Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2628/23.1T8OER.L1-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: CANCELAMENTO DO REGISTO DA HIPOTECA
ABANDONO DE COISA SUBTRAÍDA
PROVA DO PAGAMENTO DO CRÉDITO
EXTINÇÃO DO CRÉDITO GARANTIDO PELA HIPOTECA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Não constitui documento bastante para o cancelamento do registo da hipoteca a certidão judicial que não comprova que a execução - que se extinguiu por pagamento da quantia exequenda - se destinava a obter a satisfação coerciva da divida que era garantida pela hipoteca, na ausência de qualquer decisão judicial proferida naquela execução, determinante desse cancelamento.
II. Não tendo sido impugnada a matéria de facto constante da decisão recorrida, não pode a Relação determinar o cancelamento da hipoteca, por considerar provada a causa de extinção do crédito garantido, por pagamento, dado que esse facto – o pagamento - não vem como provado da 1ª instância.
III. Pelo que a apreciação da extinção do crédito garantido pela hipoteca apenas se mostra admissível em acção autónoma, onde sejam intervenientes os credores beneficiários daquela garantia – o que não ocorre neste processo especial de impugnação de decisão da Conservatória.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
A
apresentou impugnação judicial da decisão de recusa de acto de registo (do cancelamento de hipoteca apresentado sob o n.º 112320230105, relativo ao imóvel descrito sob o nº … - Linda a Velha/Oeiras) do Conservador da 1.ª Conservatória do Registo Predial de B.
A Recorrente requereu a 22/03/2022, o cancelamento da hipoteca a favor da C, para garantia de empréstimo concedido. Hipoteca que foi cedida a D e E, tendo estes executado o crédito contra a A. e seu ex-marido, no processo nº 23707/19.5T8OER. Requerido o cancelamento, este foi recusado.
A 19/01/2023, foi proferido despacho de qualificação que recusou a conversão.
Apresentado recurso hierárquico da qualificação do registo, foi proferido despacho de sustentação.
O Ministério Público emitiu parecer, no sentido de se manter o despacho recorrido, julgando-se improcedente a impugnação judicial apresentada.
Com data de 14/9/2023, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
Nestes termos e face ao exposto, julgo a presente impugnação judicial improcedente mantendo, na íntegra, o despacho proferido a 19.01.2023, que recusou o pedido de cancelamento da hipoteca voluntária efetuado pela ap. 9 de 06.02.1986, que incide sobre a fração autónoma E do prédio nº, da freguesia…, concelho do …, requerido na ap. 1123 de 05.01.2023.
*
Inconformada, a impugnante interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
I. Não podem restar dúvidas de que a execução extinta, por pagamento, se reporta à mesma dívida sobre a qual recaía a hipoteca cedida pela C aos Exequentes D e E.
II. Se alguma dúvida pudesse subsistir quanto a que a dívida exequenda, julgada extinta, é a mesma que titulou a hipoteca cedida pela C aos Exequentes, a sentença, ainda manuscrita, junta à certidão junta como doc. 3, que esteve na base da Execução, ora extinta, é inequívoca.
III. Pelo que a dívida extinta é inequivocamente a mesma garantida pela hipoteca a favor da C, constituída em 6.06.1986, e averbada em 29/11/1995 a favor dos exequentes D e E.
IV. A qual se encontra extinta por pagamento.
V. Acresce que a única hipoteca ativa é a registada com a cota C-3, "Ap. 09/060286 - Hipoteca voluntária provisória por natureza - alínea i)999999 do n.º 1) e alínea b) do n.º 2 - a favor da C - Lisboa - Garantia de empréstimo - (Dec-Lei n.º 459/3).
VI. De salientar, para que não restem dúvidas, que a Ap. 09/060286 coincide com a data em que a fração em causa foi adquirida por F, ex-cônjuge da ora Requerente, conforme provado na sentença recorrida.
VII. Nos termos do art.º 730.º al. a) do C. Civil, a hipoteca extingue-se pela extinção da obrigação que serve de garantia.
VIII. E, nos termos do art.º 13.º do CRP: "Os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos, em execução de decisão administrativa nos casos previstos na lei, ou de decisão judicial transitada em julgado".
IX. Em face do exposto, não pode subsistir qualquer dúvida de que a hipoteca sobre a fração autónoma dos autos, para garantia da quantia pecuniária emprestada pela C foi transmitida para D e E, os quais são os credores exequentes no processo de execução sumária nº 3707/19.5T8OER a que respeita a certidão emitida pelo Tribunal Judicial da Comarca de ….
X. Sendo que a execução foi extinta por pagamento da quantia exequenda, conforme sentença transitada em julgado e certificada.
XI. Conforme resulta dos art.ºs 686.º e 687.º/Cód. Civil, não podem subsistir hipotecas sem terem dívidas subjacentes.
XII. O despacho e a sentença recorrida violaram os art.ºs 686.º, 687.º e 730.º do C. Civil, assim como o art.º 13.º/CRP.
XIII. Pelo que deve ser averbado o cancelamento da hipoteca registada a favor de D e E a que se reporta o Averbamento - Ap. 36/951129.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas Senhores Desembargadores, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo- se por outra que determine que seja averbado o registo do cancelamento da hipoteca registada a favor de D e E, a que se reporta o AVERB. - Ap. 36 de 1995/11/29.
*
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, nos autos e efeito suspensivo.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
Adequação da certidão judicial ao cancelamento de hipoteca.
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III. Os factos
Receberam-se da 1ª instância os seguintes factos provados:
- A é actualmente proprietária da fração autónoma designada pela letra "E", do prédio sito em …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e inscrito na matriz predial sob o artigo … da União das Freguesias de ….
- A 6.02.1986 a fracção foi adquirida pela recorrente e por F.
- A 06.02.1986 foi constituída hipoteca voluntária a favor da C.
- A 13.07.1999 foi registada uma penhora.
- A 29.11.1995 foi a hipoteca averbada a favor de D e E por cessão de créditos.
- A 06.07.2021 foi averbada a aquisição por partilha judicial com seu ex-marido F.
- Na mesma data foi cancelada a penhora registada a 13.07.1999.
- A 3.02.2021 foi proferido despacho judicial que a extinção da execução e determinou o levantamento da penhora.
- Foi requerida certidão (cujos termos não foram alegados) a qual suportou o pedido de cancelamento da hipoteca junto da CRPredial.
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IV. O Direito
Pretende a recorrente o cancelamento do registo de hipoteca voluntária efectuado pela ap. 9 de 06/02/1986, que incide sobre a fração autónoma E do prédio nº …, da freguesia …, concelho do …, que se destinava a garantir o empréstimo concedido pela C a F, casado com A na comunhão de adquiridos.
Por averbamento lavrado a coberto da ap. 36 de 29/11/1995 o identificado banco cedeu o seu crédito hipotecário a D e E, casados na comunhão geral.
O pedido de cancelamento foi instruído com certidão judicial eletrónica, emitida em 15.07.2022 pelo Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Execução de Oeiras, Juiz 1, relativa aos autos de execução sumária nº 3707/19.5T80ER, em que foram exequentes D e E e executados F e A, na qual se certifica que os presentes autos se encontram extintos por pagamento integral conforme sentença proferida nos presentes autos em 01.02.2002 e que pela Mmª Juiz de Direito foi ordenado por despacho proferido nos autos a 29.06.2022 o levantamento de todos os registos pendentes, despacho que transitou em 14.07.2022. Mais se certifica que os presentes autos de execução corriam sob o nº de processo 281-A/19967.
Para apreciação do presente recurso, será da maior relevância a ponderação das conclusões da informação junta ao recurso hierárquico e que fundou o indeferimento do mesmo:
I - Não é titulo para o cancelamento do registo de hipoteca, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 13º, in fine, do CRP - que determina que os registos são cancelados em execução de decisão judicial transitada em julgado o despacho judicial que se limita a ordenar a emissão de uma certidão requerida com vista ao cancelamento do registo da hipoteca.
II - Não constitui documento bastante para o cancelamento do registo da hipoteca nos termos do disposto do mencionado artigo 13º, primeira parte, do CRP - que determina que os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos -, a certidão judicial que não comprova que a execução, que se extinguiu por pagamento da quantia exequenda, se destinava a obter a satisfação coerciva da mesma divida que era garantida pela hipoteca.
Nada temos a acrescentar a estas conclusões, que sintetizam com clareza a razão da improcedência da pretensão da impugnante, ora recorrente e que fundam a nossa concordância com a decisão recorrida.
Mas, pela sua profundidade e acuidade, transcrevemos também a fundamentação da referida informação:
A questão que se coloca nos presentes autos é a de saber se a certidão judicial apresentada a registo é título suficiente para o cancelamento do registo de hipoteca lavrado pela ap. 9 de 06.02.1986. que incide sobre a fração autónoma E do prédio descrito sob o n, à data inscrita a favor de F e mulher, A, casados na comunhão de adquiridos (ap. 8 de 06.02.1986), que se destinava a garantir o empréstimo que lhes foi concedido pela C, cujo crédito foi posteriormente cedido a D e E, casados na comunhão geral (averbamento de cessão de crédito lavrado pela ap. 36 de 29.11.1995).
Integra a referida certidão cópia do termo de penhora que incidiu sobre a fração autónoma E do prédio então descrito sob o nº (entretanto transcrito para a ficha n, do mesmo concelho), decretada em "processo de execução de Sentença registada sob o nº 281/A/96", para pagamento da quantia exequenda de 9.175.010 escudos, na qual eram exequentes D e E - a quem como vimos, foi cedido o crédito hipotecário pela C - e executados F e A. Tal penhora veio a ser registada sobre a fração pela ap. 11 de 13.07,1999.
Voltando ao conteúdo da certidão judicial trazida a registo, verificamos que da mesma consta também cópia da sentença de 03.02.2002, que decidiu o seguinte: "Nestes autos de execução para pagamento de quantia certa que D e E movem contra F e A, mostrando-se pagas a quantia exequenda e as custas julgo extinta a execução. Levanto a penhora efetuada sobre o imóvel melhor descrito a fls. 8", folha esta que corresponde ao termo de penhora em imóveis acima referido.
Narrativamente, diz ainda a certidão que "pela Mm.ª Juiz de Direito foi ordenado por despacho proferido nos autos a 29.06.2022 o levantamento de todos os registos pendentes, despacho que transitou a 14.07.2022“.
Na verdade, porém, limita-se o referido despacho de 29.06.2022 a dizer “Passe a requerida certidão conforme requerido, com vista ao cancelamento indicado no requerimento". Este requerimento, de 08.06.2022, subscrito pelo Senhor Advogado recorrente (junto como documento nº 3 ao requerimento de recurso hierárquico) visava “o envio de nova certidão, para os mesmos efeitos, com junção da ação executiva em causa e declaração de trânsito, para efeitos de registo predial de levantamento da identificada hipoteca".
Ora, ao contrário do que afirma o recorrente, não pode este despacho ser considerado como titulo para o requerido cancelamento de hipoteca, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 13º, in fine, do CRP - que determina que os registos são cancelados em execução de decisão judicial transitada em julgado pois nenhum comando judicial dirigido ao cancelamento daquele concreto registo de hipoteca, lavrado pela ap. 9 de 06.02.1986, que incide sobre a fração autónoma E do prédio descrito sob o nº, pode dele ser extraído, limitando- se tal despacho a ordenar a emissão de uma certidão.  
6. Mais alega o recorrente, citando o art.º 730º, al. a) do Código Civil, que a hipoteca se extingue pela extinção da obrigação a que serve de garantia.
Trata-se, como diz Antunes Varela “de uma consequência necessária da acessoriedade que caracteriza no direito português e nas legislações de raiz latina a constituição e a própria transmissão da hipoteca".
Com efeito, a luz do nosso direito interno, a hipoteca é sempre “um acessório do direito de crédito a que serve de garantia. Não pode, portanto, constituir-se ou subsistir sem a obrigação "1' (sublinhado nosso).
Deste modo, sendo demonstrado que a obrigação se extinguiu, ter-se-ia também de considerar extinta a hipoteca que a garantia, verificando-se, desta forma, o pressuposto a que alude a primeira parte do artigo 13º do CRP, nos termos do qual “Os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos (...)" (sublinhado nosso).
Note-se que já Seabra de Magalhães, in Formulário do Registo Predial, Livraria Almedina, 1972, defendia, a propósito da hipoteca judicial, que "(...) contrariamente ao que sucede com a inscrição de penhora, a certidão extraída do processo executivo comprovativa de que o credor foi pago do que lhe era devido constitui documento bastante para o cancelamento do registo da hipoteca judicial. Nem esta pode subsistir para além da extinção da obrigação a que serve de garantia (art.º 720º. alínea a), do C.C.). O que terá o conservador, evidentemente, é de certificar-se de que aquele processo corresponde á execução (...) que sentiu de base ao registo da hipoteca’ (sublinhado nosso).
Também no parecer do (então) Conselho Técnico do IRN emitido no processo RP 15/99 DSJ-CT (in BRN 7/99), se concluiu, num caso de desistência da execução, que “a sentença transitada em julgado que homologue urna desistência do pedido em processo executivo é título suficiente para cancelar o registo da hipoteca que garanta o crédito exequendo", o que, em nosso entender, poderá aplicar-se, mutatis mutandis, aos casos de extinção da execução por pagamento voluntário da divida exequenda, como sucedeu no caso dos autos.
Sucede que., em nosso entender, não é possível extrair da certidão judicial apresentada a registo a extinção da obrigação que a hipoteca em tabela visava garantir, pois a informação nela contida não nos permite concluir, com segurança e sem margem para duvidas, que a quantia pecuniária emprestada pela C a F e mulher, A - da qual, após cessão de crédito, ficaram credores os exequentes D e E, e para cuja garantia foi a identificada fração autónoma dada de hipoteca - corresponde àquela que, na sequência de ação executiva para pagamento de quantia certa, veio a ser integralmente paga pelos devedores, com a consequente extinção da execução e levantamento da penhora registada pela ap. 11 de 13.07.1999.
Ou seja, não resulta da certidão judicial que instruiu o pedido de cancelamento de hipoteca a indispensável conexão entre a ação executiva destinada ao pagamento coercivo da quantia que veio a ser satisfeita pelos executados …, e a hipoteca que, a coberto da ap. 9 de 06.02.1986, se encontra registada sobre a fração autónoma E do prédio nº, para garantia de empréstimo originalmente concedido pela C, muito embora sejam coincidentes os devedores do empréstimo e os executados, por um lado, e os atuais credores hipotecários e os exequentes, por outro.
Sendo comprovado que o crédito exequendo corresponde ao crédito garantido pela hipoteca cujo registo agora se pretende cancelar, então sim, poderíamos dar por provada a extinção da obrigação garantida pela hipoteca, pois como vimos, extinguindo-se a obrigação, também a hipoteca se extingue.
Para comprovar a extinção do encargo registado nos termos do disposto no artigo 13º do CRP, 1.ª parte, deveria, pois, a interessada fazer prova de que a obrigação garantida pela hipoteca registada pela ap. 9 de 06.02.1986 se extinguiu com o pagamento da quantia exequenda em execução destinada a obter a satisfação coerciva da mesma divida que era garantida pela hipoteca, o que não sucedeu.
*
A recorrente não utilizou a prerrogativa de impugnação da matéria de facto considerada na decisão recorrida, como lhe permitia o disposto no art.º 640º do Código de Processo Civil.
Ora, face à factualidade provada, não nos restam dúvidas que a ora recorrente não demonstrou que a execução – a que se refere a certidão apresentada - se destinava a obter a satisfação coerciva da mesma divida que era garantida pela hipoteca.
Assim, não pode este Tribunal, em sede de recurso de apelação, apreciar livremente a documentação junta, com vista ao apuramento do alegado pagamento do crédito garantido pela hipoteca.
E, muito menos, foi proferida qualquer decisão nos autos executivos em causa, no sentido do cancelamento do registo da mesma hipoteca.
Pelo que a apreciação da extinção do crédito garantido pela hipoteca apenas se mostra admissível em acção autónoma, onde sejam intervenientes os credores beneficiários daquela garantia – o que não ocorre neste processo especial de impugnação de decisão da Conservatória.
Daí a evidente insuficiência da referida certidão para o fim pretendido – o cancelamento do registo da hipoteca, nos termos do disposto do mencionado artigo 13º do Código de Registo Predial.
Da decisão recorrida, transcrevemos também o seguinte trecho:
Ora, compulsados os documentos juntos, verifica-se que, em momento algum é junto qualquer documento determinativo, nem sequer despacho judicial, que ordene o cancelamento da hipoteca. E no que se reporta à certidão (primeira página) importa aferir da destrinça entre o que a mesma certifica e ao que se destina (este último corresponderá ao solicitado no requerimento). Na certeza de que, aquela não certifica (porque inexistiu) qualquer ordem de cancelamento da hipoteca.
Acresce que, tão somente o levantamento da penhora com o consequente cancelamento do seu registo é da competência do Tribunal. Repare-se que a constituição da hipoteca não foi realizada no âmbito do processo executivo, nem resulta a existência de qualquer venda judicial (pelo menos quer de acordo com a certidão judicial, quer de acordo com a certidão de teor da CRPredial).
Para o cancelamento, terá de intervir a entidade ou pessoa a favor de quem a hipoteca foi constituída e registada, designadamente através do seu distrate.
Nem o despacho que determinou a emissão da certidão, nem o despacho que ordenou o cancelamento da penhora e a extinção da execução são “títulos” para o requerido cancelamento de hipoteca, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 13º, do CRP - que determina que os registos são cancelados em execução de decisão judicial transitada em julgado-, pois nenhum comando judicial dirigido ao cancelamento daquele concreto registo de hipoteca, lavrado pela ap. 9 de 06.02.1986, que incide sobre a fração autónoma E do prédio descrito sob o nº pode dele ser extraído.
Em sumula, inexiste qualquer ordem judicial para cancelar a hipoteca, pelo que, assiste razão ao Sr. Conservador.
A decisão recorrida, o despacho que indeferiu o recurso hierárquico e, por fim, o despacho do Sr. Conservador do Registo Predial, de 19/01/2023, não nos merecem qualquer censura, mas, antes, a nossa integral concordância.
Como refere Abrantes Geraldes, in Recursos no novo Código de Processo Civil, pág. 328, A lei admite que o acórdão seja proferido com fundamentação sumária ou com remissão para jurisprudência que se tenha debruçado sobre a mesma questão (…). A alteração visou sobretudo simplificar a estrutura formal dos acórdãos, permitindo que as questões a decidir no recurso possam ser enunciadas de forma sucinta e que a fundamentação possa ter lugar mediante simples remissão para os termos da decisão recorrida, desde que confirmada inteiramente e por unanimidade.
Isto à luz do disposto no art.º 663º, nº 5 do Código de Processo Civil.
No caso, a sentença recorrida aplicou de forma correcta e primorosa o Direito à factualidade provada (que se mantém inalterada).
Do que se conclui pela improcedência do mérito do recurso, no que tange à aplicação do Direito – remetendo-se, neste ponto, integralmente para a decisão recorrida.
Daí a improcedência da apelação.
*
V. A decisão                                                       
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na improcedência da apelação, manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024
Nuno Lopes Ribeiro
Nuno Gonçalves
Maria de Deus Correia

DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida o presente acórdão pelos motivos que passo a expor:
Está em causa o requerido cancelamento do registo de hipoteca voluntária a favor de D e E que incide sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo predial de …, sob o n.º….
Nos termos do art.º 13.º do Código de Registo Predial “os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos…)”.
Ora como se pode ler no próprio parecer da Senhora Conservadora:
Sendo comprovado que o crédito exequendo corresponde ao crédito garantido pela hipoteca cujo registo agora se pretende cancelar, então sim, poderíamos dar como provada a extinção da obrigação garantida pela hipoteca, pois extinguindo-se a obrigação também a hipoteca se extingue.” E noutro passo acentua-se:
Sendo demonstrado que a obrigação se extinguiu, ter-se-ia também de considerar extinta a hipoteca que a garantia, verificando-se, desta forma, o pressuposto a que alude a primeira parte do art.º 13.º do CRP, nos termos do qual «os registos são cancelados com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos neles definidos» (…)”.
E concluiu:
Para comprovar a extinção do encargo registado nos termos do disposto no artigo 13º do CRP, 1 ª parte, deveria, pois, a interessada fazer prova de que a obrigação garantida pela hipoteca registada pela ap. 9 de 06.02.1986 se extinguiu com o pagamento da quantia exequenda em execução destinada a obter a satisfação coerciva da mesma divida que era garantida pela hipoteca, o que não sucedeu.”
Ora, pelo contrário, entendemos que, da documentação ao dispor da Conservatória do Registo Predial, está devidamente comprovado que obrigação garantida pela hipoteca registada pela ap. 9 de 06.02.1986 se extinguiu com o pagamento da quantia exequenda naquela execução.
Vejamos:
Do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 23-04-1998 e que integra a certidão que instruiu o pedido de cancelamento da hipoteca constam, designadamente, os seguintes factos provados:
“Os Autores (D e E) são pais do 1.º Réu (F)
Os Réus celebraram casamento um com o outro, (…) em 12-07-1985, dissolvido por divórcio decretado por sentença transitada em julgado em 08-01-1992.
No dia 08.05.86, o 1.o Réu celebrou escritura de aquisição do 1.º andar B, do prédio sito (…) pelo preço de 3.600.000$00.
E, simultaneamente, celebrou um contrato de empréstimo mediante o qual a C lhe entregou a totalidade dessa quantia para o pagamento do mesmo preço.
Neste segundo contrato intervieram também os Autores como fiadores e principais pagadores de tudo o que viesse a ser devido nos termos do mesmo contrato.
Os Réus iniciaram o pagamento das prestações convencionadas no contrato atrás referido.      
Em Maio de 1995, os Autores (D e E) receberam uma carta através da qual a C os informava de que poderiam evitar o recurso à execução para cobrança da quantia em dívida, acordando um plano de recuperação ou depositando parte do atraso existente.
Em 16.09.95, os Autores pagaram à C a quantia total de 7 410 614$00 em dívida, nos termos convencionados no contrato referido.
Em 02.06.95, comunicaram aos réus que lhes deveriam restituir essa quantia acrescida de juros e outras despesas no prazo de 30 dias.
Através de acto notarial de 15.11.95 celebrado pela C e os autores, aquela cedeu a estes a totalidade do seu crédito e garantia assumindo os mesmos a posição de credores no empréstimo bem como na respectiva hipoteca.”
Conforme se verifica da análise do mencionado acórdão, os fiadores – D e E – depois de procederem ao pagamento da dívida à C, intentaram acção de regresso contra F e A - pelo valor total que tinham pago na qualidade de fiadores à C.
E por isso esta lhes cedeu a totalidade do crédito e a respectiva garantia – a hipoteca em causa neste processo. E foi no pagamento da totalidade do crédito que os Réus vieram a ser condenados, conforme consta do acórdão a que se vem aludindo. E foi essa mesma totalidade do crédito que foi extinto conforme sentença proferida em 1.02.2002, certificada nos autos.
Não podemos, pois, deixar de concluir que está perfeitamente comprovado que a obrigação garantida pela hipoteca registada pela ap. 9 de 06.02.1986 se extinguiu com o pagamento da quantia exequenda, em execução destinada a obter a satisfação coerciva da mesma divida que era garantida pela hipoteca. Ora, nos termos do art.º 730.º al. a) do C. Civil, a hipoteca extingue-se pela extinção da obrigação que serve de garantia.
E por isso, estando comprovada a extinção do encargo registado nos termos do disposto no art.º 13.º 1.ª parte do Código de Registo Predial não poderia o mesmo ser recusado, de forma a dar pleno cumprimento ao disposto no art.º 68.º do mesmo diploma legal segundo o qual “ a viabilidade do pedido de registo deve ser apreciada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos neles contidos.”
Vem ainda a propósito frisar que, em nosso modesto entender, o entendimento subjacente à decisão recorrida confunde dois planos jurídicos distintos:
O primeiro plano é aquele em que a argumentação supra se situa, baseado na 1.ª parte do art.º 13.º do CRP. Com base neste artigo tem que haver da parte da Conservatória a análise da documentação apresentada pelo requerente, com vista a uma análise substantiva sobre a extinção do direito e consequente extinção da garantia. E a própria Conservatória admitiu que o poderia fazer, mas abandonou essa possível hipótese de deferimento da pretensão da Requerente, por entender que o processo não continha prova suficiente dessa extinção do direito. Como resulta da exposição anterior, crê-se bem demonstrada a extinção do direito de crédito pelo pagamento e, consequentemente, da garantia (hipoteca) cujo registo se pretende cancelar.
O segundo plano possível é a última parte do art.º 13.ºdo CRP que se refere à decisão judicial. E, neste caso, é que se coloca a necessidade de, na certidão constar, claramente, o teor da decisão judicial a ordenar o cancelamento do registo em causa.
Ora, se nos situamos no primeiro plano, não faz sentido exigir a verificação das condições que se reportam ao segundo plano.
Julgaria, pois, procedentes as conclusões de recurso, revogando a decisão recorrida.
Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024
Maria de Deus Correia