Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | NETO DE MOURA | ||
Descritores: | PROVA ANTECIPADA PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/22/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Parcial: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | Iº As declarações para memória futura podem ser tomadas mesmo quando no processo não há, ainda, suspeitos constituídos arguidos, ou até quando não se conhece a identidade dos suspeitos; IIº Na situação dos autos, de prestação de declarações para memória futura sem a presença do defensor (ainda não constituído ou nomeado), o contraditório sai diminuído, mas o núcleo essencial dos direitos e garantias de defesa não é afectado; IIIº Exercer o contraditório em relação ao depoimento de uma testemunha não é só (nem principalmente) poder questioná-la, contra interrogá-la é, sobretudo, poder o sujeito processual contraditar o depoimento desfavorável, oferecendo outros meios de prova que o infirmem ou ponham em causa a sua valia probatória, nomeadamente pondo em crise a razão de ciência da testemunha ou a sua credibilidade; | ||
Decisão Texto Parcial: | Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa I – Relatório No âmbito do processo comum que, sob o n.º 432/06.0 JDLSB, corre termos pelo Juízo de Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste (inicialmente, pelo 2.º juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Mafra), A….., J…, J…, V…, M…, V…, E…, F…, A…, N…, A…, J…, J… e I…, todos devidamente identificados nos autos[1], foram submetidos a julgamento, acusados pelo Ministério Público e posteriormente pronunciados pela prática, o primeiro, em autoria material e em concurso real, de dois crimes de promoção de associação criminosa, dois crimes de falsificação de documentos agravada, um crime de participação em associação criminosa, três crimes de receptação, três crimes de burla qualificada e, como cúmplice, de mais dois crimes de falsificação de documentos agravada, o segundo, em autoria material e em concurso real, de um crime de chefia de associação criminosa, 26 crimes de burla qualificada, 27 crimes de falsificação de documentos, 18 deles agravada e 9 simples e, como cúmplice do arguido A…, de mais dois crimes de falsificação de documentos agravada, o terceiro, em autoria material e em concurso real, de um crime de chefia de associação criminosa, 22 crimes de burla qualificada, 22 crimes de falsificação de documentos, sendo 13 deles de falsificação agravada e 9 simples, o quarto, em autoria material e concurso real, de um crime de participação em associação criminosa, um crime de liderança de associação criminosa, dois crimes de receptação, 8 crimes de burla qualificada e 11 crimes de falsificação de documentos agravada, o quinto, em autoria material e concurso real, de um crime de participação em associação criminosa, 13 crimes de burla qualificada, 8 crimes de falsificação de documentos, sendo 6 deles falsificação agravada e 2 simples, o sexto, em autoria material e concurso real, de um crime de participação em associação criminosa, um crime de falsificação de documentos agravada, 3 crimes de burla qualificada e 3 crimes de uso e falsificação de documentos, a sétima, em autoria material e em concurso real, de um crime de participação em associação criminosa, 4 crimes de burla qualificada e 4 crimes de falsificação de documentos agravada, o oitavo, em autoria material e em concurso real, de um crime de participação em associação criminosa, 4 crimes de burla qualificada e 4 crimes de falsificação de documentos agravada, o nono, em autoria material e em concurso real, de um crime de participação em associação criminosa e, em cumplicidade com o arguido J…, 3 crimes de burla qualificada e 4 crimes de falsificação de documentos agravada, o décimo, em autoria material e em concurso real, de um crime de participação em fundação de associação criminosa e, em cumplicidade com o arguido A…, um crime de falsificação de documentos agravada, o décimo primeiro, em autoria material e em concurso real, de um crime de participação em associação criminosa, 2 crimes de burla qualificada e, como cúmplice dos arguidos V… e E…, 2 crimes de falsificação de documentos agravada, o décimo segundo, em autoria material e em concurso real, de um crime de participação em associação criminosa, 2 crimes de burla qualificada e, em cumplicidade com o arguido V…, 2 crimes de falsificação de documentos agravada, o décimo terceiro e o décimo quarto, em co-autoria material e em concurso real, de 4 crimes de falsificação de documento agravada e um crime de participação em associação criminosa. Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, por acórdão de 16.09.2009 (fls. 11626 e sgs.), foram condenados: Ø o arguido A…, pela prática: § em autoria material, de um crime de falsificação de documento previsto e punível pelo artigo 256.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução. Ø o arguido J…, pela prática, em concurso real, como autor material: § de 18 (dezoito) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a) ou 218.º, n.º 1, do Código Penal, nas seguintes penas de prisão: 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, 3 (três) anos e 7 (sete) meses, 2 (dois) anos e 11 (onze) meses, 3 (três) anos e 6 (seis) meses, 2 (dois) anos e 11 (onze) meses, 2 (dois) anos e 8 (oito) meses, 3 (três) anos e 7 (sete) meses, 2 (dois) anos e 11 (onze) meses, 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses, 3 (três) anos e 6 (seis) meses, 1 (um) ano e 4 (quatro) meses, 1 (um) ano e 3 (três) meses, 1 (um) ano 3 (três) meses e 15 (quinze) dias, 1 (um) ano e 4 (quatro) meses, 1 (um) ano, 1 (um) ano e 3 (três) meses, 1 (um) ano e 8 (oito) meses, 1 (um) ano e 4 (quatro) meses. como co-autor material: § de 3 (três) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do Código Penal, nas seguintes penas de prisão: 1 (um) ano e 3 (três) meses, 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses e 1 (um) ano e 4 (quatro) meses. como co-autor material: § de 2 (dois) crimes de falsificação de documento previstos e puníveis pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) de prisão para cada um; § de 11 (doze) crimes de falsificação de documentos agravada previstos e puníveis pelo artigo 256.º, n.ºs 1, al. c), e 3, do Código Penal, na pena 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão para cada um; como autor material: § de 4 (quatro) crimes de falsificação de documento previstos e puníveis pelo artigo 256.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão para cada um; § de 1 (um) crime de falsificação de documentos agravada previsto e punível pelo artigo 256.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do Código Penal, na pena 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão; Em cúmulo jurídico, foi este arguido condenado na pena única de 11 (onze) anos de prisão. Ø o arguido J…, pela prática, em co-autoria material e em concurso real, § de 8 (oito) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do Código Penal, nas seguintes penas de prisão: 1 (um) ano e 1 (um) mês, 9 (nove) meses, 9 (nove) meses, 1 (um) ano, 1 (um) ano e 1 (um) mês, 2 (dois) anos e 1 (um) mês, 1 (um) ano e 1 (um) mês e 1 (um) ano. § de 3 (três) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, nas seguintes penas de prisão: 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses e 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses. § de 3 (três) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do Código Penal, nas seguintes penas de prisão: 1 (um) ano e 3 (três) meses, 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses e 1 (um) ano e 4 (quatro) meses. § de 1 (um) crime de falsificação de documento previsto e punível pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) de prisão; § de 7 (sete) crimes de falsificação de documentos agravada previstos e puníveis pelo artigo 256.º, n.ºs 1, al. c), e 3, do Código Penal, na pena 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão para cada um; Em cúmulo jurídico, foi este arguido condenado na pena única de 7 (sete) anos de prisão. Ø o arguido M…, pela prática, em co-autoria material e em concurso real, § de 8 (oito) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do Código Penal, nas seguintes penas de prisão: 9 (nove) meses, 1 (um) ano, 1 (um) ano e 5 (cinco) meses, 1 (um) ano e 1 (um) mês, 1 (um) ano e 1 (um) mês, 1 (um) ano, 1 (um) ano e 1 (um) mês e 2 (dois) anos e 1 (um) mês. § de 3 (três) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, nas seguintes penas de prisão: 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses, 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e 2 (dois) anos e 9 (nove) meses. § de 2 (dois) crimes de falsificação de documento previstos e puníveis pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) de prisão para cada um; § de 6 (seis) crimes de falsificação de documentos agravada previstos e puníveis pelo artigo 256.º, n.ºs 1, al. c), e 3, do Código Penal, na pena 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão para cada um; Em cúmulo jurídico, foi este arguido condenado na pena única de 6 (seis) anos de prisão. Ø o arguido V…, pela prática, em concurso real, como autor material: § de 2 (dois) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 1 (um) mês de prisão por cada um. § de 6 (seis) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, nas seguintes penas de prisão: 3 (três) anos e 4 (quatro) meses, 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, 3 (três) anos e 7 (sete) meses, 3 (três) anos e 7 (sete) meses, 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses e 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses. § de 7 (sete) crimes de falsificação de documentos agravada previstos e puníveis pelo artigo 256.º, n.ºs 1, al. c), e 3, do Código Penal, nas seguintes penas de prisão: 18 (dezoito) meses, 18 (dezoito) meses, 2 (dois) anos, 2 (dois) anos, 2 (dois) anos, 2 (dois) anos e 2 (dois) anos. como co-autor material: § de 1 (um) crime de burla qualificada previsto e punível pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) prisão. Em cúmulo jurídico, foi este arguido condenado na pena única de 9 (nove) anos de prisão. Ø a arguida E…., pela prática, em co-autoria material e em concurso real, § de 2 (dois) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão por cada um. § de 2 (dois) crimes de falsificação de documentos agravada previstos e puníveis pelo artigo 256.º, n.ºs 1, al. c), e 3, do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão por cada um. Em cúmulo jurídico, foi esta arguida condenada na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução, com regime de prova. Ø o arguido F…, pela prática, em autoria material e em concurso real, de: § de 4 (quatro) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, nas seguintes penas de prisão: 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses, 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses, 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses e 2 (dois) anos e 9 (nove) meses. § de 4 (quatro) crimes de falsificação de documentos agravada previstos e puníveis pelo artigo 256.º, n.ºs 1, al. c), e 3, do Código Penal, nas seguintes penas de prisão: 10 (dez) meses, 8 (oito) meses, 8 (oito) meses e 8 (oito) meses. Em cúmulo jurídico, foi este arguido condenado na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período, com regime de prova. Ø o arguido V…, pela prática, em autoria material e em concurso real, de: § de 2 (dois) crimes de burla qualificada previstos e puníveis pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão por cada um. § de 1 (um) crime de burla qualificada previsto e punível pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão. § de 3 (três) crimes de falsificação de documentos previstos e puníveis pelo artigo 256.º, n.ºs 1, al. c), do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão por cada um. Em cúmulo jurídico, foi este arguido condenado na pena única de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período, com regime de prova. * Os arguidos A…, J…, J…, V…, M…, V…, E… e F… foram absolvidos dos demais crimes por que estavam pronunciados. Os arguidos A…, N…, A…, J…, J… e I… foram absolvidos de todos os crimes que lhes estavam imputados. * Inconformados, vieram os arguidos E…, J…, J…, V… e M… interpor recurso do acórdão condenatório para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados nas respectivas motivações, de que extraíram as seguintes conclusões …: ….. * Na 1.ª instância, a digna Magistrada do Ministério Público apresentou resposta à motivação de cada um dos recursos interpostos, pronunciando-se pelo total improvimento dos recursos dos recorrentes E…, V… e J.. e pelo parcial provimento dos recursos dos recorrentes J… e M... * Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que manifesta a sua concordância com a posição tomada pela Magistrada do Ministério Público na 1.ª instância, pugnando pela improcedência dos recursos. * Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir. * Como é sabido, o objecto do recurso é o definido pelas conclusões da motivação (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj). Mas também é consabido que a circunstância de, por regra, o âmbito do recurso ser delimitado pelas conclusões da respectiva motivação não obsta a que (antes impõe que) o tribunal aprecie outras questões que são de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insupríveis e dos vícios da sentença, estes previstos no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal. Conforme resulta das conclusões dos recursos que ficaram transcritas, os recorrentes não questionam o enquadramento jurídico-penal dos factos que o tribunal recorrido considerou provados nem as penas aplicadas. ………………… Podemos, então, identificar os seguintes temas e questões, que começaremos por abordar genericamente e depois, em relação a cada situação concreta, serão objecto de análise mais detalhada: A) Nulidades da decisão recorrida 1. Podia o tribunal valorar, como fez, as declarações para memória futura prestadas por J…, como prova dos factos imputados à arguida E… e, na negativa, a decisão está ferida de nulidade insanável, prevista no art.º 119.º, al. c), do Cód. Proc. Penal? ………………….. II – Fundamentação Podendo as nulidades invocadas ter como consequência a anulação, total ou parcial, do acórdão recorrido, impõe-se começar por conhecer dessas questões. Prestação de declarações para memória futura: pressupostos da realização do acto e valoração em julgamento do(s) depoimento(s) obtido(s). A primeira tem a ver com as declarações para memória futura prestadas pela testemunha J…. Apesar de reconhecer que para esse acto não tinha que ser notificada, nem a presença, nele, do seu defensor era obrigatória, pois foi praticado no decurso do inquérito, quando ainda não tinha o estatuto de arguida, a recorrente E… afirma que foi cometida a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, al. c), do Cód. Proc. Penal. Aquestão foi suscitada no decurso da audiência e o tribunal recorrido apreciou-a e decidiu-a no acórdão proferido, nos seguintes termos: «A questão da validade destas declarações e da sua admissibilidade em julgamento foi suscitada pela defesa da arguida I… por as mesmas haverem sido colhidas antes desta ter sido constituída arguida. Não tem qualquer razão a arguido e transcreveremos, com a devida vénia, o Ac. da Rel. do Porto de 13.07.2005 (acessível em www.dgsi.pt) o qual, com singela simplicidade trata a questão de forma inequívoca. Ali se fez constar: “ (…) vamos, por agora, apenas apreciar a validade ou invalidade dos depoimentos para memória futura. Se bem entendemos a argumentação do recorrente, ao afirmar que ficaram comprometidas as normas constitucionais plasmadas no ponto 5, do art. 32.º da CRP, invoca [pretende invocar] a violação do princípio do contraditório: uma inconstitucionalidade. Só que, como é suposto que o recorrente saiba, e o Tribunal Constitucional vem repetindo, sem uma única voz discrepante, as questões de constitucionalidade normativa só se podem considerar suscitadas de modo adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não é correcta a postura nem adequado modo de suscitar uma questão de constitucionalidade quando o recorrente se limita, como no caso, em abstracto, sem indicar a norma, a concluir pela inconstitucionalidade. Manda a honestidade que se diga que apesar da omissão do recorrente não é preciso ser adivinho para perceber o que pretende o recorrente. O que o recorrente questiona é a constitucionalidade do art.º 271º do Código Processo Penal, ao permitir, na interpretação que foi implicitamente acolhida no tribunal de Bragança, a inquirição, válida e relevante, mesmo no caso de o inquérito ainda não correr contra um arguido conhecido e constituído, que por isso não pode ser notificado nem obviamente estar presente na inquirição. Vejamos, em traços largos, como se estrutura o princípio do contraditório. O princípio do contraditório tem assento no art.º 32º n.º 5 da Constituição, constituindo, a par de outras disposições, aquilo que a doutrina expressivamente define como a constituição processual penal. Diz o art.º 32º n.º 5 da Constituição que o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório. A importância das normas constitucionais atinentes ao processo penal é de tal ordem que é corrente – e correcta – a afirmação de que o direito processual penal é direito constitucional aplicado, na medida em que é a Constituição que define, delimita e hierarquiza direitos, liberdades e garantias fundamentais da pessoa. A nível penal o princípio do contraditório traduz-se na estruturação da audiência de julgamento e dos actos instrutórios que a lei determinar em termos de um debate ou discussão entre a acusação e a defesa; acusação e defesa são chamados a deduzir as suas razões de facto e de direito, a oferecer provas, a controlar as provas contra si oferecidas e a discretear sobre o valor e resultado probatórios de umas e outras. O art.º 327º n.º 2 do Código Processo Penal é paradigmático: os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal. Daí resulta que, estando a audiência de julgamento subordinada ao princípio do contraditório, as provas hão-de ser produzidas ou discutidas em audiência, ficando excluída a possibilidade de condenação com base em elementos probatórios que não tenham sido discutidos em audiência, ainda que constantes dos autos [Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, pág. 360; F Dias, Direito Processual Penal, 1988-9, pág. 110 e Direito Processual Penal, 1974, pág. 149]. Expresso e terminante nesse sentido o art.º 355º do Código Processo Penal ao proibir a valoração de quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência [Outras manifestações do princípio do contraditório encontram-se nos artºs 321º n.º 3 e 360 n.ºs 1 e 2 do Código Processo Penal]. Com este pano de fundo e fazendo uma primeira aproximação ao caso dos autos entendemos que a ressalva legislativa a essa proibição, constante dos artºs 356º e 357º do Código Processo Penal ex vi art.º 355º n.º 2 do Código Processo Penal, não permite ou possibilita que esses meios de prova – no caso os depoimentos para memória futura – sejam subtraídos em audiência de julgamento ao contraditório, ao exame crítico dos sujeitos processuais. É para nós claro que esse contraditório tem que ser entendido e perspectivado tendo em conta que o depoente que fez o relato, não está presente, que apenas temos um depoimento escrito. Neste contexto o contraditório exerce-se e satisfaz-se com o «jogo de ataque e resposta» [Gil Moreira dos Santos, O Direito Processual Penal, 2002, pág. 58-9], possiblitando-se aos sujeitos processuais, à acusação e à defesa e também ao tribunal – ao abrigo do princípio da investigação judicial, art.º 341º do Código Processo Penal -, quer através de outros depoimentos, ou mesmo outros meios de prova, influir, pôr em causa, “contraditar”, infirmar, descredibilizar, reforçar, confirmar, etc. – conforme o interesse da acusação ou da defesa – os diversos depoimentos recolhidos em inquérito para memória futura. Se, em último caso, o princípio do contraditório pretende garantir a transparência e a igualdade de poderes de actuação processual entre acusação e defesa no julgamento, é esse princípio que dá respaldo à pretensão, normalmente do arguido, de pôr em causa, “contraditar”, infirmar, descrediblizar o depoimento que foi recolhido no inquérito para memória futura.”. Ora, da discussão da causa, o teor das declarações prestadas para memória futura não resultou infirmado, limitando-se a defesa da arguida Estrela a referir, no decurso da audiência e em alegações, que as declarações para memória futura não era admissíveis. Ora, não só as mesmas são admissíveis como tudo o que delas consta bate certo: as idas a Martingança pelos primos, o abrir de contas, o ser gerente de sociedade, o ser indigente e alcoólico… tudo. Assim, as declarações são admissíveis e servem para colocar a arguida como co-autora dos factos tidos como assentes». Concordando com as considerações transcritas, não podemos deixar de fazer notar que este não é um entendimento pacífico. Disso mesmo nos informa Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, 702) que se pronuncia no sentido de que as declarações para memória futura podem ser tomadas mesmo quando no processo não há, ainda, suspeitos constituídos arguidos, ou até quando não se conhece a identidade do(s) suspeito(s), e cita, em abono, o acórdão da Relação do Porto, de 18.04.2001 (CJ XXVI, T.II, 228) e uma decisão da Corte Costituzionale Italiana, mas refere doutrina e jurisprudência (acórdão da Relação de Évora de 29.03.2005, CJ XXX, T. II, 269) em sentido contrário[2]. Nos termos do art.º 119.º, al. c), do Cód. Proc. Penal, constitui nulidade insanável a ausência do arguido ou do seu defensor em qualquer acto em que a lei exigir a respectiva comparência, como é o caso da prestação de declarações para memória futura (n.º 3 do art.º 271.º do mesmo Código). Reconhecendo a recorrente que não tinha que ser convocada para estar presente no acto por não ser, ainda, arguida, é manifestamente contraditória a invocação daquela nulidade. A questão suscitada nada tem a ver com nulidades, mas sim com a valoração da prova antecipadamente produzida. A tese de que a possibilidade de prestação de declarações para memória futura pressupõe que haja já arguidos constituídos no processo desvaloriza completamente o argumento, óbvio, de que, a ser assim, ficaria, em muitos casos, definitivamente prejudicada a aquisição da prova que se encontra em perigo de ser perdida e que situações haveria em que ficaria na disponibilidade do próprio autor dos factos criminosos a possibilidade de se levar a cabo a diligência probatória ou de a inviabilizar, o que é inadmissível. Cabe aqui chamar a atenção para o facto de que, nos termos do art.º 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho (a chamada lei de protecção de testemunhas), os depoimentos das designadas testemunhas especialmente vulneráveis, durante o inquérito, deverão ter lugar “o mais brevemente possível após a ocorrência do crime” e deve ser evitada a repetição da audição dessas testemunhas. Por isso, pode dizer-se que, sendo a determinação legal cumprida, em regra, as declarações dessas pessoas (que poderão ser para memória futura) serão prestadas quando ainda não há arguido(s) constituído(s). Diremos, então, que, ao contrário da ideia que percorre o citado acórdão da Relação de Évora, do n.º 3 do art.º 271.º do Cód. Proc. Penal não decorre que a prestação de declarações para memória futura depende da existência de arguidos constituídos no processo para que possam estar presentes no acto e exercer, logo aí, o contraditório, mas sim que, havendo arguidos constituídos, os respectivos defensores (tal como o Ministério Público) têm de estar presentes no acto. Os depoimentos assim prestados podem ser tidos em consideração pelos juízes na formação da sua convicção quando se proceder ao julgamento, conforme, inequivocamente, resulta do disposto nos artigos 271.º, n.º 1 (trecho final), 355.º e 356.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Penal. Para tanto, terá que se proceder à sua leitura em audiência. A questão que, pertinentemente, se coloca é saber se, ao valorar esses depoimentos, também, em relação aos arguidos cujos defensores não estiveram presentes no acto em que foram prestados porque ainda não tinham essa qualidade, não se estará a violar o princípio do contraditório. Dito de outro modo, o que é legítimo questionar é se não teremos aqui uma proibição de valoração de prova (que, como se disse, é coisa diferente das nulidades tipificadas nos artigos 119.º e 120.º do Cód. Proc.Penal). Como já vimos, parte da doutrina e uma corrente jurisprudencial defendem que, nessa situação, tais declarações não podem ser tidas em consideração no julgamento. Não alinhamos nessa tese porque se nos afigura que ela resulta de uma visão distorcida, porque redutora e parcial, do processo penal. Sem dúvida que um Estado de Direito democrático tem de garantir aqueles princípios considerados estruturantes do processo penal, maxime o do contraditório. No entanto, não há direitos nem princípios absolutos, todos têm limites, nomeadamente os que decorrem da existência de outros princípios e interesses relevantes que com aqueles concorrem, como sejam o princípio da investigação e o interesse público na descoberta da verdade material e na punição dos agentes de crimes[3]. Na situação que se analisa, de prestação de declarações para memória futura sem a presença do defensor (ainda não constituído ou nomeado), é evidente que o contraditório sai diminuído[4], mas temos para nós que é, também, inegável que o núcleo essencial dos direitos e garantias de defesa não é afectado. Com efeito, exercer o contraditório em relação ao depoimento de uma testemunha não é só (nem principalmente) poder questioná-la, contra-interrogá-la. É também, diremos mesmo, sobretudo, poder o sujeito processual (geralmente o arguido, mas podendo ser o Ministério Público ou o assistente) contraditar o depoimento desfavorável, oferecendo outros meios de prova que o infirmem ou ponham em causa a sua valia probatória, nomeadamente pondo em crise a razão de ciência da testemunha ou a sua credibilidade. A arguida/recorrente teve oportunidade de, em audiência, fazer tudo isso em relação ao depoimento da testemunha J.... Se não o fez foi porque não quis, ou porque reconheceu a veracidade das suas declarações. Em suma, não é legítimo afirmar que, no caso, o princípio fundamental do contraditório foi intoleravelmente sacrificado, antes podendo falar-se em adequada composição e harmonização de interesses conflituantes, pelo que entendemos que o tribunal a quo não cometeu qualquer ilegalidade ao valorar o referido depoimento. * …………… III – Decisão Em face do exposto, acordam os juízes desta 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em, na procedência do recurso do arguido V…, anular o acórdão recorrido, devendo ser reaberta a audiência para que seja dado cumprimento ao disposto no nº3 do art.358, do C.P.P., após o que será elaborada nova sentença Sem tributação, Lisboa 22 de Março de 2011 Relator: Neto de Moura Adjunto: Alda Tomé Casimiro ---------------------------------------------------------------------------------------- [1] Foram, ainda, acusados e pronunciados S…, C…, M… e P… em relação aos quais foi ordenada a separação de processos. [2] Aliás, no citado acórdão da Relação do Porto, admite-se a prestação de declarações para memória futura mesmo antes que qualquer suspeito seja constituído arguido e depois, contraditoriamente, defende-se que, em relação a esses (suspeitos que só posteriormente seja constituídos arguidos) a prova antecipadamente produzida não pode ser valorada, como decorre do seguinte trecho: “… é que no tocante aos suspeitos em relação aos quais não pode ser efectivado o contraditório, a prova antecipadamente produzida é proibida e de nada vale (não é operante, não pode ser valorada), confinando-se a respectiva leitura em audiência ao apuramento da responsabilidade do arguido que foi oportunamente chamado a contraditá-la”. [3] Ninguém compreenderia que, por exemplo, não pudesse ser valorado em julgamento o depoimento daquele que, imediatamente após a agressão e estando em condições de o prestar, indica o autor da agressão de que resultaram lesões que acabaram por ser causa da sua morte. [4] Quiçá por isso é que a lei (n.º1 do art.º 271.º) estabelece que o depoimento pode ser tomado em consideração no julgamento, se necessário. Ou seja, ciente de que nesta situação há uma compressão do princípio do contraditório (compressão que já não ocorre estando o defensor presente na diligência, nela podendo intervir e exercer os direitos de defesa), o legislador preocupou-se em assegurar que a diminuição das garantias de defesa seja a menor possível, ao ponto de estabelecer que as declarações para memória futura só devam ser valoradas em julgamento se tal se mostrar necessário. Idêntica preocupação decorre, por exemplo, da norma do art.º 19.º, n.º 2, da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho. | ||
![]() | ![]() |
Decisão Texto Integral: |