Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1382/16.8T8TVD.2.L1-4
Relator: LEOPOLDO SOARES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PRESTAÇÃO SUPLEMENTAR PARA ASSISTÊNCIA DE TERCEIRA PESSOA
ACTUALIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário:
I - A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, operada no acórdão n.º 380/2024, de 13 de Maio de 2024, do Tribunal Constitucional, proferido no processo n.º 1164/2022, 3 ª Secção, Relatora Conselheira Joana Fernandes Costa, acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20240380.html [no qual se declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 54.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição] não tem implicações a nível das actualizações da prestação para assistência de terceira pessoa fixada ao abrigo da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1969.
II – O artigo 187.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, consubstancia uma disposição de direito transitório formal.
III – Consequentemente, no caso em apreço não há que recorrer ao disposto no artigo 12.º do Código Civil, nomeadamente ao estatuído no seu n.º 2 (última parte).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Analisados os autos constata-se que, em 8 de Abril de 2025, foi proferido o seguinte despacho:1
«O Acórdão do TC n.º 380/2024 declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 54.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
Por conseguinte, as atualizações que devem ser efetuadas a tal prestação não podem ser efetuadas em proporção inferior à proporção do aumento da RMMG.
Isso mesmo já havia também sido declarado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão do TC n.º 610/2023 que julgou inconstitucional a norma resultante da interpretação do artigo 54.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 98/2009, na medida em que permite que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, e que a respetiva atualização anual seja também inferior à percentagem em que o for essa remuneração, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa.
Face ao exposto, uma vez que nos presentes a seguradora tem comunicado as atualizações da prestação suplementar por valor inferior ao que corresponde ao aumento da RMMG, determino que a mesma venha efetuar reformular o cálculo de todas as atualizações da prestação suplementar efetuadas até à presente data em conformidade com as alterações da RMMG, explicitando os respetivos períodos e os valores das atualizações.
Notifique. » - fim de transcrição.
Em 17 de Abril de 2025, a Seguradora recorreu.2
Concluiu que:
«1. A Entidade Responsável procedeu à atualização das pensões devidas bem assim como da prestação suplementar para ajuda de terceira pessoa, das quais fez prova.
2. Por via de incidente de atualização de pensão, foi determinada por despacho que “(…) as atualizações que devem ser efetuadas a tal prestação não podem ser efetuadas em proporção inferior à proporção do aumento da RMMG.”
3. Escuda-se o despacho pelo “declarado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão do TC n.° 610/2023 que julgou inconstitucional a norma resultante da interpretação do artigo 54.°, n.°s 1 e 4, da Lei n.° 98/2009 na medida em que permite que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, e que a respetiva atualização anual seja também inferior à percentagem em que o for essa remuneração, por violação do artigo 59.°, n.° 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa.”
4. Assim o despacho recorrido, uma vez que nos presentes a seguradora tem comunicado as atualizações da prestação suplementar por valor inferior ao que corresponde ao aumento da RMMG, determinou que a ora Recorrente viesse reformular o cálculo de todas as atualizações da prestação suplementar efetuadas até à presente data em conformidade com as alterações da RMMG, explicitando os respetivos períodos e os valores das atualizações.
5. A pretensão da primeira instância, de que a prestação suplementar para ajuda de terceira pessoa deve ser atualizada de acordo com a decisão do mencionado Acórdão por virtude de um princípio interpretativo que lhe está subjacente, não merece acolhimento.
6. Primeiramente se diga que a disposição declarada inconstitucional pelo já referido Acórdão corresponde ao n.º 1 do art.º 54º da Lei 98/2009 e não qualquer disposição das leis anteriores que versavam sobre a prestação suplementar de assistência (doravante PSA).
7. O caso em apreço é regulado pela Lei 2127 de 3 de Junho de 1965, sendo-lhe aplicável, no tangente à PSA, a sua Base XVIII – que não sofreu qualquer declaração de inconstitucionalidade e tornaria, desde logo, ilegítima a pretensão pugnada pelo tribunal de Primeira Instância.
8. Mas além disto, sempre se diga que o art.º 282º da CRP, com a epígrafe «Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade» dispõe que:
“1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.
Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infracção de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última.
Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.
Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restritivo do que o previsto nos n.os 1 e 2.”
9. Assim, é a própria Constituição da República que, no nº 3 do seu artigo 282.º, ressalva os casos julgados, de modo a assegurar a intangibilidade de tais decisões pelos efeitos da declaração de inconstitucionalidade das suas normas, com força obrigatória geral.
10. Estamos perante a atualização das prestações fixadas em sentença, sentença essa transitada em julgado em 1990.
11. E esta sentença que não pode ser afectada pela decisão de inconstitucionalidade já aludida não só porque a lei e as normas aplicáveis ao caso não correspondem àquelas que foram declaradas inconstitucionais, mas também porque, ainda que o fossem, sempre estariam salvaguardados os casos julgados.
12. O que o Tribunal a quo pretende não é uma atualização da pensão, mas sim a modificação da decisão que fixou o montante da referida prestação ab initio, o qual tem vindo a ser atualizado ope legis anualmente.
13. Ainda que ao caso fosse aplicável a declaração de inconstitucionalidade (que não acontece face à data do acidente), com força obrigatória geral, do art.º 54 da Lei 98/2009, de 4 de setembro, esta nunca poderia modificar o conteúdo da decisão transitada em julgado.
14. O art.282º, n. º 3 da Constituição é taxativo no que concerne às decisões que são passíveis de ser modificadas após declaração de inconstitucionalidade, não se englobando as que tratamos no caso sub judice, ainda que este normativo lhe fosse aplicável.
15. Acresce que a viabilidade do despacho recorrido apenas seria possível através de uma interpretação legal e constitucional que violasse princípios dos mais caros ao Estado de Direito, como o da legalidade, boa-fé, confiança e segurança jurídica (artigo 2º da CRP).
16. O contrato de seguro é um negócio jurídico pelo qual o segurador e tomador acordam quanto à efetivação, pelo primeiro, de uma prestação, na condição de ocorrer a previsão de que depende o funcionamento da cobertura (o sinistro), mediante a contrapartida de um prémio devido pelo segundo (cfr. arts.1º e 51º do DL n.º 72/2008, atual regime do contrato de seguro).
17. Admitir o conteúdo do presente despacho não poderia deixar de constituir uma flagrante modificação das circunstâncias em que as partes acordaram na transferência da responsabilidade civil e na aceitação do risco, gravemente atentatória do equilíbrio alcançado entre prémio de seguro e risco, sendo o segurador chamado a responder por consequências não previstas, nem previsíveis.
18. A certeza e segurança do comércio jurídico seriam, assim, fortemente abaladas.
19. Termos em que deve considerar-se correta a atualização comunicada pela Seguradora aqui Recorrente, revogando-se o despacho recorrido, pois viola os os arts.2º e 282º, n.º 3 da
C.R.P e os arts.1º e 51º do DL n.º 72/2008, atual regime do contrato de seguro. » - fim de transcrição.
Assim, solicita o provimento do recurso.
Não se vislumbra que tenham sido deduzidas contra alegações.
Em 15 de Maio de 2025, foi proferido o seguinte despacho:3
«Por tempestivo, ter legitimidade a recorrente, e se admitir como admissível a recorribilidade da decisão recorrida, ter sido paga a taxa de justiça, estarem incluídas as respetivas alegações, admito o recurso interposto pela Fidelidade – Companhia de Seguros S.A., em 17/04/2025, o qual é de apelação, a subir nos próprios autos - artigos 79º, al. b), 79º-A, n.º 1, 80º, n.º 2, 81º, n.º 1, 83º, n.º 1, e 83-A, n.º 1, todos do C.P.T..
*
Consigno que o M.P. não apresentou resposta ao recurso.
*
Com o requerimento de prestação de recurso a recorrente peticionou que seja atribuído efeito suspensivo, nos termos do artigo 83.º n.º 1 do CPT, dispondo se prestar caução no valor de €2.000,00, equivalente ao valor atribuído ao incidente.
Nos autos de processo emergente de acidente de trabalho em apenso, por acidente de trabalho sofrido em 15/12/1988, foi atribuída ao sinistrado uma prestação suplementar, que na parte a suportar pela seguradora se cifrou no valor anual de 104.944$00 (€523,46), devida desde 21/12/1989 – cfr. auto de conciliação e despacho homologatório de 07/11/1990 – sendo que para 2025 a seguradora veio comunicar o valor da atualização de tal prestação para o montante de
€1.324,61.
Como se consignou no despacho recorrido, entende o tribunal que as atualizações que devem ser efetuadas a tal prestação não podem ser efetuadas em proporção inferior à proporção do aumento da RMMG, citando jurisprudência do Tribunal Constitucional que, não obstante se reporte a uma norma que não é aplicável ao acidente em apreço porquanto, sendo o mesmo anterior a 2010, não lhe é aplicável a Lei n.º 98/2009, de 04/09 (LAT), sustenta o entendimento de que as atualizações não podem ser inferiores à percentagem correspondente para as atualizações da RMMG, entendimento esse que por maioria de razão é válido para as prestações suplementares fixadas no âmbito da Lei n.º 100/97 e na ainda anterior Lei n.º 2127.
Face a tal entendimento, afigura-se que as atualizações relativas aos anos de 1990 e seguintes conduzirão a uma prestação, em 2025, no valor anual de €2.898,49, cfr. seguintes cálculos:



Desta forma, existirá uma diferença de €1.573,88 (€2.898,49 - €1.324,61), entre tal valor e o valor comunicado pela seguradora.
Assim sendo, multiplicando tal valor pela mesma taxa constante das tabelas práticas previstas na Portaria n.º 11/2000, de 13/01, que, por via do artigo 120º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, servem para determinar o valor da causa relativo ás pensões, tendo em conta a atual idade do sinistrado, será de quantificar o valor do incidente e, consequentemente, da caução a prestar, pelo montante de
€15.180,04 (€1.573,88 x 9,645), tendo em conta que, por ora, se desconhece o valor das eventuais diferenças que possam ser devidos relativos aos pagamento da prestação nos anos anteriores.
Face ao exposto:
1) Fixo o valor do incidente em €15.180,04 (quinze mil cento e oitenta euros e quatro cêntimos);
2) Fixo o valor da caução para garantir o efeito suspensivo do recurso em €15.180,04 (quinze mil cento e oitenta euros e quatro cêntimos), concedendo à recorrente o prazo de 10 dias para prestar caução por tal valor sob a forma de garantia bancária ou depósito autónomo de forma a assegurar o efeito suspensivo do recurso;
3) Determino que a recorrente proceda ao pagamento da taxa de justiça remanescente tendo em conta o valor da causa incidental agora fixado.
*
Notifique. » - fim de transcrição.
Em 6 de Junho de 2025, veio a ser conferido efeito suspensivo ao recurso atenta a prestação de caução pela recorrente.4
*****
Na elaboração do presente acórdão serão tomados em conta os factos decorrentes do relatório.
***
É sabido que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva alegação.
A questão a apreciar no recurso consiste em saber se deve reformular-se o cálculo de todas as actualizações da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, oportunamente, fixada ao sinistrado, ao abrigo da Base XVIII da Lei 2127, de 3 de Junho de 19655 efectuadas até à presente data em conformidade com as alterações da RMMG.
Segundo a decisão recorrida:
« (….) venha efetuar reformular o cálculo de todas as atualizações da prestação suplementar efetuadas até à presente data em conformidade com as alterações da RMMG, explicitando os respetivos períodos e os valores das atualizações».
A decisão recorrida apela ao dirimido no acórdão nº 380/2024, de 13 de Maio de 2024, do Tribunal Constitucional , proferido no Processo n.º 1164/2022, 3 ª Secção , Relatora Conselheira Joana Fernandes Costa, acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20240380.html, onde se declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 54.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, na medida em que permite que o limite máximo da prestação suplementar para assistência de terceira pessoa seja inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
Cita, igualmente, o decidido, em 28 de Setembro de 2023, no acórdão nº 610/2023 do Tribunal Constitucional proferido no processo n.º 383/2023, 2.ª Secção, Relatora Conselheira Mariana Canotilho , acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20230610.html., no qual em sede dispositiva se considerou:
«Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma resultante da interpretação do artigo 54.º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 98/2009, na medida em que permite que a prestação suplementar para assistência a terceira pessoa tenha um limite máximo que pode ser inferior ao valor da retribuição mínima mensal garantida, e que a respetiva atualização anual seja também inferior à percentagem em que o for essa remuneração, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa; e, em consequência,
(…) ».
****
Segundo o artigo 54º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro [que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 201066]:
Montante da prestação suplementar para assistência a terceira pessoa
1 - A prestação suplementar da pensão prevista no artigo anterior é fixada em montante mensal e tem como limite máximo o valor de 1,1 IAS.
2 - Quando o médico assistente entender que o sinistrado não pode dispensar a assistência de uma terceira pessoa, deve ser-lhe atribuída, a partir do dia seguinte ao da alta e até ao momento da fixação da pensão definitiva, uma prestação suplementar provisória equivalente ao montante previsto no número anterior.
3 - Os montantes pagos nos termos do número anterior são considerados aquando da fixação final dos respectivos direitos.
4 - A prestação suplementar é anualmente actualizável na mesma percentagem em que o for o IAS.
Refira-se que o nº 4 deste preceito tem cariz inovador em relação ao estatuído nas normas equivalentes dos diplomas anteriores, pois, prevê na própria LAT e não em diploma avulso a actualização da prestação em causa.
****
Mas será que a supra citada declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, tem efeitos no caso concreto?
A prestação em causa foi fixada na vigência da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1969.
Assim, coloca-se o problema de saber se a Nova Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, nomeadamente o nº 4 da supra citada norma, se aplica às prestações fixadas ao abrigo da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1969.
Todavia, será que, em rigor, nos encontramos perante um problema de sucessão de leis?
Nas palavras de J. Baptista Machado 7 « os problemas de sucessão de leis no tempo suscitados pela entrada em vigor de uma LN 8podem, pelo menos em parte, ser directamente resolvidos por esta mesma lei, mediante disposições adrede formuladas, chamadas disposições transitórias (cfr.….).
Estas disposições transitórias podem ter carácter formal ou material.
Dizem-se de direito transitório formal aquelas disposições que se limitam a determinar qual das leis, a LA 9 ou a LN, é aplicável a determinadas situações.
São de direito transitório material aquelas que estabelecem uma regulamentação própria, não coincidente nem com a LA nem com a LN, para certas situações que se encontram na fronteira entre as duas leis» - fim de transcrição.
Anote-se que quando o legislador nada diz sobre a lei aplicável pode suscitar-se um problema de conflito de leis no tempo, sendo que nesse caso cumpre aplicar o disposto nos artigos 12.º e 13º do Código Civil.10
O princípio geral sobre a aplicação das leis no tempo consta do artigo 12º do Código Civil que preceitua:
(Aplicação das leis no tempo. Princípio geral)
1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Esta norma é inspirada na doutrina do facto passado.
Nas palavras de J. Batista Machado11:
«Estipula o referido art. 12º, 1, que a lei só dispõe para futuro, quando não lhe seja atribuída eficácia retroactiva pelo legislador; e que mesmo nesta última hipótese, se presumem ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei destina a regular.(…)
Desenvolvendo o principio da não retroactividade nos termos da teoria do facto passado, o art. 12º, 2 , distingue dois tipos de leis ou de normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos ( 1ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2ª parte).
As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relações jurídicas (…) constituídas antes da LN (lei nova) mas subsistentes ou em curso à data do seu IV (início de vigência)» – fim de transcrição.
Assim, no respeitante às normas reguladoras de factos, deve entender-se em caso de dúvida que só valem para o futuro, sendo que no que concerne às reguladoras de direitos é de presumir que abrangem as próprias situações jurídicas já existentes, podendo modificar-lhes o conteúdo ou até suprimi-lo.
No caso concreto, estamos perante uma situação em que a norma em causa, atinente à actualização, dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem.
Assim, poderia entender-se-á que abrangia as próprias relações já constituídas, subsistentes à data da sua entrada em vigor.
Tal como refere o Professor Miguel Teixeira de Sousa um caso de aplicação imediata da «LN que incide sobre o conteúdo de situações jurídicas, independentemente do título que lhes esteja subjacente» é «o direito dos familiares da vítima a uma pensão vitalícia, como reparação do acidente de trabalho» que «surge com a morte do sinistrado, momento no qual se criou, ex lege, uma situação jurídica, de natureza duradoura, sem qualquer conexão direta com o facto que lhe deu origem; assim é imediatamente aplicável a LN12, (….).
Por outro lado, a reparação do acidente materializa-se, para além do mais, no direito a uma pensão anual e vitalícia, pelo que a obrigação dos responsáveis se renova todos os anos, enquanto se mantiver a obrigação de reparar o acidente» - fim de transcrição.
Porém, na situação em exame a Lei Nova - ou seja a Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro – contem uma norma de direito transitório formal.
O seu artigo 187º regula:
Norma de aplicação no tempo
1 - O disposto no capítulo ii aplica-se a acidentes de trabalho ocorridos após a entrada em vigor da presente lei.13
2 - O disposto no capítulo iii aplica-se a doenças profissionais cujo diagnóstico final seja posterior à entrada em vigor da presente lei, bem como a alteração da graduação de incapacidade relativamente a doença profissional já diagnosticada.
Ora o artigo 54º consta do Capitulo II dessa Lei.
Assim, cumpre concluir que essa Lei, nomeadamente o nº 4 do seu artigo 54º, não se aplica às pensões e prestações fixadas ao abrigo da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1969.
Como tal quer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão nº 380/2024 do Tribunal Constitucional quer o supra citado raciocínio explanado no acórdão nº 610/2023, de 28 de Setembro de 2023 do Tribunal Constitucional não as afecta.
É o legislador que o afirma no nº 1 do artigo 187º.
Tanto basta para resolver a presente questão visto que a invocada declaração de inconstitucionalidade não afecta as normas anteriores e no caso concreto a Lei Nova não logra aplicação.
Oportunamente, sendo caso disso, apreciará a 1ª instância, de acordo com o supra citado regime, as actualizações referidas pela Seguradora 14.
***
Em face do exposto, acorda-se em revogar o despacho recorrido.
Custas pelo recorrido, sem prejuízo de isenção de que beneficie e do disposto no nº 7 do artigo 4º do RCP.
Notifique.

Lisboa, 10-07-2025
Leopoldo Soares
Celina Nóbrega
Sérgio Almeida
_________________________________________________
1. Fls. 75.
2. Fls. 76 a 81.
3. Fls. 83 e 84.
4. Fls. 91.
5. Segundo o qual:
BASE XVIII
Prestação suplementar
1. Se, em consequência da lesão resultante do acidente, a vítima não puder dispensar a assistência constante de terceira pessoa, terá direito a uma prestação suplementar não superior a 25 por cento do montante da pensão fixada.
2. Para o cálculo da prestação suplementar, não se atenderá à parte da pensão que exceda 80 por cento da retribuição-base.
6. O artigo 188.º do diploma em causa regula:
Entrada em vigor
Sem prejuízo do referido no artigo anterior, a presente lei entra em vigor no dia 1 de Janeiro de 2010.
7. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, págs . 229-230.
8. Lei Nova.
9. Lei Antiga.
10. De acordo com esta norma:
(Aplicação das leis no tempo. Leis interpretativas)
1. A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza.
2. A desistência e a confissão não homologadas pelo tribunal podem ser revogadas pelo desistente ou confitente a quem a lei interpretativa for favorável.
11. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, Coimbra, 1983, págs. 232-233.
12. Aplicação da Lei no Tempo”, Cadernos de Direito Privado, n.º 18, Abril-Junho de 2007, p. 8., citando o acórdão do STJ de 8 de Junho de 1994, in BMJ, n.º 438, Julho de 1994, pp. 440, relativo à aplicação da redacção da Base XIX da Lei n.º 2127, introduzida pela Lei n.º 22/92, de 14 de Agosto, aos acidentes de trabalho ocorridos antes da entrada em vigor desta Lei.
Tal citação mostra-se efectuada em ac. do STJ , de 03-07-2014, proferido no processo nº 378/1993.P1.S1 , Nº Convencional: 4ª Secção, Relator Conselheiro António Leones Dantas acessível em www.dgsi.pt.
13. Ou seja 1 de Janeiro de 2010, tal como resulta do artigo 188º do diploma em causa.
14. Vide conclusão nº 19.