Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
585/22.0T8OVR-A.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: COACÇÃO MORAL
VÍCIO DE VONTADE
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.No âmbito da coacção nem a gravidade do mal cominado nem a justificação do receio de que a ameaça seja consumada constituem requisitos essenciais de relevância de tal vicio da vontade.

II.Sendo a coacção exercida pelo companheiro no ambiente familiar e como forma de pressão exercida contra executada e filhos menores desta, quando exista quer uma dependência emocional e afectiva, quer financeira, não deixa de estar inquinada a declaração de vontade de assunção de uma dívida, sendo esta a forma de a executada se libertar da convivência nefasta do exequente.

III.A procedência da coacção moral não depende da alegação e prova pelo declarante de quaisquer outros requisitos além da ameaça dum mal, da sua ilicitude e do carácter intencional ou cominatório da mesma.

(Sumário elaborado pela relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.RELATÓRIO:


A executada/embargante M… deduziu embargos à execução que lhe foi movida por P…, exequente.

Alegou, em síntese, que a executada, no processo de separação em outubro de 2010, daquele que fora o casal, foi alvo de um conjunto de ameaças e constrangimentos por parte do exequente, razão pela qual, sob o mais profundo temor e coação outorgou o denominado acordo de regularização de divida dado à execução, o acordo de regularização de divida levado à execução foi outorgado pela executada sob a coação que se refere o artigo 255.º do Código Civil e que o artigo 256º do Código Civil prevê que a declaração negocial extorquida por coação é anulável, o que desde já se requer para todos os legais efeitos.

Acrescentou que não é devedora da quantia, ora em execução, uma vez que nem a recebeu, muito menos teve conhecimento de qual o destino que o exequente lhe deu e, só assinou/outorgou o dito acordo de regularização de divida, usado agora como titulo executivo, por força da coação, tornando-se o mesmo ineficaz. Pede que o pedido do exequente seja indeferido.
Admitidos os embargos o exequente/embargado contestou, tendo impugnado o alegado e ainda invocado a excepção de caducidade do direito à arguição da anulabilidade da declaração negocial por coação pelo decurso do prazo de um ano previsto no art.º 287.º, nº 1, do Código Civil.
Por despacho de 05/01/2023, foi determinada a suspensão da execução, ao abrigo do disposto no art.º 733.º, nº 1, al. c), do CPC.
Notificada a embargante/executada para responder à matéria de excepção invocada pelo embargado/exequente, veio a mesma defender que o prazo de um ano só começa a correr nos termos do previsto no artigo 329º do CC, ou seja, no momento em que o direito puder ser legalmente exercido, e que, para efeitos da presente execução, o prazo começou a correr após a citação. Alega igualmente que «se assim não fosse, a solução de direito seria aberrante pois a declaração obtida sob coação só se apresenta como relevante a partir do momento em que é usada judicialmente». Acrescenta que «mesmo que assim não se entenda, bem se percebe que a declaração obtida sob coação nunca pode produzir os seus efeitos, desde logo porque atenta contra o princípio do regular exercício dos direitos». Conclui no sentido em que «estarão francamente, postas em causa os limites impostos pela boa-fé e pelo fim social e económico do direito que se pretende levar à execução, no caso, pelo menos na modalidade do tu quoque, pois o embargado que violou a norma jurídica prevista no artigo 256º do CC, não pode prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente, pois o embargado com a violação desta norma perturbou o equilíbrio natural subjacente ao ordenamento jurídico, sendo, assim, ilegítimo quando o exercício do direito à caducidade exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé».
Foi dispensada a realização da audiência prévia e foi proferido despacho saneador, realizado o julgamento foi de seguida proferida sentença que julgou os presentes embargos de executado totalmente procedentes e, em consequência, anulou a declaração negocial da embargante M… exarada no documento dado à execução datado de 28/10/2010 (por ter sido obtida por coação moral exercida pelo embargado P…), e, em consequência, julgou extinta a execução de que estes embargos de executado constituem um apenso.

Inconformado veio o exequente/embargado recorrer pugnado pela improcedência dos embargos e concluindo da seguinte forma:
«A–O presente recurso vai da douta decisão com Ref. n.º 55622318 no âmbito do Processo n.º 585/22.0T80OVR-A, Juízo Central Cível e Criminal de Angra do Heroísmo - Juiz 3, Tribunal Judicial da Comarca Dos Açores e é interposto em tempo, por quem tem legitimidade e os seus fundamentos inerentes à matéria de facto, mas também matéria de direito.
B–Nos termos do art. 640.º do CPC, n.º 1, al. a), o concreto pontos de facto que consideramos incorrectamente julgado, no sentido que foi dado como provado e deveria ter sido dado como não provados, é o seguinte: a)-Número 4 dos factos provados – uma vez que não existiu coação e, como tal, o documento que a executada/embargante outorgou, denominado acordo de regularização de dívida, é perfeitamente válido, razão pela qual a declaração negocial da embargante M... não deve ser anulada e, consequentemente, os embargos de executado devem ser julgados totalmente improcedentes.
C–Por sua vez, o concreto ponto de facto que foi dado como não provado e deveria ter sido dado como provado, é o seguinte: Alínea b) dos factos não provados, pelo simples facto que a própria executada, quando a juíza lhe questiona “Já agora, então, o artigo 20º da contestação refere que o senhor P..., refere-se que o senhor P... é que foi alvo de ameaças, injúrias, coações, difamação, ofensas e violência doméstica com enorme gravidade e grave censura penal. Portanto, é referido na contestação do senhor P... que foi o senhor P... é que foi alvo de ameaças, injúrias, coações, difamação, ofensas e violência doméstica. O que é que a senhora MG... tem a dizer sobre esta alegação?”, responde “A única coisa que eu tenho a dizer é que eu cheguei a um ponto que sim.”.
D–Nos termos do art. 640.º, n.º 1, al. c) do CPC, a decisão que, no nosso entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas é a seguinte 1) No que diz respeito aos FACTOS PROVADOS: a)-Não houve coação por parte do exequente/embargado sobre a executada/embargante FACTOS NÃO PROVADOS: 1º-O exequente/embargado, durante a relação amorosa com a executada/embargante, foi vítima de violência doméstica por parte da mesma.
POR OUTRA BANDA;
E–Na senda da impossibilidade de condenação com os factos dados como provados, é para nós liquido que para os embargos procederem não é suficiente que o único – saliente-se único - ponto de factos provados com relevo para a coação seja o “ponto 4 dos factos provados” e que “foi alvo de um conjunto de ameaças e constrangimentos por parte do exequente/embargado”.
F–Para que os presentes embargos pudessem proceder teria sido imprescindível, o que não aconteceu, saber em concreto e darem por provadas – EM CONCRETO – de quais ameaças foram provadas, ameaçar de quê? Quando? Onde? E ameaças essas, de tal forma graves que teriam sido necessárias, suficientes e adequadas a interferir na vontade de celebrar – AQUELE EM CONCRETO - documento.
G–Constrangimentos? O mesmo se diga quanto aos mencionados “constrangimentos”, posto que não se dá como provado um único constrangimento definido, particular e concreto.
H–Nos factos provados também não consta que - sejam quais forem as ameaças e constrangimentos (que não são mencionadas) – se não fossem as mesmas, a executada não teria outorgado esse documento.
I–Ora tal era imprescindível, para que a coação pudesse proceder e estes embargos, até porque ficamos sem saber o que a executada efectivamente queria ou não queria do mencionado documento, pois a executada ficou na casa morada de família, a executada recebeu o dinheiro do Banco, a executada ficou com todo o recheio mencionado no dito contrato, então ficar com o dinheiro, ficar na casa, ficar com todo o recheio queria e não tinha medo, mas para pagar já não queria e foi obrigada?!
J–Em sede dos factos dados como provados, por todos os motivos, os presentes embargos não poderiam proceder e assim, estamos em sede de nulidade, que se deixa arguida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c) do CPC.
K–No tocante ao cumprimento do contrato e salvo melhor entendimento o Tribunal enferma de vício de raciocínio lógico ao fazer aplicação do art. 287º nº2 do CC, pois o Tribunal não pode dizer que o contrato não foi cumprido (considerando a anulabilidade sem prazo) por nesse contrato, a executada ficou na casa morada de família (portanto foi cumprido), ficou com o dinheiro do Banco (portanto foi cumprido), ficou com todo o recheio descriminado no mencionado contrato (Doc.1 do requerimento executivo, portanto foi cumprido).
L–Salvo melhor entendimento constitui um verdadeiro abuso de direito, que se invoca nos termos do art. 334º do CC invocar a coação para a parte de pagar (a qual não pagando invoca-se que nem tem prazo para invocar a coação) não obstante a parte de receber ou a “parte boa” do contrato já ter sido cumprida integralmente, pois aceitou, recebeu e fez sua a contra-prestação.
M–Consideramos que o art. 287.º n.º 2 do CC não pode ter aplicação em contratos de prestações sinalagmáticas, em que parte das mesmas prestações, i.e. todas as boas para uma parte, já foram cumpridas e muito menos, constitui um acto de abuso de direito e má fé, aproveitar a falta de prazo precisamente para aquela parte que recebeu a parte boa e esqueceu a parte má de pagar, pelo que sempre deveria proceder a caducidade arguida e excedido o prazo de 1 ano.
N–Nos presentes autos, como no mencionado e douto Acordão STJ, não existe uma intransponível relação causa-efeito, pelo que também nunca poderia proceder a invocada coação, Ac. STJ, 15-01-2008, UNANIMIDADE, Sumário : IV)- Não tendo havido ameaça de que não pudesse escapar, não se pode considerar que tenha havido coacção moral, porquanto não existe uma intransponível relação de causa e efeito, entre a pretensa ameaça e a actuação do signatário de tal documento (ora embargante) em função dela. V)- Aquela declaração escrita e reconhecida notarialmente – referida em III) – assumindo a existência da dívida do pai do signatário de tal declaração, porque isenta de vício na formação e emissão da declaração de vontade, constitui título executivo exprimindo assunção da dívida.».

A embargada respondeu e nas suas contra alegações concluiu que:
«I-O apelante recorre da matéria de facto e de direito.
II-O apelante não pode escolher as testemunhas que lhe interessa e considerar pouco credíveis as demais pois a apreciação da prova não é tarefa incumbida às partes, mas sim ao julgador, tal como resulta do previsto nos artigos 5º e 607º do Código de processo Civil.
III-Elementos de prova que se identificam, entre outros nas declarações dos filhos da embargada, facto que não poderá ser ignorado pelo apelante, ao contrário do que pretende, conforme se percebe pelo que articula em 4º da sua apelação.
IV-O ponto 4 da matéria de facto prova resulta fundamentada de forma clara e objectiva.
V-Tanto mais que os filhos da embargante depuseram de forma sincera, espontânea e coerente, por forma a que fosse conhecida a actuação do apelante, que a aterrorizava, ora porque lhe batia ora porque usava arma de guerra em riste na forma descrita.
VI-Ao contrário do pretendido pelo apelante, não se alcança vicio algum na apreciação da prova que apenas expôs na parte que julga favorecê-lo, tanto mais que a prova que determinou os factos provados em 4º da douta sentença, se subtem aos princípios da livre apreciação da prova, concentração, oralidade e imediação,
VII-Tanto mais que nenhum dos depoimentos que transcreve infirmam o depoimento das vítimas das astenias do apelante,
VIII-correspondendo a um exercício estéril a contraposição dos segmentos que determinam a douta convicção do julgador, que resultam plasmados no texto da sentença e se pretendem reproduzidos.
IX-Afirmando-se que fundamentação da sentença é clara e elencada, porque elencados os fundamentos que determinam a convicção após análise crítica da prova nos termos previstos no artigo 607 número 4 do código processo civil.
X-Tanto mais que as testemunhas apresentadas pelo embargado não coabitavam com a família da embargante, não conheciam o terror que aquele impunha na casa de morada daquela e dos meninos que suportaram o comportamento do embargante… que resultou MUITO bem provado.
XI-J…, com 13 anos de idade à data dos factos declarou que o exequente apontou uma arma em direção à sua mãe na sequência de uma discussão sobre dívidas, tanto mais que assinou um documento assustada. E V…, com 10 anos de idade à data dos factos, afirma ter visto o embargado apontar arma de fogo à mãe, nas mesmas circunstâncias que determinam a causalidade entre aquele comportamento e a assinatura do documento levado à execução; de tal forma “que a embargante «fazia tudo o que ele mandava e quando não fazia…».
XII-Considerando-se, assim, prejudicada a articulação referente à matéria de prova considerada não provada.
XIII-Quanto à matéria de direito, articulada de 42º a 57º das alegações de recurso, percebe-se o erro notório do apelante, porque, ao contrário do que articula em 42º, da douta sentença não resulta apenas (4º factos provados) que “foi alvo de um conjunto de ameaças e constrangimentos por parte do exequente/embargado”, resulta também, de forma bem clara que: “episódios de violência protagonizados pelo embargado/exequente na pessoa da embargante, sua mãe(…)”/“ (…) embargado a apontar uma arma em direção à cabeça da embargante para que esta assinasse um documento.(…)”/ “(…) medo que sentia do embargado ao ponto de não gostar de estar na sua própria casa, pois sabia que o embargado a partir do momento em que chegasse a casa iria começar a agredir(…)”/“afirmando que «ele mandava em mim, no irmão e na mãe e nós tínhamos que obedecer»”/“(…), «a mãe sentia medo dele», «ele mexia no nosso psicológico, ele ameaçava» “/“(…)e recordando-se de um episódio em que o embargado apontou a arma à mãe(…). “/ “Mais disse que não apresentaram queixa contra o embargado porque «nós tínhamos medo dele, ele ameaçava-nos, batia-nos». “/ “A testemunha V...Silva depôs com sinceridade, espontaneidade e coerência, descrevendo que assistiu ao embargado a dar uma chapada à embargante e a apontar uma arma à embargante num café explorado por ambos, (…)” / “(…) o embargado «gostava de mandar, era agressivo, estava sempre em cima deles» e que a embargante «fazia tudo o que ele mandava e quando não fazia…».
XIV-Não se poderá afirmar, salvo o devido respeito, o que resulta do articulado em 43º a 49º!... então não foi claramente exposta a factualidade do que aconteceu e motivou a decisão (?) cremos que sim, em concreto que outorgou o documento sob coacção que era permanente e em crescendo, inclusivamente com uso de arma de fogo!
XV-Ao que acresce que se verifica um verdadeiro salto lógico na articulação plasmada de 52º a 55º das doutas alegações de recurso, vejamos, o apelante parte do princípio que é considerado provado que que um qualquer contrato foi cumprido, o que não corresponde á verdade.
XVI-Pois o exequente não pode ter deixado de perceber que a embargante alega nunca ter recebido a quantia resultante do eventual mútuo bancário,
XVII-ao que acresce que as obras deveriam ter sido efectuadas com recurso ao programa regional de apoio à habitação e não com as quantias com que o exequente se locupletou.
XVIII-Ou seja, não é, sequer, equacionável a questão do abuso de direito porque a embargante, de 7º a 11º dos seus embargos afirma nunca ter recebido tais quantias!... que a terem sido, eventualmente contratadas, o exequente as fez suas.
XIX-Por outro lado, o título executivo resulta (obtido) declarado sob coação, não resultando de um qualquer contrato que se perceba objecto da presente lide, pois o título radica naquela declaração notarial, razão pela qual não será arriscado afirmar-se como estranho o raciocínio plasmado em 52º das alegações de recurso.
XX-Acresce que a embargante afirma nunca ter recebido dinheiro algum e, percorrido a douta oposição aos embargos, em momento algum é alegada questão de cumprimento de um qualquer contrato pelo exequente.
XXI-Da referida oposição resulta, outro sim que o exequente pugna pela exequibilidade da declaração obtida sob coação, fazendo apelo ao regime dos títulos executivos em vigor antes de 2013 e sustenta a execução, em exclusivo, naquela declaração notarial,
XXII-Não pode, assim, deixar de se referir que tal documento não pode garantir que as declarações que os outorgantes fazem ao documentador correspondem à verdade, ou seja, que exista um qualquer contrato, que o exequente tenha pagado o que quer que seja, que o exequente tenha disponibilizado quantias em benefício da embargante, ou quaisquer outros que permita concluir como decorre do que articula de 52º a 53º, com as consequências de direito que determina em 54º e 55º das suas alegações.
XXIII-Resultando assim prejudicado o alegado (54º da apelação) quanto à aplicação do regime do artigo 287º número 2 do código civil, porque, efetivamente foi provada a existência da ameaça desentende-se, também, o alegado em 55º das alegações de recurso.
XXIV-Razão que determinará a improcedência, também deste segmento de apelação (C.) de direito.».

Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.

Importa assim, saber no caso concreto:
- Se é de alterar o ponto 4 dos factos provados, colocando-o na negativa, e dar como provado o constante da alínea b) dos factos não provados;
- Se é de considerar a nulidade da sentença nos termos previsto na alínea c) do artº 615º nº 1 do Código de Processo Civil;
- Se é de considerar o sinalagma do contrato e o cumprimento deste por banda do exequente, com a impossibilidade de anulação e verificação da caducidade do direito.
- Se não se verifica a coacção e logo, a anulação com base em tal vício da vontade.
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II.–FUNDAMENTAÇÃO:

No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1.–O exequente/embargado e a executada/embargante viveram em união de facto entre 2003 e 2010.
2.–A executada contraiu dois empréstimos bancários, um no valor de € 7.028,58 (sete mil e vinte e oito euros e cinquenta e oito cêntimos) e o outro no valor de € 84.657,83 (oitenta e quatro mil seiscentos e cinquenta e sete euros e oitenta e três cêntimos), num valor total de € 91.686,41 (noventa e um mil e seiscentos e oitenta e seis euros e quarenta e um cêntimo).
3.–Tais mútuos tinham por objecto a realização de obras na casa da executada, no âmbito do programa Regional de apoio à habitação e equipamentos da Ilha Graciosa.
4.–A executada/embargante, no processo de separação em outubro de 2010, daquele que fora o casal, foi alvo de um conjunto de ameaças e constrangimentos por parte do exequente/embargado, razão pela qual, sob o mais profundo temor, outorgou o denominado acordo de regularização de divida dado à execução (título executivo), datado de 28/10/2010, nos termos da qual se confessa devedora perante o embargado da quantia de € 45.000,00.
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Foram dados como Não Provados, os seguintes factos:
a)-Que as quantias mutuadas tivessem sido depositadas na conta do exequente e que este nunca tivesse usado tais quantias nas obras referidas no facto provado nº 3, que tivesse feito exclusivamente suas tais quantias e tivesse dado destino que a executada desconhece, em proveito único e exclusivo daquele.
b)-Que durante a relação amorosa, o embargado é que tivesse sido alvo de ameaças, injurias, coações, difamação, ofensas e violência doméstica.
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Importa ter presente que o título dado à execução é um documento particular, denominado “Acordo de regularização da dívida”, subscrito a 28/10/2010, cujas assinaturas do exequente (segundo outorgante) e executada (primeira outorgante) se encontram reconhecidas presencialmente por notário, sendo o mesmo do seguinte teor:«(…) Tendo em consideração que:
1.–O Primeiro e o Segundo Outorgante contraíram dois empréstimos bancários junto do Banco S… um empréstimo no montante actual de 7.028,58 EUR (sete mil vinte e oito euros e cinquenta e oito cêntimos) referente ao crédito habitação com Taxa Variável. Outro empréstimo no montante actual de 84.657,83 EUR (oitenta e quatro mil seiscentos cinquenta e sete euros e oitenta e três cêntimos) referente ao crédito multifunções com Taxa Variável o que perfaz o total de 91.686,41 EUR (noventa e um mil seiscentos e oitenta e seis euros e quarenta e um cêntimos) cuja prestação mensal no valor mensal de 326,84 EUR (trezentos e vinte e seis euros e oitenta e quatro cêntimos) se encontra a ser debitada na conta sob o número … cujo titular é o Segundo Outorgante.
2.–O Primeiro Outorgante fica com os bens móveis equivalente ao recheio da habitação sita no …, nomeadamente, electrodomésticos: Frigorifico, arcas fogão, micro-ondas, máquina de lavar, máquina de secar, mobiliário de cozinha, móveis de sala, televisor LCD, mobiliário de WC, benfeitorias no interior da habitação, (carpintaria, portas e janelas) e com bens móveis equivalente a parte do recheio do café arrendado e com trespasse, nomeadamente, o equipamento eléctrico, Hi-Fi, retroprojector, equipamento de som, matraquilhos, máquinas de dardos, que são propriedade do Segundo Outorgante. O Primeiro Outorgante é assim responsável pelo pagamento da respectiva dívida no montante global de 45.000,00 EUR (quarenta e cinco mil euros).

É celebrado entre os dois outorgantes o presente acordo de regularização de dívida, que, se rege pelas cláusulas seguintes, e pela legislação aplicável:
Primeira
O Segundo Outorgante detém, com referência a 1 de Janeiro de 2011, um crédito sobre o Primeiro Outorgante de 45.000,00 EUR (quarenta e cinco mil euros).
Segunda
- O Primeiro Outorgante pagará ao Segurado Outorgante o valor do crédito acima referido da seguinte forma:
- Com a entrega da quantia inicial de uma prestação de 625.0€ (seiscentos e vinte e cinco euros) até dia 01 de Janeiro de 2011;
- Liquidará o montante do crédito em Setenta e Duas (72) prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de 625.0€ (seiscentos e vinte e cinco euros);
- Sendo a última prestação no valor de 625,00 € (seiscentos e vinte e cinco euros) até dia 1 de Dezembro de 2016;
- O Primeiro Outorgante liquidará Setenta e Duas (72) prestações mensais, iguais e sucessivas através do NIB … do Banco S… cujo titular é o Segundo Outorgante.
Terceira
O presente contrato terá a duração de Setenta e Dois (72) meses e produz efeitos desde a data da sua assinatura do presente contrato.
Quarta
1-O crédito referido na primeira cláusula, vence juros à taxa anual e supletiva, que presentemente é de 4 %.
2-Os juros serão contados dia a dia sobre o montante do capital em dívida e liquidados e pagos postecipadamente no termo de cada mês, efectuando-se o primeiro pagamento a 1 de Janeiro de 2011.
3-No caso de haver mora, os respectivos juros serão calculados à taxa dos juros remuneratórios vigente à data da mora, acrescida de uma sobretaxa de 2% ao ano, a título de cláusula penal.
Quinta
O Primeiro Outorgante confessa-se devedor ao Segundo Outorgante do crédito referido na primeira cláusula deste contrato, das despesas e quaisquer outros encargos inerentes.
Sexta
1-Se o Primeiro Outorgante não cumprir qualquer das obrigações assumidas no presente contrato, ou de qualquer outro celebrado ou a celebrar entre o Primeiro e o Segundo Outorgantes, poderá o Segundo Outorgante considerar vencida toda a dívida e exigir o pagamento imediato de tudo o que lhe for devido.
2-A demora ou omissão pelas partes do exercício de qualquer direito ou faculdade conferido nos termos do presente contrato, não será considerado como renúncia ao referido direito ou faculdade, mantendo-se estes vigentes.
3-A renúncia a qualquer direito emergente do presente contrato não implica a renúncia aos demais direitos deles emergentes, ou da lei, nem afecta a possibilidade de fazer cumprir todas as suas cláusulas.
Sétima
As despesas e encargos emergentes da celebração e execução deste contrato, são da conta do Primeiro Outorgante, assim como as despesas judiciais e extrajudiciais em que o Segundo Outorgante incorra para garantia e cobrança dos seus créditos.
Oitava
A invalidade total ou parcial das cláusulas deste contrato, não afectará a validade das restantes provisões contratuais, a não ser que a parte interessada demonstre que o fim prosseguido pelas partes permite supor que estas não teriam concluído o acordo sem a parte viciada.(…)».
*

Da impugnação da decisão de matéria de facto:

No âmbito da impugnação da matéria de facto estabelece o art. 640.º do C.P.C.:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a)-Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b)-Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c)-A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a)-Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b)- Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

Refere Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., Almedina, 2017, pp. 158-159) que: «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: a)-Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)); b)-Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a));c)-Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d)-Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e)-Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».

Salienta-se que o S.T.J. «tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.»(Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores).

Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objectivos que o art. 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.

Quanto à dinâmica de alteração importa ter presente que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»

Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.

De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).

Acresce que não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.)
Feito este enquadramento, haverá que aferir quais os pontos concretos que devem ser apreciados por este tribunal e de que forma são os mesmos relevantes e em que termos a impugnação colhe nos termos pretendidos pelo recorrente.
O recorrente, exequente nos autos, pretende que se altere a resposta ao ponto 4. dos factos provados, bem como a resposta negativa contida na alínea b) dos factos não provados.
Face ao supra referido em nada releva para a apreciação jurídica dos autos a resposta, quer se considere positiva ou negativa, dos factos contidos na alínea b) dos factos não provados.
Com efeito, o que releva para os autos é aferir da existência ou não de um vício da vontade que inquine o título executivo dado à execução e neste, face ao teor dos embargos, importa apreciar se tal vício ocorre por banda da executada, em nada relevando a eventual existência ou não de violência doméstica entre o casal alegadamente perpetrado pela executada contra o exequente. Pois não há que olvidar que é este que se apresenta nos autos a fazer valer um acordo estabelecido entre ambos, pelo que a discussão a ter em conta e com relevância somente ocorre com base em tal documento e vicissitudes do mesmo, ou em concreto a forma como se originou. Donde, inexiste interesse em saber se o exequente era ou não objecto de violência doméstica e em que termos, nada se pretende julgar nestes autos que assuma relevância tal matéria. Na verdade, o exequente pretender fazer valer o seu direito com base num acordo que alega ter existido com a executada, pelo que não vislumbramos que conveniência, para a validade ou não do título, existe no que concerne à eventual discussão sobre o comportamento menos adequado ou eventualmente ilícito da executada contra o exequente. Porém, essa discussão, considerando a possibilidade de inquinar o título apresentado, já relevará no que concerne ao comportamento do exequente tido com a executada e a forma como o título se formou. Acresce que as declarações da executada que servem de suporte, no entender do recorrente, à resposta positiva de tais factos apenas existem no contexto de violência que a própria relatou como tendo sido perpetrados pelo recorrente, ou seja, como resposta a estes e não de motu próprio ou iniciados pela executada, mas apenas como culminar de uma relação em que todo o respeito deixou de existir dadas as agressões à própria, mas essencialmente também aos filhos desta, e ameaças que era sujeita.
Vejamos então a resposta que se quer quanto ao ponto 4.
O recorrente depois de elencar no corpo das suas alegações as contradições que entende existirem nos depoimentos dos filhos da executada, bem como nas declarações desta, a par da ausência de coerência no depoimento da testemunha V..., dizendo que este “peca por falta de desenvolvimento, uma vez que o senhor V... não se expressava muito bem e dizias as coisas, mas desgarradas e sem qualquer contexto”, alude ao depoimento da testemunha D…, na parte em que refere inexistirem vestígios de eventuais maus tratos do exequente contra a executada.

Concluindo que nos termos do art. 640.º, n.º 1, al. c) do CPC, a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas é a seguinte: 1)-No que diz respeito aos Factos provados em 4. que: a)-Não houve coação por parte do exequente/embargado sobre a executada/embargante. E nos factos não provados deveria ter sido provado que: 1º-O exequente/embargado, durante a relação amorosa com a executada/embargante, foi vítima de violência doméstica por parte da mesma.
Na resposta a tal impugnação pretendida pelo recorrente veio a recorrida pugnar pelo indeferimento, dizendo que a prova resulta inequívoca dos depoimentos prestados, pois os filhos da embargante depuseram de forma sincera, espontânea e coerente, por forma a que fosse conhecida a actuação do apelante, que a aterrorizava, ora porque lhe batia ora porque usava arma de guerra em riste na forma descrita. Afirma ainda que nenhum dos depoimentos que transcreve infirmam o depoimento das vítimas, pois J, com 13 anos de idade à data dos factos declarou que o exequente apontou uma arma em direção à sua mãe na sequência de uma discussão sobre dívidas, e V, com 10 anos de idade à data dos factos, afirma ter visto o embargado apontar arma de fogo à mãe, nas mesmas circunstâncias que determinam a causalidade entre aquele comportamento e a assinatura do documento levado à execução; de tal forma “que a embargante «fazia tudo o que ele mandava e quando não fazia…».

Na motivação ao facto ora posto em crise o Tribunal a quo expõe que Quanto aos Factos Provados nºs 1 e 4, atendeu-se ao teor do depoimento das testemunhas J… (29 anos, filho da embargante), V… (24 anos, filha da embargante) e V... e ao teor do documento dado à execução.
A testemunha J…, 29 anos, não obstante ser filho da embargante, depôs com sinceridade, espontaneidade e coerência, revelando e situando em tempo aproximado episódios de violência protagonizados pelo embargado/exequente na pessoa da embargante, sua mãe, que assistiu, e em si próprio, no tempo em que a embargante, sua mãe, e o embargado viveram juntos, e que marcaram pela negativa a sua infância, tendo assistido ao embargado a apontar uma arma em direção à cabeça da embargante para que esta assinasse um documento.
A testemunha V…, 24 anos, não obstante ser filha da embargante, depôs com sinceridade, espontaneidade e coerência, descrevendo o medo que sentia do embargado ao ponto de não gostar de estar na sua própria casa, pois sabia que o embargado a partir do momento em que chegasse a casa iria começar a agredir, afirmando que «ele mandava em mim, no irmão e na mãe e nós tínhamos que obedecer», «a mãe sentia medo dele», «ele mexia no nosso psicológico, ele ameaçava» e recordando-se de um episódio em que o embargado apontou a arma à mãe.
Mais disse que não apresentaram queixa contra o embargado porque «nós tínhamos medo dele, ele ameaçava-nos, batia-nos».
A testemunha V... depôs com sinceridade, espontaneidade e coerência, descrevendo que assistiu ao embargado a dar uma chapada à embargante e a apontar uma arma à embargante num café explorado por ambos, porque a embargante se queria vir embora, sendo que eram 6h da manhã.
Mais afirmou que o embargado «gostava de mandar, era agressivo, estava sempre em cima deles» e que a embargante «fazia tudo o que ele mandava e quando não fazia…»..
Em suma, os meios de prova supra referidos, conjugados entre si e com juízos de experiência comum, permitem suportar os factos provados nºs 1 e 4.”.

Percepcionados os testemunhos relevantes, J…, com 29 anos, filho da executada, testemunha indicada por ambas as partes, foi dizendo que não mantém contacto com o embargado, apenas quando vivia com a sua mãe e perguntado se tinha alguma inimizade com este ainda que tenha afirmado que não, também aludiu que “o que a gente passámos não é vida para ninguém”. Confirmou que a sua mãe viveu maritalmente com o recorrente, tendo deixado de ter tal relacionamento há cerca de 9/10 anos, confirmou que a executada tem medo do antigo companheiro. De seguida confirmou as ameaças e maus tratos, dizendo que este “apontou a arma de serviço (era guarda ou polícia marítimo) à cabeça da sua mãe”, ameaçando que a “matava” na presença do próprio e da sua irmã, à data, ambos menores, o próprio com 9 anos de idade e a irmã cerca de 4 anos. A discussão decorreu relativamente a questões de obras e dívidas, sem saber ao certo, mas tal ocorreu em casa, teve muito medo, era uma criança, tendo tal determinado a assinatura pela mãe de um documento. Relatou situações de violência contra o próprio, por situações como “partir um copo”, “não fazer as tarefas de casa ou estudar”, ou “fazer barulho”. Disse que o recorrente viveu com a sua mãe 8 a 9 anos, julga que terá deixado de viver em 2011. A insistência do mandatário do embargado confirmou que por vezes ia a festas com o embargante, afirmando que “ia mas não se sentia bem com aquela pessoa”, afirmando que apenas “ia para não ficar sozinho em casa”. Além da questão relacionada com a arma, também confirmou agressões físicas à mãe, nomeadamente quando esta tentava proteger os filhos.
A testemunha V…, filha da embargante, com 24 anos, confirmou que como era a figura paternal que conheceu, manteve contacto com o mesmo, pois à data “não conseguia distinguir o bem do mal”, neste momento não mantém contacto devido aos problemas que tem colocado à sua mãe. Na data em que o embargado vivia com a sua mãe, com a própria e com o irmão, resumiu que “o que ele mandava todos tinham de obedecer”, confirmando os maus tratos físicos à sua mãe, sendo que esta tinha e tem medo do embargado. Sempre ameaçou que caso a sua mãe não fizesse o que ele ordenava ameaçava que a matava, infligindo agressões a todos os elementos da família, pelo que naturalmente todos os “papéis que dizia que tinha de assinar a mãe tinha de obedecer”, sendo as represálias e terror vivido por todos naquela casa, a pressão era “quer psicologicamente, quer fisicamente e até financeiramente”.  Afirmou ainda que sempre “tentou ficar com a casa da sua mãe”, pelo que sempre foi o objectivo do exequente e a assinatura de “papéis visavam esse objectivo” assim como este que apresenta no Tribunal, era muito criança não sabe em concreto que documentos foram assinados, mas a sua mãe assinava tudo o que o embargado lhe apresentava, quer sob ameaça, quer por agressões constantes e diárias. Disse ainda que o dinheiro era controlado pelo embargado, pois mesmo após a assinatura do documento continuou a viver com a família. Descreve ainda o momento em que o embargado apontou “uma arma à cabeça da sua mãe”, a arma deixou de ser levada para casa, invocando que “as pessoas do seu trabalho tiveram conhecimento” do ambiente de terror infligido em casa e que “foram contra ele”. Por insistências do mandatário do embargado referiu que nunca houve queixa, dizendo que tinham medo, ameaçava que lhes batia e sempre lhes dizia “o que se passa em casa, fica em casa”, relatou especificamente todas as agressões que sofreu e os motivos inexistentes para as mesmas, invocando que infligia maus tratos aos três para no dizer do mesmo os “corrigir”. Financeiramente a sua mãe também estava dependente dele, pois tinham lojas e um café, mas o dinheiro “era manobrado por ele”, mas tudo o que foi adquirido era sempre a meias, ainda que fosse o próprio que pagava ordenado à sua mãe, pois trabalhava “para ele” nas lojas ou café. Depois de se separar continuou a habitar a casa, dizendo que não sairia, aí ficou ainda mais violento. A separação terá ocorrido quando teria cerca de 11 anos. A testemunha acabou ainda por referir que todo o dinheiro, quer de empréstimos, quer de compras em concreto, era o recorrente que fazia tudo “o que queria com o dinheiro”, “até usou para pagar dívida próprias e da família”, afirmando que a mãe “ficou sem dinheiro nenhum”.
No que concerne à testemunha V…, de 60 anos, diz conhecer a executada como amigo, sendo amigo do casal, dizendo que “era amigo dos dois”, referindo, porém, que “ele era mau demais”. Confirmou que estiveram juntos cerca de 8 anos, convivia com o casal, ajudava-los, confirmando que o exequente tratava muito mal a executada, pois esta trabalhava muito. Aludiu a “sacudia” a executada e no café até viu dar-lhe uma chapada, tendo a executada caído, sendo que já eram 6 horas da manhã e pretendia ir embora ao que o exequente se opunha, um dia viu “apontar-lhe uma pistola”. Nada sabe quanto a documentos assinados, mas o que pode afirmar é que o exequente “gostava de mandar”, “até queria mandar no seu dinheiro”, pelo que acha normal que tenha obrigado a executada a assinar documentos nos quais assumia dívidas, pois esta realizava tudo o que o mesmo mandava, exercia as funções de “guarda fiscal da marinha”, daí a existência da arma, discutia com frequência quer com a executada, quer com os filhos desta.
O recorrente apenas faz menção do depoimento da testemunha D…, esta referiu que trabalhou para o exequente, e na data a executada era companheira daquele, apenas trabalhou cerca de 3 a seis meses no café “B…” do exequente, em 2008. Apenas aludiu que não era violento nem com a própria, nem com as empregadas do café. Quanto a agressões à executada ou relatadas pela mesma, apenas disse que “não se lembra nada disso”, mas a testemunha só frequentava o café e os filhos da executada eram pequenos e não iam ao café, a própria não convivia muito com a executada, apenas fazia turnos no café, quase nem conviviam.  
Das declarações de parte da executada, resulta evidente o temor que existia à data, dada a ameaça de maus tratos à própria e aos filhos da mesma, ainda que tenha dito que assinou na sua casa, ainda que numa fase em que já se encontravam em vias de separação. O que resulta evidente é que tal documento foi assinado com o objectivo de ser a única forma de se libertar do exequente, tendo dito como ultimato que tinha de assinar, sob pena de manter a sua vida num inferno, ou seja, apenas sairia da sua casa com a assinatura do documento e de seguida foram reconhecer as assinaturas “no registo civil”. Estiveram juntos desde 2003 a 2010, após a assinatura do documento afirmou que o exequente saiu de casa algum tempo depois, a própria sugeriu levar os móveis que entendesse, o que este não aceitou, mas ainda assim, enviou muitos dos móveis do café para o exequente, para o Continente. Na data da assinatura aludiu que “não tinha hipótese de não assinar, tinha que fazer tudo o que ele mandava”, ou quem sofreria “seriam os seus filhos”, infligiria agressões nestes ou “até os matava”. Afirmou que mantem o medo do exequente e que o mesmo “a obrigou a assinar”, caso não tivesse assinado “hoje não estaria aqui”. Contou igualmente o episódio da arma, de forma coincidente com o relatado pelos filhos, dizendo que o documento em causa surgiu no dia seguinte, dizendo que o exequente sempre afirmou que “vou ficar com tudo o que é teu, nem que seja a última coisa que faça”, sendo que este ainda permaneceu na habitação mais um período, sempre com agressividade e maus tratos diários. A questão do dinheiro não resulta totalmente claro, mas foi peremptória em afirmar que “nunca utilizou” o valor dos empréstimos, pois destinou-se tal valor às lojas e pagar dívidas do exequente e da sua família.
O exequente em declarações confirmou que os filhos da embargante eram crianças, uma tinha 4 anos e a outra 12 anos, afirmando ser o responsável e tutor das crianças, negando todas as afirmações da embargante.
A tudo o referido importa ter presente que da documentação junta resulta que existem mútuos em que figuram quer o exequente, quer a executada como mutuários, mas em que foi dada de garantia a casa de habitação da executada, constituindo hipoteca sobre a mesma. Do acordo apresentado como título executivo, apenas consta a assunção da dívida no valor de 45.000€ pela executada, pelos bens móveis que se situam na sua habitação e no café, bem como pelas “benfeitorias no interior da habitação, (carpintaria, portas e janelas)”, sendo tal acordo datado de 2010. Ora, nada se alude aos valores dos mútuos, a que se destinaram e quem efectua o pagamento dos mesmos, nem o exequente alega nos embargos o fundamento da pretensa dívida que a executada “assumiu” em tal acordo, ou seja, o sinalagma que ora pretende que se considere em termos de recurso em momento algum foi invocado, nomeadamente em sede de contestação aos embargos, momento próprio para ser invocado, sob pena de preclusão de tal possibilidade, não olvidando quer o princípio da preclusão, quer da concentração de defesa que preside à contestação apresentada mesmo em sede de embargos.
Donde, considerando os depoimentos prestados é verosímil e acertada a conclusão contida no ponto 4. dos factos provados, aliás, não seria de considerar a resposta negativa nos termos pretendidos pelo embargado, mas sim a positiva tal como foi dado como provado, face ao ónus de prova que compete à embargante. Pois, ainda que se possa considerar de certa forma conclusivo a “ameaça e constrangimento” haverá que considerar que a assinatura da executada, reconhecida por notário, advém de um conjunto de actuações do exequente e não de um acto isolado, e a forma como tal assinatura ocorreu advém do comportamento do exequente no seu todo e ao longo do tempo, quer contra a executada, mas essencialmente contra os filhos desta, aliado ao sofrimento infligido à mãe face a tal ocorrência. Em nada releva vir enunciar que a filha da executada manteve contactos com o exequente, pois não há que olvidar que este assumiu o papel paternal perante esta, em tenra idade, e a própria reconheceu que à data nem sequer conseguia aferir do bem ou do mal, não obstante relatar o comportamento violento do exequente. Por outro lado, também me nada releva a inexistência de queixa a nível criminal, pois todo o ambiente relatado ocorre em contexto familiar e na intimidade de uma família, o que é por vezes inibidor de uma atitude. Aliado ainda à circunstância de o comportamento do exequente ser de molde a criar receio e medo na executada, o que por si só leva à ausência de assunção de uma atitude para se afastar ou por cobro a tal situação. A somar a todo esse circunstancialismo haverá que considerar a dependência financeira da executada, que como foi relatado “trabalhava para o exequente“. Aliás, aliado a tal incapacidade de tomar uma atitude que levasse a por cobro à situação de terror vivida, mais nos leva a considerar a prova do facto contido no ponto 4., pois nos termos referidos e assente na prova supra referida resulta evidente que a assinatura do acordo visou libertar-se da influencia do exequente, tendo sido este o ultimato dado à executada para que tal ocorresse. De tudo o exposto, entendemos que nada nos leva a considerar a alteração dos factos tal como foram considerados pelo Tribunal recorrido, pois assentam os mesmos na prova produzida e na análise da mesma, a qual não nos merece qualquer reparo.
*

III.–O DIREITO:

Consolidados os factos e face à inalterabilidade destes, haverá que atentar na subsunção dos mesmos ao direito.
O Tribunal a quo depois de elencar o preceito relativo ao vício da vontade invocado como inquinador dos efetios jurídicos do título executivo dado à execução, após  a transcrição dos artº 255º e 256º ambos do Código Civil, conlcuiu que relativamente à coação moral que se trata « de uma perturbação da vontade, traduzida no medo resultante de ameaça ilícita de um dano (de um mal), cominada com o intuito de extorquir a declaração negocial.
Só há vício da vontade quando a liberdade do coagido não foi totalmente excluída, quando lhe foram deixadas possibilidade de escolha, embora a submissão à ameaça fosse a única escolha normal.

São necessários três elementos, cumulativamente, para que exista coação moral:
1.- Ameaça de um mal, todo o comando do coator consta em desencadear o mal ou consiste no mal já iniciado. Este mal pode respeitar à pessoa do coagido (à sua honra) e ao seu património, pode ainda haver ameaça relevante se respeitar à pessoa, património deste ou de terceiro.
2.- Ilicitude da ameaça, a existência deste requisito vem duplamente estabelecida na lei (art.º 255.º, n.º 1 e 255.º, n.º 3 do Código Civil), se a ameaça se traduz na prática de um ato ilícito, está-se perante coação; não constitui coação, o exercício normal do direito (n.º 3).
3.- Intencionalidade da ameaça, consiste em o coator com a ameaça tem em vista obter do coagido a declaração negocial (art.º 255.º, n.º 1 do Código Civil), esta ameaça deve ser cominatória.
O caso dos autos traduz uma situação de intimidação que causou medo na embargante pelo mal que lhe pudesse vir a acontecer caso não assinasse o documento dado à execução – cfr. factos provados nºs 1 e 4.
Há, pois, uma intervenção no processo de formação da vontade de um factor que faz com que a declarante queira algo – assinatura do documento dado à execução - que de outro modo não quereria.
Não há uma exclusão da vontade, mas há uma vontade formada de modo viciado. Em sentido jurídico do termo, pode dizer-se que quem age condicionado por medo  quer ter aquela conduta que adotou, mas não quereria esse tipo de conduta se não fosse o receio de que contra si viesse a surgir um mal se não agisse daquela maneira.
A embargante assinou o documento dado à execução para fazer cessar a ameaça de algo de mal que ela realmente não quer.
No presente caso, a declaração negocial da embargante no documento particular identificado em 4 dos factos provados foi determinada pelo receio de um mal de que a mesma foi ilicitamente ameaçada com o fim de obter dela a declaração.  Caso não tivesse existido medo ou receio de um mal, a embargante nunca teria emitido a declaração negocial.
É necessário que a ameaça seja ilícita e isso acontece quando o acto não tem relação com o direito do coator, como sucede no caso dos autos.
Ora, no caso dos autos, não pode deixar de consubstanciar uma ameaça ilícita a ameaça de um mal, por uma das partes – pelo embargado, com o intuito de extorquir uma declaração da parte da embargante, actuando sobre a vontade negocial desta e determinando-a num sentido (a assinar o documento identificado no facto provado nº 4) em que, de outra forma, se não determinaria (não assinaria). (…).
Ora, no caso dos autos, a ilicitude está, pois, na ilegitimidade da prossecução de determinado fim com determinado meio, dado que o embargado recorreu à ameaça que algo de mal aconteceria à embargante caso ela não assinasse o documento que lhe foi apresentado e que está descrito no facto provado nº 4.
A ameaça resultante do clima intimidatório criado pelo embargado e a respectiva intencionalidade conduziram a que a embargante ficasse efectivamente intimidada, receando pelo mal que lhe viesse a acontecer e que, por essa razão, anuísse em efectuar a declaração constante do documento identificado no facto provado nº 4 dado à execução, sem a qual nunca teria assinado o documento.
Estão, pois, preenchidos todos os requisitos de que dependem a verificação e a relevância da coação moral, com a consequente anulação da declaração negocial em causa emitida pela embargante, ao abrigo do disposto nos art.ºs 255.º e 256.º, ambos do Código Civil.».

Insurge-se o recorrente quanto a tal entendimento, ainda que subjacente a tal raciocínio esteja a almejada alteração factual, a qual ficou votada ao insucesso, como deixámos decidido supra.
Atento o já referido e relevante para a consideração da prova ou não do facto em que assenta o direito da embargante, o embargado veio apenas em sede de recurso convocar o alegado cumprimento da sua prestação em tal acordo, dizendo que “a executada ficou na casa morada de família, a executada recebeu o dinheiro do Banco, a executada ficou com todo o recheio mencionado no dito contrato”. Correlacionado com esta questão invoca ainda que o Tribunal enferma de vício de raciocínio lógico ao fazer aplicação do art. 287º nº2 do CC, pois o Tribunal não pode dizer que o contrato não foi cumprido (considerando a anulabilidade sem prazo) por nesse contrato, a executada ficou na casa morada de família (portanto foi cumprido), ficou com o dinheiro do Banco (portanto foi cumprido), ficou com todo o recheio descriminado no mencionado contrato. Dizendo que constitui um verdadeiro abuso de direito invocar a coação neste caso. No mais, alega que não opera a coacção por inexistir uma intransponível relação causa-efeito.
A recorrida entende que resulta evidente a forma como decorreu o acordo, nem resulta dos autos qualquer cumprimento do “acordo”, nem a embargante alega que tenha recebido a quantia resultante dos mútuos bancário, e as obras foram efectuadas com recurso ao programa regional de apoio à habitação e não com as quantias com que o exequente se locupletou. Logo, não é equacionável a questão do abuso de direito, pois além da embargante afirmar nunca ter recebido dinheiro algum, percorrida a oposição aos embargos, em momento algum é alegada questão de cumprimento de um qualquer contrato pelo exequente, nem no documento em causa resulta a existência de uma compensação e em que termos.
Com efeito, um contrato ou outro negócio jurídico é anulável (padece de anulabilidade) quando, devido a um vício existente no momento em que foi celebrado, os seus efeitos jurídicos podem ser eliminados por alguém a quem o sistema confere esse poder. A anulabilidade é uma forma de invalidade, contrapondo-se à nulidade. Um negócio anulável tem efeitos «frágeis», por poderem ser destruídos. E essa fragilidade resulta necessariamente de um vício originário, de uma perturbação que afecta o negócio desde o momento da sua celebração.

No estudo levado cabo por Mota Pinto (in “Teoria Geral de Direito Civil” pág. 498 e 499) expõe-se que os vícios da vontade (vontade negocial) consubstanciam perturbações do processo formativo da vontade, operando de tal modo que esta, embora conforme à declaração, é determinada por motivos anómalos e valorados, pelo direito, como ilegítimos – a vontade não se formou de um modo julgado normal e são. Sendo que nas palavras do mesmo Autor (in ob. cit. pág. 523) na coacção moral (art. 255º do CC), a vontade negocial está viciada – tendo o declarante sido ilicitamente ameaçado com um mal a fim de dele ser obtida a declaração, constata-se a perturbação da sua vontade, traduzida no medo resultante de ameaça ilícita de um dano (um mal), cominada com o intuito de extorquir a declaração negocial; o vício (a coacção moral) pressupõe que a liberdade do coacto não foi totalmente excluída, sendo-lhe deixada possibilidade escolha, embora submissão à ameaça fosse a única escolha normal.

A propósito de tal vício Jacinto Fernandes Rodrigues Basto (in “Notas ao Código Civil” pág. 348), refere que trata-se duma pressão psicológica (vis compulsiva) determinante da declaração – a vítima da ameaça pode optar entre expor-se ao mal de que é ameaçada ou formular a declaração que se lhe exige e decidindo por fazer a declaração, é evidente que esta se apoia numa vontade formada por condições anormais.

Também Joana Vasconcelos (in Comentário ao Código Civil, nota 4 ao artigo 255º do CC, pág. 614 e 615) sobre tal temática escreve que “processo formativo da vontade é perturbado pela ocorrência de uma ameaça, a qual gera um medo (tomado, neste contexto, muito latamente, como a «previsão» do mal a que aquela se refere e/ou, do/s dano/s dele decorrentes, e não como mera «emoção psicológica) que ‘vai determinar, de forma mais ou menos intensa, a decisão negocial do coagido – vontade do coagido é viciada por não ser livre, mas condicionada por tal medo, que o faz «querer algo que, de outro modo, não quereria», seja a própria declaração, sejam os seus específicos termos(…) (a vontade mostra-se, nestas situações, gravemente cerceada na sua livre determinação)”.

Como bem se decidiu no Acórdão da Relação do Porto, datado de 13/06/2023 (proc. nº1169/21.6T8PVZ.P, in www.dgsi.pt) numa situação em que tal também resulta perpetrado em ambiente familiar e conjugal (como é o caso, dado que embargante e embargado viviam em união de facto): «Condições de relevância da coacção moral como motivo de anulabilidade do negócio (esse o efeito da coacção – art. 256º do CC), quando exercida pelo outro contraente (como no caso dos autos), são a ameaça dum mal, a ilicitude da ameaça e o carácter intencional ou cominatório.
Não se exige que o mal seja grave – é necessário que seja um mal que o ameaçado, com conhecimento do autor da intimidação, sinta como tal e que o coloque numa «situação de violência»; o que interesse é forçar a vontade do ameaçado e porque se trata de um vício da vontade deste, a relevância tem de ser apreciada considerando a sua particular situação.
Necessário também que se trate de ameaça ilícita – ilicitude que tanto pode resultar dos meios empregues (o recurso a meios ilegítimos - agressão, difamação, dano, etc.) quanto do fim visado (ilegitimidade da prossecução daquele fim com aquele meio); importa é que se não trate de confrontar a contraparte com a ameaça do exercício normal dum direito (art. 255º, nº 3 do CC), em que se verifica uma ‘relação directa entre o direito que o autor da ameaça anuncia exercer e a declaração que obtém em virtude dela’ (a ameaça de exercício anormal do direito, que já constitui coacção, traduzir-se-á numa falta de adequação entre o fim e meio, que determina a ilegitimidade da prossecução daquele fim com aquele meio, ainda que um e outro sejam em si mesmos lícitos).

A ‘ameaça é intencional ou cominatória quando se visa obter do coagido a declaração negocial’ (art. 255º) – quando o declarante tenha sido induzido antijuridicamente a emiti-la, sob intimidação: não só a emissão da declaração foi originada pela intimidação, como também a sua obtenção foi perseguida como um fim pela ameaça. A ameaça deve ser determinante da declaração (da vontade de emitir a declaração) e do sentido desta.
A relevância anulatória da coacção só pode afirmar-se verificando-se a causalidade entre a ameaça e o medo, por um lado, e entre este e a declaração, por outro – causalidade que opera num duplo plano e que, por isso, se perfila como uma dupla causalidade (‘necessidade da ameaça ser causa do medo e de este ser a causa da declaração negocial’)».

Acresce que, como bem referem Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, vol I, nota 2 ao art. 256º, pág 238) do normativo em questão se “depreende que nem a gravidade do mal cominado nem a justificação do receio de que a ameaça seja consumada constituem requisitos essenciais de relevância da coacção exercido pelo declaratório”.
No caso dos autos tais requisitos verificam-se, pois, a embargante viu-se confrontada com a escolha entre emitir a declaração negocial (outorgar o acordo) ou continuar a viver sob as ameaças e constrangimentos infligidos pelo embargado. Logo constata-se, pois, a ameaça do mal em abstracto (e em geral) susceptível de forçar a vontade do ameaçado, pois provindo a coacção da contraparte, não é necessário sequer apreciar se se trata de um mal grave e se se seria justificado o receio da sua consumação, bastando que a ameaça seja de molde a determinar a vontade do declarante, pois que tais exigências são legalmente circunscritas à coacção provinda de terceiro.
Donde, a procedência da coacção moral não depende da alegação e prova pelo declarante de quaisquer outros requisitos além da ameaça dum mal, da sua ilicitude e do carácter intencional ou cominatório da mesma, pelo que “de pouco valerá também ao declaratário-coactor tentar evitar o desfecho a esta associado, evidenciando a insignificância do mal, a inverosimilhança da ameaça ou a pusilanimidade do declarante”(cf. Mota Pinto in ob. e loc. cit.).
Daqui se conclui como na sentença recorrida sendo que a emissão da declaração negocial, por parte da embargante foi determinada pela intimidação praticada pelo embargado. Inexistindo abuso de direito ou sinalagma que afaste o vício em causa, por ausência de factualidade bastante alegada ou comprovada, nomeadamente que justifique o valor constante do acordo, pois este não está correlacionado em termos factuais com a eventual contraprestação efectuada pelo embargado, nem este a alegou, pelo que o eventual desequilíbrio ou até sinalagma não tem por base quaisquer factos.
Logo, não colhe a argumentação recursiva do apelante, nem é de considerar inaplicável o nº 2 do artº 287º do CC, quanto ao prazo de arguição da anulabilidade.
Com efeito, apesar de o acordo datar de 2010, apenas foi apresentado à execução em 2022.
Na decisão recorrida entendeu-se que seria de aplicar no caso concreto o disposto no nº 2 do artº 287º do CC, no qual se dispõe que enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção». Dizendo-se que: Conforme ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, 4ª edição, Coimbra Editora, volume I, página 264, em anotação ao artigo 287.º do Código Civil: «Cessa o limite do prazo, (…), se o negócio ainda não foi cumprido, como se, por exemplo, não foi ainda entregue a coisa vendida ou entregue o preço, num contrato de compra e venda anulável. Se for exigido judicialmente o cumprimento, a anulabilidade pode ser oposta a todo o tempo por via de exceção, nos termos gerais do direito processual».
No caso em apreço, considerando que não foi entregue pela embargante ao exequente/embargado a quantia de € 45.000,00, constante do título dado à execução, e daí a necessidade da instauração da execução, conclui-se pela inexistência do prazo de um ano para invocar a anulabilidade decorrente de coação moral, podendo a mesma ser invocada em sede de embargos de executado, tal como o foi, ao abrigo do disposto no art.º 287.º, nº 2, do Código Civil.
Caso a embargante tivesse procedido à entrega ao embargado da quantia de € 45.000,00, disporia do prazo de um ano para agir judicialmente e invocar a anulabilidade da sua declaração negocial, por ter sido produzida sob coação, de modo a obter a devolução da quantia entregue.
Não tendo a embargante entregue tal quantia, o prazo de um ano é inaplicável, podendo a coação ser invocada em sede de embargos de executado, por força do disposto no art.º 287.º, nº 2, do Código Civil.”.

Com efeito, subscrevemos tal entendimento o qual não nos merece qualquer reparo, pois foi o embargado que apesar de munido do “acordo” veio apenas intentar a execução doze anos depois.
Ora, no requerimento inicial invocou apenas que: 1.º- No âmbito do acordo de regularização de dívida, autenticado no Cartório Notarial de Santa Cruz da Graciosa, a 28 de outubro de 2010, constituiu-se, a aqui Executada, devedora do montante global de 45.000,00€ (quarenta e cinco mil euros) ao Exequente, (…) 2.º- Para o pagamento do valor do crédito supra referido estipulou-se a entrega da quantia inicial de uma prestação de 625,00€ (seiscentos e vinte e cinco euros) até 01.01.2011, a liquidação do montante do crédito em 72 (setenta e duas) prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de 625,00€ (seiscentos e vinte e cinco euros), sendo a última prestação até 01.12.2016.
Mas, ainda, 3.º- As partes consagraram, na Cláusula 4.ª do aludido acordo, que se vencem juros sobre o capital em dívida à taxa anual em vigor, bem como, a título de cláusula penal, em caso de mora, que os respectivos juros seriam calculados à taxa dos juros remuneratórios vigentes à data da mora acrescido de uma sobretaxa de 2% ao ano.
Porém, 4.º- A Executada nunca cumpriu nenhuma das prestações acordadas.”.

Em sede de contestação aos embargos e face à alegação da embargante também não veio o embargado afirmar o que consubstanciaria em concreto o cumprimento da sua prestação no acordo, nem sequer faz referência à mesma, nem reportada aos valores dos mútuos ou dos bens, ou sequer como contrapartida da concessão à executada de continuar a residir na casa de morada de família (ainda que esta constituísse um bem próprio, sobre o qual incidem as hipotecas dos mútuos celebrados por ambos), vindo invocar tais circunstâncias apenas em sede de recurso.

Do exposto resulta a improcedência da apelação, pois que a declaração negocial emitida pela apelada (a declaração de vontade que enforma o acordo apresentado como título executivo) foi obtida por coacção (moral) e é, por isso, anulável (arts. 255º e 256º o CC).
*

IV.DECISÃO:

Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo embargado e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas da apelação pelo apelante.
Registe e notifique.



Lisboa, 25 de Janeiro de 2024



Gabriela de Fátima Marques
Teresa Soares
Nuno Gonçalves