Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3315/21.0T8FNC-A.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
ARRENDAMENTO
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
DIVÓRCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (cf. artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
I. Incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, o seu destino é, em caso de divórcio, decidido por acordo dos cônjuges, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de um deles (na falta de acordo, a decisão cabe ao tribunal).
II. O acordo é homologado pelo juiz ou pelo conservador do registo civil e a decisão de homologação é notificada oficiosamente ao senhorio (artigo 1105.º, n.º 1, do CC, na redação da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro).
III. Caso o procedimento de divórcio tenha sido omisso quanto ao destino da casa de morada de família, o acordo entre os cônjuges é igualmente válido e eficaz, operando-se a concentração (ou transmissão, conforme o caso) nos termos acordados pelos mesmos; acordo que, em relação ao senhorio, é oponível a partir do momento em que lhe seja dado conhecimento do mesmo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
«A», embargante nos autos de execução contra si intentados por «E», entretanto falecida e substituída pelos herdeiros habilitados, «C» e «D», notificado da sentença proferida em 11 de julho de 2023, que julgou os embargos totalmente improcedentes, e com essa sentença não se conformando, interpôs o presente recurso.

Os autos tiveram origem em requerimento executivo proposto por «E», viúva, contra o ora embargante, alegando que este e «cônjuge», «B» (falecida em janeiro de 2021), foram seus arrendatários desde 2006 e não pagaram rendas desde 2014.
Com o requerimento executivo inicial, foram juntos os seguintes documentos:
- contrato de arrendamento de 01/05/2006, celebrado entre «F» e «E», na qualidade de proprietários e senhorios, e «A» e «B», na qualidade de arrendatários, tendo por objeto imóvel para habitação, designado por “Casa Norte”, registado na matriz predial sob o artigo n.º 4518, e sito na Rua «X», n.º …, Esmoriz;
- documento particular autenticado de confissão de dívida e plano de pagamento, de 05/06/2018, em que é declarante «B», que se confessa devedora a «F» e «E» da quantia de € 19.305,00, a título de rendas vencidas e não pagas, e se compromete a efetuar o pagamento da dívida em prestações mensais de €500,00, vencendo-se a primeira em 10/07/2018 e as seguintes nos meses seguintes;
- documento particular autenticado de confissão de dívida, de 26/06/2020, em que é declarante «B», que se confessa devedora a «E» da quantia de €18.505,00, por conta do remanescente do montante anteriormente em dívida, e se compromete a efetuar o pagamento até 30/03/2021;
- documento particular autenticado de confissão de dívida, de 29/06/2020, em que é declarante «B», que se confessa devedora a «E» da quantia de €6.375,00, por conta da mora no pagamento das rendas do imóvel locado desde fevereiro de 2019 a junho de 2020, e se compromete a efetuar o pagamento até 30/03/2021;
- carta de 04/03/2021, remetida por «E» a «A», não para o «local arrendado», mas para Rua «Y», n.º … esq., Funchal, com o assunto «mora no pagamento das rendas e créditos relacionados com a habitação» pela qual «E», através de advogado, invoca ser senhoria do destinatário e dele reclama rendas desde 2015;
- aviso de receção desta carta, efetivamente recebida pelo destinatário no local de destino, Rua «Y», n.º … esq., Funchal (não na casa que tinha sido objeto do contrato de arrendamento).

O executado deduziu os presentes embargos, alegando, além do mais, que antes das datas as que as reclamadas rendas se reportam, já o executado não habitava no local e o contrato de arrendamento tinha cessado por acordo entre os primitivos arrendatários e senhorios; pois, após dissolução do casamento do ora executado com a primitiva inquilina (sua ex-mulher «B»), os primitivos senhorios acordaram com aqueles na revogação do contrato junto aos autos; tanto assim que, nas confissões de dívida juntas aos autos, apenas figura a arrendatária, sua ex-mulher.
Pugna pela procedência dos embargos e extinção da execução.

Houve contestação.

Em sede de despacho saneador, as exceções que tinham sido suscitadas (falta de título e prescrição) foram julgadas improcedentes e foram fixados o objeto do processo e os temas da prova.

Após audiência de julgamento, foi, como já referido, proferida sentença que julgou os embargos de executado totalmente improcedentes.

O embargante não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«A. O presente recurso tem por objeto a sentença do Tribunal a quo que julgou improcedente a Oposição à Execução, no qual o Recorrente peticionou a procedência dos embargos e em consequência a extinção da obrigação, alegando, de entre o mais, a inexigibilidade da obrigação exequenda.
B. Ora, decidiu o Tribunal a quo, em síntese e para o que ora releva, julgar improcedente os referidos embargos com o fundamento de que: i. “Que os primitivos senhorios e os primitivos arrendatários tenham acordado em revogar o contrato de arrendamento mencionado na factualidade provada depois do divórcio dos segundos e antes do período a que se reportam as rendas peticionadas (Outubro de 2016 a Dezembro de 2020)”. Ponto 1 dos factos dados como não provados
C. Com efeito, o Tribunal a quo sustentou erradamente, a nosso ver, que as declarações de parte do Embargante, bem como o depoimento Testemunha «G», sua filha, são contraditórios e incongruentes.
D. Por outro lado, considerou os depoimentos de parte dos Embargados credíveis e autênticos. Bem como, os depoimentos das testemunhas: «H» (esposa do Embargado «C») e de «I» (atual arrendatária do imóvel de que os Embargados são proprietários e Senhorios). Os depoimentos de parte dos Recorridos, como o depoimento dessas testemunhas demonstram total comprometimento com as teses alegadas e pretensões deduzidas nos autos por aqueles, além de que padecem de totais e irremediáveis incongruências, que só por mero erro de análise pôde levar o Tribunal a quo a proferir a decisão ora sindicada.
E. Para o efeito, entende o Recorrente que deve ser dado como provado o facto acima mencionado, ou seja que, efetivamente, foi cabal e eficazmente demonstrado pelo Recorrente: Que os primitivos senhorios e os primitivos arrendatários acordaram em revogar o contrato de arrendamento mencionado na factualidade provada depois do divórcio dos segundos e antes do período a que se reportam as rendas peticionadas (Outubro de 2016 a Dezembro de 2020).
F. Assim resulta das declarações de parte do Recorrente, minutos 00:04:18 a 00:12:00. Ficheiro Áudio:
3. Diligencia_3315-21.0T8FNC-A_2023-06-12_10-54-02 «A»
G. Bem como do depoimento de «G», minutos ficheiro áudio:
7. Diligencia_3315-21.0T8FNC-A_2023-06-12_11-41-27 «G».
H. O depoimento e as descrições efetuadas pelo Recorrente e pela testemunha «G» (filha do Recorrente) demonstram espontaneidade e sobretudo a verdade sobre o que sucedeu no dia em que o Recorrente saiu de casa e desvinculou-se por acordo entre os senhorios e os arrendatários. Nas declarações prestadas os intervenientes apresentaram segurança, assertividade, fundamentação, vividez, espontaneidade e autenticidade.
I. Por outro lado, as declarações de parte dos Recorridos revelaram um absoluto comprometimento com as suas pretensões, demonstrando insegurança, diversas e irremediáveis contradições. Conforme consta do depoimento do Recorrido Sr. «C». Minutos 00:02:44 a 00:08:20 Ficheiro áudio:
1. Diligencia_3315-21.0T8FNC-A_2023- 06-12_10-02-31_«C»
J. O Sr. «C» revela não ter tido conhecimento do decurso do contrato de arrendamento. Só a posteriori em 2020. Pelo que não pode concluir que em 2009 o contrato não cessou quanto ao Recorrente Sr. «A». As declarações do Recorrido «C» não revelam credibilidade para aferir da cessação do contrato.
K. O mesmo sucede quanto às declarações de parte do Recorrido Sr. «D» minutos 00:03:07 a 00:15:00 Ficheiro áudio:
2. Diligencia_3315-21.0T8FNC-A_2023- 06-12_10-26-11_«D».
L. Conclui-se que o Recorrido «D» só a partir de 2020 é que se inteirou sobre o arrendamento sub judice. Até essa data conforme refere era mãe falecida «E» que tratava de tudo. Ou seja, quando refere perentoriamente que “o contrato de arrendamento que existe é de 2006. É o único contrato que existe com o Sr. «A» e com a falecida dona «B»”, não o faz com conhecimento de causa, uma vez que o contrato de arrendamento cessou os seus efeitos quanto ao Recorrente por acordo verbal entre os senhorios (pais do Embargado) e o Arrendatários em 2009.
M. Assim como a testemunha «I» que, quando perguntada, nem conseguiu sabia descrever o Recorrente:
Minutos 00:01:10 a 00:07:43_
5. Diligencia_3315-21.0T8FNC-A_2023-06-12_11-19-53_«I». Ainda que assim não se entenda, o que não se concede ou concebe, sempre se dirá o seguinte,
N. Nos termos do disposto no referido artigo 334º, há abuso de direito quando o titular do direito o exercer de forma a ofender manifestamente os limites da boa-fé, dos bons costumes e do fim social e económico do direito. Sendo que na modalidade de venire contra factum proprium resulta da violação do princípio da confiança, traduzida no facto de um interveniente a agir, de forma claramente ofensiva, contra as fundadas expetativas por ele criadas noutro interveniente, no sentido do não exercício do direito.
O. A não emissão dos recibos é ilícita e sê-lo-á independentemente da existência de abuso de direito (embora se trate de um problema colocado entre o locador e a administração fiscal). O que através da figura do abuso de direito se pretende salvaguardar é a boa fé na celebração e execução dos contratos.
P. O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium resulta da violação do princípio da confiança, traduzida no facto de os Recorridos agirem, de forma claramente ofensiva, contra as fundadas expetativas por criadas pela sua mãe Sra. Dona «E» no Embargante, no sentido do não exercício do direito.
Q. Desde a saída do imóvel os Recorridos não mais contactaram ou interpelaram o Recorrente para informar de eventuais dívidas que existissem.
R. Com tal conduta, dos pais, em concreto da mãe dos Recorridos, após a saída do locado por parte do Recorrente criou neste a fundada convicção de que os Senhorios aceitaram que o contrato deixou de produzir efeitos para este e que, por isso, jamais lhe viria a ser exigida qualquer responsabilidade ou qualquer pagamento pelo uso do locado.
S. Ao exigirem do Recorrente o pagamento de rendas de 4 anos (2016 a 2020) depois e apenas após o falecimento da única arrendatária «B», os Recorridos agem em manifesta contradição com o comportamento omissivo dos seus antecessores e com as fundadas expetativas por estes criadas no Recorrente, no sentido do não exercício do direito que ora sustentam a ação executiva.»

Os exequentes, embargados, responderam ao recurso, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) A matéria de facto deve ser alterada?
b) O contrato de arrendamento com o embargante terminou em 2009, não sendo este arrendatário desde data anterior ao vencimento da primeira das rendas reclamadas, devendo, consequentemente, os embargos proceder e a execução que lhe foi movida ser extinta?

II. Fundamentação de facto
Estão provados os seguintes factos, que correspondem aos assim considerados em 1.ª instância (A. a I.) e ao resultante da procedência da impugnação da matéria de facto, conforme fundamentado em seguida, no ponto III.1. (J.):
A. Em 01/05/2005, «F» e «E» deram de arrendamento a «A» (embargante) e a «B», pelo prazo de 5 anos, renovável, e mediante uma renda mensal de 350 €, o prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 4518, situado na Rua «X», n.º …, Esmoriz.
B. Em 05/03/2021, o Sr. Dr. «J», Ilustre Advogado, em representação de «E», enviou ao embargante uma carta, comunicando-lhe estar em dívida, a título de rendas vencidas e não pagas, a quantia global de 19.125€.
C. Na mesma missiva, foi o embargante advertido de que o valor poderia «sofrer, a título de indemnização, um agravamento de 20 %», nos termos do artigo 1041.º n.º 1 do CC.
D. A carta foi remetida para a seguinte morada: Rua «Y», n.º … Esq., Funchal.
E. O embargante recebeu a carta, tendo assinado o AR no dia 09/03/2021.
F. «E» foi a cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de «F».
G. A ação executiva deu entrada em 07/07/2021, e o embargante foi citado em 09/09/2021.
H. No decurso do contrato de arrendamento, as partes acordaram na atualização da renda, que passou a ser de 375€ mensais.
I. O casamento entre o embargante e «B» foi dissolvido, por divórcio, por decisão de 29 de julho de 2009, transitada em julgado em 29 de julho do mesmo ano, proferida pela Conservatória de Espinho.
J. Os primitivos senhorios («F», falecido antes da propositura da execução, e «E», falecida na pendência destes autos) e os primitivos arrendatários («A», ora embargante, e «B», falecida antes da propositura da execução) concordaram que o embargante deixava de ser arrendatário no contrato de arrendamento acima mencionado, depois do divórcio dos segundos e antes do período a que se reportam as rendas peticionadas e em causa na execução (outubro de 2016 a dezembro de 2020).

III. Apreciação do mérito do recurso
1. Da impugnação da matéria de facto
O recorrente impugnou a decisão sobre a matéria de facto, pedindo que se considerasse provado o primeiro facto que o tribunal a quo considerou como não provado, a saber: «1. Que os primitivos senhorios e os primitivos arrendatários tenham acordado em revogar o contrato de arrendamento mencionado na factualidade provada depois do divórcio dos segundos e antes do período a que se reportam as rendas peticionadas (Outubro de 2016 a Dezembro de 2020)». No seu entender, a correta apreciação da prova impõe que este facto se considere assente.
Nos termos da lei processual civil, o recorrente pode impugnar a decisão sobre a matéria de facto, conquanto observe as regras contidas no artigo 640.º do CPC. Segundo elas, e sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar: a) os pontos da matéria de facto de que discorda;  b) os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida; e, c) a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (artigo 640.º, n.º 1, do CPC).
Das aludidas especificações, os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda têm de constar necessariamente das conclusões, dado que estas servem para delimitar o objeto do recurso, cfr. artigos 639.º e 635.º, n.º 4, do CPC (assim tem sido interpretado, v.g., Ac. STJ de 21/04/2016, proc. 449/10.0TTVFR.P2.S1, relatado por Ana Luísa Geraldes); as demais especificações podem ficar apenas no corpo das alegações.
No que respeita ao ponto da matéria de facto de que discorda e ao facto que, no seu lugar, deve ser consignado, o recorrente disse-o claramente, no corpo e nas conclusões das alegações. Trata-se apenas do primeiro facto não provado que deverá passar a provado.
Quanto à indicação dos meios probatórios, quando os que sejam invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (artigo 640.º, n.º 2, do CPC). Também este ónus foi escrupulosamente cumprido pelo recorrente, pelo que se impõe a reapreciação da prova, com vista à reavaliação do ponto da matéria de facto cuja decisão (como não provado) foi impugnada.
Preliminarmente, lembramos que as únicas restrições que a lei impõe à reapreciação da prova pela Relação são as que resultam do artigo 640.º do CPC: a reapreciação está limitada a determinados aspetos da matéria de facto dos quais o recorrente discorda e implicará a reanálise de elementos probatórios dos quais o recorrente entende resultar outra solução.
Fora destas balizas, o CPC confere aos tribunais de 2.ª instância poderes-deveres semelhantes aos dos tribunais de 1.ª instância no que concerne à criação da convicção pela livre apreciaçãoda prova. Tanto significa que os juízes desembargadores apreciam livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão (assim se lê no artigo 607.º, n.º 5, do CPC).
Escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, citando Ac. do STJ de 30/12/1977 (BMJ 271/185), que prova livre não quer dizer prova arbitrária, «mas prova apreciada pelo juiz segundo a sua experiência, a sua prudência, o seu bom senso, com inteira liberdade, sem estar vinculado ou adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1987, p. 340). A liberdade de apreciação, que existe para os meios de prova em geral (sem prejuízo dos casos de prova tarifada que a lei prevê) tem de gerar a «convicção». O juiz atinge a «convicção» quando está seguro de que o facto ocorreu, não (necessariamente) por uma certeza absoluta, mas porque para si – após a sua análise crítica das provas produzidas, considerando a sua validade, consistência e coerência, concatenando-as umas com as outras, e ponderando todas e cada uma delas com os dados da lógica e da probabilística –, é (praticamente) certo que assim sucedeu.
Relembre-se que a provas têm por função a demonstração da realidade dos factos – artigo 341.º do CC. Não atingindo a convicção, o juiz terá de decidir em desfavor da parte onerada com a prova do facto (concordando-se nesta matéria com Teixeira de Sousa, no Comentário ao Ac. RG 19/9/2019, proc. 3018/18.3T8BRG.G1, acessível em https://blogippc.blogspot.com/2019/10/jurisprudencia-2019-100.html). Saber quem tem o ónus de provar cada facto ou conjunto de factos alcança-se pela correspondência entre eles, concretamente situados, e as regras de direito probatório material contidas nos artigos 342.º e ss. do CC. Havendo dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova, o juiz decidirá contra a parte a quem o facto aproveita – artigo 414.º do CPC.
Perante as regras positivadas no CPC, e sem prejuízo do seccionamento do objeto da reapreciação por via do disposto no artigo 640.º do CPC, os tribunais da Relação devem proceder à efetiva reapreciação da prova produzida (nomeadamente dos meios de prova indicados no recurso, mas também de outros disponíveis e que entendam relevantes) da mesma forma – em consonância com os mesmos parâmetros legais – que o faz o juiz de 1.ª instância (neste sentido, v.g., Ac. STJ de 11/02/2016, proc. 907/13.5TBPTG.E1.S1, relatado por Abrantes Geraldes, Ac. STJ de 10/12/2015, proc. 2367/12.9TTLSB.L1.S1, relatado por Melo Lima, e, à luz do anterior Código, o Ac. STJ de 14/02/2012, proc. 6283/09.3TBBRG.G1.S1, relatado por Alves Velho). Ou seja, o objeto da apreciação em 2.ª instância é a prova produzida (tal como em 1.ª instância) e não a apreciação que a 1.ª instância fez dessa prova. Não obstante, terá a Relação de ter em conta que, no que à prova pessoal respeita, o objeto da sua reapreciação não é exatamente o mesmo que aquele de que a 1.ª instância dispôs, pois trata-se apenas de uma gravação áudio deste, onde necessariamente se perde o que é apreensível apenas por outros sentidos, além da audição. Esta circunstância inultrapassável (ainda que melhorável com recurso a outras tecnologias de reprodução) pode e deve ser ponderada na reapreciação que, em 2.ª instância, se faz da prova, o que não significa uma menorização do poder de livre apreciação da prova, mas apenas mais um dado a considerar nessa apreciação.
Reapreciemos, pois.
Relembramos que o que está em causa é saber se os primitivos senhorios e os primitivos arrendatários acordaram em que o contrato de arrendamento mencionado na factualidade provada, depois do divórcio dos segundos e antes do período a que se reportam as rendas peticionadas (outubro de 2016 a dezembro de 2020), terminou relativamente ao embargante. Em primeira instância este facto não foi considerado provado. O recorrente pretende que o seja. Quid juris?
Todos estão de acordo em como não existiu uma revogação formal, escrita; nunca o executado a alegou, pelo contrário, disse, sim, que se tratou de uma conversa no dia em que saiu de casa, deixando de habitar o locado, o mesmo dia em que se divorciou da sua ex-mulher, entretanto falecida em 2021.
Foram dadas à execução, ou juntas com o requerimento executivo inicial, três confissões de dívida, relativas às rendas do locado, que devemos ter presentes na apreciação do pleito. Em todas elas figura como declarante apenas a arrendatária mulher, que permaneceu no locado após o divórcio (divórcio que, relembramos, ocorreu em 29/07/2009). Todos as três confissões (uma de 2018 e duas de 2020) foram subscritas apenas por quem delas consta como declarante. Todas elas constituem documentos particulares autenticados por advogado.
Jamais nesses documentos é referido o executado, divorciado de havia muito e não residente no locado.
Os embargados e as duas testemunhas pelos mesmos arroladas e ouvidas em audiência tentaram transmitir que o embargante teria várias mulheres e que, por isso, não era muito visto no locado…, mas que sim, sempre teria continuado casado com a arrendatária, que, como marido, deveria sustentar… Esta foi nomeadamente a estória de «I», testemunha que tinha trabalhado para a falecida senhoria, mãe dos embargados, e que, quando faleceu a arrendatária «B» passou para esta casa. O depoimento desta testemunha não nos merece credibilidade, desde logo pelas constantes contradições: começa por afirmar que nunca falava com a «B», que esta seria esquisita e de poucas falas, depois diz que «B» lhe transmitia que o «marido» estava fora, a viajar, mais à frente declara que «B» lhe dizia que «o marido» tinha de pagar a renda, «que era um castigo por a ter traído com uma empregada»; por outro lado, afirma que via o embargante ir ao locado de vez em quando, mas perguntada pela sua fisionomia e compleição física, não sabe se ele é alto, baixo, gordo, magro, calvo ou com cabelo, afinal via era a carrinha do embargado. Carrinha que também não especificou (marca, modelo), nem localizou no tempo quando foi avistada. Nos autos nada se sabe sobre tal hipotética carrinha.
A outra testemunha arrolada pelos embargados deu-se como empregada dos mesmos, mas, afinal, era mulher do exequente «C». As respostas foram sobretudo «sim, sim, sim», que via o embargante por ali, que «B» se referia sempre ao embargante como marido e que dizia sempre que o marido ia ganhar dinheiro para pagar as rendas. Mas, afinal, a testemunha nunca tinha falado diretamente, nem com «B», nem com o embargante…
O embargado, «C», filho e herdeiro da senhoria, não tinha conhecimento direto do assunto. A mãe era muito ativa e ciosa dos seus negócios, tratava de tudo. Sabiam que havia dívida, mas a mãe dizia que estava a tratar, que não se preocupassem com isso. Depôs, no entanto, sobre duas confissões de dívida de rendas feitas pela falecida arrendatária «B». Perguntado por que razão não fizeram intervir o embargante nessas confissões de dívida, não soube responder. As suas declarações fugazes, inexpressivas e titubeantes no sentido de que via ocasionalmente no locado o embargante, «mesmo depois de 2016», não merecem crédito.
O outro embargado, «D», interveio um pouco mais após o falecimento da mãe, sendo cabeça-de-casal da herança. A mãe é que «tratava desses assuntos e gostava de fazer todo o trabalho por nós». Tinha trabalhado muitos anos como secretária de uma empresa e tinha jeito para isso. A dada altura a mãe disse-lhe que aqueles inquilinos tinham rendas em atraso, não falou em montantes, nem a testemunha perguntou. Houve duas confissões de dívida, uma em 2018, de que teve conhecimento a posteriori, e outra em 2020. A partir daí é que teve noção dos valores. O embargado chegou a falar com a falecida «B» que lhe assegurou que o «marido» havia de pagar. Porque é que a confissão de dívida é só da arrendatária «B»? «Porque esta dizia que o marido era muito ocupado e estava quase sempre fora». Em janeiro de 2021 conseguiu o contacto do embargante, e telefonou-lhe, ao que o embargante lhe retorquiu que nada tinha a ver com as rendas, nem como o imóvel, que era divorciado da arrendatária. Terá sido aí que pediu ajuda aos advogados.
Notámos com curiosidade que referiu que a falecida «D. «B» tinha muita bagagem, era muito ponderada a falar, e a gente…», dando a entender que, pelo porte e educação, «B» teria ascendente sobre os senhorios.
De referir que os embargados não residem no conjunto imobiliário onde se situa o locado. Apenas ocasionalmente aí se deslocavam em visitas aos pais e, ultimamente, à mãe.

Muito mais consistentes, lógicos, coerentes com os documentos dos autos (em especial com as três declarações de dívida), expressivos e espontâneos foram os depoimentos do embargante e da sua filha que, por essas razões, nos merecem credibilidade.
Explicou o embargante que se divorciou da arrendatária em 2009, que saiu de casa no mesmo dia do divórcio, 29/07/2009, e que, depois dessa data, nunca mais lá voltou. A filha do embargante, de anterior relação, vivia nessa altura com o casal e saiu com o embargante na mesma altura. No momento da saída, ele, a sua filha e a sua ex-mulher «B» foram falar com os senhorios a quem deram conhecimento do divórcio e de que seria o embargante a deixar a casa. O embargante perguntou se tinha de assinar alguma coisa ou se tinha alguma coisa a pagar e disseram-lhe que não. Depois foi morar noutro apartamento arrendado ali perto, no prédio onde um dos filhos da senhoria tinha loja, e ulteriormente foi para Esmoriz, até 2013.  Nunca lhe pediram nada, nunca lhe disseram que havia qualquer dívida, até ao dia em que o filho da senhoria lhe telefona, depois da morte de «B», a dizer que havia a dívida. Ao longo dos anos cruzava-se com as pessoas e nunca lhe reclamaram qualquer dívida.
Depôs de forma aparentemente séria, espontânea, com diversidade de pormenores.
A testemunha «G», filha do embargante, depôs de forma muito convincente, aparentemente verdadeira. Confirma o sucedido no dia do divórcio: «G» nunca voltou ao locado e pai também não. «Com o que sofreu, nunca!» Não sabe se alguma vez voltaram a falar…, pai e «B». Recorda-se dos primitivos senhorios, não dos atuais. Nunca o pai ou os senhorios lhe falaram em rendas por pagar. A testemunha veio para Portugal e morar com o pai cerca de um ano antes de o casal (pai e «B») se divorciarem. Lembra-se que a relação era muito conflituosa e de muito sofrimento para o pai.

Apenas mais alguns pormenores, sobretudo documentados, se relembram:
Aquando do casamento dos primitivos arrendatários, o embargante tinha, à data, 33 anos de idade e a falecida arrendatária 45 anos de idade (certidão de casamento junta aos autos). Segundo declaração do executado/embargante, absolutamente crível considerando o nível de português exibido durante a inquirição (longe de fluente), o mesmo não falava nada de português à data. Casaram-se em 30/10/2001, em Lisboa, e divorciaram-se em 29/07/2009.
Entre 2018 e 2020, há três confissões de dívida de «B». O embargante nunca foi contactado nem teve qualquer intervenção.
Apenas depois do óbito da arrendatária «B», o embargante é contactado a propósito das rendas.

Concatenadas todas as descritas provas, é para nós seguro que os acontecimentos ocorreram conforme descrito pelo embargante e pela testemunha presencial, sua filha: no dia do divórcio, corria o ano de 2009, o embargante deixou o arrendado, comunicou verbalmente aos senhorios que se tinha divorciado e que ia deixar a casa, perguntou se tinha de assinar alguma coisa e se tinha alguma coisa a pagar e disseram-lhe que não, e nunca mais o contactaram, até 2021, depois de a sua ex-mulher ter falecido. Consequentemente, altera-se a matéria de facto conforme pretendido no recurso, julgando provado o seguinte facto (que o tribunal a quo tinha considerado não provado), que, assim se acrescenta ao elenco dos factos provados, sob a letra J.:
«Os primitivos senhorios («F», falecido antes da propositura da execução, e «E», falecida na pendência destes autos) e os primitivos arrendatários («A», ora embargante, e «B», falecida antes da propositura da execução) concordaram que o embargante deixava de ser arrendatário no contrato de arrendamento acima mencionado, depois do divórcio dos segundos e antes do período a que se reportam as rendas peticionadas e em causa na execução (outubro de 2016 a dezembro de 2020)».

2. Da cessação do contrato de arrendamento relativamente ao embargante e da procedência dos embargos
Nos termos do disposto no artigo 1105.º, n.º 1, do CC (redação da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, ainda hoje vigente), incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, o seu destino é, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, decidido por acordo dos cônjuges, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de um deles. Há transmissão quando o contrato de arrendamento foi celebrado apenas com o cônjuge que não vai ficar a viver no locado; há concentração quando o contrato de arrendamento foi celebrado com ambos os cônjuges.
Foi o que sucedeu no caso. Os arrendatários acordaram que seria o embargante a sair do arrendado e a falecida «B» a permanecer e assim sucedeu desde o dia do divórcio, ininterruptamente, com conhecimento e concordância dos senhorios.
Aparentemente, no procedimento de divórcio não se colocou a questão do destino da casa de morada de família, pelo que não terá havido homologação do acordo, nem notificação oficiosa ao senhorio, como previsto no n.º 3 do artigo 1105.º; pelo menos não há disso notícia nos autos. Se o conservador não cuidou de se inteirar e deixar definido o destino da casa de morada de família, essa falha, obviamente, não prejudica os cidadãos envolvidos.
Facto é que os arrendatários decidiram concentrar o arrendamento sobre a casa de morada de família na ex-mulher, que o comunicaram imediatamente aos senhorios e que todo o comportamento de uns e de outros durante doze anos, até ao óbito da arrendatária, «B», foi consentâneo com a descrita realidade.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente procedente, julgando os embargos também totalmente procedentes, por provados, e determinando, em consequência, a extinção da execução movida ao executado, ora embargante.

Custas pelos embargados.

Lisboa, 08/02/2024
Higina Castelo (relatora)
Pedro Martins (primeiro adjunto)
Orlando Nascimento (segundo adjunto)