleção - a decisão recorrida procedeu à aplicação do Direito, assinalando o Tribunal recorrido que, em face da factualidade provada, “o Autor cedeu à 1.ª Ré os seus dados pessoais - nome completo, data de nascimento, sexo, nacionalidade, número do cartão do cidadão, número de contribuinte, estado civil, o número de dependentes, a morada e o telemóvel – aquando da celebração do contrato mencionado em 1. [subscrito pelo autor em 07-11-2014], contrato que permitia ao Autor aderir ao Programa de Fidelização FNAC, acumulando pontos em função das compras de bens e de serviços efectuadas nas lojas exploradas pela FNAC, bem como beneficiar de todas as vantagens oferecidas aos aderentes em cada momento e realizar compras a crédito, obrigando-se, para tanto, o Autor a pagar um valor pela adesão a tal programa e pela renovação do contrato”.
Enquadrando a temática em apreço, à luz dos normativos dos artigos 17.º, 82.º, 4.º, 6.º, 13.º e 28.º do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016 (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, abreviadamente RGPD) e do artigo 21.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto (que veio assegurar a execução, na ordem jurídica nacional, do RGPD), o Tribunal recorrido apreciou o caso concreto, tecendo as seguintes considerações:
“No caso em apreço, quanto à cedência ilícita dos dados pessoais pela 1.ª Ré à 2.ª, resulta do teor da proposta assinada pelo Autor que este autorizou “a consulta, utilização e cedência dos dados pessoais disponibilizados, sob absoluta confidencialidade, à entidade gestora, Banco BNP Paribas Personal Finance, S.A. (Cetelem), ou outra que a FNAC venha a nomear, bem como a outras entidades terceiras de reconhecida idoneidade, para fins de informação e promoção de bens e serviços comercializados por estas entidades, bem como para a gestão do Programa de Fidelização FNAC”, sendo que não resultou provado que tivesse ocorrido qualquer cessão de posição contratual que impusesse a notificação do Autor nos termos do disposto no artigo 424.º do Código Civil. Por outro lado, do teor do contrato mencionado em 3. resulta que a 2.ª Ré foi subcontratada pela 1.ª Ré para realizar a gestão operacional do Cartão Fidelização, tal como anteriormente havia sido subcontratado o Banco BNP Paribas Personal Finance, S.A. (Cetelem). Deste modo, o tratamento de dados pessoais realizados pela 2.ª Ré em nome e por conta da 1.ª Ré, não só foi autorizado pelo Autor, como foi realizado licitamente, uma vez que a 2.ª Ré actua como subcontratante para efeitos de tratamento de dados no que respeita e na estrita medida da finalidade de gestão do programa de fidelização da 1.ª Ré. Acresce que, como resulta dos normativos citados, a 1.ª Ré apenas estava obrigada a facultar ao Autor, aquando da recolha de dados, a informação da categoria de destinatários dos dados pessoais, o que fez. Donde a carta enviada pela 2.ª Ré ao Autor e o prévio acesso ao nome e morada deste para o efeito não pode ser considerado como cedência ilícita de dados pessoais, já que tal carta limitou-se a cobrar o valor devido pela renovação do contrato de fidelização, ou seja, o tratamento de dados ocorreu para a finalidade para que foi autorizado, sendo que, não obstante o Autor mencione que não autorizou que lhe fosse enviadas comunicações de marketing directo e assim resulte do contrato, certo é que, para além da mencionada carta, que não constitui marketing, o Autor não alega que lhe tivesse sido dirigida qualquer outra comunicação com esse teor. De referir ainda que, constando do contrato mencionado em 1. a autorização a que se aludiu, a subcontratação de entidade distinta do Banco BNP Paribas Personal Finance, S.A. (Cetelem), como entidade gestora do Programa de Fidelização, não se traduz em alteração do contrato, uma vez que aquele já prevê tal possibilidade ao mencionar a faculdade de a 1.ª Ré nomear outra entidade.
quanto ao direito ao apagamento dos dados pessoais, como se disse, consagrando o artigo 17.º do regulamento tal direito, tal direito não se aplica “na medida em que o tratamento se revele necessário” “Ao cumprimento de uma obrigação legal que exija o tratamento prevista pelo direito da União ou de um Estado-Membro a que o responsável esteja sujeito” (alínea b) do n.º 3) e “ Para efeitos de declaração, exercício ou defesa de um direito num processo judicial” (alínea e) do n.º 3).
Ora, tendo ficado demonstrado que o Autor efectuou aquisições com o cartão de fidelização nas lojas da 1.ª Ré pelo menos até Março de 2017, não obstante ter feito cessar o contrato, mantém a 1.ª Ré o dever de conservar os dados do Autor para efeitos fiscais (vide artigo 52.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado), bem como para efeitos de defesa em processo judicial, como, aliás, demonstra a presente acção, direito de conservação que está, igualmente, consagrado no artigo 21.º da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, já citado, sendo que ficou demonstrado que a 2.ª Ré não tem acesso a dados pessoais do Autor desde a data em que a 1.º Ré cancelou o cartão, pelo que improcede o primeiro pedido formulado pelo Autor.
Por outro lado, não se verificando a violação das normas do regulamento citado por qualquer das Rés, nem a prática de qualquer facto ilícito, não assiste também ao Autor o direito a ser indemnizado nos termos peticionados, improcedendo, assim, na totalidade a acção”.
Impugnando esta decisão, o autor, ora apelante, limita-se a invocar que:
“(…) 34º No caso sub judice os dados pessoais deixaram de ser necessários para a finalidade em que foram obtidos e os mesmos podem e devem ser apagados (eliminados) das bases de dados onde constem. Porquanto,
35º A finalidade de preservação por razões fiscais já está preservada e não requer que a Ré Fnac se mantenha na posse dos dados, como aliás confirmou a EPD em Juízo, no seu depoimento.
36º A finalidade de prossecução de ação judicial também já está assegurada pelo presente pleito, como a EPD afirmou.Pelo que,
Nada obsta a que o titular dos dados veja os mesmos serem comprovadamente eliminados.
38º Legislação essa que, igualmente determina que é legitimo que seja arbitrada uma indemnização/compensação ao A., como pedido ao Tribunal, pelo não apagamento em tempo útil dos seus dados”.
Ora, como se verá, estas considerações não permitem alterar a decisão recorrida, que – adiante-se – não merece algum reparo.
Vejamos:
Visava o autor a condenação das rés ao apagamento dos seus dados em poder das rés e ao pagamento da indemnização por aquele peticionada.
Apurou-se que o autor, em novembro de 2014, subscreveu o contrato a que se reporta o documento n.º 1 junto com a petição inicial, que lhe permitia aderir ao Programa de Fidelização FNAC, acumulando pontos em função das compras de bens e de serviços efetuadas nas lojas exploradas pela FNAC, bem como de beneficiar das vantagens oferecidas aos aderentes em cada momento e realizar compras e crédito, obrigando-se o autor a pagar um valor pela adesão a tal programa e pela renovação do contrato.
Nos termos constantes de tal documento – cfr. condição n.º 9, com a epígrafe “PROTECÇÃO DOS DADOS PESSOAIS” – consta, nomeadamente, que “o TITULAR autoriza que os seus dados pessoais recolhidos pela FNAC sejam processados e armazenados informaticamente, destinando-se à análise e gestão do Programa de Fidelização e à execução de ações de marketing direto, através de qualquer canal de comunicação (…)” (cfr. ponto 9.1) e que o “TITULAR autoriza igualmente a consulta, a utilização e a cedência dos dados pessoais disponibilizados, sob absoluta confidencialidade, à entidade gestora, Banco BNP Paribas Personal Finance, S.A (Cetelem), ou outra que a FNAC venha a nomear, bem como a outras entidades terceiras de reconhecida idoneidade, para fins de informação e promoção dos bens e serviços comercializados por estas entidades, bem como para a gestão do Programa de Fidelização FNAC (…)” (cfr. ponto 9.2), sendo ainda reconhecido o direito de correção e/ou eliminação “do seu nome e morada em ficheiros de endereços para ações de marketing direto” (cfr. ponto 9.3).
A temática da proteção de dados pessoais tem determinado, nos últimos tempos, destacado interesse a que não se alhearam o legislador nacional e comunitário.
Assim, a nível europeu, foi aprovado o já referenciado Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016 (RGPD), que veio estabelecer “as regras relativas à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados”, visando defender “os direitos e as liberdades fundamentais das pessoas singulares, nomeadamente o seu direito à proteção dos dados pessoais” (cfr. artigo 1.º, n.ºs. 1 e 2).
Por “dados pessoais” entende-se a “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular” (cfr. artigo 4.º, n.º 1, do RGPD).
Enunciam-se no artigo 5.º do RGPD – e com desenvolvimento nos artigos seguintes do Regulamento - os princípios fundamentais a que obedece o tratamento de dados pessoais:
“1. Os dados pessoais são:
a) Objeto de um tratamento lícito, leal e transparente em relação ao titular dos dados («licitude, lealdade e transparência»);
b) Recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas e não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com essas finalidades; o tratamento posterior para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, não é considerado incompatível com as finalidades iniciais, em conformidade com o artigo 89.º, n.º 1 («limitação das finalidades»);
c) Adequados, pertinentes e limitados ao que é necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados («minimização dos dados»);
d) Exatos e atualizados sempre que necessário; devem ser adotadas todas as medidas adequadas para que os dados inexatos, tendo em conta as finalidades para que são tratados, sejam apagados ou retificados sem demora («exatidão»);
e) Conservados de uma forma que permita a identificação dos titulares dos dados apenas durante o período necessário para as finalidades para as quais são tratados; os dados pessoais podem ser conservados durante períodos mais longos, desde que sejam tratados exclusivamente para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, em conformidade com o artigo 89.º, n.º 1, sujeitos à aplicação das medidas técnicas e organizativas adequadas exigidas pelo presente regulamento, a fim de salvaguardar os direitos e liberdades do titular dos dados («limitação da conservação»);
f) Tratados de uma forma que garanta a sua segurança, incluindo a proteção contra o seu tratamento não autorizado ou ilícito e contra a sua perda, destruição ou danificação acidental, adotando as medidas técnicas ou organizativas adequadas («integridade e confidencialidade»);
2. O responsável pelo tratamento é responsável pelo cumprimento do disposto no n.º 1 e tem de poder comprová-lo («responsabilidade»)”.
O RGPD consagra diversos direitos do titular dos dados, entre os quais, os relacionados com regras de transparência pelo tratamento das informações, das comunicações e das regras para o exercício de direitos pelos titulares (cfr. artigo 12.º do RGPD), com a informação (cfr. artigos 13.º e 14.º do RGPD), com o acesso do titular dos dados (cfr. artigo 15.º do RGPD), bem como, entre outros, de retificação e apagamento (cfr. artigo 16.º e ss. do RGPD).
O direito ao “apagamento de dados” concretiza um dos principais objetivos do RGPD, designadamente, o de assegurar um alto nível de proteção de dados, dotando os titulares de dados pessoais de poder efetivo sobre os seus próprios dados, reconhecendo-lhes o direito de controlo dos dados pessoais e de eliminação dos dados, caso o titular assim o entenda, nomeadamente, quando as finalidades pelas quais foram recolhidos, tenham sido atingidas.
Tal direito surge, no direito europeu, na sequência da decisão tomada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia de 13-05-2014 (Pº C-131/12) - ainda à luz da pretérita Diretiva n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24-10-1995 - na qual se concluiu que “o operador de um motor de busca é obrigado a suprimir da lista de resultados, exibida na sequência de uma pesquisa efetuada a partir do nome de uma pessoa, as ligações a outras páginas web publicadas por terceiros e que contenham informações sobre essa pessoa, também na hipótese de esse nome ou de essas informações não serem prévia ou simultaneamente apagadas dessas páginas web , isto, se for caso disso, mesmo quando a sua publicação nas referidas páginas seja, em si mesma, lícita”.
O direito ao apagamento dos dados consta previsto no artigo 17.º do RGPD, onde se consagra que:
“1. O titular tem o direito de obter do responsável pelo tratamento o apagamento dos seus dados pessoais, sem demora injustificada, e este tem a obrigação de apagar os dados pessoais, sem demora injustificada, quando se aplique um dos seguintes motivos:
a) Os dados pessoais deixaram de ser necessários para a finalidade que motivou a sua recolha ou tratamento;
b) O titular retira o consentimento em que se baseia o tratamento dos dados nos termos do artigo 6.º, n.º 1, alínea a), ou do artigo 9.º, n.º 2, alínea a) e se não existir outro fundamento jurídico para o referido tratamento;
c) O titular opõe-se ao tratamento nos termos do artigo 21.º, n.º 1, e não existem interesses legítimos prevalecentes que justifiquem o tratamento, ou o titular opõe-se ao tratamento nos termos do artigo 21.º, n.º 2;
d) Os dados pessoais foram tratados ilicitamente;
e) Os dados pessoais têm de ser apagados para o cumprimento de uma obrigação jurídica decorrente do direito da União ou de um Estado-Membro a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito;
f) Os dados pessoais foram recolhidos no contexto da oferta de serviços da sociedade da informação referida no artigo 8.º, n.º 1”.
Nos termos da epígrafe deste preceito equipara-se a designação direito ao apagamento dos dados, com o “direito ao esquecimento”.
Contudo, conforme assinala Vítor Palmela Fidaldo (“Artigo 17.º - Anotação”, in António Barreto Menezes Cordeiro; Comentário ao Regulamento Geral de Proteção de Dados e à Lei n.º 58/2019, Almedina, 2021, p. 189), o referido artigo consagra dois direitos: O direito ao apagamento “stricto sensu”, previsto no n.º 1 e o direito “a ser esquecido”, estabelecido no n.º 2.
Conforme se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-05-2023 (Pº 12234/21.0T8LSB.L1-7, rel. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA):
“O direito ao esquecimento «pode ser definido como um direito fundamental de personalidade amparado no princípio da dignidade humana, segundo o qual o titular, pessoa individual ou coletiva, tem o direito à autodeterminação informativa, isto é, pode requerer o apagamento, retirada ou bloqueio da divulgação de dados, lícitos ou não, que lhe digam respeito, encontrados nos diversos meios de comunicação e que não tenham mais interesse público, judicial, histórico ou estatístico ou ainda que não sejam vedados por lei. Não se trata, portanto, de eliminar todas as referências a factos ocorridos no passado, mas apenas de evitar a exposição desnecessária e lesiva de acontecimentos desprovidos de interesse público atual. Exprime em suma um poder de autocontrolo dos próprios dados pessoais»”.
Dito por outras palavras, o direito ao esquecimento “é o direito que o indivíduo possui de não ser confrontado com o seu passado (como algo que disse ou fez) que, no seu entender, não corresponde mais à sua persona, e que, por tal, deverá ser esquecido da realidade online, assegurando-se, deste modo, um maior controlo sobre os dados que dizem diretamente respeito à sua pessoa” (assim, Gabriela Moreira Sá; “Direito ao Esquecimento – Um direito criado ex novum pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados?”, in Yearbook, [em linha], Coord. de Raquel Carvalho e Catarina Santos Botelho, Vol. 2, 2019, Universidade Católica, Porto, p. 12).
Assim, solicitado que seja o exercício do referido direito ao apagamento, o responsável pelo tratamento terá, por sua vez, a obrigação de apagar os dados pessoais, sem demora injustificada, nomeadamente quando o titular retire o consentimento em que se tinha baseado o tratamento dos seus dados e se não existir outro fundamento jurídico para a manutenção do referido tratamento (cfr., neste sentido, Mariana Pinto Ramos; “O consentimento do titular de dados no contexto da Internet”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. LXIII (2022), 1 e 2, p. 694).
De todo o modo, conforme bem assinala Tamára Cheles (“Os desafios dos consumidores na era de big data”, in Anuário da Proteção de Dados 2021, Coord. de Francisco Pereira Coutinho e Graça Canto Moniz, Universidade Nova de Lisboa, 2021, p. 169), podem colocar-se objeções práticas relativamente à obrigação de eliminação dos dados pessoais, designadamente, os que circulam na Internet ou no mundo virtual, em termos de aferição da “verdadeira possibilidade de deteção do efetivo paradeiro dos dados e a consequente impossibilidade de os eliminar: o legislador parece ter sido absorto à realidade quanto ao mundo digital e quanto à virtualidade dos dados pessoais” e quanto à “efetiva (im)possibilidade de apagar por completo os dados num espaço virtual sem fim”.
E, certo é que, não obstante exercido o direito de apagamento, o tratamento de dados poderá manter-se em determinadas circunstâncias.
De facto, nos termos do artigo 17.º, n.º 3, do RGPD, o prescrito nos n.ºs. 1 e 2 (este último, referente às medidas de informação a tomar pelo responsável do tratamento de dados, no caso de existência de obrigação de apagamento de dados – “esquecimento”) do mesmo artigo não se aplica “na medida em que o tratamento se revele necessário:
a) Ao exercício da liberdade de expressão e de informação;
b) Ao cumprimento de uma obrigação legal que exija o tratamento prevista pelo direito da União ou de um Estado-Membro a que o responsável esteja sujeito, ao exercício de funções de interesse público ou ao exercício da autoridade pública de que esteja investido o responsável pelo tratamento;
c) Por motivos de interesse público no domínio da saúde pública, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, alíneas h) e i), bem como do artigo 9.º, n.º 3;
d) Para fins de arquivo de interesse público, para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, nos termos do artigo 89.º, n.º 1, na medida em que o direito referido no n.º 1 seja suscetível de tornar impossível ou prejudicar gravemente a obtenção dos objetivos desse tratamento; ou
e) Para efeitos de declaração, exercício ou defesa de um direito num processo judicial”.
Ou seja: “A conservação dos dados pessoais será lícita se tal se revelar necessário para o exercício do direito de liberdade de expressão e informação, ou para o cumprimento de uma obrigação jurídica, para "o exercício de funções de interesse público ou o exercício da autoridade pública de que está investido o responsável pelo tratamento, por razões de interesse público no domínio da saúde pública, para fins de arquivo de interesse público, para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, ou para efeitos de declaração, exercício ou defesa de um direito num processo judicial"” (cfr. Pedro Trovão do Rosário; “O direito a ser esquecido”, in Revista do Direito Universidade de Santa Cruz do Sul, v. 3, n.º 53, set./dez. 2017, p. 135, texto consultado em: https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/4616/1/11367-47530-1-PB%20%281%29.pdf).
Nesta medida, a não eliminação de dados pessoais, ao abrigo de normas que autorizam ou impõem a sua conservação, não configurará a prática de um ilícito gerador de responsabilidade civil (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-05-2022, Pº 15308/18.0T8PRT.P1, rel. JOAQUIM MOURA).
No caso em apreço, para além da subscrição do aludido documento n.º 1, junto à petição inicial, pelo autor, que legitimava o tratamento de dados pessoais do autor, em razão da relação jurídica assim estabelecida, apurou-se que, em 01-08-2019, a 1.ª ré celebrou com a 2.ª ré, o acordo denominado “Contrato de Colaboração com Intermediação de Crédito” (junto com a contestação da 1.ª Ré como documento n.º 1), nos termos do qual, a 2.ª ré, de acordo com o Anexo V, passou a ser responsável por:
“(i) Emitir os cartões de fidelização FNAC provisórios e definitivos (Cartões FNAC, bem como as respetivas renovações, que permitem aos respetivos titulares (doravante, os “Clientes Fidelização”) beneficiar do Programa de Fidelização, de acordo com as indicações que lhe tenham sido prestadas pela FNAC a esse respeito.
(ii) Proceder ao débito das quantias acordadas entre a FNAC e os Clientes Fidelização relativamente à adesão ao Cartão FNAC.
(iii) Proceder ao envio, em papel ou outro suporte duradouro, do aviso de cobrança dos valores supra previstos aos Clientes Fidelização.
(iv) Proceder à custódia e ao arquivo dos contratos celebrados entre os Clientes Fidelização e a FNAC com vista à adesão por parte do primeiro ao Programa de Fidelização e respetivas autorizações de débito direto.
(v) Processar e tratar a correspondência enviada pelo CaixaBank Payments & Consumer a pedido da FNAC no âmbito da gestão operacional do Programa de Fidelização (...)”.
Mais ali se consignou, nomeadamente, que:
“(…) Quando estes dados deixarem de ser necessários para este efeito, o CaixaBank Payments & Consumer deve notificar imediatamente a FNAC (...) Obrigações do subcontratado (...) o CaixaBank Payments & Consumer utilizará os dados pessoais sujeitos a tratamento única e exclusivamente para a gestão operacional do Programa de Fidelização, não podendo, em caso algum, ser utilizados para fins próprios (...) o CaixaBank Payments & Consumer tratará os dados de acordo com as instruções da FNAC e abster-se-á de qualquer tratamento, seja de gravação, reprodução, utilização, conservação, etc., dos mesmos para finalidades distintas do estrito cumprimento da referida gestão operacional do Programa de Fidelização (...)”.
Para efeitos deste contrato, a 2.ª ré tem acesso a uma base de dados espelho da base de dados dos clientes do Cartão Fidelização da 1.ª Ré, apenas podendo aceder aos dados que lhe são facultados, através da base de dados espelho, pela 1.ª Ré.
No caso, a partir do momento em que o cliente denunciou o contrato relativo ao Cartão Fidelização, a 1.ª Ré bloqueou o acesso e utilização dos dados pessoais do cliente pela 2.ª Ré, sendo que, em 07-12-2020, a 1.ª ré confirmou ao autor ter cancelado o cartão.
Nessa data, o autor remeteu à 1.ª ré correio eletrónico, exigindo desta “resposta pronta e precisa dos meus dados fornecidos às duas entidades financeiras, sendo a última CaixaBank Payments que desconheço, não autorizei e nunca tive (nem quero) ter relações financeiras. Os meus dados devem ser eliminados. Relativamente aos meus dados na Fnac Portugal Lda os meus dados devem ser igualmente supridos e eliminados. Aguardo uma resposta ainda hoje. (...)”. O autor tinha sido interpelado, em 10-11-2020, pela 2.ª ré, para pagar € 15,00 pela renovação do cartão FNAC, mencionando na missiva de interpelação que “O CaixaBank Payments & Consumer (…) está encarregue de proceder à cobrança da comissão pelo Programa de Fidelização da FNAC, no âmbito da colaboração que ambas mantêm”.
Em 9 de Fevereiro de 2021, a 1.ª Ré enviou ao Autor comunicação por correio electrónico, no qual reiterava que “o Cartão Fnac indicado já se encontra cancelado, conforme nos foi solicitado”, informando que “(…) apenas poderá efectuar tratamento de dados decorrentes da relação estabelecida com a FNAC e na medida do estritamente necessário para garantir o cumprimento de obrigações legais e/ou contratuais a que a FNAC se encontra vinculada, nomeadamente para efeitos de comprovação dos registos contabilísticos e fiscais. Fora deste âmbito, a FNAC não efectuará tratamento de quaisquer dados que sejam titularidade de V.Exa.”.
Por correio electrónico de 9 de Fevereiro de 2021, o Autor comunicou à 1.a Ré que “eu não sou vosso cliente. Nunca recebi promoções (...) Eu não tenho compras na Fnac, como tal esses registos igualmente é uma falsa questão (...)”.
Mais se apurou que, após a denúncia do contrato pelo Autor, a 1.ª Ré bloqueou o acesso e utilização dos dados pessoais do Autor por parte da 2.a Ré.
Sucede que, ao invés do invocado pelo autor, na comunicação eletrónica de 09-02-2021, o autor realizou diversas aquisições de bilhetes para concertos na 1.ª Ré, utilizando o Cartão Fidelização, entre 2014 e até pelo menos 25 de Março de 2017.
Assim, ficando demonstrado que o autor efetuou operações com o cartão de fidelização nas lojas da 1.ª ré, até pelo menos, março de 2017 (adquirindo bilhetes – compras e vendas) à 1.ª ré assiste (sendo que, quanto à 2.ª ré, subcontratante – cfr. artigos 4.º, n.º 8, 28.º do RGPD, – a mesma, não tem acesso aos dados pessoais do autor desde a data em que a 1.ª ré cancelou o cartão) o direito a conservação dos dados respeitantes ao autor, em razão do estabelecimento de tais relações jurídicas e das consequências que delas advêm, se, nomeadamente, se mantiver a vigência das obrigações legais que determinam tal conservação.
Estabelece o artigo 21.º - sobre o prazo de conservação de dados pessoais – da Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto, que “o prazo de conservação de dados pessoais é o que estiver fixado por norma legal ou regulamentar ou, na falta desta, o que se revele necessário para a prossecução da finalidade” (n.º 1).
E, de acordo com o disposto no artigo 21.º, n.º 3, da Lei n.º 58/2019, “quando os dados pessoais sejam necessários para o responsável pelo tratamento, ou o subcontratante, comprovar o cumprimento de obrigações contratuais ou de outra natureza, os mesmos podem ser conservados enquanto não decorrer o prazo de prescrição dos direitos correspetivos”, sendo que, de acordo com a previsão do n.º 5 do mesmo artigo, “nos casos em que existe um prazo de conservação de dados imposto por lei, só pode ser exercido o direito ao apagamento previsto no artigo 17.º do RGPD findo esse prazo”.
A destruição ou anonimização dos dados pelo responsável pelo tratamento dos dados ocorrerá, “quando cesse a finalidade que motivou o tratamento, inicial ou posterior” (cfr. artigo 21.º, n.º 4, da Lei n.º 58/2019).
No caso, a 1.ª ré invocou a conservação dos dados para estritamente garantir o cumprimento de obrigações legais e/ou contratuais a que se encontra vinculada, “nomeadamente para efeitos de comprovação dos registos contabilísticos e fiscais”.
Ora, estabelece o artigo 125.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas que, “os sujeitos passivos com sede ou direção efetiva em território nacional, bem como aqueles que aí possuam estabelecimento estável, estão sujeitos às obrigações de faturação e de conservação de livros, registos e respetivos documentos de suporte nos termos previstos no Código do IVA e no Decreto-Lei n.º 28/2019, de 15 de fevereiro”.
Nesse sentido, prevê o artigo 52.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) que: 
“1 - Os sujeitos passivos são obrigados a arquivar e conservar em boa ordem durante os 10 anos civis subsequentes todos os livros, registos e respectivos documentos de suporte, incluindo, quando a contabilidade é estabelecida por meios informáticos, os relativos à análise, programação e execução dos tratamentos.
2 - Para os registos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 50.º e no artigo 51.º e documentos anexos, o prazo de 10 anos referido no número anterior deve ser contado a partir da data em que for efectuada a última das regularizações previstas nos artigos 24.º e 25.º
3 - A regulamentação do arquivo dos livros, registos e documentos de suporte consta de legislação especial”.
E o artigo 19.º do D.L. n.º 28/2019, de 15 de fevereiro (alterado pelo D.L. n.º 48/2020, de 3 de agosto) estatui que:
“1 - Os sujeitos passivos são obrigados a arquivar e conservar em boa ordem todos os livros, registos e respetivos documentos de suporte por um prazo de 10 anos, se outro prazo não resultar de disposição especial, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - Sempre que os sujeitos passivos exerçam direito cujo prazo é superior ao referido no número anterior, a obrigação de arquivo e conservação de todos os livros, registos e respetivos documentos de suporte mantém-se até ao termo do prazo de caducidade relativo à liquidação dos impostos correspondentes.
3 - Quando a contabilidade ou a faturação for estabelecida por meios informáticos, deve ser assegurado quanto aos respetivos registos o seguinte:
a) O seu armazenamento seguro durante o período legalmente estabelecido, através de:
i) Preservação em condições de acessibilidade e legibilidade que permitam a sua utilização sem restrições, a todo o tempo;
ii) Existência de controlos de integridade, impedindo a sua alteração, destruição ou inutilização;
iii) Abrangência dos dados que sejam necessários à completa e exaustiva reconstituição e verificação da fundamentação de todas as operações fiscalmente relevantes;
b) A sua acessibilidade e legibilidade pela AT da informação, através da disponibilidade de:
i) Funções ou programas para acesso controlado aos dados, independentemente dos sistemas informáticos e respetivas versões em uso no momento do processamento;
ii) Funções ou programas permitindo a exportação de cópias exatas para suportes ou equipamentos correntes no mercado;
iii) Documentação, apresentada sob forma legível, que permita a sua interpretação.
4 - A obrigação de conservação referida nos n.ºs 1 e 2 é extensiva à documentação relativa à análise, programação e execução dos tratamentos informáticos, e às cópias de segurança dos dados de suporte aos programas de faturação e contabilidade”.
Conforme resulta destes normativos, a 1.ª ré mantém, na atualidade, o direito de conservação dos documentos relevantes para fins fiscais, uma vez que, ainda, não decorreram desde a data das operações negociais com o autor (a última em 25 de março de 2017), os respetivos prazos de conservação dos documentos fiscais. E, consequentemente, assiste à 1.ª ré o direito a conservar – operando o respetivo tratamento – os dados pessoais do autor, sem que este possa fazer valer, com êxito, o direito ao apagamento de tais dados.
Em face do exposto, não se verifica alguma ilicitude no tratamento desses dados, nem ocorre fundamento que permita acolher, perante qualquer das rés, a tutela indemnizatória – com arrimo nos artigos 82.º do RGPD e 483.º do CC - pugnada pelo autor.
A questão colocada deverá, em consequência, receber resposta negativa.

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A apelação improcederá, com manutenção da decisão recorrida.

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De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
“Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.
Conforme se escreveu no Acórdão do STJ de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária incidirá, in totum, sobre o apelante, que decaiu integralmente na presente instância recursória – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC – sem prejuízo do apoio judiciário de que, presentemente, beneficia.

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5. Decisão:
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2.ª Secção Cível, em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que, presentemente, beneficia.
Notifique e registe.

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Lisboa, 25 de janeiro de 2024.
Carlos Castelo Branco
José Manuel Monteiro Correia
Rute Sobral