Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5843/21.9T9LSB.L1-3
Relator: FRANCISCO HENRIQUES
Descritores: ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TRIBUNAL DE RECURSO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
IN DUBIO PRO REO
PREVENÇÃO ESPECIAL
HOMICÍDIO
TENTATIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/03/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1. O erro notório na apreciação da prova é um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir à revelia das provas produzidas ou ser dado como provado facto não pode ter ocorrido.
2. A reapreciação da prova pelo tribunal de recurso não se destina a analisar se é justificada ou não a credibilidade concedida pelo tribunal a quo a determinado meio de prova, em detrimento de outro. A questão da mera opinião perante as provas produzidas (credibilidade de testemunhas) não faz parte da dupla jurisdição em matéria de facto
3. O recorrente coloca em causa a subsunção (qualificação jurídica penal) dos factos dados como provados. Esta questão não constitui o âmbito de aplicação do princípio in dubio pro reo. Pois, o princípio em causa actua a montante desta actividade. Mais precisamente, na formação da convicção do tribunal de julgamento que irá permitir dar uns factos como provados e outros como não provados.
4. Foram apuradas como circunstâncias determinantes da graduação das exigências de prevenção especial:
- os antecedentes criminais, em que constam condenações desde 2001 pela prática de crimes contra o património e de crimes contra a vida – encontrando-se à data da prática dos crimes em situação de cumprimento de uma pena de prisão de 25 anos pela prática, entre outros, de um crime de homicídio qualificado;
- a situação prisional do recorrente – encontra-se em regime fechado, na secção de segurança;
- a total ausência de apoio familiar;
- ausência completa de hábitos de trabalho.
Estando em causa, a prática de dois crimes de homicídio, na forma tentada, ocorrida em meio prisional, a dosimetria da pena de prisão a aplicar está dependente do nível das exigências de prevenção especial e condicionada pelo nível de culpa – a qual é muito elevado por via das lesões da integridade física e do modo de actuação do agente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
No processo comum, com intervenção do tribunal colectivo com n.º 5843/21.9T9LSB, foi proferido acórdão a 30/05/2025 pelo Juiz 4 do Juízo Central Criminal de Loures do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa Norte que decidiu:
- condenar o arguido AA pela prática de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p., nos artigos 131.º, 132.º n.º 1 e n.º 2 alínea j), 22.º e 23.º do Código Penal, na pena de seis anos de prisão por cada um deles;
- condenar o arguido AA em cúmulo jurídico das penas aplicadas na pena única de nove anos de prisão;
- condenar o arguido a pagar ao ofendido BB a quantia de € 10 000,00 a título de indemnização;
- condenar o demandado no pagamento da quantia de € 10.000,00, a que acrescem juros legais desde o trânsito da presente decisão, absolvendo-o do demais peticionado.
Inconformado o arguido pediu:
- a revogação do o acórdão recorrido, considerando-se, designadamente uma condenação por crime diverso, de ofensa à integridade física, ou caso assim não seja considerado, uma condenação por homicídio simples, na forma tentada;
- a redução da medida da pena, por manifestamente elevada, assim como os montantes constantes das indemnizações decididas pelo tribunal a quo.
Para tal apresentou as seguintes conclusões:
"1. O ora Recorrente não se conforma com o douto acórdão no qual foi condenado pela prática de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. art.º 131º, 132.º, n.º 1 e 2, al. j), 22º, e 23º do Código Penal, na pena de seis anos de prisão por cada um deles.
2. O presente recurso tem por objecto a matéria de facto e de direito do Acórdão proferido nos presentes autos, porquanto enferma de múltiplos vícios que respeitam tanto à valoração da prova, à obscuridade da fundamentação e a sua contradição com a decisão, assim como faz uma inadequada qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, concluindo, necessariamente, por uma desacertada aplicação do Direito.
3. O douto acórdão – tal como a acusação pública, é omissa sobre a concreta identificação de dois momentos distintos, designadamente o momento concreto a partir do qual o Arguido se terá deparado pela retirada de objectos da sua cela, bem como o subsequente, segundo pelo qual o arguido criou a sua convicção de seriam os ofendidos as pessoas responsáveis por tais actos.
4. Desde logo os referidos momentos poderão não ser coincidentes, sendo que, em qualquer dos casos, da douta acusação pública resulta «…em dia e hora não concretamente apurada, mas anterior às 10:40 horas do dia .../.../2021.»
5. Tal facto será relevante, porquanto, no facto seguinte dado como provado (nº 3), resulta provado que o arguido dia ........2021, pelas 10:40 horas, na concretização daquele propósito, o arguido…
6. Mais, facilmente se consegue aferir de acordo com as regras de experiência comum, que, atentos os antecedentes criminais do arguido, a sua compleição física – facto notório – e a pena que actualmente cumpre por um crime de homicídio qualificado, que, caso fosse intenção do mesmo colocar fim à vida dos ofendidos, facilmente o teria feito.
7. Por conseguinte não deverá resultar provado que o Arguido tenha tido o propósito de pôr termo à vida dos ofendidos.
8. O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos que sejam incertos, a dúvida deverá sempre favorecer o arguido.
9. Acresce que se dos factos dados como provado resultou dado como provado que «O arguido é tido pela comunidade que o rodeia como uma pessoa agressiva, que tende a reagir com impulsividade e de forma violenta a situações adversas», facto que será oposto à eventual concretização de um propósito que terá sido formulado pelo Arguido antes da prática dos factos (insista-se, não se sabendo se soube quem seriam os autores 5 minutos antes ou dias antes).
10. O Arguido ou é agressivo e impulsivo conforme consta do relatório social ou é cauteloso e programático.
11. A referida fundamentação coloca em crise a avaliação do Arguido, a qual foi também dada como provada, dando conta de que o mesmo é agressivo e age por impulsividade, o que não se coaduna com «um plano que veio a amadurecer, munindo-se dos instrumentos necessários para o efeito.»
12. Não resulta desde logo dos autos a apreensão de um objecto semelhante a um espeto, ou que o mesmo apresente uma dimensão de 15 a 20 centímetros (na acusação) ou de pelo menos 15 centímetros (no douto acórdão).
13. Segundo as regras de experiência comum, se o Arguido quisesse de facto pôr termo à vida dos ofendidos CC e BB, estando munido de um «ferro, de pelo menos 15 centímetros de comprimento, afiado na ponta, perfurante, semelhante a um espeto» teria produzido lesões nos ofendidos com consequências mais nefastas, o que não se verificou, conforme relatório pericial, até porque atingiu os ofendidos em diversas partes do corpo.
14. Em face do exposto, deveriam ser dados como provados, no ponto nº 2 e 3 o seguinte:
2. Em dia e hora não concretamente apurada, mas anterior às 10:40 horas do dia .../.../2021, o arguido teve a convicção de que BB e CC tinham retirado objectos da sua cela sem a sua autorização.
3. No dia ........2021, pelas 10:40 horas, o arguido muniu-se de um objecto metálico de dimensão e qualidades não concretamente apuradas, mas afiado na ponta.
15. Qualquer uma das actuações do Arguido não se mostra adequada a provocar a morte dos ofendidos, como, aliás, não provocou, sendo que o período de recuperação se mostrou de relativa curta duração e nem mesmo a eventual invocação de que só não o fez por motivo alheio à sua vontade poderá prevalecer, porquanto parte das lesões foram provocadas nas costas, designadamente do Ofendido CC, pelo que até por essa via teria disponibilidade para o realizar, como aliás o Arguido por diversas vezes afirmou em sede de declarações.
16. Pelo que os factos dados nºs 20 e 22 deveriam ser dados como provados nos seguintes termos:
20. O arguido agiu com recurso a um objecto que sabia ser perigoso, bem sabendo que a sua conduta era idónea a provocar a qualquer pessoa lesões graves, e que ao atingir os ofendidos na região costal, na face junto ao olho, na clavícula e na região axilar, poderia ferir gravemente os ofendidos.
(…)
22. O arguido agiu com o propósito de molestar os ofendidos CC e BB, a quem ofendeu os corpos, causando-lhes dor e sofrimento, quando lhes desferiu os golpes com o objecto supra aludido.
17. Não tendo o Arguido o propósito de retirar a vida aos Ofendidos, impunha-se uma condenação por crime diverso, designadamente o crime de ofensa à integridade física.
18. Não obstante o exposto, o Tribunal «a quo» considerou verificar-se a qualitativa a que alude a alínea j) do nº 1 e 2 do art.º 132.º do Código Penal.
19. Não resulta claro, quer em sede de acusação, quer na douta decisão proferida, qual o momento em que o Arguido tomou conhecimento da ausência dos seus pertences e qual o momento em que colocou a hipótese de serem os ofendidos as pessoas que terão praticado esses actos. A premeditação impunha que tais momentos resultassem claros e expressos, não se bastando, pela certeza necessária à condenação do Arguido, pela menção genérica, «dias anteriores» ou «em dia e hora não concretamente apurada».
20. Pelo que se impunha que, mesmo pelos factos dados como provados no acórdão proferido pelo Tribunal «a quo» não fosse o Arguido condenado pela prática de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, mas tão só pela prática do crime de ofensas à integridade física, ou, caso assim não se entendesse, de dois crimes de homicídio simples, na forma tentada.
21. Para determinação da medida da pena o Tribunal «a quo» socorresse da mesma factualidade prevista para a prática do crime em causa e a sua qualitativa, verificando-se uma dupla valoração, quer em sede de qualificativa decidida pelo Tribunal, quer na medida da pena, sob pena de violação do princípio da dupla valoração.
22. Mesmo que assim não fosse, é certo que o Arguido tem um percurso pautado por antecedentes criminais, no entanto afigura-se que a pena aplicada a cada um dos crimes em causa se mostra manifestamente exagerada, a qual não deveria ser superior a 3 (três) anos por cada um dos crimes.
23. As lesões que os ofendidos sofreram encontram-se expostas nos factos dados como provados nºs 12 a 15, verificando-se que os Ofendidos tiveram um período de 8 dias de cura, tendo o Ofendido CC um período de 3 dias de incapacidade geral e BB 2 dias de incapacidade geral.
24. Mostra-se exacerbado o arbitramento de uma indemnização a favor do ofendido BB a qual deverá circunscrever-se a um valor não superior a € 5.000,00 (cinco mil euros) e no que concerne ao Ofendido/Assistente não deverá a mesma ultrapassar um montante superior a € 4.000,00 (quatro mil euros)".
O ... apresentou resposta, tendo concluído pela improcedência do recurso e para tal formulou as seguintes conclusões:
"1 – Insurge-se o arguido contra a decisão recorrida por padecer, em seu entender, de diversos vícios, quer relativos à valoração da prova, quer relativos à obscuridade da fundamentação e a sua contradição com a decisão, impugnando ainda a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, considerando ter sido feito no Acórdão recorrido um errado enquadramento jurídico-penal da factualidade dada como provada, não sendo a mesma passível de se subsumir ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, sendo antes a sua actuação enquadrável no crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual deveria ter sido condenado.
2 – Por fim, insurge-se o arguido contra a medida concreta da pena aplicada, revelando-se a mesma, em seu entender, excessiva, atendendo às circunstâncias que a seu favor militavam e que impunham a sua condenação numa pena de prisão não superior a 6 anos.
3 – O recorrente entende que o Tribunal a quo foi omisso quanto a dois momentos temporais que entende essenciais, a saber, o momento concreto em que o arguido se deparou pela retirada dos seus bens e, o momento concreto em que o arguido criou a convicção de que tinham sido os ofendidos os responsáveis pela retirada dos seus bens.
4 – Entendemos não ser de conceder razão ao recorrente, nem existir qualquer omissão relativamente à matéria apurada que impusesse ao Tribunal recorrido decidir.
5 – Salvo melhor opinião, os dois momentos temporais que o recorrente alega são absolutamente inócuos para a decisão, e em nada alteram o raciocínio feito pelo Tribunal para apurar que o arguido praticou os factos que lhe estavam imputados e que integram a prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada.
6 – Também relativamente à invocada robustez física do arguido, e aos motivos pelos quais se encontra preso – prática de um crime de homicídio qualificado, ser justificação para afastar a intenção do recorrente de por termo à vida dos ofendidos, pois que se o pretendesse fazer, facilmente o faria, tentando-se desta forma fazer crer que a intenção daquele só poderia ser de ofensa à integridade física, igualmente, não pode colher adesão.
7 – Na verdade, tal raciocínio é absolutamente contrário, desde logo, às regras da experiencia, e é absolutamente destituído de razoabilidade, por um lado porque não é comum que sucedam com a facilidade alegados homicídios em alas de E.P. (nem seria expectável), e por outro lado porque, atenta a alegada robustez física, não há justificação para o recurso a um ferro perfurante, se não fosse para perfurar os ofendidos, atingindo-os em zona letal, que conduzisse à sua morte. Se era para agredir fisicamente, bastaria o uso das mão e pés (julgamos nós …).
8 – Relativamente às lesões provocadas, é certo que nos relatórios médicos juntos decorre que estas não foram aptas para por em perigo a vida dos ofendidos, contudo não pode o recorrente confundir a falta de perigo para vida com a intenção de tirar a vida aos ofendidos, e daí estarmos a falar no crime na forma tentada.
9 – De facto, o arguido actuou com a intenção de matar os ofendidos, o que apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade, sendo que nenhuma relevância tem para o preenchimento do tipo de ilícito em apreço a circunstância de não ter resultado da sua actuação perigo concreto para a vida dos ofendidos. O que importa é relevar se o meio empregue era ou não apto para causar a morte, e se a actuação do agressor era ou não apta para o resultado, e aqui, duvidas não há de que a resposta só pode ser no sentido da aptidão para causar o resultado pretendido, isto é, a morte.
10 – Relativamente à circunstancia de o Tribunal não poder dar como provado as características do ferro usado, nos termos em que o fez, temos desde logo o facto do arguido, nas suas declarações, ter assumido ter atingido os ofendidos com um "espeto", expressão e descrição que é igualmente a mesma que foi dada pelos ofendidos, que viram aquele, e que não tiveram duvidas em esclarecer no Tribunal as características e medidas do artigo corto-perfurante com o qual foram espetados, e que assemelharam a um "espeto", de onde decorre para nós evidente que não estamos a falar de meros indícios que justificassem a aplicação do principio do in dubio pro reu, relativamente ao objecto usado, antes estamos perante factos que indubitavelmente, conjugada toda a prova com as declarações do próprio arguido, se traduzem em factos reais, que o Tribunal recorrido, bem, deu como inequivocamente provados.
11 – Contrariamente ao alegado pelo recorrente, o Acórdão recorrido conheceu e decidiu sobre questões de facto e de direito que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais. Não omitiu pronúncia de nenhuma questão suscitada ou de qualquer outra que exigisse conhecimento oficioso.
12 – O Acórdão sob apreciação, não enferma de qualquer vicio ou irregularidade que importe suprimir, pelo que deverá improceder os invocados vícios alegados pelo recorrente.
13 – Posto isto, bem andou o Tribunal a quo ao subsumir a actuação do arguido à prática dos crimes de homicídio qualificados, na forma tentada, não havendo nessa submissão qualquer violação de preceitos legais ou constitucionais.
14 – Assim sendo, a alegada prática pelo arguido dos crimes de ofensa à integridade física apresenta-se prejudicada, atenta a intenção de matar que rodeou a sua acção, ainda que quedando-se pela tentativa.
15 – Quanto à medida da pena, no que ao crime em causa concerne, as exigências de prevenção geral são elevadas, considerando o bem jurídico protegido – sendo um dos bens jurídicos primordiais do nosso ordenamento jurídico –, o elevado alarme social que este tipo de situações – de criminalidade violenta contra as pessoas – suscita na comunidade, com repercussões negativas em sede de prevenção geral de integração, bem como o sentimento de insegurança e intranquilidade que condutas semelhantes à praticada pelo arguido provocam nos cidadãos em geral, para mais, quando praticados em meio prisional.
16 – No que tange às razões de prevenção especial, são as mesmas muito elevadas, considerando os antecedentes criminais que o arguido já tem averbado no seu CRC, neles constando crimes relativos a criminalidade especialmente violenta, como o são a violência doméstica e homicídio qualificado, sendo que pese embora a elevada pena privativa da liberdade em que se mostra condenado e tem para cumprir, não se eximiu de cometer novos crimes de elevada gravidade e de especial censurabilidade.
17 – Assim, tudo ponderado, entende-se que a medida concreta da pena aplicada se revela adequada, justa e proporcional à gravidade dos factos praticados, à sua elevada ilicitude, à intensidade do dolo e ao seu grau de culpa, pelo nenhum reparo nos merece a pena de 9 anos de prisão em que foi o arguido condenado".
Os autos subiram a este Tribunal e nos mesmos o ... elaborou parecer em que conclui pela improcedência do recurso.
Uma vez que o parecer adere às razões fundamentos da resposta não houve (nem tinha de haver) cumprimento do disposto no artigo 417.º n.º 2 do Código Processo Penal.
Os autos foram a vistos e a conferência.
2. Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º n.º 2 do Código Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr., Acórdão do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995 e artigos 403.º n.º 1 e 412.º n.º 1 e n.º 2, ambos do Código Processo Penal).
Inexistindo questões de conhecimento oficioso que importe decidir e face ao teor das conclusões da motivação apresentadas, nos presentes autos as questões a apreciar respeitam: ao erro vício, ao erro de julgamento, à violação do princípio in dubio pro reo, ao enquadramento jurídico-penal, à medida da pena e ao quantum da indemnização fixada.
3. Fundamentação
O acórdão recorrido no que respeita à factualidade provada e não provada e respectiva fundamentação tem o seguinte teor:
"II. Fundamentação de facto:
2.1. Factos Provados:
Com interesse para a decisão da causa e abstendo-se o Tribunal de se pronunciar sobre conclusões ou factos de natureza jurídica, ficaram provados os seguintes factos:
1. No ano de 2021, o arguido AA, o ofendido BB (doravante BB) e o ofendido CC (doravante CC) encontravam-se reclusos no Estabelecimento Prisional de ..., sito em ..., em cumprimento de pena de prisão efectiva.
2. Em dia e hora não concretamente apurada, mas anterior às 10:40 horas do dia .../.../2021, o arguido, convicto que BB e CC tinham retirado objectos da sua cela sem a sua autorização e conhecimento nos dias anteriores, formulou o propósito de pôr cobro à vida daqueles.
3. No dia ........2021, pelas 10:40 horas, na concretização daquele propósito, o arguido muniu-se de um objecto não concretamente apurado, mas composto por um ferro, de pelo menos 15 centímetros de comprimento, afiado na ponta, perfurante, semelhante a um espeto.
4. Em acto contínuo, no … do ..., o arguido, munido daquele objecto perfurante, dirigiu-se à cela de CC e aí entrou, quando aquele se encontrava de costas.
5. Ali, com recurso ao referido objecto, desferiu um número não concretamente apurado de golpes no corpo de CC, mas pelo menos cinco, de cima para baixo, atingindo pelo menos duas vezes na região posterior costal direita, uma na face interna do braço direito, uma na região axilar direita e uma na face posterior do braço direito, provocando cortes perfurantes de forma circular, com cerca de 0,5 cm de diâmetro, nas zonas atingidas e sangramento.
6. Ao mesmo tempo que desferiu os golpes, o arguido disse, de modo sério, a CC "Tu também estás metido nisto", referindo-se à sua convicção de que este esteve envolvido no furto dos seus bens.
7. Subsequentemente, CC conseguiu sair a correr do interior da cela com o intuito de se afastar e de se proteger das investidas do arguido.
8. Em acto contínuo, o arguido foi no encalço de CC, perseguindo-o no corredor junto à entrada do balneário, e com recurso ao mesmo objecto tentou espetar o corpo daquele, de cima para baixo, não o conseguindo por razões alheias à sua vontade, porquanto o ofendido conseguiu desviar-se.
9. De seguida, o arguido, sabendo que BB se encontrava ali dentro, entrou no balneário sito naquele piso e com recurso ao referido objecto perfurante desferiu um número não concretamente apurado de golpes no corpo de BB, mas pelo menos sete, nomeadamente nos lados esquerdo e direito da face, junto ao olho esquerdo, na região clavicular direita, na face externa do braço direito e esquerdo e na região costal superior direita do ofendido, provocando cortes perfurantes nas zonas atingidas e sangramento, quando BB estava a tomar banho.
10. De seguida, apercebendo-se da chegada dos guardas prisionais àquele piso, alertados pelos gritos de socorro de CC, o arguido, com vista a eliminar eventuais provas sobre si, escondeu o objecto perfurante na sua cintura e, posteriormente, de modo não concretamente apurado, dissipou-o.
11. Em consequência das agressões do arguido, os ofendidos CC e BB tiveram necessidade de receber assistência médica.
12. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, CC sentiu dores e sofreu as seguintes sequelas:
- Tórax: cicatriz nacarada de contorno estrelado, com diâmetro médio de 1 cm a nível da região escapular direita;
- Membro superior direito: cicatriz nacarada a nível infra-axilar com 0,6 cm de diâmetro médio.
13. Tais lesões determinaram para CC um período de 8 dias para cura, com 3 de incapacidade para o trabalho em geral.
14. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sentiu dores e sofreu as seguintes sequelas:
- Face: uma cicatriz de ferida contusa na pálpebra inferior, angulo lateral arciforme de convexidade inferior, com 1,8 cm; uma cicatriz de ferida contusa na região jugal direita, não deformante;
- Tórax: uma cicatriz de ferida contusa na face lateral direita da região torácica baixa;
- Membro superior esquerdo: uma cicatriz de ferida contusa no 1/3 superior da face posterior do braço.
15. Tais lesões determinaram para BB um período de 8 dias para cura, com dois de incapacidade geral.
16. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, movido pela suspeita que tinha sobre aqueles de terem sido autores do furto dos seus bens, com o intuito de tirar a vida a CC e a BB, não ignorando que naquelas circunstâncias o objecto perfurante utilizado por si, não só pela sua aptidão e capacidade lesiva e efeitos do seu embate e certeza no atingir os visados e pela surpresa que permitiu a menor defensabilidade perante o seu uso, era idóneo a provocar lesões corporais graves e profundas quando utilizado contra a vida ou integridade física de um ser humano e apesar disso não se absteve de praticar os factos acima descritos.
17. Com a conduta descrita, ao empregar o objecto referido, e ao atingir os ofendidos da forma descrita, o arguido tinha consciência do carácter altamente perigoso de tal instrumento.
18. O arguido quis molestar o corpo e a saúde de CC e de BB e de lhes produzir as lesões no corpo e na saúde daqueles, o que conseguiu.
19. Agiu o arguido bem sabendo que CC e BB se encontravam sozinhos, em espaço isolado e que, face à utilização de um objecto perfurante e de forma surpreendente, impossibilitava aqueles de se defenderem das agressões, diminuindo consideravelmente as possibilidades de o fazerem, o que quis, representou e conseguiu.
20. O arguido agiu de forma calculada, reflexiva, tendo ponderado a sua actuação com recurso a um objecto que sabia ser perigoso, bem sabendo que a sua conduta era idónea a provocar a qualquer pessoa lesões graves, e que ao atingir os ofendidos na região costal, na face junto ao olho, na clavícula e na região axilar, poderia ferir gravemente os ofendidos, atingindo órgãos vitais, só não os tendo atingido por motivos alheios à sua vontade.
21. Mais agiu o arguido de forma rápida e contínua investindo sobre os corpos dos ofendidos visando reduzir as capacidades de defesa daqueles, o que quis e conseguiu.
22. O arguido agiu com intenção de pôr termo à vida dos ofendidos CC e BB, não tendo alcançado os seus intentos por razões alheias à sua vontade.
23. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.
24. O arguido considerava os ofendidos BB e CC seus amigos.
25. O arguido tem antecedentes criminais:
a) No processo 156/01, o arguido foi condenado por decisão de 16/11/2001, transitado em julgado em 3/12/2001, na pena de cinco anos e seis meses de prisão, pela prática, em .../.../2000 de crimes de furto, furto qualificado e falsificação de documento;
b) No processo 702/06.8GCALM, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 26/12/2007, na pena de oito anos de prisão, pela prática, em .../.../2006, de dois crimes de roubo, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, um crime de condução sem habilitação legal, um crime de resistência e coacção sobre funcionário e um crime de furto de uso de veículo;
c) No processo 3600/09.0TACSC, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 31/1/2012, na pena de dez meses de prisão, pela prática, em .../.../2009, de um crime de ofensa à integridade física simples [extinta pelo cumprimento];
d) No processo 100/13.7GELSB, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 8/7/2013, na pena de 200 dias de multa, pela prática, em .../.../2013, de um crime de condução sem habilitação legal;
e) No processo 54/13.0PTALM, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 12/7/2013, na pena de 10 meses de prisão suspensa por um ano, pela prática, em .../.../2013, de um crime de condução sem habilitação legal [extinta pelo decurso do prazo];
f) No processo 81/13.7PFLRA, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 13/9/2013, na pena de 6 meses de prisão, pela prática, em .../.../2013, de um crime de condução sem habilitação legal;
g) No processo 233/13.0SALSB, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 12/12/2014, na pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução, pela prática, em .../.../2013, de um crime de condução sem habilitação legal [extinta pelo decurso do prazo];
h) No processo 8/14.9PELRA, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 4/3/2015, na pena de 12 meses de prisão, pela prática, em .../.../2014, de um crime de condução sem habilitação legal;
i) No processo 680/13.7PBLRA, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 17/6/2015, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática, em .../.../2013 e .../.../2013, de um crime de furto qualificado e um crime de furto simples;
j) No processo 76/13.0PTLRA, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 30/11/2015, na pena de 160 dias de multa, pela prática, em .../.../2013, de um crime de condução sem habilitação legal;
k) No processo 137/13.6GTLRA, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 21/1/2016, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, pela prática, em .../.../2013, de um crime de condução sem habilitação legal, de um crime de falsificação de documento e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário;
l) No processo 843/14.8PBLRA, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 16/3/2016, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, pela prática, em 2014, de um crime de furto qualificado;
m) No processo 322/14.3JALRA, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 8/9/2016, na pena de 23 anos de prisão, pela prática, em .../.../2014 e .../.../2014, de um crime de violência doméstica e de um crime de homicídio qualificado;
n) No processo 1378/14.4TALRA, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 26/5/2017, na pena de 11 meses de prisão, pela prática, em .../.../2014, de um crime de falsificação de documento [em cúmulo jurídico com os processos 137/13, 322/14, 8/14, 680/13, 843/14 e 76/13, supra melhor identificados, foi o arguido condenado na pena única de 25 anos de prisão];
o) No processo 4755/19.0T9CBR, o arguido foi condenado por decisão transitada em julgado em 5/5/2021, na pena de 6 meses de prisão, pela prática, em .../.../2019, de um crime de detenção de arma proibida.
26. O arguido encontra-se preso pela quarta vez, desde .../.../2014, tendo sido transferido para o EP do ... no dia .../.../2024, na sequência de uma agressão a um recluso do EP de ....
27. A situação supra referida determinou a sua colocação em regime fechado, secção de segurança, onde permanece desde então.
28. O arguido esteve também em secção de segurança no EP de ..., entre .../.../2021 e .../.../2022, em virtude dos factos que deram origem aos presentes autos.
29. O arguido é tido pela comunidade que o rodeia como uma pessoa agressiva, que tende a reagir com impulsividade e de forma violenta a situações adversas.
30. O arguido provém de um contexto familiar disfuncional, com acentuadas carências de alimentação e saneamento básico.
31. O arguido foi institucionalizado aos 12 anos de idade, fase que recorda como a mais feliz da sua vida, por sentir as suas necessidades mais básicas satisfeitas.
32. Nesse contexto frequentou a escolaridade até ao 4º ano.
33. O retorno à casa paterna, aos 17 anos, voltou a desorganizá-lo, tendo tido diversos contactos com o sistema de administração da Justiça.
34. Durante o ano de 2016, concluiu um Curso Modular Certificado de pintura de construção civil, promovido pelo Centro Protocolar de Justiça – CPJ – com a duração de 100 horas.
35. Em ... do mesmo ano, iniciou a frequência de um curso de canalização, promovido igualmente pelo CPJ, com equivalência ao 9º ano de escolaridade, que terá concluído no ano seguinte, ficando certificado com a escolaridade mínima obrigatória.
36. Como experiência de trabalho indica curtas prestações pontuais na ..., nos períodos em que esteve em liberdade.
37. O arguido iniciou consumos de canabinóides enquanto institucionalizado no ..., com cerca de 13/14 anos de idade.
38. Iniciou consumos de cocaína no período anterior à actual privação de liberdade, no contexto da disfuncionalidade em que entrou aquando da ruptura relacional com a ex-namorada (vítima de homicídio qualificado pelo qual cumpre pena).
39. O arguido é consumidor de bebidas alcoólicas.
40. Presentemente não tem apoio no exterior, sendo que a progenitora, que era o seu único suporte, faleceu no decorrer da pandemia Covid-19.
41. O arguido tem dois irmãos toxicodependentes, que não se constituem figuras de apoio, nem existem contactos entre eles.
42. A morada de referência é a da progenitora, que foi deixada aos descendentes, onde residirão os dois irmãos.
43. Em virtude dos factos praticados pelo arguido, referidos nos pontos 5) a 8), CC ficou perturbado física e psicologicamente.
44. Nas noites seguintes à dos factos, CC quase não conseguiu pernoitar, quer com dores, como com muita dificuldade em conciliar o sono.
45. Até à data da realização da audiência de julgamento, CC mantinha sono agitado, acordando subitamente a intervalos curtos, por força da conduta levada a cabo pelo arguido, sofrendo de pesadelos.
46. Em virtude da conduta do arguido, CC passou a tomar medicação.
*
2.2. Factos não provados:
Não resultou provado que em virtude da conduta do arguido o assistente tenha passado a sofrer ataques de pânico.
*
2.3. Fundamentação da matéria de facto:
A convicção do tribunal relativamente à factualidade ínsita nos factos provados assentou na avaliação e ponderação de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência, os quais foram conjugados entre si, e ponderados com as regras de experiência comum, buscando-se os seus pontos de coerência e concludência.
Assim, a formação da convicção do Tribunal dependeu essencialmente de duas operações: por um lado, da actividade cognitiva de filtragem de informações dadas e da análise da sua relevância ético-jurídica; por outro lado, dos elementos racionalmente não explicáveis – ou pelo menos de explicação menos linear – como a credibilidade que se concede a um certo de meio de prova em detrimento de outro, já que não é a quantidade de prova produzida que releva, mas antes a qualidade de tal prova, ou seja, o juízo que é feito quanto à veracidade e autenticidade de um depoimento – juízo este que depende, desde logo, do contacto oral directo com os declarantes e da forma como estes transmitem a sua versão dos factos – postura e comportamento, características de personalidade reveladas, carácter e probidade.
Todas as testemunhas foram unânimes sobre o facto constante do ponto 1), resultando o mesmo igualmente da análise do procedimento disciplinar constante dos autos.
O arguido admitiu ter atingido os ofendidos, seus amigos, com o referido "espeto", por estar convencido de que estes se teriam apropriado de bens seus, traindo a sua confiança, pese embora tenha circunstanciado os factos de modo diverso, o que não mereceu a credibilidade do Tribunal.
Assim, o arguido referiu ter entrado na cela de CC, tendo este surpreendido o arguido com o espeto, que o arguido não teve dificuldade em retirar-lhe da mão, aproveitando a ocasião para lhe desferir golpes.
A versão do arguido é frontalmente colocada em causa pelo assistente CC, que de modo credível referiu ter sido apanhado desprevenido pelo arguido munido de um objecto perfurante, quando estava de costas para a porta da sua cela, a falar com um rapaz através da janela, tendo conseguido escapar da cela depois de ter sido atingido pelo arguido com variados golpes.
É evidente que a versão do ofendido é a que melhor se coaduna com as regras de experiência comum, dado que é o arguido quem, com raiva de ter sido desapossados dos seus bens, imputando essa situação aos ofendidos, se dirige à cela do assistente CC.
Por outro lado, é ainda de ponderar o documento constante de fls. 111, do qual resulta que o assistente apresenta cinco feridas circulares, sendo certo que duas de tais feridas se localizam nas costas do assistente, localizando-se as outras no braço, tendo o ofendido descrito que tal sucedeu quando se começou a defender e a procurar fugir.
Saliente-se que as feridas observadas (em número de cinco) são compatíveis com o objecto usado pelo arguido, que este confirmou ter usado contra o ofendido, em número de vezes que não conseguiu concretizar.
Deste modo, a versão do arguido soçobra, atendendo não só às regras de experiência comum, como ao local onde o ofendido foi atingido – nas costas e não já no tórax, como sucederia se estivesse de frente para o arguido, como por este defendido.
O assistente referiu ainda as expressões dirigidas pelo arguido no momento da prática dos factos, relatando os factos 4) a 7) nos moldes dados como provados.
Pese embora o assistente esteja convencido que o arguido passou por si no corredor, quando seguiu no seu encalço, sem lhe efectuar qualquer gesto, a análise das imagens recolhidas no momento dos factos, constantes de fls. 83 – e cujo auto de visionamento, com impressão de algumas ocasiões, também se encontra junto aos autos – permitiu ao Tribunal concluir o contrário.
Com efeito, da análise de tal documento resulta claro que o arguido seguiu no encalço do assistente, tentando espetar o corpo daquele ainda no corredor – momento em que é visível a dimensão do objecto perfurante que empunhava, o qual certamente não é inferior a 15 cm, de acordo com o que resulta das imagens – não o tendo conseguido, porquanto o ofendido dele se desviou.
Tal facto mostra-se plasmado a fls. 78-verso, sendo facilmente perceptível da análise das imagens em movimento constantes da "pen" de fls. 83.
Dessas imagens resulta ainda o momento em que o arguido entrou no balneário onde se encontrava o ofendido BB – que aí havia entrado cerca de um minuto antes, como também decorre das imagens – e o período de tempo em que aí permaneceu – cerca de 17 segundos.
O depoimento de BB contribuiu para o Tribunal formar a sua convicção sobre o modo como este foi atingido, não sendo crível que o ofendido estivesse a chamar nomes ao arguido, de dentro do balneário, apercebendo-se do que se passava com o assistente CC, como defendido pelo arguido em sede de audiência de julgamento.
Com efeito, o arguido admitiu ter atingido o ofendido BB por ter ouvido este dizer, enquanto se encontrava com CC: "filho da puta, já vais ver, deixa-me acabar de tomar banho!".
Ora, atendendo ao lapso temporal decorrido entre a entrada de BB no balneário – às 10h41m02s, como resulta de fls. 77-verso – e a entrada do arguido no mesmo espaço – às 10h42m10s, como consta de fls. 79 – não é crível que o ofendido se tivesse apercebido da contenda prévia entre o arguido e CC, sendo de assinalar que o arguido apenas esteve dentro da cela do assistente, acompanhado deste, por 17 segundos [conforme resulta de fls. 78].
De facto, estando o ofendido BB a tomar duche, como por si explicado, tendo sido abordado pelo arguido nesse momento, não faz sentido que estivesse a aperceber-se com precisão de algo que ocorreu em tão curto período de tempo, também não sendo crível que associasse eventuais gritos ao arguido e ao assistente CC e que optasse por começar a insultar o arguido, de dentro do balneário, enquanto tomava banho.
O ofendido explicou o modo como foi surpreendido pelo arguido, os golpes que este lhe desferiu nas costas e no olho, quando se tentou virar, bem como no ombro e na face, salientando a intensidade dos golpes e a raiva expressada pelo arguido enquanto o atingia, tendo ainda descrito a forma como se protegeu, com uma toalha, para evitar que o ataque prosseguisse.
A testemunha EE descreveu o modo como encontrou os ofendidos e o arguido, quando aqueles já se encontravam ensanguentados, tendo referido as diligências que encetaram para localizar a arma, as quais se revelaram infrutíferas.
A este propósito também importa assinalar que não foram credíveis as declarações prestadas pelo arguido, no sentido de ter abandonado a arma no balneário, quando daí saiu a correr, dado que além de tal acto não ser comum de acordo com as regras da vida, também a arma não foi localizada no balneário, não sendo crível que o arguido abandonasse a arma junto do ofendido, sendo passível de ser usada por este.
O Tribunal ponderou os relatórios periciais de fls. 61-67 e 165-188 dos autos apensos, tendo ainda ponderado as informações clínicas de fls. 112-113.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo, o Tribunal considerou, face à matéria objectiva provada, que o arguido agiu com intenção de tirar a vida aos ofendidos, dado que o desferir de, pelo menos, cinco golpes em cada um, com um objecto perfurante, na zona torácica, como sucedeu em concreto, é susceptível de ilustrar a intensidade com que o arguido agiu, com raiva, ciente da sua conduta, apta a causar a morte dos ofendidos, a qual não sobreveio porque o assistente conseguiu fugir da cela onde se encontrava e prontamente chamou os guardas prisionais, cuja chegada iminente impediu o arguido de continuar o seu propósito quanto ao ofendido BB.
Todos os elementos subjectivos do tipo resultaram não só da concatenação do depoimento de BB e das declarações de CC, como também da análise do vídeo constante de fls. 83, sendo perceptível o modo como o arguido se introduz na cela e no balneário e o tempo que lá permanece, bem como o objecto de que ia munido, não se podendo concluir que tivesse agido senão com reflexão sobre os meios empregados, atendendo ao local onde se encontravam os ofendidos aquando da abordagem, bem como ao facto de o arguido se munir previamente de objecto pontiagudo – inacessível nos Estabelecimentos Prisionais, como é do conhecimento comum.
Os antecedentes criminais encontram-se certificados nos autos e as condições socioeconómicas do arguido estão plasmadas no relatório social constante dos autos.
O assistente referiu as consequências da conduta do arguido no seu quotidiano, tendo o Tribunal ponderado igualmente a esse respeito o depoimento que pareceu isento e credível da testemunha FF, seu companheiro de cela, que se apercebe das dificuldades de sono do assistente e das repercussões da conduta do arguido no dia-a-dia daquele.
Quanto à factualidade dada como não provada, a mesma resultou da total ausência de prova a esse propósito".
3.1. Do mérito do recurso.
Do erro vício.
O recorrente imputa por atacado vícios ao acórdão recorrido, não enquadrando processualmente os mesmos.
Deste modo, para evitar a invocação de omissões de pronúncia e como se tratam de nulidades de conhecimento oficioso, analisar-se-á a verificação de erro vício do acórdão recorrido.
Estabelece o artigo 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Assim sendo, os vícios têm de resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àqueles estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.
O vício previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal ocorre quando a factualidade provada no acórdão/sentença não permite, por insuficiência, a formulação de uma decisão jurídico penal, ou seja, quando dos factos provados não possam logicamente ser extraídas as ilações formuladas do tribunal recorrido.
A insuficiência da matéria de facto consiste numa incorrecta formação de um juízo, na medida em que a conclusão ultrapassa as respectivas premissas.
Assim sendo, existe insuficiência da matéria de facto quando esta não é fundameno da solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão.
O vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código Processo Penal, ocorre em quatro situações:
- quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada;
- quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada;
- quando há contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto; e,
- quando há contradição entre a fundamentação e a decisão.
O vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código Processo Penal, ocorre quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância do erro não passar despercebido ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, por ser grosseiro, ostensivo ou evidente.
É um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir à revelia das provas produzidas ou ser dado como provado facto não pode ter ocorrido.
No caso em apreciação, o acórdão recorrido não enferma de vício da insuficiência da matéria de facto dada como provada.
Com efeito, os factos dados como provados são subsumíveis aos elementos típicos do crime em apreço.
Por outro lado, não se verifica nenhuma contradição entre os factos dados como provados, ou entre a motivação e os factos provados.
O recorrente concluiu que:
"9. Acresce que se dos factos dados como provado resultou dado como provado que «O arguido é tido pela comunidade que o rodeia como uma pessoa agressiva, que tende a reagir com impulsividade e de forma violenta a situações adversas», facto que será oposto à eventual concretização de um propósito que terá sido formulado pelo Arguido antes da prática dos factos (insista-se, não se sabendo se soube quem seriam os autores 5 minutos antes ou dias antes).
10. O Arguido ou é agressivo e impulsivo conforme consta do relatório social ou é cauteloso e programático.
11. A referida fundamentação coloca em crise a avaliação do Arguido, a qual foi também dada como provada, dando conta de que o mesmo é agressivo e age por impulsividade, o que não se coaduna com «um plano que veio a amadurecer, munindo-se dos instrumentos necessários para o efeito.»".
Não é incompatível a agressividade e impulsividade com a formulação de um plano para adoptar uma comportamento delituoso como o que é dado como provado no processo.
O comportamento do recorrente não é compatível com um plano resultante de longa e reflexiva ponderação, mas não deixa de ter o apoio de alguma planificação – que passa, pelo menos, pela investigação dos autores do furto e a opção pela como, quando e onde da execução do delito.
Concluiu, ainda, o recorrente que:
12. Não resulta desde logo dos autos a apreensão de um objecto semelhante a um espeto, ou que o mesmo apresente uma dimensão de 15 a 20 centímetros (na acusação) ou de pelo menos 15 centímetros (no douto acórdão)".
Não existe nenhuma contradição entre a fundamentação e a prova deste facto. Pois, o tribunal a quo fundou a sua convicção na visualização das imagem de videovigilância.0
Finalmente, o recorrente concluiu que:
"13. Segundo as regras de experiência comum, se o Arguido quisesse de facto pôr termo à vida dos ofendidos CC e BB, estando munido de um «ferro, de pelo menos 15 centímetros de comprimento, afiado na ponta, perfurante, semelhante a um espeto.» teria produzido lesões nos ofendidos com consequências mais nefastas, o que não se verificou, conforme relatório pericial, até porque atingiu os ofendidos em diversas partes do corpo".
Esta é uma petição de princípio não substanciada no enquadramento fáctico. As intenções são manifestação espirituais que são extraídas do concreto comportamento adoptado pelo agente do crime.
Tendo em consideração o objecto utilizado na agressão e os locais das agressões no corpo das vítimas indicam, sem sombra de dúvida, uma intenção de matar e não apenas de provocar lesões físicas.
Assim sendo, o acórdão recorrido não padece deste erro vício de contradição.
Não se divisa, ainda, qualquer erro notório no raciocínio do julgador.
O tribunal a quo explica a razão pela qual julgou credível, lógico e esclarecedor os meios de prova utilizados na formação da sua convicção.
O raciocínio que o tribunal a quo faz da prova produzida é uma interpretação possível e plausível dentre daquelas que se lhe afiguraram.
Do erro de julgamento.
A impugnação ampla da matéria de facto refere-se à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas por aquele obrigarem a decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem.
A invocação do erro de julgamento impõe uma reapreciação probatória fazendo apelo a segmentos probatórios concretos, prestados em audiência ou a elementos documentais, de forma a analisar se o seu conteúdo específico demonstra (perante uma correcta aplicação das regras probatórios) a ocorrência de um erro na decisão da fixação da matéria de facto provada e não provada.
Assim este mecanismo da impugnação ampla da matéria de facto envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal na primeira instância, e da prova dela resultante.
Trata-se de uma reapreciação vinculada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso.
Assim, nos termos do n.º 3 do artigo 412.º do Código Processo Penal, o recorrente deve especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e,
c) as provas que devem ser renovadas.
O n.º 4 do artigo 412.º do Código Processo Penal acrescenta que as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 412.º do Código Processo Penal se fazem por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas, e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no n.º 6 do artigo 412.º do Código Processo Penal .
E, no final, é necessário que dessa indicação resulte comprovada a insustentabilidade lógica ou a arbitrariedade da decisão recorrida e que a versão probatória e factual alternativa proposta no recurso é que a correcta.
Então, se se concluir que o tribunal a quo não podia ter dado os concretos factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detectado.
No entanto, se a convicção do julgador puder ser objectivável face aos critérios probatórios e se versão apresentada pelo recorrente for meramente alternativa e igualmente possível, deverá manter-se a opção do julgador, por força dos princípios da oralidade e da imediação da prova.
Assim sendo, a questão da mera opinião perante as provas produzidas (credibilidade da testemunha ou das declarações do arguido) não faz parte da dupla jurisdição em matéria de facto, por o tribunal de recurso não beneficiar dos princípios da imediação e oralidade.
O recorrente indicou directamente os factos que considera erradamente julgados, mas, não indicou os concretos meios de prova que justificam tal posição.
Este tribunal ad quem poderia pura e simplesmente negar a elaboração de qualquer análise a propósito da reapreciação da prova produzida em julgamento. Isto, por o recorrente não ter cumprido o ónus que sobre ele impede nos termos do artigo 412.º n.º 3 do Código Processo Penal.
No entanto, sempre se dirá que a argumentação do recorrente assenta unicamente numa dissensão opinativa com a forma como o tribunal a quo fundou a sua convicção.
Com efeito, depois de fazer uma análise sobre a conjugação de meios de prova, análise crítica dos mesmos e factos que foram considerados provados, o recorrente pretende que:
"Em face do exposto, deveriam ser dados como provados, no ponto nº 2 e 3 o seguinte:
2. Em dia e hora não concretamente apurada, mas anterior às 10:40 horas do dia .../.../2021, o arguido teve a convicção de que BB e CC tinham retirado objectos da sua cela sem a sua autorização.
3. No dia ........2021, pelas 10:40 horas, o arguido muniu-se de um objecto metálico de dimensão e qualidades não concretamente apuradas, mas afiado na ponta".
Assim como:
"Pelo que os factos dados nºs 20 e 22 deveriam ser dados como provados nos seguintes termos:
20. O arguido agiu com recurso a um objecto que sabia ser perigoso, bem sabendo que a sua conduta era idónea a provocar a qualquer pessoa lesões graves, e que ao atingir os ofendidos na região costal, na face junto ao olho, na clavícula e na região axilar, poderia ferir gravemente os ofendidos.
(…)
22. O arguido agiu com o propósito de molestar os ofendidos CC e BB, a quem ofendeu os corpos, causando-lhes dor e sofrimento, quando lhes desferiu os golpes com o objecto supra aludido".
O recorrente não indicou nenhum meio de prova que permita infirmar a convicção formada pelo tribunal recorrido e, por seu turno, autorize a formação da convicção que permite dar como provados factos com a redacção exposta. Somente, efectuou uma análise distinta da prova produzida em julgamento. Trata-se então de uma questão de diferente opinião.0
No entanto, não existe nenhum motivo válido para infirmar a convicção formada pelo tribunal a quo. Pois, a mesma encontra-se razoável e validamente justificada.
A reapreciação da prova pelo tribunal de recurso não se destina a analisar se é justificada ou não a credibilidade concedida pelo tribunal a quo a determinado meio de prova, em detrimento de outro.
Como acima se expressou, a questão da mera opinião perante as provas produzidas (credibilidade de testemunhas) não faz parte da dupla jurisdição em matéria de facto.
E, como tal, não existe fundamento para censurar a convicção formada pelo tribunal a quo.
Da violação do princípio in dubio pro reo.
O recorrente invocou a violação do princípio in dubio pro reo. Este, sendo uma incidências do princípio da presunção da inocência do arguido faz com que "se situe na matéria da prova. Na verdade, do princípio em causa decorre, fundamentalmente: a inexistência de um ónus probatório do arguido em processo penal, no sentido de que o arguido não tem que provar a sua inocência para ser absolvido; um princípio in dubio pro reo; e decorre ainda que o arguido não é mero objecto ou meio de prova, mas sim um livre contraditor do acusador, com armas iguais às dele"1.
Nesta acepção, existe uma sobreposição entre estes dois princípios.
Assim sendo, por relevar para a resolução da questão em causa, o "princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito"2.
Assim sendo, a violação do princípio in dubio pro reo pode ser encarada sob uma dupla perspectiva.
Em primeiro lugar, como um vício do texto da decisão, na modalidade de erro notório na apreciação da prova, como previsto no artigo 410.º n.º 2 al. b) do Código Processo Penal – assumindo, uma natureza subjectiva de dúvida histórica que o tribunal do julgamento, deveria ter tido e não teve3. O qual não se verifica.
Em segundo lugar, como erro de julgamento. Nesta perspectiva, a dúvida é concebida objectivamente quanto aos factos desfavoráveis ao arguido.
Nesta vertente, ocorrerá uma violação do princípio in dubio pro reo sempre que tenha sido julgado como provado um facto desfavorável ao arguido contra a prova produzida em julgamento de forma racional e objectiva, à luz das máximas da experiência comum, das regras da lógica, dos conhecimentos científicos aplicáveis, ou das normas e princípios legais vigentes em matéria de direito probatório4.
Ora, o recorrente argumenta que:
"Conforme já aqui amplamente exposto, o Acórdão recorrido deu como provado um conjunto de factos que resultam de afirmações vagas e genéricas, não delimitadas o tempo, modo e lugar, designadamente no que respeita às alíneas a) e b) seguintes:
a) Qual o momento em que o Arguido detectou que pessoa(s) terão levado os seus pertences – refere dias anteriores;
b) Qual o momento em que o Arguido configurou a hipótese de terem sido os ofendidos as pessoas que realizaram tais actos e ter delineado plano – refere em dia e hora não concretamente apurada;
c) As qualidades e características referente a um objecto identificado em imagens, do qual não resulta a sua apreensão.
A certeza dos referidos factos impõem que que os mesmos sejam claros e objectivos, e no que concerne ao objecto, que a avaliação do mesmo possa ser realizada.
Posto isto, conclui-se que a douta sentença enferma também de nulidade por violação do princípio in dubio pro reo".
As questões colocadas pelo recorrente não se referem à uma errada aplicação do princípio in dubio pro reo.
O recorrente coloca em causa a subsunção (qualificação jurídica penal) dos factos dados como provados. Este não constitui o âmbito de aplicação deste princípio. Pois, o princípio em causa actua a montante desta actividade. Mais precisamente, na formação da convicção do tribunal de julgamento que irá permitir dar uns factos como provados e outros como não provados.
No caso em apreço, o tribunal a quo formou uma convicção isenta de dúvidas, fundada numa válida interpretação dos meios de prova produzidos em julgamento.
Como tal inexiste qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
Do enquadramento jurídico-penal.
O recorrente insurgiu-se contra o enquadramento jurídico penal efectuado pelo tribunal recorrido, pretendendo a convolação para o crime de ofensa à integridade física ou para o crime de homicídio simples, na forma tentada.
Os dois enquadramentos jurídico penais propostos pelo recorrente não podem ser atendidos. A procedência do argumentário do recursivo dependia da procedência da alteração da matéria de facto provada proposta pelo recorrente. Como acima exposto, não mereceu acolhimento a proposta apresentada pelo recorrente.
Razão pela qual, cai pela base tal pretensão.
Da medida da pena.
O recorrente insurgiu-se contra a dosimetria da pena única de prisão aplicada pelo tribunal recorrido, assim como, da das penas de prisão parcelares.
O crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto nos artigos 131.º, 132.º n.º 1 e n.º 2 alínea j), 22.º, e 23.º do Código Penal, é punível com a pena prisão de 2 anos 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses.
Na determinação da pena concreta a aplicar recorre-se ao critério global previsto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, o qual dispõe "a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Pelo que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa e da prevenção – especial e geral positiva ou de integração –, concretizadas a partir da eleição dos elementos para elas relevantes.
A culpa e a prevenção "são os dois termos do binómio", através dos quais será construído o "modelo de medida da pena".
Com tal desiderato no horizonte, importa definir as funções e a inter-relação que a culpa e a prevenção desempenham em sede da medida da pena.
A culpa estabelece o máximo de pena concreta ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade.
A prevenção geral positiva traduz a necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena.
E prevenção especial consubstancia as necessidades inerentes à ressocialização do arguido.
Na determinação do substrato da medida da pena, isto é, da totalidade das circunstâncias do complexo integral do facto (factores de medida da pena) que relevam para a culpa e a prevenção (cfr., artigo 71.º n.º 1 do Código Penal), há que atender a "todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele" (artigo 71.º n.º 2 do Código Penal).
Daqui, decorre a construção do seguinte modelo: dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma violada – entre o ponto óptimo – que nunca deve ultrapassar o limite máximo de pena adequado à culpa, mas que não tem obrigatoriamente com ele coincidir – e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar em último termo, a medida da pena.
Exposto o raciocínio e o modelo imanente à determinação da medida da pena, considerando o enquadramento jurídico-penal efectuado, impõe-se a determinação concreta da pena.
Relevam por via da culpa, para efeitos de medida da pena:
- no sentido da agravação da ilicitude contribui o grau de conhecimento e a intensidade da vontade no dolo: dolo directo e as lesões físicas provocadas.
Ponderados todos estes factores, deve estabelecer-se o grau de culpa cima do limite médio da moldura abstracta da pena de prisão.
Revelam por via da prevenção especial para efeito de medida da pena:
- os antecedentes criminais, em que constam condenações desde 2001 pela prática de crimes contra o património e de crimes contra a vida – encontrando-se à data da prática dos crimes em situação de cumprimento de uma pena de prisão de 25 anos pela prática, entre outros, de um crime de homicídio qualificado;
- a situação prisional do recorrente – encontra-se em regime fechado, na secção de segurança;
- a total ausência de apoio familiar;
- ausência completa de hábitos de trabalho.
Pelo que, a conjugação destes factores revela máximas necessidades de prevenção especial, devendo o seu grau deve situar-se acima do mesmo plano da prevenção geral positiva.
No que se refere à prevenção geral positiva ou de integração, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade do ordenamento jurídico elevadas face à repercussão dos crimes de homicídio, potenciadas por os factos terem ocorrido em situação de reclusão penitenciária.
Desta forma, a dosimetria da pena de prisão a aplicar está dependente do nível das exigências de prevenção especial e condicionada pelo nível de culpa – a qual é muito elevado por via das lesões da integridade física e do modo de actuação do agente.
Desta forma, os fins das penas ficam razoavelmente assegurados com a imposição ao recorrente da pena de 6 anos de prisão, por cada um dos crimes de homicídio, na forma tentada, por ele cometidos.
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Perante as penas parcelares, cabe construir a moldura penal do concurso.
Esta tem como limite máximo a "soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes" – n.º 2 do artigo 78.º do Código Penal – e como limite mínimo – no silêncio da lei, mas sendo entendimento generalizado – a pena parcelar mais elevada (cfr. Dias, Figueiredo, "Direito Penal 2 – Parte Geral – As Consequências Jurídicas do Crime", p. 374; Cordeiro, Robalo, "Escolha e Medida da Pena", in Jornadas de Direito Criminal – O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, p. 278).
Deste modo, a moldura penal do concurso tem como limite máximo 16 anos de prisão e como limite mínimo 6 anos de prisão.
Ponderado o conjunto dos factos apurados (a gravidade do ilícito global praticado, fornecida pela conexão espácio-temporal verificada entre os factos concorrentes: factos ocorridos em sequência temporal, assim como, o valor dos bens jurídicos atingidos), avaliada a personalidade da agente tal como decorre do relatório social (adulto com longo passado criminal, institucionalizado durante longos períodos e sem rede de apoio familiar ou social) e dos factores socioeconómicos apurados – pode considerar-se que, da apreciação do conjunto dos factos decorre que o comportamento da recorrente, tratando-se de uma pluri-ocasionalidade, radica numa personalidade avessa à adopção de comportamentos lícitos. Pelo que é de atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. E, existindo elevadas exigências de prevenção especial de socialização, afigura-se adequada a aplicação da pena única determinada pelo tribunal a quo.
Do quantum da indemnização fixada.
O recorrente insurgiu-se, igualmente, contra as indemnizações fixadas pelo tribunal a quo.
No caso, estão em causa, apenas, danos não patrimoniais.
Os danos não patrimoniais que compreendem os prejuízos (tais como as dores físicas, a perda de prestígio e reputação, os vexames, os desgostos morais, etc.) que sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, por derivarem de lesão de bens (como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a honra ou o bem nome) que não integram o património do lesado. Pelo que, tais danos apenas podem ser compensados com a imposição ao agente de uma obrigação indemnizatória. Constituindo esta mais uma satisfação que uma indemnização (cfr., Varela, Antunes; "Das Obrigações em Geral", vol. I; p. 571).
Assim sendo, o dano não patrimonial é aquele que tem por objecto um interesse não patrimonial, isto é, um interesse não avaliável em dinheiro, tendo "necessariamente por suporte a pessoa humana no seu lado subjectivo; situa-se no pólo oposto à felicidade do homem. Quem sofre um desgosto, quem se incomoda, quem sente as torturas da dor, ou de falta de saúde, perde um bem anímico: esta perda é o dano moral ou não patrimonial" (cfr., Matos, Oliveira; "Código da Estrada Anotado"; 3.ª edição; p. 443).
E justamente porque os danos não patrimoniais são insusceptíveis de serem rigorosamente quantificados pecuniariamente, e como tal, não são verdadeiramente indemnizáveis, no sentido de lhes acharem equivalente que reponha as coisas no estado anterior à lesão, a fixação do respectivo montante só pode ser feita equitativamente tendo em atenção, em cada caso, o grau de culpa do agente, a situação económica dele e do lesado e as demais circunstâncias cuja influência se faça sentir – conforme resulta do disposto nos n.º 1 e n.º 3 do referido artigo 496.º do Código Civil. Ou seja, o montante da reparação atribuída "deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta (...) todas as regras da boa prudência, do senso prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida" (cfr., Varela, Antunes; ob. cit.; vol. I; p. 575, nota 4).
Como escreve Vaz Serra "trata-se apenas de dar ao lesado uma satisfação, ou compensação do dano sofrido, proporcionando-lhe situações ou momentos de prazer e alegria que neutralizam, quanto possível, a intensidade da dor física ou psíquica" (in, BMJ, 83.º-83 e 278.º-182).
Nos termos do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil, os danos não patrimoniais sofridos pelo lesado são indemnizáveis, desde que pela sua gravidade, essa indemnização se justifique.
No caso sub judice, o sofrimento físico e psicológico causado aos ofendidos – para além das lesões físicas (concedendo-se não serem de monta por requererem um período de 8 dias para cura, com 3 de incapacidade para o trabalho em geral), a circunstância de terem ocorrido em meio penitenciário potencia o sentimento de insegurança), são danos graves que justificam uma indemnização.
Deste modo, tendo em consideração:
- a gravidade do sofrimento físico e psicológico dos ofendidos;
- o estatuto socioeconómico do recorrente;
o quantum indemnizatório foi adequada e proporcionalmente fixado.
Desta forma, nesta parte, o recurso não poderá proceder.

4. Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso e, consequentemente, manter o acórdão proferido.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC – artigo 513.º do Código Processo Penal.
Notifique.

Lisboa, 03 de Dezembro de 2025
Francisco Henriques
Rui Miguel Teixeira
Ana Rita Loja
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1. In, "O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português", Patrício, Rui; AAFDL, p. 27.
2. Conselheiro Soreto de Barros in acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/2009, (http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/886ad227bc3cd9238025759900482d5d?OpenDocument).
3. Confrontar, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/04/2017 (proferido no processo 452/15.4JAPDL.L1.S1), acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/02/2015 (proferido no processo 28/13.0GAAGD.C1), acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/03/2020 (proferido no processo 93/18.4T9CLB.C1) e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04/02/2020 proferido no processo 478/19.9PBPDL.L1).
4. Confrontar, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/08/2016 (proferido no processo 36/14.4GBLLE.E1), acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/11/2016 (proferido no processo 18/14.6PFLRS.L1), acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/05/2019 (proferido no processo 485/15.0GABRR.L2) e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/09/2020 (proferido no processo 3773/12.4TDLSB.L1.