Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4827/23.7T8LRS.L1-7
Relator: PAULO RAMOS DE FARIA
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENOR
PROGENITOR GUARDIÃO
COBRANÇA DE ALIMENTOS
MEIO PROCESSUAL
INCUMPRIMENTO DE ALIMENTOS
EXECUÇÃO ESPECIAL POR ALIMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Confrontado com o incumprimento da obrigação alimentar não fixada judicialmente, o progenitor que administra os alimentos devidos ao menor pode requerer ao tribunal que decrete as diligências necessárias para a sua satisfação coerciva, optando por uma de duas formas processuais: o processo de incumprimento das responsabilidades parentais previsto no art. 41.º do RGPTC e o processo de execução especial por alimentos (art. 933.º do Cód. Proc. Civil).
2. Sendo o pedido procedente, a decisão final proferida no âmbito do referido processo de incumprimento (respeitante a obrigação de alimentos) compreende sempre uma pronúncia declarativa, julgando verificado o incumprimento da obrigação e liquidando o valor da dívida (montante em dívida e montante da prestação atual), e uma pronúncia executiva, determinando as diligências necessárias para o cumprimento coercivo.
3. Mesmo nas situações em que a obrigação de alimentos (decorrente de acordo válido e vinculativo) não foi judicialmente fixada nem homologada, a articulação entre o regime previsto no art. 41.º e o contido no art. 48.º, ambos do RGPTC, cauciona a aplicação deste último.
4. O processo de incumprimento das responsabilidades parentais (art. 41.º do RGPTC) comunga de uma natureza executiva – é um processo de natureza mista. O mesmo é dizer que, por força do art. 33.º, n.º 1, do RGPTC e do art. 551.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil, o regime processual que resulta da articulação entre os arts. 41.º e 48.º do RCPTC, estando em causa a obrigação de alimentos, deve ser integrado pela norma enunciada no art. 738.º, n. 4, do Cód. Proc. Civil
5. Previamente à decisão proferida nos termos referidos no ponto 2, o tribunal deve apurar as fontes e o valor dos rendimentos do requerido, em ordem a poder ser ordenada a dedução do valor da prestação de alimentos, no respeito pelo limite previsto no n.º 4 do art. 738.º do Cód. Proc. Civil.
6. Nos processos de jurisdição voluntária, o tribunal deve “adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” (art. 987.º do Cód. Proc. Civil). No entanto, isto não significa que pode emitir uma pronúncia que extravasa e não satisfaz o fim típico da forma processual adotada. A conveniência que justifica a flexibilização da vinculação ao pedido é a conveniência para a satisfação do fim do processo, isto é, no caso, para a adoção das “diligências necessárias para o cumprimento coercivo” da obrigação (art. 41.º, n.º 1, do RGPTC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

A. Relatório
A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
CS instaurou o presente processo de incumprimento do acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais homologado pelo conservador do Registo Civil, nos termos previstos no art. 41.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), contra HR, respeitante à sua filha comum, EOR.
Conclui pedindo:
a) Termos em que requer a V. Exa. que se digne ordenar o cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 41.º do RGPTC, ou em alternativa, que seja apurada a situação pessoal e económica do Requerido, decretando-se, a final, e através do mecanismo previsto no artigo 48.º do referido diploma legal, as medidas necessárias ao cumprimento coercivo da quantia em dívida, bem como a condenação do requerido em multa e em indemnização a favor do menor;
b) Se digne mandar oficiar as entidades competentes (p.e. Instituto da Segurança Social, Autoridade Tributária e Centro Nacional de Pensões) a fim de saber se o requerido aufere retribuições, ou outras prestações suscetíveis de fazer face aos pagamentos devidos;
c) Em caso afirmativo, se digne ordenar o imediato desconto no vencimento ou outras prestações de que o requerido seja titular, das prestações vencidas e vincendas, acrescidas de juros de mora civis vencidos, calculados à taxa legal em vigor;
d) Se digne ordenar o depósito das quantias descontadas ao requerido, na conta da titularidade da Requerente, a qual se encontra identificada nos presentes autos.
Para tanto, alegou que o requerido incumpriu a obrigação de alimentos a que está vinculado, em benefício da filha menor.
Notificado o requerido, ofereceu este a sua alegação, nos termos previstos no art. 41.º, n.º 3, do RGPTC, excecionando a prescrição do direito a alimentos, a dificuldade de efetuar a sua prestação e a desnecessidade da credora de receber o valor dos alimentos acordados. Concluiu nos seguintes termos:
Termos em que se requer a V. Exa. que se digne considerar improcedente, por não provada, toda a factualidade invocada pela Requerente que resulte num valor de dívida da pensão de alimentos devida pelo requerido à menor EOR, que exceda o valor de 755,18 € (setecentos e cinquenta e cinco euros e dezoito cêntimos).
Mais se requer a V. Exa. que, previamente a qualquer ato previsto no artigo 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, e nos termos do disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 41.º do mesmo diploma, seja agendada conferência de pais, tendente a se tentar obter um acordo relativamente ao pagamento do valor da pensão de alimentos que se encontra vencido e não prescrito, bem como a fim de se tentar obter um acordo relativamente à alteração do valor da pensão de alimentos em vigor, que acautele de forma proporcional os interesses de todos os filhos e do enteado a cargo do requerido, tendo em consideração a respetiva idade e capacidade individual de obter rendimentos próprios.
Na pronúncia final, o tribunal a quo decidiu a causa nos seguintes termos:
Tudo somado, e na procedência da pretensão deduzida nos exatos termos expendidos supra:
– Condena-se HR a liquidar a quantia global de € 21.959,97 peticionada - a título de prestações alimentos, incluindo a respetiva atualização anual, em dívida desde dezembro de 2012 até maio de 2023, inclusive, sendo que a atualização anual apenas ocorreu a partir de setembro de 2013 -, acrescendo ao valor parcial/total das prestações em dívida juros de mora, à taxa legal supletiva de juros civis em vigor - 4% -, desde o dia seguinte ao do vencimento de cada uma das prestações em falta e até efetivo e integral pagamento;
– Condena-se HR a liquidar, igualmente, as prestações de alimentos vencidas e não pagas desde maio de 2023 em diante, acrescidas da atualização anual convencionada que sucessivamente ocorra, assim como de juros de mora que se vencerem, à taxa legal supletiva de juros civis vigente, desde o dia seguinte ao do respetivo vencimento e até efetivo e integral pagamento;
– Absolve-se HR do pedido de condenação, como litigante de má fé, em multa e indemnização em benefício da filha menor.
Inconformado, o requerido apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
6.º (…) a decisão proferida, ao condenar o requerido a pagar determinados montantes monetários à requerente, decide em objeto diverso do pedido apresentado pela requerente, o que vicia de nulidade tal decisão, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, al. e) do Código de Processo Civil. (…)
10.º (…) ao não se pronunciar sobre o pedido de realização de uma conferência de pais para os efeitos previstos no n.º 4 do artigo 41.º do regime Geral do Processo Tutelar Cível, a douta sentença deixou de se pronunciar sobre uma questão com especial incidência no superior interesse da menor EOR, padecendo do vício de nulidade previsto no artigo 615.º n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil, que se argui para todos os efeitos legais. (…)
17.º (…) a factualidade provada nos autos permite concluir que, durante mais de 10 anos, o valor de 150,00 € (…) mensais que o requerido contribuiu com para o sustento da filha de ambos, EOR, foi suficiente para o sustento da mesma, nunca tendo a requerente exigido do requerido qualquer montante adicional, ou sequer a atualização anual de tal montante.
18.º (…) o agregado familiar do requerido ampliou, mantendo outros 3 menores a seu cargo, (…) [e] o requerido perdeu o emprego que lhe permitira acordar como fez em sede de divórcio, passando a auferir um rendimento muito mais reduzido. (…)
32.º Ao não se pronunciar sobre o pedido de realização da conferência de pais, a douta sentença deixou de se pronunciar sobre uma questão fundamental na proteção dos interesses da menor, e logrou qualquer possibilidade de acordo entre os respetivos progenitores no sentido de obter uma decisão judicial que ratificasse uma realidade que decorreu durante mais de 10 anos sem qualquer oposição.
33.º (…) ao não reconhecer a concreta e efetiva alteração dos pressupostos que determinaram a medida dos alimentos fixada em sede de processo de divórcio, há mais de 11 anos, nomeadamente a alteração da capacidade do requerido em cumprir com o valor dos alimentos aí fixada, e as concretas necessidades da menor, que com o valor mensal de 150,00 € (…), pago pelo requerido durante mais de 10 anos, sempre foram supridas, com o reconhecimento tácito por parte da requerente, a douta sentença recorrida padece de um erro de julgamento, não dando como provados factos relevantes para a boa decisão da causa.
Termos em que se requer a V. Exas. que seja dado provimento ao presente Recurso, por provado e, em consequência, sejam reconhecidas as nulidades da douta sentença proferida, ao decidir em objeto diverso do pedido apresentado pela requerente, e ao não se pronunciar sobre o pedido de realização da conferência de pais peticionada pelo requerido, para os efeitos previstos no n.º 4 do artigo 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, al. e) e d) do Código de Processo Civil, que se arguem para todos os efeitos legais, devendo a sentença ser revogada e substituída por outra que, determinando o prosseguimento dos autos, convoque os progenitores para a conferência de pais, nos termos requeridos.
Subsidiariamente, caso assim não se entenda, por dever de patrocínio, requer-se que seja a douta sentença proferida revogada e substituída por outra que, reconhecendo-se a efetiva alteração das circunstâncias que determinam a medida dos alimentos devidos pelo requerido à sua filha menor, EOR, de forma estável e duradoura durante mais de 10 anos, reconhecidas tacitamente pela requerente, determine que o valor da pensão de alimentos efetiva deverá ser fixado em 150,00 € (…) mensais, por durante tal período se ter manifestado corresponder às concretas necessidades da menor e capacidade do requerido em prover ao sustento da mesma.
A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.
A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar
As duas primeiras questões a enfrentar prendem-se com as duas nulidades da sentença arguidas. Segue-se a reapreciação da matéria de facto.
As questões de direito respeitantes ao mérito da causa serão mais desenvolvidamente enunciadas após a reapreciação da matéria de facto, se não se mostrar prejudicada tal enunciação.
                                                  *
B. Fundamentação
B.A. Arguição de nulidades (vícios processuais)
1. Omissão de pronúncia
Entende o apelante que, “ao não se pronunciar sobre o pedido de realização de uma conferência de pais para os efeitos previstos no n.º 4 do artigo 41.º do regime Geral do Processo Tutelar Cível, a douta sentença deixou de se pronunciar sobre uma questão com especial incidência no superior interesse da menor EOR, padecendo do vício de nulidade previsto no artigo 615.º n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil, que se argui para todos os efeitos legais”. Dispõe a norma invocada que “É nula a sentença quando (…) [o] juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”. Este dispositivo deve ser articulado com a primeira parte do n.º 2 do art. 608.º do Cód. Proc. Civil (questões a resolver – ordem do julgamento): “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
A decisão proferida pelo tribunal a quo deve ser qualificada, na economia desta forma processual especial, como “sentença” (art. 152.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil). Pela decisão impugnada, o tribunal recorrido decidiu a demanda, pronunciando-se sobre a sua causa de pedir e sobre as exceções, na fundamentação que apresenta. Todas as questões suscitadas em torno do objeto do processo foram abordadas na fundamentação – sem prejuízo do que adiante se dirá sobre a pronúncia exorbitante e sobre a insuficiência da matéria de facto objeto de pronúncia.
Enfrentando a impugnação sob a concreta perspetiva adotada pelo apelante, isto é, centrando-nos na sentença proferida e nos seus capítulos concretos, devemos concluir que resulta necessariamente do teor desta – em especial, do seu dispositivo – o não acolhimento do requerimento de realização da conferência de pais. Ora, sob este prisma, não tinha o tribunal a quo de se pronunciar ainda sobre esta realização, pois estava o seu conhecimento prejudicado – dado ser impossível, em face da decisão da causa, a realização de uma conferência prévia a esta decisão. Encontra-se, pois, a omissão de pronúncia (hoc sensu) justificada com a exceção prevista na primeira parte da norma enunciada no n.º 2 do art. 608.º do Cód. Proc. Civil, acima transcrita.
Esta não será, todavia, a melhor abordagem da impugnação sob apreciação, dado existir precedência lógica da questão da eventual realização de uma diligência prévia à decisão final.
O vício ora analisado traduz-se nisto: alegada omissão de um despacho sobre uma pretensão puramente processual (adjetiva) e prolação, em alternativa, da sentença final. O trâmite em falta será, pois, antes de mais, o despacho sobre a realização da conferência de pais, e não a própria realização desta conferência. O mesmo é dizer que a sentença não padece do apontado vício (intrínseco ou de conteúdo) de omissão de pronúncia. (Aliás, de acordo com uma posição que vem fazendo escola – e que, no caso, não acompanhamos –, estar-se-ia, sim, perante um vício de excesso de pronúncia, por ter sido preterido um trâmite prévio à sentença, supostamente necessário). O putativo vício é prévio à sentença, não tendo sido, no entanto, arguida perante o tribunal a quo uma nulidade por omissão de nenhum trâmite.
De todo o modo, sempre se dirá que, por um lado, a conferência de pais em questão pode ser determinada em alternativa ao oferecimento de oposição (alegação) pelo requerido (art. 41.º, n.º 3, do RGPTC), sendo que, no caso foi determinada a via do oferecimento de alegação escrita, a qual veio a ser produzida pelo requerente. Por outro lado, nos processos de jurisdição voluntária, o juiz goza de uma ampla margem de discricionariedade na escolha das diligências instrutórias necessárias à satisfação do fim do processo (art. 986.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil e do RGPTC). Ora, no caso, a conferência de pais nada acrescenta de útil ao apuramento da matéria de facto controvertida – existência de rendimentos aos quais possam ser deduzidas as prestações.
Aliás, decorre claro da fundamentação do requerimento para realização de uma conferência que o requerido não pretende esclarecer ou demonstrar os factos relevantes, mas sim conseguir da requerente (porventura, em nome da menor) um perdão da dívida e, instrumentalizando este procedimento, uma alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais. O “superior interesse da criança”, invocado pelo requerido, não é uma fórmula mágica que um impetrante pode gastar na sustentação de toda e qualquer pretensão, em ordem a obter o seu provimento. Não há qualquer interesse da menor, superior ou não, em prescindir de um crédito de mais de € 20 000,00 nem em ver reduzida a prestação de alimentos de que beneficia em 50%. O interesse é exclusivamente do requerido, ora apelante, e, sendo também legítimo, deve ser satisfeito no apropriado processo de alteração das responsabilidades parentais – sem prejuízo de as partes poderem chegar a novo acordo, na sequência de contactos mantidos diretamente ou por intermédio dos respetivos mandatários, ou mesmo no âmbito de uma diligência realizada para satisfação dos fins típicos deste processo.
Do exposto decorre que, ainda que se entenda que a sentença é parcialmente nula – por nela não se ter afirmado expressamente o indeferimento do requerimento de realização da conferência de pais, não se adjudicando também (expressamente) um segmento da fundamentação à motivação deste indeferimento –, tal nulidade parcial não tem consequências práticas, dado que, na supressão da omissão em substituição (art. 665.º do Cód. Proc. Civil), o tribunal ad quem não deixará de respeitar a gestão processual validamente prosseguida pelo tribunal a quo. O mesmo é dizer que não pode proceder a concreta pretensão do apelante – que fixa o objeto do recurso e o âmbito da intervenção do tribunal ad quem – no sentido de substituição da sentença “por outra que, determinando o prosseguimento dos autos, convoque os progenitores para a conferência de pais, nos termos requeridos”.
2. Pronúncia exorbitante
Sustenta o apelante que “a decisão proferida, ao condenar o requerido a pagar determinados montantes monetários à requerente, decide em objeto diverso do pedido apresentado pela requerente, o que vicia de nulidade tal decisão, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, al. e) do Código de Processo Civil”. Dispõe a norma invocada que “É nula a sentença quando (…) [o] juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”. Este dispositivo deve ser articulado com o n.º 1 do art. 609.º do Cód. Proc. Civil (limites da condenação): “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”.
Como vimos, a requerente pediu:
a) Termos em que requer a V. Exa. que se digne ordenar o cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 41.º do RGPTC, ou em alternativa, que seja apurada a situação pessoal e económica do Requerido, decretando-se, a final, e através do mecanismo previsto no artigo 48.º do referido diploma legal, as medidas necessárias ao cumprimento coercivo da quantia em dívida, bem como a condenação do requerido em multa e em indemnização a favor do menor;
b) Se digne mandar oficiar as entidades competentes (p.e. Instituto da Segurança Social, Autoridade Tributária e Centro Nacional de Pensões) a fim de saber se o requerido aufere retribuições, ou outras prestações suscetíveis de fazer face aos pagamentos devidos;
c) Em caso afirmativo, se digne ordenar o imediato desconto no vencimento ou outras prestações de que o requerido seja titular, das prestações vencidas e vincendas, acrescidas de juros de mora civis vencidos, calculados à taxa legal em vigor;
d) Se digne ordenar o depósito das quantias descontadas ao requerido, na conta da titularidade da Requerente, a qual se encontra identificada nos presentes autos.
E o tribunal decidiu:
Tudo somado, e na procedência da pretensão deduzida nos exatos termos expendidos supra:
– Condena-se HR a liquidar a quantia global de € 21.959,97 peticionada - a título de prestações alimentos, incluindo a respetiva atualização anual, em dívida desde dezembro de 2012 até maio de 2023, inclusive, sendo que a atualização anual apenas ocorreu a partir de setembro de 2013 -, acrescendo ao valor parcial/total das prestações em dívida juros de mora, à taxa legal supletiva de juros civis em vigor - 4% -, desde o dia seguinte ao do vencimento de cada uma das prestações em falta e até efetivo e integral pagamento;
– Condena-se HR a liquidar, igualmente, as prestações de alimentos vencidas e não pagas desde maio de 2023 em diante, acrescidas da atualização anual convencionada que sucessivamente ocorra, assim como de juros de mora que se vencerem, à taxa legal supletiva de juros civis vigente, desde o dia seguinte ao do respetivo vencimento e até efetivo e integral pagamento;
– Absolve-se HR do pedido de condenação, como litigante de má fé, em multa e indemnização em benefício da filha menor.
Confrontando o pedido com o segmento decisório da sentença, resulta claro que a pronúncia não de cinge ao que foi peticionado. Importa aqui sublinhar que a fundamentação da decisão é sólida e que os argumentos desenvolvidos pelo tribunal são absolutamente coerentes. Sob este aspeto, nada há a apontar ao judicioso ato decisório.
Com efeito, as questões corretamente tratadas são absolutamente pertinentes, pois inscrevem-se na apreciação das exceções opostas pelo requerido e na liquidação da sua responsabilidade. No entanto, da fundamentação desenvolvida deveria ter resultado, apenas, o afastamento de tais exceções, seguindo-se o decretamento de medidas de natureza executiva (com uma ressalva, desenvolvida no final deste capítulo); não uma pronúncia jurisdicional (apenas) totalmente declarativa, não pedida pela impetrante. (Entre parênteses, esclarecemos que apelidamos as medidas requeridas de executivas, porque visam a satisfação da obrigação, independentemente da vontade do devedor).
É certo que este processo tem natureza de jurisdição voluntária (art. 12.º do RGPTC) e que, nos processos desta jurisdição, o tribunal deve “adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” (art. 987.º do Cód. Proc. Civil). No entanto, isto não significa que o tribunal pode emitir uma pronúncia que extravasa e não satisfaz o fim típico desta forma processual. A conveniência que justifica a flexibilização da decisão do tribunal é a conveniência para a satisfação do fim do processo, isto é, no caso, a adoção das “diligências necessárias para o cumprimento coercivo”.
Devemos, pois, concluir que o tribunal a quo transformou a demanda numa ação declarativa de condenação por incumprimento de um acordo, condenando o requerido em objeto diverso do que se pediu ou daquele que poderia determinar com base em critérios de conveniência e de oportunidade. Em suma, a decisão impugnada é nula por violação do disposto no n.º 1 do art. 609.º do Cód. Proc. Civil, nos termos previstos na al. e) do n.º 1 do art. 615.º do mesmo código – encerrando, ainda, por contraponto, uma omissão de pronúncia quanto ao concreto pedido executivo (hoc sensu) formulado (e ao seu pressuposto: existência de rendimentos suscetíveis de retenção).
Esta conclusão não determina, por si só, a efetiva satisfação do interesse do apelante – “a sentença ser revogada e substituída por outra que, determinando o prosseguimento dos autos, convoque os progenitores para a conferência de pais” –, por força dos limites da “regra da substituição ao tribunal recorrido”, prevista no art. 665.º do Cód. Proc. Civil. O tribunal ad quem não decidirá imediatamente a causa – decretando, depois de afastadas as exceções, as medidas executivas a adotar – se existir outra circunstância impeditiva do conhecimento do mérito da causa. Mais adiante, veremos se, efetivamente, existe um obstáculo à regra da substituição.
Antes de terminarmos este capítulo, temos de desenvolver a ressalva à pronúncia meramente executiva acima mencionada. Referimo-nos à necessidade de liquidação (afirmação) da quantia vencida coercivamente cobrada nestes autos e do valor da prestação atual.
Tal como ocorre com qualquer outro processo de natureza executiva para a cobrança de uma quantia pecuniária, esta deve ser certa. Tendo sido contestada pelo requerido a liquidação das quantias em dívida realizada pela requerente, justifica-se que o tribunal declare no segmento decisório o valor do crédito “exequendo” que, muito certeiramente, já liquidou na parte da sentença dedicada à fundamentação julgado.
B.B. Factos julgados provados pelo tribunal ‘a quo’
1 – Por decisão da Conservatória do Registo Civil de Lisboa de 17 de julho de 2012, transitada em julgado, ficou o aqui requerido/pai vinculado a contribuir para o sustento da filha – EOR, nascida a (…) – com a quantia mensal de € 300,00, a qual incluía metade dos custos escolares da menor, nomeadamente as propinas do estabelecimento de ensino, a entregar à mãe até ao dia cinco do mês a que dissesse respeito.
2 – [A quantia acordada deve ser liquidada] mediante transferência bancária para conta desta devidamente identificada, contra a emissão da competente quitação por parte da progenitora
3 – Mais tendo ficado convencionado que a prestação de alimentos seria objeto de atualização anual na proporção direta do coeficiente de correção da inflação  elaborado pelo Instituto Nacional de Estatística, no mês de setembro de cada ano.
B.C. Revisão oficiosa da decisão respeitante à matéria de facto
1. Enquadramento jurídico que revela a essencialidade dos factos
Sem qualquer enquadramento numa impugnação da decisão respeitante à matéria de facto, o apelante insurge-se contra a circunstância de o tribunal a quo ter decidido a causa sem apurar a sua capacidade económica. Na decisão recorrida é explicada a desnecessidade do apuramento desta factualidade: a difficultas praestandi não é causa de justificação do incumprimento. Quer porque a posição do tribunal a quo é de acompanhar, quer porque não foram satisfeitos os ónus previstos no art. 640.º do Cód. Proc. Civil, não pode ser aceite um recurso da decisão de facto proferida.
No entanto, esta factualidade não apurada é, em parte, relevante para o julgamento do pedido – independentemente da inconcludência da referida exceção –, pelo que se pode justificar aqui a intervenção oficiosa do tribunal ad quem. É o que veremos de imediato.
Confrontado com o incumprimento da obrigação alimentar não fixada judicialmente, o progenitor que administra os alimentos devidos ao menor pode requerer ao tribunal que decrete as diligências necessárias para a sua satisfação coerciva, optando por uma de duas formas processuais: o processo de incumprimento previsto no art. 41.º do RGPTC (que, neste caso, não tem natureza incidental) e o processo de execução especial por alimentos (art. 933.º do Cód. Proc. Civil) – no sentido da admissibilidade (alternativa) da adoção de uma das diferentes formas processuais previstas na lei, cfr. os Acs. do TRL de 13-07-2023 (6804/18.0T8FNC-E.L1-7) e de 15-04-2021 (74/15.0T8SXL-T.L1-2). Nestes casos, o imediato recurso à (terceira) via processual prevista no art. 48.º do RGPTC poderá brigar com o enunciado do seu n.º 1 – que reza “Quando a pessoa judicialmente obrigada…” (sublinhado nosso). Conforme sustenta Tomé d’Almeida Ramião, “[a] utilização deste meio pressupõe que tenha sido fixada judicialmente prestação de alimentos (…)” – Regime Geral do Processo Tutelar Cível, Lisboa, Quid Juris?, 2020, p. 203; alertando para esta dificuldade, cfr. o Ac. do TRE de 26-05-2022 (255/21.7T8CSC.E1).
No entanto, mesmo nas situações em que a obrigação não foi judicialmente fixada nem homologada, da articulação entre o regime previsto no art. 41.º e o contido no art. 48.º, ambos do RGPTC, poderá resultar a aplicação deste último. Sendo percorrido o caminho previsto naquele primeiro artigo, terá o obrigado oportunidade para se pronunciar sobre a existência da obrigação, o seu cumprimento e o valor da dívida. A pronúncia afirmativa do tribunal sobre estas questões – que antecede logicamente o decretamento de medidas executivas – não pode deixar de valer para uma eventual, subsequente, aplicação do disposto no art. 48.º do RGPTC. Perante tal pronúncia, o devedor passa a ser uma “pessoa judicialmente obrigada” – ainda que os alimentos devidos não tenham sido originariamente fixados nem homologados pelo tribunal, mas sim estabelecidos por outro modo válido e vinculativo.
Afigura-se-nos, pois, que, no respeito pelas soluções processuais descritas e pelo pedido formulado, deve a primeira instância emitir pronúncia (declarativa) sobre a verificação do crédito – isto é, sobre a existência da obrigação e do incumprimento, e sobre os valores devidos –, seguindo-se no mesmo dispositivo, confirmando-se o incumprimento da obrigação, pronúncia (executiva) sobre as medidas a adotar – que, face à antecedente pronúncia jurisdicional declarativa, podem ser, agora inquestionavelmente, as previstas no art. 48.º RGPTC.
Considerando que o regime previsto no art. 41.º do RGPTC se destina, no essencial, à adoção das “diligências necessárias para o cumprimento coercivo”, deve a atuação respetiva merecer a qualificação de “ação executiva”, à luz do disposto no n.º 4 do art. 10.º do Cód. Proc. Civil (espécies de ações, consoante o seu fim) – sem embargo de, sendo uma demanda mista, também compreender um âmbito declarativo. O mesmo se poderá dizer – quanto ao fim executivo – do regime processual previsto no art. 48.º do RGPTC, dado que consagra um procedimento de realização coativa da obrigação – e não, meramente, uma atividade pré-executiva de localização e de conservação de bens. Isto significa que, por força do disposto no n.º 1 do art. 33.º do RGPTC e do art. 551.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil, o processo que resulta da articulação entre os arts. 41.º e 48.º do RCPTC deve ser integrado pela norma enunciada no art. 738.º, n. 4, do Cód. Proc. Civil.
2. Ampliação da  base da pronúncia de facto
À luz deste enquadramento plausível para a questão de direito, e considerando que a demandante requereu “o imediato desconto no vencimento ou outras prestações de que o requerido seja titular”, para que o tribunal possa decidir a “procedência da pretensão deduzida”, como declarou decidir, terão de se apurar as fontes e os valores dos rendimentos do requerido – como, aliás, a requerente requereu na al. a) do petitório –, em ordem a poder ser ordenada, a final, a dedução do valor da prestação de alimentos. Também para o integral cumprimento do limite previsto no n.º 4 do art. 738.º do Cód. Proc. Civil, é essencial conhecer os rendimentos e a situação económica do requerido.
Impõe-se, pois, ao abrigo da norma enunciada na al. c) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil, anular a decisão respeitante à matéria de facto, determinando-se a ampliação da base da pronúncia do tribunal a quo, de modo a abranger as fontes e os valores dos rendimentos do requerido, bem como as condições de vida deste que o tribunal tenha por pertinentes à fundamentação da decisão sobre as medidas executivas a adotar – sobre a admissibilidade da intervenção oficiosa do tribunal ad quem, cfr. o Ac. do STJ de 17-10-2019 (3901/15.8T8AVR.P1.S1), bem como António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 357 e 358.
Sendo repetido o ato decisório, a capacidade económica do requerido ao longo dos anos poderia, ainda, ser relevante para a decisão de aplicação, ou não, de uma medida sancionatória ou ressarcitória (art. 41.º, n.º 1, parte final, do RGPTC), pois tal capacidade revela-nos se a sua conduta tem sido especialmente censurável ou a medida em que o foi. Também por esta razão se poderia justificar a ampliação da matéria objeto da pronúncia de facto.
No entanto, tal motivo não é acima por nós invocado na sustentação da parcial anulação da pronúncia de facto, pois o tribunal a quo não adotou nenhuma medida desta índole. O mesmo é dizer que, na nova decisão a proferir, não o poderá fazer inovadoramente, sob pena de violação da proibição da reformatio in pejus (art. 635.º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil). Conforme se entendeu no Ac. do STJ de 03-03-2021 (1310/11.7TBALQ.L2.S1), “[s]e uma sentença proferiu condenação dos réus e se só estes interpuseram recurso, tendo a apelação determinado a anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto, não pode a sentença que venha a se proferida posteriormente agravar a condenação anterior uma vez que se encontram salvaguardados, em definitivo, os efeitos da decisão, na parte que não tiver sido objeto de recurso” – cfr., ainda, António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, 7.ª ed., p. 138, incluindo nota de rodapé 243.
B.D. Conclusão
1. Invalidade da pronúncia do tribunal ‘a quo’
Resulta da fundamentação acima desenvolvida que, por um lado, a sentença é nula, por pronúncia exorbitante, e que, por outro lado, não pode operar a “regra da substituição ao tribunal recorrido” (art. 665.º do Cód. Proc. Civil), por não estarem reunidas as condições necessárias à prolação da decisão final – a decisão sobre a matéria de facto é deficitária e não constam dos autos elementos que permitam superar esta deficiência.
Deverão, pois, ser anulados o julgamento de facto e a sentença que o corporiza, devendo a primeira instância pronunciar-se sobre as fontes e os valores dos rendimentos do requerido, bem como as condições de vida deste que o tribunal tenha por pertinentes à fundamentação da decisão sobre as medidas executivas a adotar (designadamente, medidas para dedução da prestação nos rendimentos auferidos), atendo-se tal decisão aos limites do pedido de natureza executiva (e das exceções deduzidas), bem como à verificação do incumprimento alegado e à liquidação da obrigação – valor da dívida vencida e valor da prestação atual. A repetição do julgamento da matéria de facto não abrange a decisão acima descrita – cfr. o capítulo B.B. deste aresto (art. 662.º, n.º 3, al. c), do Cód. Proc. Civil)  –, embora possa ser aperfeiçoada a redação dos seus enunciados.
Esta pronúncia deverá ser precedida das diligências instrutórias necessárias, determinadas e realizadas no respeito pelo princípio do contraditório, sem prejuízo da convocação de uma conferência ou tentativa de conciliação, se for julgado pertinente.
2. Responsabilidade pelas custas
A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Cus. Proc.).
A responsabilidade pelas custas cabe à apelada, por ter ficado vencida – tendo oferecido contra-alegação (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).
C. Dispositivo
C.A. Do mérito do recurso
Em face do exposto, na procedência  da  apelação:
a) anula-se a sentença apelada, bem como, parcialmente, o julgamento da matéria de facto;
b) determina-se que o tribunal a quo:
i) realize as pertinentes diligências instrutórias e os atos processuais necessários, visando apurar as fontes e os valores dos rendimentos do requerido, bem como as condições de vida deste que o tribunal tenha por relevantes na fundamentação da decisão a proferir;
ii) se inexistir questão que obste ao conhecimento do mérito, profira nova sentença na qual se pronuncie sobre as questões de facto referidas na subalínea anterior, atendo-se o respetivo dispositivo ao julgamento das exceções deduzidas e, se estas forem total ou parcialmente improcedentes, às medidas de natureza executiva adequadas, conforme pedido, liquidando-se, ainda, as quantias para satisfação das quais estas medidas são estabelecidas.
C.B. Das custas
Custas a cargo da apelada.
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Notifique.

Lisboa ,6/2/2024
Paulo Ramos de Faria
Ana Mónica Mendonça Pavão
Diogo Ravara