Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | NUNO GOMES DA SILVA | ||
| Descritores: | PROCESSO ABREVIADO INQUÉRITO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 01/17/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | PROCESSO CRIME | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | 1. O juízo predominante sobre a suficiência dos indícios ou sobre o que seja, em concreto, uma situação de flagrante delito cabe, e só cabe, ao Ministério Público como titular da acção penal. 2. Por conseguinte, o inquérito não é uma fase obrigatória no processo abreviado. Antes pelo contrário, é da própria natureza do processo abreviado a possibilidade de não haver lugar a abertura de inquérito sendo essa, decerto, uma das excepções a que se alude no nº 2 do art. 262º | ||
| Decisão Texto Integral: | 1. – No âmbito do processo nº 103/05.5S3LSB foi elaborado “auto de notícia por detenção” em 2005.07.11 dando conta de uma ocorrência na via pública que teria tido como intervenientes um agente da PSP e R…. Este foi constituído arguido e foi sujeito a interrogatório findo o qual Sra. procuradora-adjunta proferiu despacho dando conta da existência de indícios da prática de um crime de injúria agravada do art. 181º e 184º e de um crime de resistência e coacção sobre funcionário do art. 347º, todos do C. Penal. A referida magistrada determinou que o arguido detido fosse restituído à liberdade e, considerando a discrepância de versões entre o teor do auto de detenção e o depoimento do arguido, determinou que o processo fosse remetido para inquérito. Registado como tal em 2005.07.12 foi aberta “conclusão” ao magistrado do Ministério Público que proferiu despacho de arquivamento relativamente a um eventual crime de ameaças consubstanciado na seguinte frase que, de acordo com o auto de notícia, o arguido teria proferido: “vou-te matar, filho da puta, tás fodido, já te marquei, vocês para mim não chegam; vou preso mas quando sair mato-te; polícias de merda, vocês deviam era morrer”. Considerou, em suma, que, dada a qualidade do visado, as expressões não eram adequadas a provocar medo no agente policial ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. Em seguida, foi proferida acusação para julgamento em processo especial abreviado. Além da descrição do contexto em que foi proferida a frase acima mencionada e da citação da dita frase foi ainda descrito na acusação que o arguido desferira um soco e um pontapé no agente da polícia que veio a elaborar o auto de notícia. Por isso, foi imputada ao arguido a prática, em concurso real, de um crime de injúrias agravado dos arts. 181º, nº 1 e 184º do C. Penal e um crime de ofensa à integridade física qualificada dos arts, 143º. Nº 1 e 146º, com referência ao art. 132º, nº 2, al. j) todos do mesmo diploma. Distribuído o processo, o Sr. Juiz do 1º Juízo de Pequena Instância Criminal, 1ª Secção, proferiu despacho, em 2006.05.18, declarando a acusação nula nos termos do art. 119º, als. d) e f) CPP e determinou a remessa dos autos ao DIAP para tramitação sob outra forma processual. No dito despacho do que o Sr. Juiz discorda, em síntese, é da circunstância de ter sido deduzida acusação sem outras diligências complementares de inquérito designadamente quanto ao eventual crime de ameaças quando a versão constante do auto de notícia seria contraditória com a que foi apresentada nas declarações que o arguido prestou. E ainda a circunstância de não ter havido acusação por crime de resistência e coacção a funcionário do art. 347º C. Penal e por crime de dano em virtude de ser referido no auto de notícia que o arguido, na esquadra, pontapeou cadeiras e partiu um estore; e também por ser referido que teria oferecido resistência e se encontrava muito violento na altura em que foi necessário obrigá-lo a entrar no carro patrulha. Em suma, na perspectiva do despacho, haveria indícios da prática de outros crimes além dos acusados o que atiraria a pena máxima abstracta para um limite superior a cinco anos de prisão impossibilitando o uso da forma especial de processo abreviado. * 2. - O magistrado do Ministério Público interpôs recurso deste despacho concluindo que: - O despacho de acusação é que delimita as normas penais aplicáveis ao caso e não releva no despacho proferido para os efeitos do art. 311º CPP entender que há outros crimes; - Tendo havido arquivamento numa parte dos factos participados não releva no mesmo despacho entender-se que há indícios da prática de outros ilícitos; - Só existe falta de inquérito se a lei o impuser como fase obrigatória no processo abreviado (arts. 391º-A e 262º, nº 2 CPP); - Não sendo imposta a realização de inquérito em processo abreviado é legal a acusação sem esse inquérito; - A prova que consta dos autos é simples e evidente quanto à verificação do crime e de quem foi o seu agente não carecendo de outras diligências para lá das realizadas. Termina pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba a acusação e designe julgamento sob a forma especial de processo abreviado. Não houve resposta à motivação. Neste Tribunal, a Sra. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento. Foi cumprido o art. 417º, nº 2 CPP sem que houvesse resposta. Foram colhidos os vistos. * 3. – Dando por assente a possibilidade de recurso, não obstante o que determina o art. 391º-D CPP (“recebidos os autos, o juiz, por despacho irrecorrível, conhece das questões a que se refere o art. 311º, nº 1, e designa dia para audiência”) por ter sido tomada decisão em que foram apreciadas alegadas nulidades passar-se-á a conhecer do dito recurso. Como é sabido o art. 391º-A CPP (diploma a que respeitam as normas a seguir indicadas sem menção de origem) determina que em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, face ao auto de notícia ou realizado inquérito sumário, pode deduzir acusação para julgamento em processo abreviado. Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 157/VII para alteração do Código de Processo Penal frisou-se que o processo abreviado era “caracterizado por uma substancial aceleração das fases preliminares” mas em que se estabelecem “particulares exigências ao nível dos pressupostos”. Um deles, o de mais difícil avaliação, crê-se, seria “o juízo sobre a existência de prova evidente do crime – como sucederá, por exemplo, nos casos de flagrante delito não julgados em processo sumário, de prova documental ou de outro tipo, que permita concluir inequivocamente sobre a verificação do crime e de quem foi o seu agente” e que, sempre segundo a mencionada “Exposição …” é um dos que enforma o processo sumário, característico do nosso sistema. Compaginando esta norma com a estrutura acusatória adstrita ao processo penal português consagrada no art. 32º, nº 5 CRP e considerando com a doutrina que a interpretação desta norma constitucional, ao impor a distinção entre o órgão que acusa e aquele que julga, permite concluir que a acusação é «questão» da entidade acusadora e só dela, fácil é concluir que, para o juiz, «sobrará», ao julgar a competência para sindicar a boa ou má actuação por parte de quem acusou com base nos indícios processualmente existentes. Ao julgar, e não antes por que tal lhe está vedado pela lei que delimitou a noção de acusação manifestamente infundada nos termos agora previstos no nº 3 do art. 311º (após a revisão de 1998 do CPP), afastando de vez a possibilidade, que a jurisprudência admitia, de o julgador sindicar a validade e a suficiência dos indícios recolhidos no inquérito. Reforçando, assim, o mecanismo de defesa contra a tentação de que o juiz, ao proferir o despacho a que se refere o art. 311º, crie juízos apriorísticos sobre o mérito da causa. Extrai-se daqui que o juízo predominante sobre a suficiência dos indícios ou sobre o que seja, em concreto, uma situação de flagrante delito cabe e só cabe ao Ministério Público como titular da acção penal. E que, por conseguinte, o inquérito não é uma fase obrigatória no processo abreviado. Antes pelo contrário, é da própria natureza do processo abreviado a possibilidade de não haver lugar a abertura de inquérito sendo essa, decerto, uma das excepções a que se alude no nº 2 do art. 262º (cfr. neste sentido v. g. Acs. Trib. Rel. Lisboa de 2000.09.28 in dgsi.pt, RL200009280016739 e de 2004.07.08, CJ 4/2004, p. 127). * 4. - No caso presente, considera-se no despacho recorrido que importaria averiguar, mediante recolha de outra prova, da existência de indícios de crime de ameaças e do crime de resistência e coacção a funcionário e porventura até do crime de dano. Como se descreveu supra, após a audição do arguido detido houve mesmo um despacho determinando a remessa dos autos para inquérito e estes foram registados como tal mas o certo é que, mal ou bem, foi depois proferido um outro, sem que houvesse diligências de prova, determinando o arquivamento relativamente ao crime de ameaças sendo, de seguida, proferida acusação descrevendo um conjunto de factos e imputando ao arguido os supra mencionados crimes de injúrias agravado e de ofensa à integridade física qualificada. Ou seja, fixando o objecto do processo e requerendo o julgamento do arguido em processo abreviado. Houve, pois, uma avaliação da prova sendo considerado que esta era simples e evidente quanto aos indícios dos crimes pelos quais veio a ser deduzida acusação e considerado também que tal não sucedia quanto ao crime de ameaças. Mal ou bem, repete-se, foi a avaliação feita e o que importa sublinhar é que não poderia o juiz do julgamento sindicar a suficiência dos indícios quanto à verificação dos factos que ficaram a constar da acusação, ou seja, dos que ficaram a delimitar o objecto do processo, considerando como fez que havia outras investigações a fazer relativamente ao que foi e não foi acusado. Aliás, como se decidiu no Ac. Trib. Rel Lisboa de 2000.03.21, (in dgsi.pt RL200003210017885) perante uma notícia de algo que, do seu ponto de vista, não constitua crime, nem por isso o Ministério Público está funcionalmente obrigado a “abrir inquérito”. E também se diz neste aresto que a omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público. Além disso, o que o despacho recorrido põe em destaque, na sua perspectiva, é a insuficiência de prova o mesmo é dizer a insuficiência de inquérito e essa, a existir, seria uma nulidade dependente de arguição nos termos do art. 120º, nº 2, al. d). Só nessa circunstância – arguição tempestiva pelo interessado – é que o juiz poderia fazer uma avaliação da substância da prova e concluir, eventualmente, pela existência ou não de uma nulidade (note-se, contudo, a posição do Ac TRL de 2000.03.21 mencionado supra). De outro modo, na via seguida, não há base legal para a decisão tomada (cfr, neste sentido, Ac. Trib. Rel Lisboa de 2004.07.14 in dgsi.pt, processo 5607/2004-3). As consequências da dedução da acusação nos termos em que foi feita teriam de ser o seu recebimento e a marcação de julgamento e, então sim, aí, em função da prova produzida, tomar a atitude tida por conveniente, considerando a existência de alterações não substanciais ou substanciais da acusação (arts. 358º e 359º) e agir em conformidade com o que a lei determina. Havendo, nomeadamente, uma alteração substancial resultante da prova produzida comunicar essa alteração ao Ministério Público para o respectivo procedimento ou, em caso de acordo generalizado dos sujeitos processuais, continuar com o julgamento desde que os novos factos não determinassem a incompetência do tribunal (então, sim, a verificar). O que seria preciso era fazer o julgamento! * 5. – Em face do exposto decide-se conceder provimento ao recurso e, nessa medida, revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que determine a autuação do processo como abreviado e o seu prosseguimento para julgamento. Sem tributação. |