Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
596/20.0GCMTJ.L1-3
Relator: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
Descritores: ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
CONDOMÍNIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: O administrador de condomínio, independentemente da deliberação da assembleia geral de condóminos, tem legitimidade para deduzir queixas-crime destinadas à repressão criminal das condutas lesivas a bens comuns integrados na propriedade horizontal, como é o caso dos dinheiros pagos para obras e reparações do prédio constituído em propriedade horizontal, no que respeita às partes comuns do mesmo.
Quem é e foi ofendido para efeitos de apresentação de queixa-crime e em toda a fase de inquérito será por maioria de razão para a fase de Instrução nomeadamente para efeitos de constituição de assistente.
O condomínio enquanto centro autónomo de imputação de efeitos jurídicos não sendo dotado de personalidade jurídica, carece para actuar em juízo de estar representado pelo administrador, tal como decorre do estabelecido no artigo 26º CPC em conjugação com o artigo 1437º CC ao que acresce o condomínio ser citado ou notificado na pessoa dos seus representantes legais nos termos do disposto no art.º 223º nº 1 Código de Processo Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acórdão proferido na 3 a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

Nos presentes autos veio o Condomínio do Prédio sito na Rua ... - Alcochete, apresentar recurso do despacho que indeferiu a sua constituição de assistente e, consecutivamente a abertura de instrução por ilegitimidade.
Entende o recorrente que a jurisprudência deste Tribunal da Relação defende que o administrador do Condomínio tem legitimidade independentemente da deliberação da assembleia geral de condóminos para deduzir queixa-crime – art.º 1437º CC que confere legitimidade para agir em juízo quer contra qualquer dos condóminos quer contra terceiro.
Conclui assim pela legitimidade do condomínio para requerer a abertura de instrução pelo que deve o despacho em causa ser revogado e o condomínio ser admitido a constituir-se assistente na pessoa do seu administrador.
O tribunal a quo entende que o requerimento em causa não corresponde aos requisitos do art.º 287º CPP
Concluiu-se pelo arquivamento dos autos por inadmissibilidade legal do procedimento criminal e porque o prazo para apresentar queixa era de 6 meses.
O recorrente diz que a, contar da data em que o titular do direito de queixa teve conhecimento dos factos e dos seus autores, o prazo terminou a 23.04.2021.
Concluiu ainda que estão reunidos os requisitos para a abertura de instrução nos termos do disposto no art.º 287º CPP.
Pelo que deve ser ordenada a abertura de instrução.
*****
Pronunciou-se o MP em 1ª Instância entendendo que:
1-
A Mma JIC que rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado, por ilegitimidade e inadmissibilidade da abertura da instrução, ao abrigo do disposto no artigo 287º, nº 3 do Código de Processo Penal, em virtude de o recorrente não ser assistente nem ter legitimidade para assumir tal qualidade.
2-
Está aqui em causa queixa apresentada por Administração de condomínio contra a Administradora do Condomínio, que se apropriou e destinou indevidamente quantias monetárias entregues pelos condóminos e que se destinavam a fazer face às despesas comuns do prédio, dispondo de interesses alheios e administrando as obras “com grave violação de deveres” que lhe incumbiam.
3-
Os titulares do direito de se constituírem como assistentes são os condóminos ou a administração do condomínio se estivesse especialmente mandatada para o efeito pelos condóminos, o que aqui não aconteceu.
4-
Ainda que o aludido Condomínio do Prédio sito na Rua ..., Alcochete, tivesse legitimidade para requerer a sua constituição como assistente, o requerimento de abertura de instrução apresentado não cumpre os requisitos legalmente exigidos para a sua admissão, não elencando os factos imputados e a sua subsunção legal, não constituindo uma verdadeira acusação, como decorre do disposto no artigo 283, nº 3,als. b) ed) aplicável por força do artigo 287º, nº 2,ambos do Código de Processo Penal.
5-
Não é legalmente admissível a prolação de despacho de aperfeiçoamento, conforme acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2005, publicado no DR, Série I-A, de 04/11/2005.
6-
Concluiu, bem, a Mma JIC que as deficiências evidenciadas constituem inadmissibilidade legal da instrução, previsto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, não tendo o referido despacho judicial violado qualquer norma jurídica ou omitido qualquer dever legal de fundamentação, devendo ser integralmente mantido.
7-
O douto despacho recorrido não violou qualquer uma das normas invocadas pelo recorrente ou outras, que cumpra conhecer, sendo válido e legal, pelo que se deve manter nos seus precisos termos, assim se fazendo,
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Neste Tribunal de 2.ª Instância pronunciou-se a Exma. Procuradora Geral Adjunta pela improcedência do recurso na mesma linha defendida na 1ª Instância.
Do despacho recorrido resulta:
I. Da constituição como assistente
O Condomínio do Prédio sito na ... vem requerer, simultaneamente com o seu requerimento de abertura de instrução, de fls. 274 e ss., a sua constituição como assistente (fls. 381).
O Ministério Público e a arguida pronunciaram-se pelo indeferimento do requerido, a fls. 284 e fls. 287.
Cumpre apreciar.
No que concerne à legitimidade para se constituir assistente, importa ter em consideração, entre o mais, o artigo 68º, nº 1 do Código de Processo Penal, que estatui que “podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adotados, ascendentes e adotantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;
d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de proteção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime;
e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção”.
Assim, e não sendo o caso de existir qualquer lei especial que confira ao requerente o direito de se constituir assistente, tal só poderia ocorrer se este fosse considerado ofendido, ou seja, titular do interesse que a lei especialmente quis proteger.
“Ofendido” para efeitos do artigo 68º, nº 1, al. a) do citado Código, e conforme é pacífico na nossa jurisprudência e doutrina, não é qualquer pessoa prejudicada com a consumação da infração, mas apenas e tão só o titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato do crime, isto é, a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo legal preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo, não se integrando no conceito de ofendido os titulares de interesses cuja proteção é puramente mediata ou indireta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os próprios e específicos daquele que requer a constituição como assistente.
Assim, para se aferir da admissibilidade de constituição de assistente, com referência a determinado crime, impõe-se indagar qual o(s) interesse(s) especialmente tutelado(s) pela norma que o tipifica e, bem assim, quem, pela infração viu, direta e imediatamente, o seu direito violado e sofreu, por isso, um dano.
No caso em apreço, há que ponderar relativamente aos crimes denunciados a proteção imediata, especial, de interesses patrimoniais, de que podem ser titulares entes públicos ou privados.
Com efeito, queixou-se a Administração do Condomínio que a arguida, enquanto então administradora do Condomínio, se apropriou e destinou indevidamente quantias monetárias entregues pelos condóminos e que se destinavam a fazer face às despesas comuns do prédio, dispondo de interesses alheios e administrando as obras “com grave violação de deveres” que lhe incumbiam.
Conforme preconizado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.05.2007 (Proc. nº 0740075), disponível in www.dgsi.pt, tais importâncias não integram um património autónomo que esteja afeto à Administração do Condomínio, nem são um bem comum para os efeitos do artigo 1421º do Código Civil, antes “continuam a ser propriedade dos condóminos ainda que na detenção da Administração do Condomínio para a sua aplicação na solvabilidade das despesas comuns, maxime, as aprovadas”.
Mais se lê no citado aresto que “É certo que, o administrador tem legitimidade para agir em juízo, designadamente contra terceiros, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia (art.º 1437.º, n.º 1, do Cód. Civil).
Só que nas funções que lhe são próprias (cfr. art.º 1436.º do mesmo diploma), não constam as de colaborar com o Ministério Público no exercício da acção penal, oferecendo provas, requerendo diligências, ou acusando independentemente daquele.
E a assembleia de condóminos só poderá validamente autorizá-lo a demandar, se o for por questões de propriedade ou posse de bens comuns. (…)
Por outro lado, “as funções da administração do condomínio, mesmo com os poderes que lhe são conferidos pela lei, têm sempre em vista o normal funcionamento dos edifícios submetidos ao regime de propriedade horizontal quanto à parte comum dos mesmos” (neste sentido cfr. o já citado Ac. desta Relação de 28/09/2005)”.
Deste modo, quer no que respeita às quantias entregues para fazer face às despesas, quer no que respeita às receitas, tais importâncias são propriedade dos condóminos e não da Administração do Condomínio.
E, consequentemente, afigura-se-nos que quem teria legitimidade para se constituir assistente seria o condómino por qualquer crime relacionado com o descaminho e/ou má gestão do dinheiro entregue para o pagamento de despesas comuns, e carece dessa mesma legitimidade o administrador (administração) do Condomínio – neste sentido, entre outros, veja-se acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04.03.2010 (Proc. nº 824/09.3TALLE-A.E1), Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 16.05.2007 (Proc. nº 0740075), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Teria, no entanto, o Condomínio legitimidade para o exercício do direito de queixa e se constituir assistente em processo penal, desde que tivesse sido expressamente mandatado pela assembleia de condóminos para tal efeito, o que não aconteceu.
Pelo exposto, por falta de legitimidade, indefiro a requerida constituição como assistente formulada pelo Condomínio do Prédio sito na Rua ..., Alcochete.
II. Do requerimento de abertura de instrução
Mais requereu o Condomínio do Prédio sito na Rua ..., Alcochete, a abertura de instrução nos presentes autos, na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.
O artigo 287º, nº 1 do Código de Processo Penal prevê quais os sujeitos processuais que têm legitimidade para requerer a abertura de instrução, a saber:
- o arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou
- o assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
No caso em apreço, o Ministério Público encerrou o inquérito com a prolação de despacho de arquivamento, pelo que somente teria legitimidade para requerer a abertura da instrução o assistente.
Como se viu, o Condomínio do Prédio sito na Rua ..., Alcochete, não assume a qualidade de assistente, em consequência do seu indeferimento supra.
Termos em que se conclui pela ilegitimidade do referido Condomínio em requerer a abertura de instrução, atento o disposto no artigo 287º, nº 1 do Código de Processo Penal.
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Mas mesmo que a sua legitimidade estivesse assegurada – o que não verifica – desde já se adianta que o requerimento de abertura de instrução apresentado não obedece aos requisitos exigidos pelo artigo 287º do Código de Processo Penal.
Pois, quando é proferido despacho de arquivamento num processo criminal (em que o ilícito criminal em questão não seja de natureza particular), o requerimento de abertura de instrução por parte do assistente tem por finalidade definir o objeto do processo.
É por tal requerimento que se aferem quais os indivíduos que constam como arguidos, quais os factos que são imputados aos mesmos, e qual a subsunção às normas legais de tais comportamentos.
Na realidade, o requerimento de abertura de instrução vai funcionar como uma verdadeira acusação, como decorre do disposto no artigo 283, nº 3, als. b) e d) aplicável por força do artigo 287º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal. Ora, ao juiz de instrução está vedado pronunciar-se sobre outros factos que não os que daí constam, sob pena de estar a realizar uma alteração substancial de factos que determina a nulidade da decisão instrutória, como resulta do artigo 309º do citado Código.
Com efeito, preceitua o citado artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal que “O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º (…)” (sublinhado da signatária).
Por sua vez, o citado artigo 283º, nº 3, als. b) e d) prevê que a acusação contém obrigatoriamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, a indicação das disposições legais aplicáveis.
E a acusação tem que incluir esses elementos sob pena de nulidade, conforme estatui o mesmo preceito.
Integrando o requerimento de instrução razões de perseguibilidade penal, aquele requerimento deve conter uma verdadeira acusação. Como é pacificamente reconhecido na jurisprudência, o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, “formal e materialmente a acusatoriedade do processo”, delimitando e condicionando a actividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia - vide Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, 2000, pág. 125.
Analisado o requerimento de abertura de instrução constata-se que o mesmo não contém as exigências de forma supra mencionadas, não sendo efetuado (conforme se lhe impunha) a narração sintética da factualidade a apreciar, integradora dos elementos do(s) tipo(s) de crime que invoca ter ocorrido –, narração fáctica e incriminação essas que delimitam a decisão e vinculam o tribunal.
Por ser legalmente inadmissível a prolação de despacho de aperfeiçoamento, conforme acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2005, publicado no DR, Série I-A, de 04/11/2005 e por se concluir, pelo que ficou dito, que as aludidas deficiências integram um caso de inadmissibilidade legal da instrução, previsto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, impõe-se a rejeição da requerida abertura de instrução.
Face ao exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Condomínio do Prédio sito na ..., por ilegitimidade e inadmissibilidade da abertura da instrução, ao abrigo do disposto no artigo 287º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Notifique e, oportunamente, arquivem-se os autos.
***
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.ºs 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.95, publicado no DR Iª série-A, de 28.12.95).
Cumpre decidir:
Pretende o recorrente:
Tem o condomínio legitimidade para requerer a abertura de instrução
Deve o condomínio ser admitido a constituir-se assistente na pessoa do seu administrador.
O prazo para o exercício do direito de queixa terminou a 23.04.2021.
Estão reunidos os requisitos para a abertura de instrução nos termos do disposto no art.º 287º CPP.
Vejamos:
Antes de nos debruçarmos sobre as conclusões que determinam o objeto da decisão de recurso deixaremos algumas questões fixadas desde já.
O interesse em agir constitui um pressuposto processual que se traduz na necessidade de usar o processo para obter tutela jurisdicional em relação a um direito que se pretende fazer valer, seja porque foi violado, seja porque se encontra ameaçado de forma séria e grave e o seu titular recorre aos tribunais para afirmar esse direito na sua titularidade, pois não o consegue de um modo eficaz, a não ser socorrendo-se da via judiciária.
A legitimidade afere-se por uma determinada posição do sujeito em face da relação material controvertida ou em litígio - posição essa que lhe confere o direito de intervir no processo, seja como autor, seja como réu, como titular da ação ou como titular da posição contraposta a quem essa ação se dirige.
Em processo penal e no que toca ao recurso, a legitimidade avalia-se pelo interesse direto de determinado sujeito processual em impugnar uma decisão, porque lhe foi desfavorável, afetando-o na sua esfera jurídica ou atingindo um interesse seu digno de tutela jurisdicional.
Acontece que o assistente, nos crimes que não têm natureza particular, subordina a sua atividade à actuação do Ministério Público, de quem é colaborador, mas podendo agir autonomamente em casos especiais indicados na lei (art.º 69.º do CPP).
Esse é, justamente, o objeto do Assento (na designação atualmente consagrada:
acórdão de fixação de jurisprudência) n.º 8/89, de 30/10/97 - DR 1ª S/A de 10/8/99: «o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do M.º P.º relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir». No mesmo sentido os Acórdãos de 9/1/02; Proc. n.º 2751/01; de 24/10/02, Proc. n.º 3183/02 - 5). A falta de legitimidade e de interesse em agir do assistente, decorre não só do carácter eminentemente público dos interesses em jogo na aplicação das penas, mas da atitude por este tomada ao longo do processo, a refletir uma falta de interesse próprio na contestação da medida da pena (não dedução de acusação autónoma, nem ao menos, adesão à acusação deduzida pelo M.º P.º, alheamento da sorte dos autos na vertente criminal, etc.).
De acordo com o disposto no art.º 69º do CPP, os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja atividade subordinam a sua intervenção no processo, competindo-lhes, em especial deduzir acusação independente da do Ministério Público e interpor recurso das decisões que os afetem, mesmo que aquele o não tenha feito - artigo 40º, n. º 1 b) nº 2 do CPP, - interesse em agir.
Os presentes autos iniciaram-se com a apresentação por Paulo Jorge Fernando Lopes, como administrador do condomínio de uma denúncia contra AA.
Em relação à matéria dos autos, para além de afirmar não pretender constituir-se assistente, disse ser legal representante da Administração do condomínio do prédio onde os factos tiveram lugar.
Acrescentou que a denunciada é a gestora da “Ges Opção” empresa que geria anteriormente o condomínio do prédio e com quem já havia sido rescindido qualquer laço contratual e desautorizado explicitamente qualquer movimento bancário que pudesse ser feito desde 11.11.2020.
Não obstante, cerca de 1 mês depois a denunciada praticou os actos já descritos nos autos e fê-lo em perfeita consciência de que não se encontrava autorizada para o fazer sendo que os montantes em causa não lhe eram de todo devidos.
Disse desejar procedimento criminal contra a denunciada.
Foram ouvidos os dois administradores do prédio em causa.
Foram ouvidos outros condóminos que confirmaram o dito pelos administradores conforme resulta da consulta dos autos.
A arguida foi ouvida, mas não pretendeu prestar declarações.
A 10.02.2023 foi notificado o administrador do condomínio aqui recorrente para em 10 dias juntar aos autos cópia da Assembleia de Condóminos que o mandatou para apresentar as queixas de 19.12-2020 e 01.03-2021
Foi junta a acta nº 19 que deu conta da eleição da nova administração e a rescisão do contrato com a arguida e respetiva empresa.
A 10.03.2023 foi proferido despacho de arquivamento que tem no essencial e que interessa a estes autos, o seguinte:
Notificado para juntar aos autos a cópia da deliberação da Assembleia de Condóminos que o mandatou para apresentar queixa o notificado apresentou cópia da acta da reunião de AC de 23.10.20 na qual foi nomeado administrador do referido condomínio.
Percorrido tal documento constata-se que nenhum dos administradores nomeados foi mandatado pela AC para apresentar as aludidas queixas nem para apresentar queixa crime em geral.
Destarte não são as mesmas válidas.
No que importa ao art.º 115º CP o direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores.
Tal conhecimento remonta ao final do ano de 2020 pelo que tem em conta o AUJ nº 4/2012 de 21.05.12 a esta data há muito que se extinguiu o direito de queixa não se justificando a notificação da mencionada AC para retificar as queixas que aqui nos ocupam.
(…) Pelo exposto determino o arquivamento dos autos por inadmissibilidade legal do procedimento criminal, nos termos do art.º 277º nº 1 in fine CPP.”
Foi então enviado requerimento para constituição de assistente e pedido de abertura de instrução.
Foi proferido o despacho objeto de recurso nos presentes autos
No caso dos autos investigam-se factos que, no entender do recorrente consubstanciam a prática de crime de abuso de confiança
O recorrente vem insurgir-se contra o douto despacho, sustentando que a decisão recorrida viola o disposto no artigo 68.º, n.º 1, CPP e que tem poderes para deduzir as queixas rejeitadas.
É verdade que o condomínio é um centro de relações jurídicas ativas e passivas, sendo detentor de direitos e obrigações para com terceiros, razão pela qual lhe é atribuída uma extensão de personalidade judiciária, nos termos do artigo 12.º alínea c) do CPC.
Terá legitimidade para se constituir assistente - artigo 68.º, n.º 1 alínea a) CPP e requerer a abertura de instrução?
É verdade que considerando o disposto no artigo 12.º alínea e) CPC , há extensão de personalidade judiciária aos condomínios que resultem da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem nos poderes do administrador, sendo o art.º 1437.º n.º 1 CC , claro ao estabelecer que o administrador tem legitimidade para agir em juízo quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiros. O Condomínio é titular de direitos e obrigações, e tem uma esfera jurídica própria autónoma e diversa da de cada um dos condóminos.
- Art.º 1437º CC Representação do condomínio em juízo
1 - O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele. 2 - O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos. 3 - A apresentação pelo administrador de queixas-crime relacionadas com as partes comuns não carece de autorização da assembleia de condóminos.
São funções do administrador do condomínio, além de outras que lhe sejam atribuídas pela assembleia (cfr. art.º 1436.º, alíneas a) a m), do Código Civil):
a)- Convocar a assembleia dos condóminos;
b)- Elaborar o orçamento das receitas e despesas relativas a cada ano;
c)- Verificar a existência do seguro contra o risco de incêndio, propondo à assembleia o montante do capital seguro;
d)- Cobrar as receitas e efetuar as despesas comuns;
e)- Exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas;
f)- Realizar os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns;
g)- Regular o uso das coisas comuns e a prestação dos serviços de interesse comum;
h)- Executar as deliberações da assembleia dos condóminos;
i)- Representar o conjunto dos condóminos perante as autoridades administrativas;
j)- Prestar contas à assembleia dos condóminos;
l)- Assegurar a execução do regulamento e das disposições legais e administrativas relativas ao condomínio;
m)- Guardar e manter todos os documentos que digam respeito ao condomínio.
O administrador do condomínio tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem
Ou
quando autorizado pela assembleia. (cfr. art.º 1437.º, n.º 1, do Código Civil). Poderá tomar a iniciativa de constituir advogado nos recursos e nas causas em que tal seja obrigatório (vide artigos 12.º, alínea e), e 26.º, ambos do CPC).
Conforme afirma o Professor Figueiredo Dias , "O ofendido é o titular por excelência do direito de queixa... enquanto portador do bem jurídico."- in Direito Penal II, As Consequências jurídicas do Crime", 1993, página 668 - Coimbra Editora, e ainda, "parece claro que, se o ofendido não for uma pessoa individual, o exercido do direito de queixa tem de caber aos órgãos sociais capacitados pelo regulamento interno respetivo.", ibidem, página 673.
Também é pacífico que, e considerando a personalidade judiciária do Condomínio e a capacidade e legitimidade que este tem para actuar em juízo, que pode apresentar queixa, sendo diretamente interessado na tutela dos direitos e interesses que dizem respeito ao condomínio na pessoa dos administradores que o representam e lhe dão voz.
Ou seja, na senda do Acórdão proferido neste Tribunal da Relação no processo nº 2570/17.5PBFUN.L1-5 datado de 23-02-2021 o administrador de condomínio, independentemente da deliberação da assembleia geral de condóminos, tem legitimidade para deduzir queixas-crime destinadas à repressão criminal das condutas lesivas dos interesses do Condomínio.
Também de acordo com o AC do TRLx de 11-02-2004, Relatora CELESTE LIMA: "O administrador do condomínio tem legitimidade para apresentar queixa por furto, dano e introdução em lugar vedado ao público e, assim sendo, também o M.P. tem legitimidade para promover o processo." Também nessa qualidade (de ofendido) foi notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 277.º/1, 278.º, e 287.º todos do CPP, na qualidade de e passa-se a citar o referido Despacho: "Mandatário do Ofendido Condomínio …,". Pelo que se retira dos próprios autos que o Condomínio que requereu a sua constituição de Assistente nos presentes autos era ofendido.
E transcreve-se o acórdão supra referido nesta parte:
Como se sabe, a administração do condomínio e a assembleia de condóminos são os dois órgãos representativos da vontade coletiva dos detentores das frações autónomas constitutivas de um imóvel em propriedade horizontal – art.º 1430º, nº 1 do C. Civil-, repartindo entre si as responsabilidades da condução dos interesses desse ente coletivo. As funções da administração do condomínio estão mencionadas nos artigos 1436º e 1437º, nº 1 do C. Civil.
É relativamente pacífico que o condomínio pode ser, enquanto tal, ofendido pela prática de um ilícito criminal, pelo que tem legitimidade, enquanto ofendido, para deduzir uma queixa (cfr. art.º 113º, nº 1 do C. Penal). Basta pensar, a este propósito, na queixa relativa, v. g., um crime de dano cometido sobre as partes comuns de um edifício ou, como no caso dos autos”, um acesso ilegítimo aos bens comuns por quem para tanto já não estava “mandatado”, já tinha sido destituído de funções.
Resta saber se carece da autorização da assembleia de condóminos para a apresentação da queixa.
Também no Tribunal da Relação de Lisboa datado 11/02/04, relatado pelo naquela data Desembargador Clemente Lima, se sustentou expressamente que o administrador do condomínio não carece da autorização da assembleia de condóminos para deduzir queixa crime relativamente a matérias relacionadas com as partes comuns do prédio.
Defendemos, convictamente, a posição sustentada no segundo acórdão mencionado. De facto, se a dedução de queixa não está expressis verbis elencada nos dois artigos do C. Civil anteriormente mencionados, essa acção deverá ser considerada incluída na cláusula geral contida na al. f) do art.º 1436º do C. Civil, a saber “Realizar os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns” sendo certo que, de acordo com o artigo seguinte do mesmo diploma “O administrador do condomínio tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem”.
E continua o acórdão da 5ª secção deste Tribunal no qual nos apoiamos e com o qual concordamos tendo em conta a letra da lei e o caso concreto.
“Embora a citada função seja algo equívoca quanto ao seu alcance, a mesma tem de ser interpretada de acordo com o princípio do legislador razoável, ínsito no art.º 9º, nº 3 do C.C.
Ora, que razoabilidade, pergunta-se, teria o legislador se tivesse exigido do administrador do condomínio a convocação de uma assembleia de condóminos para autorizar a dedução de queixa contra quem, usou os dinheiros do condomínio, um bem comum, indevidamente, para quê reunir a AC se o Administrador está obrigado a zelar pelos bens comuns no termos legais??
É sabido que a assembleia apenas reúne ordinariamente uma vez por ano e que raros são os condomínios onde mais reuniões são marcadas e, usualmente, apenas para discutir magnas questões para o condomínio, como, v. g., a realização de obras de remodelação geral. Por outro lado, é significativa a carga burocrática e o nível de despesa que a marcação da reunião da assembleia envolve. Nessa medida, qual o administrador diligente e pragmático que se disporá a despender o dinheiro do condomínio para enviar cartas registadas com aviso de receção aos condóminos, para marcação de assembleia e está disposto a gastar-lhes uma manhã das suas vidas para discutir a apresentação de queixa, de cada vez que forem realizados um daqueles actos mencionados supra, ofensivos dos bens comuns do condomínio?
É manifesto que, cabendo ao administrador a defesa desses bens comuns, contra terceiros e mesmo contra os próprios condóminos, e exercendo ele uma função executiva relativamente a essa defesa, terá de ter legitimidade para, por si só, praticar um acto que, além do mais, nem sequer onera o condomínio.
Nessa medida, já se viu defendido pelo STJ e na doutrina, por Henrique Mesquita (in, respetivamente, Ac. de 08/06/73, BMJ nº 228, pág. 204 e RDES, nº XXI11, pág. 132, nota 125) que o administrador, independentemente da deliberação da assembleia geral, tem legitimidade para pleitear em juízo nos processos que tenham por objecto ofensas a bens comuns integrados na propriedade horizontal.”
Assim sendo concluímos também que não carece o administrador de obter autorização da assembleia de condóminos para deduzir queixas crime destinadas à repressão criminal das condutas lesivas dos bens comuns como é o caso dos dinheiros pagos para obras e reparações do prédio constituído em propriedade horizontal, no que respeita ás partes comuns do mesmo.
O administrador, independentemente da deliberação da assembleia geral, tem legitimidade para deduzir queixas-crime destinadas à repressão criminal das condutas lesivas, encontra-se “mandatado” por lei e pela assembleia de condóminos que o elegeu para representar o condomínio. Tenha-se em conta que a arguida foi destituída em reunião de condóminos e os administradores em causa nela foram eleitos.
Acresce que podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidade a quem leis especiais conferem esse direito os ofendidos, considerando-se como tais os interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos." - art.º 68.º n.º 1 alínea a) CPP.
Não havendo esta distinção na lei, parece-nos claro que quem é e foi ofendido para efeitos de apresentação de queixa-crime e em toda a fase de inquérito o será por maioria de razão para a fase de Instrução nomeadamente para efeitos de constituição de assistente.
Há que não esquecer que o administrador do condomínio pode também ser demandado nas ações respeitantes às partes comuns do edifício. (cfr. art.º 1437.º, n.º 2, do Código Civil).
Em nosso entender a lei já lhe confere poderes para exercer o direito de queixa em representação do Condomínio.
A representação judiciária dos condóminos compete ao administrador a pessoa a quem a lei designa para esse efeito (cfr. art.º 1433.º, n.º 6, do Código Civil).
O administrador tem legitimidade para agir em juízo, designadamente contra terceiros, na execução das funções que lhe pertencem e as que estão em causa nos autos pertencem porque praticadas no interesse do bem comumart.º 1437.º, n.º 1CC.
E mesmo que assim se não entende-se e deixando de parte o debate associado à indagação da natureza jurídica do Condomínio do prédio urbano em propriedade horizontal, que é sem dúvida sujeito de relações jurídicas, isto porque a lei lhe atribuiu expressamente personalidade judiciária, reconhecendo a possibilidade de ser parte passiva ou ativa em juízo1 , a representação em juízo das entidades ou massas que não gozam de personalidade jurídica é solucionada nos termos do artigo 12º do CPC, estabelecendo o regime de extensão de personalidade judiciária prevenida no que respeita ao Condomínio na sua al) e) - “o condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem nos poderes do administrador;”.
Assim, o condomínio enquanto centro autónomo de imputação de efeitos jurídicos não sendo dotado de personalidade jurídica, carece para actuar em juízo de estar representado pelo administrador, tal como decorre do estabelecido no artigo 26º CPC em conjugação com o artigo 1437º CC ao que acresce o condomínio ser citado ou notificado na pessoa dos seus representantes legais nos termos do disposto no art.º 223º nº 1 CPC
Ou seja, e como diz Miguel Mesquita, discorrendo em torno da interpretação do artigo 1437º, nº 2 CC, refere «Ao contrário do que a epígrafe do preceito enuncia, o administrador não tem legitimidade alguma, mas, antes, poderes de representação da parte, que é o condomínio. A legitimidade, ou seja, a suscetibilidade de ser a parte certa, pertence ao condomínio e não ao administrador. (…) O administrador limita-se a representar o condomínio em juízo, a ser, no fundo, a “voz do condomínio”, e isto porque este, naturalmente, não pode estar por si só em juízo(..).»[8].
O AC STJ de 4.10.2007 diz-nos que -
(…) Ao conferir ao administrador a possibilidade de actuar em juízo, o art.º 1437º do CC mais não faz do que concretizar uma aplicação do disposto no art.º 22º do CPC – que estatui sobre a representação das entidades que careçam de personalidade jurídica – eliminando possíveis dúvidas sobre se aquele poderia, no exercício das suas atribuições, recorrer à via judicial.(…) O art.º 1437º não resolve, pois, o problema da legitimidade do administrador, que, aliás, não se coloca, porque este age, em juízo, enquanto órgão do condomínio e, portanto, em representação deste. Do que, no fundo, se trata é de atribuir ao administrador  legitimação para agir em nome do conjunto dos condóminos
No mesmo sentido o AC STJ de 10.05.2021 diz -nos - «(…) o art.º 1437º do CCivil satisfaz a necessidade prática de, no âmbito das funções de administração que lhe pertencem ou que lhe sejam permitidas mediante deliberação da assembleia de condóminos, fazer representar a propriedade horizontal (o condomínio) em juízo sem chamar todos os condóminos à ação.»
Ou seja, concluímos seguramente que deveria ter sido admitida a constituição de assistente.
Vejamos agora quanto ao prazo para o direito de queixa
O recorrente diz que a, contar da data em que o titular do direito de queixa teve conhecimento dos factos e dos seus autores, o prazo terminou a 23.04.2021.
No que importa ao art.º 115º CP o direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores.
O crime em causa tem natureza semipública, ou seja, a queixa constitui, no plano funcional, uma condição prévia para o desencadeamento do processo penal.
«O direito de queixa extingue-se no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz».
Tendo em conta que o elemento da essencialidade típica do art.º 205º, n º 1 do C.P. é a apropriação ou seja
II - O agente tem que fazer sua a coisa, passando a atuar uti domini, como se fosse o verdadeiro proprietário a que terá de acrescer a intenção de não querer restituir.
III - A apropriação tem que ser "para si"; mesmo que o agente dê a coisa gratuitamente a outra pessoa, tem que haver um momento, ao menos lógico, em que o agente se apropria da coisa.
IV - Por isso, a prova da apropriação deve ser de tal modo que revele exteriormente a intenção de atuar uti domini.
V - Em caso de coisa de máxima fungibilidade como é o dinheiro e em situações de preexistência de relação contratualmente formatada, é necessário que a exteriorização de comportamentos que se afastem manifestamente do domínio ainda próximo das disfunções de cumprimento e mora, revelem, claramente, que a confundibilidade patrimonial e a utilização de quantias monetárias ocorram com a plena e determinada intenção de não restituir.
No caso concreto, já depois de ter sido destituída de funções, resulta dos autos que à administradora ora arguida foi desautorizado explicitamente qualquer movimento bancário que pudesse ser feito desde 11.11.2020 e que cerca de um mês depois decidiu movimentar dinheiros recusando-se a restituí-los posteriormente.
Ora, resulta da acta de 23.10.20 tudo isto e o conhecimento dos factos pelo Condomínio devendo ainda ter-se em conta as datas dos extratos bancários.
O administrador do condomínio apresentou queixa a 19.12.2020, conforme resulta dos autos.
Em tempo, portanto, e, tendo em conta a posição supra tomada, com legitimidade para tanto.
Assim, a queixa não é extemporânea.
Vejamos ainda se o requerimento de abertura de instrução cumpre os requisitos legalmente exigidos para a sua admissão, ou se não elenca os factos a imputar e respetiva subsunção legal, não constituindo uma verdadeira acusação, como decorre do disposto no artigo 283, nº 3, als. b) ed) aplicável por força doartigo287º, nº 2,ambosdoCódigode Processo Penal.
O requerimento de abertura de instrução data de 14.04.2023.
Sucede que o MP arquivou por considerar desatempada as queixas o que na verdade não se verifica e por entender que não havia legitimidade da parte do Condomínio.
Não deduziu o recorrente, reclamação hierárquica aquando do despacho de arquivamento lavrado pelo MP.
Vejamos antes de avançarmos para os requisitos do RAI se não ocorre a nulidade insanável, que é de conhecimento oficioso, resultante da falta de inquérito (artigo 119.º, alínea d), do CPP).
Na verdade, após a queixa o MP limitou-se a proferir despacho de arquivamento, não tendo procedido a qualquer diligência probatória.
Diz-nos o acórdão do T.R.C., processo nº 3664/09.6TACBR.C1, de 16-03-2011 que
“I- O inquérito tem como finalidade investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação.
II- Se os factos que são participados por si só não constituem crime, ou seja, não há qualquer dúvida de que não configuram um crime (p. ex crime amnistiado, direito de queixa já caducou) pôr a máquina judicial a funcionar, a trabalhar, para de seguida determinar o arquivamento é uma inutilidade a todos os níveis (humanos e económicos).
III- Se, porém, estamos perante factos que nos oferecem dúvidas pela sua complexidade, pelos valores em causa, pelos contornos da situação que não são tão simples como se desenham na denúncia e pela abundante prova que há a investigar, significa que estão reunidos todos os pressupostos do dever de investigar a começar pelo interrogatório do arguido.
IV- Em tal caso, se o MP profere despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência, comete-se a nulidade insanável de falta de inquérito previsto no art.º 119, al d) do CPP.119, al d) do CPP.
Vejamos então se, no caso presente, estamos perante uma situação em que se mostra manifesto, em face da denúncia, não serem os factos denunciados suscetíveis de integrar qualquer crime.
Ora, compulsados os autos verificamos existirem indícios de cometimento pela arguida de crime de abuso de confiança, uso indevido de dinheiros do condomínio a que acresce ter o recorrente legitimidade para a apresentação da queixa e, assim sendo legitimidade para requerer a abertura de instrução.
Quanto ao requerimento apresentado pela assistente, em reação a um despacho de arquivamento, não restam dúvidas que o pedido de abertura de instrução terá forçosamente de conter duas áreas de alegação, designadamente:
a. O requerente terá de mencionar as razões de discordância (de facto e de direito) no que se refere à decisão de não acusação, bem como indicação dos actos de instrução que pretende que sejam realizados e uma indicação e avaliação relativas aos meios de prova;
b. O requerente terá ainda de formular uma acusação, sujeita aos mesmos precisos requisitos e condicionalismos previstos para o Mº Pº.
É isso o que decorre do vertido no art.º 283º nº 3 do C.P.P, aplicável por remissão do vertido no art.º 287 nº 2 do mesmo diploma legal.
Os poderes do JIC são oficiosos ordenando que se produza prova que entender necessários à descoberta da verdade material, mas apenas relativamente aos factos concretamente alegados pelo requerente, não podendo substituir-se a este.
Exatamente o que acontece com o juiz do julgamento, face a uma deficiente acusação, que não tem poderes para a completar ou mandá-la corrigir.
Concluímos então que, se o MP não deveria ter rejeitado a queixa por não ser extemporânea e ainda porque havia legitimidade para a deduzir, o recorrente deveria, no seu requerimento de abertura de instrução ter deduzido uma verdadeira acusação ainda que sucinta e não o fez.
Assim, se a queixa deveria ter sido aceite, e se o tivesse sido, e o recorrente tivesse sido admitido a constituir-se assistente como deveria ter sido, o seu requerimento de abertura de instrução, mostrar-se-ia sempre insuficiente para prosseguir processualmente.
Só assim poderia não ter sido, se o recorrente em vez de deduzir a constituição de assistente e deduzir aquilo a que chama RAI, tivesse deduzido reclamação hierárquica após o despacho de arquivamento do MP - art.º 278.º, contando-se o prazo aí previsto da data daquele despacho ... mas não o fez.
Temos entendido e resulta da lei que que a apresentação de requerimento de abertura de instrução ou da apresentação de requerimento a suscitar a intervenção hierárquica são modos de reação alternativos e não cumulativos ou sucessivos e têm lugar a seguir ao despacho de arquivamento do titular do inquérito ou da dedução da acusação - 20 dias contado do despacho de arquivamento ou da acusação deduzidos pelo titular do inquérito. E não se diga que o legislador não vai ao encontro dos arts. 20º, nº 1 e nº 4, 32º e 18º da CRP.
Entendeu o despacho recorrido que o RAI, alega muito deficientemente os factos suscetíveis de integrar o tipo de ilícito de abuso de confiança, em moldes que impedem o prosseguimento dos autos. Não se alega a matéria relativa à intenção e nada consta quanto à representação, de todas as circunstâncias do facto, mais concretamente as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias e a inclusão dos mesmos.
O requerimento de abertura da instrução formulado constitui, substancialmente, uma acusação alternativa ao arquivamento ou à acusação decididos pelo Ministério Público, já que é através desse requerimento que é formulada a pretensão de sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal. “Se o assistente requer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que deveriam constar da acusação. Aquilo que não está na acusação e no entendimento de quem a deduz e lá devia estar pode ser mesmo muito vasto.
O juiz de instrução “não prossegue” uma investigação, nem se limitará a apreciar o arquivamento do MP, a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão.
Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática.
«Teríamos um processo já na fase da instrução sem qualquer delimitação do seu objeto, por mais imperfeita que fosse, o que não se compaginará com uma fase que em primeira linha não é de investigação, antes dominada pelo contraditório”.2
Ora, também ninguém pode defender-se daquilo que não conhece.
Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), CPP, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução e são todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo 283º CPP.
Tal exigência decorre de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória.
É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada. (…) De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.» (Ac. do TC nº 358/2004, de 19/05, in DR II, de 28/06/04).
O recorrente, não cumpriu o seu dever legal de descrição da matéria factual que permite fundamentar a aplicação de uma pena a pessoa concretamente identificada, impossibilitando assim a realização da instrução, a actuação do princípio do contraditório e a elaboração de uma decisão instrutória - nº 2 do artigo 287º CPP onde se remete para o disposto na alínea b) do nº 3 do artigo 283º do mesmo diploma.
Assim sendo improcede o recurso apresentado apenas porque, na verdade o RAI não contém em si elementos suficientes para que seja aberta a instrução pelo que, face a tal falha processual não poderia nunca, ainda que se entenda a queixa atempada como se entende, e ainda que seja o recorrente parte legítima para se constituir assistente, não deduziu o RAI de acordo com as exigências legais inexistindo descrição de factos concretos que consubstanciem conduta penalmente punível. A instrução não tem objeto, isto é, não pode haver instrução.
Sem instrução, o debate e a decisão instrutória constituem uma impossibilidade jurídica e os actos instrutórios serão inúteis.
Acresce que compete a quem quer ver o arguido acusado, enunciar os factos que constituem a acusação, e não ao Mº JIC.
Cabe-nos, pois, concluir que o requerimento de abertura de instrução não cumpre as exigências de conteúdo impostas pelo art.º 287 nº 2 do C.P.P., o que implica a inadmissibilidade legal de instrução (art.º 287 nº 3 do mesmo diploma legal), o que importa a sua rejeição e por essa razão improcede a pretensão do recorrente.
Assim sendo:

Concede-se parcial provimento ao recurso ao entender-se qua a queixa está em prazo e o recorrente tem legitimidade para se constituir assistente e requerer a abertura de instrução.
Contudo rejeita-se o requerimento de abertura de instrução por não cumprir as formalidades legais confirmando-se nesse ponto o despacho recorrido.

Ac elaborado e revisto

Lisboa, 07.02.2024
Adelina Barradas de Oliveira
Ana Paula Grandvaux
Rui Miguel Teixeira
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1. cfr. Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 136.
2. Souto de Moura, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, Coimbra, 1991, página 120.