Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1447/22.7T8SNT.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
FACTURA
OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA
IVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Reclamando a A. o pagamento da retribuição devida no âmbito de um contrato de prestação de serviços da sua actividade como engenheira civil, a qual se encontra sujeita a IVA, estava obrigada a emitir factura aquando do vencimento dessa retribuição, cobrando o imposto à taxa então em vigor.
2. Apesar de não ter emitido factura, o incumprimento dessa obrigação tributária não impede a A. de fazer valer em juízo o seu direito de crédito, mas a produção dos efeitos do contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes, no que ao pagamento da retribuição diz respeito, está subordinada à emissão e entrega à R. da factura respectiva.
3. Assim, a R. deve ser condenada a satisfazer o pagamento da retribuição nos termos do nº 1 do art.º 610º do Código de Processo Civil, isto é, quando a A. emitir e entregar a factura.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

MS intentou acção declarativa com processo comum contra H., Unipessoal, Ld.ª (1ª R.), e NH (2º R.), pedindo a condenação solidária dos RR. no pagamento de €16.840,00 a título de retribuições em dívida e de €4.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
Alega para tanto, e em síntese, que:
. Acordou com a 1ª R., na pessoa do 2º R., prestar-lhe os seus serviços de engenheira civil, contra a retribuição fixada em €15,00 por cada hora de trabalho;
. No âmbito das solicitações que lhe foram dirigidas pelo 2º R., enquanto responsável de facto da 1ª R., efectuou um total de 1356 horas de trabalho, das quais apenas recebeu da 1ª R. o montante de €3.500,00;
. O não pagamento do remanescente da retribuição devida, no valor de €16.840,00, causou-lhe vergonha, sofrimento e angústia, por ter prestado os seus serviços de forma diligente e tecnicamente de excelência, sentindo-se escravizada, e assim devendo tais danos não patrimoniais ser indemnizados em não menos de €4.000,00.
Citados os RR., apresentaram contestação conjunta, aí invocando a ineptidão da P.I. e a ilegitimidade processual do 2º R., mais reconhecendo a prestação dos serviços mas impugnando que o valor devido seja contabilizado nos termos indicados pela A., e mais invocando que a retribuição devida à A. só deverá ser paga quando estiver concluído o serviço prestado a terceiro e dele receber os honorários respectivos, e só após a A. apresentar a factura correspondente à retribuição acordada. Concluem pela absolvição da instância quanto ao 2º R. e pela absolvição do pedido quanto à 1ª R.
A A. exerceu o contraditório quanto às excepções suscitadas, concluindo pela improcedência das mesmas.
Foi realizada a audiência prévia e proferido despacho saneador, aí sendo julgada improcedente a excepção da ineptidão da P.I. e sendo julgada procedente a excepção da ilegitimidade processual do 2º R., com a sua absolvição da instância. Foi ainda identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Após realização da audiência final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
Em face ao exposto julga-se procedente, por provada, a presente acção e, em consequência, condena-se a Ré a pagar à Autora:
a) As retribuições do serviço prestado e não pago no valor de €16.840,00 (dezasseis mil oitocentos e quarenta euros).
b) Uma compensação por danos não patrimoniais no valor de €4.000,00 (quatro mil euros).
c) No pagamento de juros de mora sobre as quantias referidas em a) e b) contados desde a data da citação até ao integral pagamento, à taxa supletiva prevista para as relações civis.
Custas pela Ré”.
A R. recorre desta sentença, sendo que na sua alegação invoca que as conclusões do recurso são aquelas que constam dos 42 pontos que aqui se reproduzem integralmente:
I. A sentença proferida padece de errada interpretação e aplicação da lei, por violação do disposto nos artigos artigo 29.º n.º 1 alínea b) do CIVA, art.º115.º CIRS, do art.º123.º RGTI e do art.º428º, nº 1, do Código Civil.
II. Salvo melhor entendimento, considera a Recorrente que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, interpretou e aplicou erroneamente o disposto nos referidos normativos legais, uma vez que, se verifica de forma notória, que a decisão recorrida se funda, apenas e só, no fundamento de que a obrigação é devida, independente da exigibilidade da prestação.
III. Padecem os factos de errada interpretação e aplicação da lei, por violação do disposto nos artigos 397º e 428º do Código Civil.
IV. Refere a decisão criticada que - Facto Provado 6 - O pagamento seria mensal sem emissão de factura respectiva ou recibo verde - e que tal demonstração resultou das declarações da Autora que esclareceu que não foi combinado que o pagamento da retribuição ficasse dependente da entrega de factura ou recibo verde.” (Pág. 7, linha 10)
V. E, quanto aos factos dados por não provados, refere ainda a decisão criticada:
“(...) não ter sido produzida prova suficiente acerca dos mesmos, designadamente que o pagamento por parte da Ré à Autora fosse realizado a final depois de concluídos os trabalhos a prestar para os clientes da Ré e depois de pagos por estes à R. e de que o ajuste entre as partes não estava dependente da emissão da factura ou do recibo verde por parte da Autora, o que o Tribunal a quo apenas considerou que ta circunstância não significa que a obrigação de pagamento inexista, mas tão só a eventual existência de ilícito criminal ou contra-ordenacional.”
VI. O Tribunal a quo, interpretou e aplicou erroneamente o disposto no artigo 29.º n.º 1 alínea b) do CIVA - que estabelece a obrigação de se emitir factura pela transmissão de bens ou prestação de serviços, mostrando-se dependente do cumprimento dos pressupostos de exigência da liquidação - pagamento, de um crédito resultante da prestação de serviços, a emissão e exibição da respectiva factura.
VII. O Tribunal a quo não aplicou a obrigação resultante do art.º 115.º CIRS, referente à emissão de recibos e factura sempre que da obrigação resultar um dever pecuniário, o que obrigava a emitir recibos por todas as importâncias recebidas dos clientes pelas transmissões de bens ou prestações de serviços.
VIII. É assim notório que a decisão recorrida se funda, apenas e só, no argumento de que os pagamentos dos valores devidos pela prestação de serviços seriam devidos, independentemente da apresentação da factura.
IX. Ademais, não tendo a Recorrida emitido a(s) factura(s) ou recibo(s) verde(s) de acordo com o que determina a lei - como não poderia deixar de ser uma irregularidade fiscal, mas é, também, causa que justifica o incumprimento da obrigação, por consistir uma excepção ao incumprimento.
X. A exigibilidade da prestação das obrigações fiscais é obrigação fiscal, decorrente de um normativo legal - alínea b) do n.º 1 do art.º 29.º do CIVA e do artigo 115.º CIRS (Código IRS) referente à obrigação dos titulares de rendimentos à emissão de recibos e facturas de todas as importâncias recebidas dos seus clientes, pelas transmissões de bens ou prestações de serviços.
XI. Assumiu o tribunal a quo, que a Recorrida adquiriu o direito ao pagamento dos valores em causa, mas não se pronunciou ou exigiu sobre esse direito integrava o direito a requerer a exigibilidade desses valores.
XII. Declarado o direito sem verificar a exigibilidade do mesmo, andou mal o tribunal a quo, ao não cuidar de apreciar o cumprimento dos pressupostos dessa declaração, designadamente, se podia ser imposto judicialmente a prestação a cargo da Recorrente sem o cumprimento das obrigações decorrentes, designadamente, o cumprimento das obrigações fiscais.
XIII. A sentença em crítica considera demonstrado que a exigibilidade da prestação não estaria dependente da apresentação da respectiva factura, o que, é um contra‑senso jurídico, tendo em conta a exigibilidade legal da emissão de factura nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 29.º do CIVA.
XIV. Não está na disponibilidade das partes acordar que o pagamento do valor relativo à prestação de serviços pode ocorrer sem emissão de factura, o que não podia ser dado por provado que as partes convencionaram a isenção de emissão de facturas.
XV. O cumprimento das obrigações fiscais é essencial e foi totalmente desvalorizado pelo tribunal a quo que não se demorou a apreciar se a entrega pela Recorrida da necessária factura não se mostrava determinante para aferir a exigência de pagamento.
XVI. A apresentação da factura não pode deixar de ser erigida como condição da exigibilidade da dívida, não se limitando a constituir uma singela interpelação, com ensina Rui Pinto, A Acção Executiva, AAFDL, 2018, pp. 230-231:
«A exigibilidade é a qualidade substantiva da obrigação que deva ser cumprida de modo imediato e incondicional após interpelação ao devedor. Tal qualidade não é processual, mas substantiva: a verificação do facto do qual depende o cumprimento.
XVII. Seguindo esta avisada consideração, a obrigação da Recorrente em pagar o preço pela prestação de serviços só podia existir a partir do momento da apresentação pela Recorrida da respectiva pelos serviços ocorridos, mas a verdade é que não foi observada esse desiderato.
XVIII. Esta situação constitui uma genuína excepção de não cumprimento do contrato prevista no Artigo 428° do Código Civil, que refere: “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
XIX. Da sua própria natureza emerge que esta excepção é aplicável apenas aos contratos bilaterais com obrigações reciprocamente interligadas por um sinalagma genético-funcional, porquanto só aí o contraente que pretenda ver cumprida a obrigação da outra parte, pode sustar o cumprimento da sua prestação como meio idóneo de coagir a contraparte a cumprir também a sua prestação sinalagmática.
XX. A excepção dilatória de não cumprimento do contrato é uma excepção de direito material, não legitimando o incumprimento definitivo do contrato pelo contraente fiel, mas apenas o cumprimento dilatório de um dos contraentes enquanto o outro não cumprir as obrigações a que está adstrito.
XXI. Transferindo este enquadramento para o presente recurso, é imperativo referir que se pressupõe que o cumprimento das obrigações interconexionadas, em que a emissão da factura é pressuposto do pagamento do preço.
XXII. Nesse sentido, não negou a ora recorrente a existência da obrigação a que está vinculada enquanto receptor dos serviços prestado pela Recorrida, mas fez depender o cumprimento do oferecimento dessa prestação à emissão do necessário documento contabilístico.
XXIII. O exercício da excepção de não cumprimento não extingue o direito de crédito, mas apenas neutraliza ou paralisa temporariamente esse direito, funcionando, como uma espécie de meio de defesa que tende para a execução plena do contrato e não para a sua destruição.
XXIV. A este respeito, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. N° 142115/09.2YIPRT.C1 de 14.07.2010:
A excepção de inadimplência/inexecução (ou suspensão por inexecução) não é senão a recusa temporária do devedor - credor de uma prestação não cumprida no âmbito de um contrato sinalagmático - que assim retarda, legitimamente, o cumprimento da sua prestação, enquanto o credor não cumprir a prestação que lhe incumbe.
XXV. Nos termos do art.º 787.º do Código Civil:
Quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita, devendo a quitação constar de documento autêntico ou autenticado ou ser provida de reconhecimento notarial, se aquele que cumpriu tiver nisso interesse legítimo.
XXVI. Deste normativo infere-se que o dever de dar quitação daquilo que se recebe apenas é obrigatório quando aquele que paga exige o respectivo recibo de quitação.
XXVII. Nos termos do n.º 6 do artigo 3.º do CIRS:
Os rendimentos da categoria B ficam sujeitos a tributação desde o momento em que para efeitos de IVA seja obrigatória a emissão de factura ou documento equivalente ou, não sendo obrigatória a sua emissão, desde o momento do pagamento ou colocação à disposição dos respectivos titulares, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 18.º do Código do IRC sempre que o rendimento seja determinado com base na contabilidade.
XXVIII. Nos termos do disposto no artigo 115.º do CIRS:
Os titulares dos rendimentos da categoria B são obrigados: a) a passar recibo, em modelo oficial (vide, Portaria n.º 879-A/2010, de 29 de Novembro, que aprovou os modelos oficiais do recibo designado de recibo verde electrónico), de todas as importâncias recebidas dos seus clientes, pelas prestações de serviços referidas na alínea b) do n.º 1 artigo 3.°, ainda que a título de provisão, adiantamento ou reembolso de despesas, bem como dos rendimentos indicados na alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo; ou b) a emitir factura ou documento equivalente por cada transmissão de bens, prestação de serviços ou outras operações efectuadas, e a emitir documento de quitação de todas as importâncias recebidas.
XXIX. A violação desta exigência, é considerada infracção tributária grave, como prescreve o artigo 123.º RGTI (Regime Geral das Infracções Tributárias): a não passagem de recibos ou facturas ou a sua emissão fora dos prazos legais, nos casos em que a lei o exija, é punível com coima de (euro) 150 a (euro) 3750.
XXX. Por essa razão, a decisão judicial em crise, não podia deixar de remeter a conhecimento do MP para efeitos da apreciação de infracção tributária, como é promovido, mas, em estranha apreciação, é referido, “mas tão só a eventual existência de ilícito criminal ou contraordenacional.”
XXXI. O interesse em evitar o mais possível a evasão fiscal, não pode sucumbir perante o argumento que, e cita-se, “É certo que que legalmente tais documentos (factura/recibo verde ou factura-recibo) têm de ser passados, mas também não é menos certo que, infelizmente, face à carga fiscal há efectivamente um grande número de empresas que acertam o pagamento sem essa contrapartida para evitar o pagamento de impostos e contribuição para a segurança social.”
XXXII. Com alguma incredibilidade lê-se o teor da sentença e se a interpretação do tribunal é de que - efectivamente há uma prática generalizada - e que, por essa razão, o comportamento pode ser isento de responsabilidade.
XXXIII. Tendo em conta a formalidade ad substantiam das facturas e documentos equivalentes, não havendo factura não haverá possibilidade de aferir o descrito dos serviços invocados pelo prestador de serviços, não sendo possível discriminar o momento em que os serviços foram prestados e o tipo de serviços efectivamente prestados, apenas se podendo concluir que não se encontram preenchidos os requisitos formais.
XXXIV. Para o tribunal a quo, ainda que se partisse do pressuposto que não tinham sido cumpridas as exigências formais, a emissão de facturas é uma obrigação legal que tem de ser cumprida funcionando como uma condição que, enquanto não preenchida, determina não poder considerar-se vencida e exigível a obrigação.
XXXV. Acrescentamos ao dispositivo fiscal que, mesmo que tendo havido a decisão vencida e agora, judicialmente declarada, não é exigível a obrigação de emissão de factura, e por arrasto, a liquidação das obrigações fiscais.
XXXVI. Efectivamente, a emissão e apresentação de factura respeitante a um serviço prestado, não constitui apenas uma obrigação legal imposta pelos arts. 29.º/1/b) e 36.º/1 do CIVAA, mas principalmente, acaba por funcionar também como uma condição de cuja verificação/preenchimento depende a exigibilidade do pagamento em causa.
XXXVII. A desvalorização que o tribunal a quo faz - designadamente, a obrigação do pagamento do imposto IVA — da relevância de entrega da respectiva escritura não é juridicamente aceitável, só resultando de um clamoroso erro de apreciação, uma vez que não podia deixar de considerar que a obrigação de pagamento nasce com a emissão do documento contabilístico.
XXXVIII. A emissão obrigatória de factura funciona como uma "implícita" condição legal (cfr. art.º 270.º do C. Civil), que, enquanto não preenchida, determina não poder considerar-se vencida e exigível a obrigação — toda ela, remuneração efectiva do serviço e imposto IVA — aqui litigada, havendo, por isso, lugar à aplicação do art.º 610.º/1 e 2/a) do CPC.
XXXIX. A obrigação da Ré em liquidar o valor devido pela prestação de serviços, só se tornaria actual a partir da apresentação da factura pela A., o que não ocorreu, conforme FACTOS PROVADOS, estamos perante uma genuína excepção de não cumprimento do contrato prevista no Artigo 428° do Código Civil.
XL. O contraente a quem é oposta a excepção do não cumprimento teria de provar que cumpriu a sua prestação para obviar aos efeitos substantivos de tal excepção — cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.6.199, Noronha do Nascimento, CJ AcSTJ 1999 - II, pp. 163-164.
XLI. Mesmo que a exceptio non adimpleti contractus não fosse considerado fundamento que obstasse o conhecimento de mérito da acção, era dever do tribunal a quo, em face da invocação dessa excepção dilatória - de conhecimento oficioso - fosse feita a apreciação tendo em conta os factos apresentados pelas partes e com isso, se a apreciação pendeu sobre a condenação do Recorrente na prestação do preço a liquidar também seria esse cumprimento dependente do cumprimento simultâneo da contraprestação de prestação dos deveres fiscais.
XLII. O Tribunal a quo, na aplicação do direito, descurou a aplicação do disposto no artigo 29.º n.º 1 alínea b) do CIVA - que estabelece a obrigação de se emitir factura por cada transmissão de bens ou prestação de serviços;
O Tribunal a quo, na aplicação do direito, descurou a aplicação do art.115.º CIRS, referente à emissão de recibos e factura e a obrigação de que resulta da obrigação pecuniária criada e que obriga a emitir recibos por todas as importâncias recebidas dos seus clientes, pelas transmissões de bens ou prestações de serviços.
O Tribunal a quo, na aplicação do direito, descurou a aplicação do art.123.º RGTI referente à violação do dever de emitir ou exigir recibos ou facturas, como infracção tributária.
O Tribunal a quo, na aplicação do direito, descurou a aplicação do art.º 428º, nº 1, do Código Civil, referente aos contratos bilaterais em que cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento.
A A. não apresentou alegação de resposta.
***
O objecto do recurso é balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, correspondendo as mesmas à indicação, de forma sintética, dos fundamentos pelos quais pede a alteração ou anulação da decisão.
Os 42 pontos acima reproduzidos não correspondem à referida indicação sintética, mas antes a sucessivas repetições da argumentação expendida anteriormente.
Todavia, é possível identificar o conjunto de questões que emerge da argumentação apresentada pela R. , sem necessidade de lançar mão do disposto no nº 3 do art.º 639º do Código de Processo Civil (desde logo porque se antevê a incapacidade de síntese que se pretende).
Assim, as questões objecto do recurso em questão prendem-se, tão só, com a caracterização da falta de cumprimento de obrigações tributárias pela A. e sua consequência quanto à exigibilidade da obrigação pecuniária emergente do contrato celebrado entre as partes.
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Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto (corrigem-se as referências processuais e eliminam-se as referências probatórias):
1. A A. é Engenheira Civil com mestrado e doutoramento concluído no IST – Instituto Superior Técnico onde desenvolveu vários projectos académicos tendo sido, inclusivamente, beneficiária de uma bolsa de formação/investigação.
2. Enquanto bolseira, no dia 9 de Setembro foi contactada pela Professora Doutora (…), sua orientadora de Mestrado e Doutoramento do IST, que lhe apresentou uma proposta de trabalho na sua área profissional e que seria para trabalhar com o 2º R.
3. A partir do dia 10 de Setembro A. e 2º R. entraram em contacto e acordo para a A. passar a trabalhar para a 1ª R.
4. Do que foi indicado pelo 2º R., a A. passaria a desempenhar as funções para a 1ª R. num regime de prestação de serviços, o que passou a acontecer a partir do mês de Outubro de 2020.
5. Esse acordo previa o desenvolvimento de trabalhos técnicos de especialidade de engenharia civil por parte da A. e o pagamento, pela 1ª R. à A. de €15,00 por cada hora de trabalho.
6. O pagamento seria mensal, sem emissão de factura respectiva ou recibo verde.
7. Os trabalhos executados pela A. eram realizados com a independência técnica que a profissão exige, sem local de trabalho definido, (com excepção daqueles que obrigavam à presença em obra), mas sempre a pedido pelo 2º R. enquanto responsável de facto pela 1ª R.
8. Em particular os trabalhos executados pela A., tendo em conta os destinatários podem ser classificados em 2 grandes grupos. Um grupo em que os trabalhos se destinavam a um projecto de obra da linha de comboio do norte – gerido pela empresa INSERAIL.
9. O outro grupo de trabalhos para outros clientes da 1ª R. que são menos complexos, de obras mais pequenas, como uma moradia em Sintra e outras empreitadas.
10. Para executar tais trabalhos a A. comunicou à 1ª R. que despendeu:
10.1     - 79 horas em Outubro de 2020;
10.2     - 75 horas em Novembro;
10.3     - 132 horas no mês de Dezembro;
10.4     - No ano de 2021, no mês de Janeiro trabalhou 125 horas;
10.5     - Em Fevereiro 172 horas;
10.6     - Em Março 248 horas;
10.7     - Em Abril 138 horas;
10.8     - Em Maio 40 horas;
10.9     - Em Junho 62 horas;
10.10   - Em Julho 197 horas;
10.11   - Em Agosto 58 horas;
10.12   - Em Setembro 30 horas.
11. A A. apenas recebeu €3.500,00 do valor total das horas que trabalhou.
12. A A. recebeu no dia 4/3/2021 uma transferência no valor de €1.000,00.
13. Recebeu no dia 25/03/2021 uma transferência no valor de €1.000,00.
14. Recebeu no dia 2/07/2021 uma transferência no valor de €1.000,00.
15. Recebeu no dia 6/07/2021 uma última transferência no valor de €500,00.
16. Todas elas tendo a referência que o pagamento era originado pela 1ª R.
17. O valor de €16.840,00 em dívida foi reconhecido pelo 2º R., gerente de facto da 1ª R., que foi prometendo o seu pagamento por variadas vezes, mas sem que o concretizasse.
18. Inclusivamente, depois das várias interpelações para pagamento feitas por email pela A., datadas de 2/07/2021, 6/07/2021, 23/07/2021 e 3/09/2021, o 2º R. sempre foi assumindo telefonicamente a dívida e prometendo o pagamento dos valores em atraso, sem que nada pagasse.
19. Numa fase inicial a A. foi suportando as suas despesas, até porque tinha sido beneficiária de uma bolsa do IST, mas com o avançar do tempo todas as suas economias ficaram reduzidas praticamente a zero.
20. Pese embora a A. trabalhasse, como não obtinha retorno financeiro desse trabalho começou a viver de forma angustiada e envergonhada com problemas financeiros a que não estava habituada.
21. Inclusivamente, a A. mudou hábitos de vida passando a ir tomar as refeições a casa dos seus pais,
22. obrigando-a a viver quase como dependente dos mesmos e de uma forma envergonhada.
23. Já numa fase mais avançada, no início do Verão de 2021, altura em que sentia quase em desespero pelas dificuldades financeiras e enviou os emails datados de 02.07.2021, 06.07.2021, 23.07.2021 ao 2º R., solicitando-lhe o pagamento das horas,
24. a A. foi “obrigada a confessar” aos seus pais as sérias dificuldades em que se encontrava e a falta de dinheiro para fazer face às despesas correntes de consumo da casa e das prestações do crédito hipotecário que tem contratado.
25. Ao verem a sua filha em tal situação, e por terem alguma disponibilidade, socorreram a filha pagando as prestações da casa da A. e dando-lhe dinheiro para o seu dia-a-dia num valor total de 5.900,00 €, e que a A. pretende devolver aos seus pais.
26. A A. sofreu e teve vergonha de não poder fazer face às mais básicas das suas despesas.
27. Os clientes da 1ª R. informavam a A. que pagavam pontualmente os trabalhos solicitados à 1ª R.
28. A A. ao aperceber-se que o valor ficava retido na totalidade pelos RR. sofreu psicológica e emocionalmente passando a um estado quase depressivo e a pensar mesmo que o seu trabalho não teria valor, daí não receber o acordado.
29. Os clientes da 1ª R. consideram que a A. presta os seus serviços de forma diligente e tecnicamente de excelência.
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Na sentença recorrida considerou-se como não provado que:
a) Foi ajustado que a retribuição seria paga mediante apresentação da factura pela A.;
b) Foi ajustado que a retribuição seria paga mediante apresentação do recibo verde pela A.;
c) Pagamento seria a final, após conclusão dos trabalhos para as clientes finais da 1ª R., mediante apresentação da factura pela A.
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A verificação do direito da A. à retribuição no montante de €16.840,00 ficou afirmada na sentença recorrida nos seguintes termos:
Funda-se a pretensão da autora num contrato de prestação de serviços, tendo a Autora se obrigado a prestar serviços no âmbito da actividade de engenharia, mediante o pagamento da respectiva contrapartida pecuniária a cargo da Ré - artigo 1154.º, do Código Civil.
De harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 342.º, do Código Civil a Autora provou os factos constitutivos do seu direito – a existência do contrato e a prestação dos serviços a que se vinculou.
Como defesa a Ré defendeu-se com a inexigibilidade da obrigação por o prazo ajustado para pagamento da retribuição ainda não ter decorrido e ainda que o pagamento não será devido até que a Autora emita o respectivo documento contabilístico.
Não resultou provado que a obrigação de pagamento dos honorários da Autora se vencesse a final, provando-se que deveriam ser pagos mensalmente. E também não resultou provado que as partes tenham convencionado que o pagamento ocorreria após a emissão da Autora da factura ou recibo verde veja-se o ponto 6. dos factos provados.
A dívida é, pois, exigível e por a Ré não ter cumprido com a sua prestação contratual no prazo ajustado (a retribuição deveria ter sido prestada mensalmente) está em incumprimento (artigo 762.º e 798.º, do Código Civil) e constituiu-se em mora, pelo que deverá pagar juros moratórios à Autora, contabilizados à taxa supletiva prevista para as relações desde a citação (artigos 804.º, 805.º, 1, 806.º, n.º 1 do Código Civil) até integral pagamento.
Como nos termos do artigo 151.º, do CIRS (Portaria n.º 1011/2001, de 21.08) a Autora é considerada profissional liberal, a Autora estará eventualmente obrigada à retenção de imposto sobre rendimento de pessoa singular (IRS) - artigo 101.º, do CIRS - e, eventualmente, o imposto de valor acrescentado (IVA) caso não beneficie da dispensa de retenção na fonte (artigo 101.º-B, n.º 1, al. a) e b) do CIRS) ou isenção de pagamento de IVA (artigo 53.º, do CIVA) e estará obrigada a contribuir para a Segurança Social excepto se tiver requerido e beneficiar de isenção e contribuição à Segurança Social (Decreto-lei 328/93, de 25 de Setembro, com a redacção actualmente em vigor).
Este Tribunal não tem elementos suficientes para aferir de eventual ilícito criminal ou contraordenacional por parte da Autora, ainda assim, determinará a extracção de certidão da presente sentença e a sua remessa ao Ministério Público para que, se for caso disso, seja aberto o respectivo inquérito”.
Já a 1ª R. contrapõe que a ausência de qualquer factura emitida pela A. corresponde a uma situação de incumprimento de obrigações tributárias pela mesma, a determinar que a 1ª R. possa excepcionar o não cumprimento da sua obrigação de pagar os montantes em questão, até que a A. dê cumprimento a tal obrigação tributária em falta. Mais contrapõe que a obrigatoriedade de emissão de factura corresponde a uma condição, na acepção do art.º 270º do Código Civil, a determinar a aplicação do disposto no art.º 610º, nº 1, do Código de Processo Civil, por não ser exigível a obrigação de pagamento enquanto não esteja emitida a factura.
Ou seja, não existe qualquer controvérsia no sentido de estar demonstrada a celebração de um contrato de prestação de serviços entre as partes, nos termos do qual emerge o direito de crédito da A. sobre a 1ª R., correspondente ao recebimento de €16.840,00, e que respeita ao valor da retribuição estipulada para o volume de horas de trabalho desenvolvido pela A. a favor da 1ª R. (e ainda não satisfeita).
A 1ª R. também não coloca em crise que, como resulta demonstrado, o pagamento de tal retribuição seria mensal, sem emissão de factura respectiva (ou recibo verde), porque assim consta do ponto 6. do elenco de factos provados, não tendo a decisão de facto sido objecto de qualquer impugnação.
Todavia, e como bem refere a 1ª R., essa ausência de emissão de factura não está conforme ao disposto no art.º 29º do CIVA, já que resulta da al. b) do seu nº 1 a obrigatoriedade de a A. emitir uma factura por cada prestação de serviços, tal como vêm definidas no art.º 4º do CIVA, em termos que encontram correspondência no relacionamento contratual entre as partes.
Dito de outra forma, não obstante o estipulado entre as partes, no sentido de o pagamento dos serviços ser mensal e sem emissão de factura, a A. não deixou de estar obrigada à emissão da mesma, para efeitos de cumprimento da obrigação tributária em questão, e que mais não representa que uma obrigação acessória daquela outra obrigação de pagamento do IVA (ou, melhor dizendo, de cobrança e entrega ao Estado desse imposto), na medida em que a prestação de serviços em questão estava sujeita a tal imposto, nos termos da al. a) do nº 1 do art.º 1º do CIVA.
Será, todavia, que a falta de emissão de factura impede a A. de fazer valer em tribunal o seu direito de crédito sobre a 1ª R.?
Ou, questionando de outra forma, será que a falta de emissão de factura impede que se reconheça e declare ser a 1ª R. devedora da A. do montante desse crédito?
A 1ª R. assim entende, convocando desde logo o instituto da excepção do não cumprimento do contrato, nos termos do art.º 428º do Código Civil.
Decorre do referido preceito legal que se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, volume I, 4ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 405), a excepção do não cumprimento “pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra. É o que se verifica nos contratos tradicionalmente chamados bilaterais ou sinalagmáticos”.
Todavia, advertem (pág. 406) que “dentro dos próprios contratos bilaterais, interessa ver quais são as prestações interdependentes, (ainda que se trate de prestações acessórias; vide Calvão da Silva, cumprimento, cit. Pág. 333, nota 602), visto que outras podem existir ao lado delas na relação contratual e a exceptio só aproveita às primeiras”.
Para apurar da referida interdependência importa não esquecer que o cumprimento é a realização da prestação creditória, é a prestação de coisa ou de facto. O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (art.º 762º, nº 1, do Código Civil), sendo certo que, tanto no cumprimento da obriga­ção, como também no exercício do direito correspondente, as partes devem proceder de boa fé (art.º 762º, nº 2, do Código Civil).
A este respeito refere Almeida Costa (Obrigações, 3ª edição, pág. 715) que “segundo a boa fé, tanto a actuação do credor no exercício do seu crédito, como a actividade do devedor no cumprimento da obrigação, devem ser presididas pelos ditames da lealdade e da probidade”.
Assim, e como igualmente explicam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, volume II, 3ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1986, pág. 2-3), o cumprimento da obrigação rege-se pelo “dever de agir com lisura e correcção”, sendo que, por um lado, “o devedor não pode limitar-se a uma realização puramente literal ou farisaica da prestação a que se encontra vinculado” e, por outro lado, “o dever de boa fé não se circunscreve ao simples acto da prestação, abrangendo ainda, na preparação e execução desta, todos os actos destinados a salvaguardar o interesse do credor na prestação (o fim da prestação) ou a prevenir prejuízos deste, perfeitamente evitáveis com o cuidado ou a diligência exigível do obrigado”.
Mais explicam os referidos autores que é “nesta área do cumprimento da obrigação que especialmente se concentra a vasta galeria dos deveres acessórios de conduta (…) que a literatura civilística alemã tem extraído do preceito lapidar formulado no § 242 do B.G.B.”, explicando ainda que a “necessidade juridicamente reconhecida e tutelada de agir com correcção e lisura não se circunscreve ao obrigado; incide de igual modo sobre o credor, no exercício do seu poder. E, tal como sucede com o dever de prestar, também no lado activo da relação o dever de boa fé se aplica a todos os credores, seja qual for a fonte do seu direito, embora isso não exclua a desigual intensidade do dever de cuidado e diligência que pode recair sobre as partes”.
Do mesmo modo, como ficou referido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 7/12/2010 (relatado por Silva Salazar e disponível em www.dgsi.pt), os “contratos incluem não só as obrigações deles expressamente constantes, mas também deveres acessórios inerentes à prossecução do resultado por eles visado. II - Estes deveres resultantes acessoriamente do próprio contrato, em paralelo com a obrigação principal e destinados a assegurar a perfeita execução desta, a ponto de a sua violação poder gerar uma situação de incumprimento, implicam a adopção de procedimentos indispensáveis ao cumprimento exacto da prestação, com destaque para o dever de cooperação, sem o qual muitas vezes a utilidade final do contrato não é alcançada. III - Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma actuação de boa fé – art.º 762.º, n.º 2, do CC – entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização”.
Do mesmo modo, ainda, como ficou referido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 27/11/2018 (relatado por Graça Amaral e disponível em www.dgsi.pt), no “negócio jurídico bilateral, de onde emergem direitos e deveres para cada uma das partes, a avaliação do incumprimento contratual não se confina aos deveres principais adstritos às respectivas partes, estendendo-se, necessariamente, aos deveres acessórios ou complementares ínsitos nas estipulações contratuais e aos que decorrem do desígnio da própria vinculação contratual (deveres inerentes à dinâmica negocial assentes no princípio de boa fé e num critério ético-normativo de razoabilidade)”.
Ou seja, e reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, apenas e tão só na medida em que a emissão da factura se apresente como uma prestação acessória da prestação principal (a realização dos trabalhos solicitados) assumida pela A. nos termos das estipulações contratuais, e visando salvaguardar o direito da 1ª R. a essa prestação, é que se pode afirmar a sua interdependência com a prestação pecuniária a que a 1ª R. se obrigou, para efeitos de se poder afirmar que a falta de emissão da factura corresponde a uma situação de incumprimento contratual das prestações devidas pela A., a legitimar o não cumprimento da prestação pecuniária devida pela 1ª R.
Só que, como resulta da própria natureza da obrigação de emissão de factura, o beneficiário dessa prestação de facto não é a 1ª R., mas antes o Estado. E, do mesmo modo, o interesse da 1ª R. nessa prestação nenhuma relação apresenta com o fim da prestação que lhe é contratualmente devida pela A., correspondente à realização dos serviços solicitados, nos termos convencionados.
O que equivale a dizer que, ainda que se possa afirmar que a emissão de factura se apresenta como acessória das obrigações contratualmente assumidas pelas partes, a mesma não se apresenta como determinante do surgimento da obrigação de pagamento da retribuição devida pelos serviços prestados. E, nesta medida, a excepção do não cumprimento dessa obrigação tributária de emissão de factura não aproveita à 1ª R., antes se devendo afirmar estar a mesma obrigada ao cumprimento da prestação pecuniária em questão e, nessa medida, ser condenada na sua satisfação à A.
Todavia, e ainda que não proceda a excepção do não cumprimento do contrato, é de afirmar que o pagamento em questão só deve ser efectuado contra a emissão (e apresentação) da factura em questão.
Com efeito, e como se conclui no acórdão de 16/12/2015 do Tribunal da Relação de Coimbra (relatado por Barateiro Martins e disponível em www.dgsi.pt), “a emissão obrigatória duma factura, respeitante a um serviço prestado, funciona como uma condição que, enquanto não preenchida, determina não poder considerar-se vencida e exigível a obrigação – toda ela, remuneração efectiva do serviço e imposto IVA – não havendo assim lugar a juros e havendo, isso sim, lugar à aplicação do art.º610.º/1 e 2/a) do CPC (ou seja, ao pagamento da obrigação apenas e só contra a apresentação da competente factura)”.
Do mesmo modo, e como se conclui no acórdão de 17/5/2022 do Tribunal da Relação do Porto (relatado por Rodrigues Pires e disponível em www.dgsi.pt), “o IVA não pode ser exigido sem prévia emissão e apresentação da respectiva factura, de tal modo que a emissão obrigatória da factura surge como condição de exigibilidade e vencimento de toda a dívida – remuneração do serviço prestado e IVA correspondente”. Pelo que “enquanto a factura não for preenchida a obrigação não se pode considerar vencida e exigível e, por isso, não há lugar ao pagamento de juros, impondo-se, por outro lado, a aplicação do disposto no art.º 610º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, donde decorre que o pagamento da obrigação se efectuará apenas contra a emissão e apresentação da competente factura”.
Do mesmo modo, ainda, e como se conclui no acórdão de 30/6/2022 do Tribunal da Relação de Évora (relatado por Maria Domingas Simões e disponível em www.dgsi.pt), “apesar de não ter emitido as facturas, o incumprimento das suas obrigações fiscais não impede o A. de fazer valer em juízo os seus direitos (cfr. artigo 274.º do CPC), mas as rendas só serão exigíveis mediante a emissão e entrega ao R. das pertinentes facturas, que aqui funciona “como uma “implícita” condição legal (cfr. artigo 270.º do Código Civil) que, enquanto não preenchida, determina não poder considerar-se vencida e exigível a obrigação – toda ela, remuneração efectiva do serviço e imposto IVA”.
Com efeito, e como é afirmado nos dois últimos acórdãos referidos, sendo o IVA exigível no momento da prestação do serviço, e sendo obrigatória a emissão da factura, que constitui condição legal da exigibilidade do IVA pelo prestador do serviço, é toda a dívida que não pode ser exigida, enquanto não for exigido o IVA respectivo, e daí se retirando que a produção dos efeitos do contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes, no que ao pagamento da retribuição diz respeito, está subordinada à emissão da factura respectiva.
O que é o mesmo que afirmar a existência de uma condição para a exigibilidade da prestação correspondente ao pagamento da retribuição devida pelos serviços prestados pela A., correspondente à emissão da factura respectiva. E a circunstância de tal condição não surgir da vontade das partes, mas antes de disposição legal, em nada altera a sua aplicação, para efeitos de determinação da exigibilidade da prestação devida pela 1ª R. Com efeito, o estipulado pelas partes, no sentido de as retribuições serem devidas mensalmente, sem emissão de factura ou recibo verde, apresenta-se como de nenhum efeito, para obstar ao funcionamento dessa condição de exigibilidade da prestação pecuniária devida pela 1ª R., já que o legalmente preceituado quanto à obrigatoriedade de emissão de factura (e de recibo) não é susceptível de ser afastado pela vontade das partes, ao abrigo do princípio da liberdade contratual que resulta do art.º 405º do Código Civil, uma vez que se está perante disposições de direito público e que, por isso, se apresentam como imperativas.
Nessa medida, e como invocado pela 1ª R., há que recorrer ao disposto no art.º 610º, nº 1, do Código de Processo Civil, reconhecendo-se a existência da obrigação pecuniária da 1ª R. e condenando-se a mesma na sua satisfação à A., mas apenas no momento próprio, correspondente ao da emissão da factura em falta.
Já no que respeita ao disposto na al. a) do nº 2 e no nº 3 do mesmo art.º 610º do Código de Processo Civil, não tem aqui aplicação porque na sua contestação a R. colocou em causa a própria existência da obrigação pecuniária, com a configuração invocada pela A., e não apenas a sua exigibilidade.
Ou seja, o decidido pelo tribunal recorrido não pode subsistir, quanto à afirmação da exigibilidade da prestação pecuniária da 1ª R., independentemente da não emissão da factura respectiva. E, consequentemente, não pode subsistir a condenação da 1ª R. no pagamento da quantia correspondente (€16.840,00), acrescida de juros de mora desde a citação, antes havendo que condenar a 1ª R. nos termos já afirmados.
Em suma, na parcial procedência das conclusões do recurso da 1ª R. mantém-se a condenação da mesma, mas há que alterar o decidido, no que respeita à inexigibilidade da referida quantia de €16.840,00.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se parcialmente procedente o recurso e alteram-se as al. a) e c) do dispositivo da sentença recorrida, nos seguintes termos:
a) As retribuições do serviço prestado e não pago no valor de €16.840,00 (dezasseis mil oitocentos e quarenta euros), contra a emissão da correspondente factura;
c) Juros de mora sobre a quantia referida em b) contados desde a data da citação até ao integral pagamento, à taxa supletiva prevista para as relações civis.
Sem custas no recurso, para além da taxa de justiça que a recorrente já suportou, porque foi esta quem tirou proveito exclusivo do recurso e a recorrida não deu causa ao mesmo nem apresentou qualquer alegação de resposta, pelo que não se pode considerar que tenha sido vencida.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024
António Moreira
Orlando Nascimento
Paulo Fernandes da Silva