Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
| ||
| Relator: | ANA RITA LOJA | ||
| Descritores: | INSTRUÇÃO ASSISTENTE | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 12/03/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | I-A instrução quando efetuada a requerimento do assistente, na sequência da abstenção do Ministério Público de acusar o arguido, tem por finalidade obter a submissão deste a julgamento pelos factos que, no entender do assistente, consubstanciam a prática de uma atividade criminosa e, assim, idónea à subsequente aplicação de uma pena ou medida de segurança. II-Por isso a exigência da sua estrutura semelhante a uma peça acusatória sendo imposto pelo artigo 287º nº2 do Código de Processo Penal que o requerimento de abertura de instrução deduzido pelo assistente contenha uma descrição clara, ordenada, à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública ou particular de todos os factos suscetíveis de responsabilizar criminalmente o arguido, ou seja, a factualidade atinente à ação ou omissão do arguido que preencha todos os requisitos objetivos e subjetivos do tipo legal denunciado. III-E tal requerimento, se elaborado nos termos sobreditos e legalmente exigidos, equivale a uma acusação, pois, tal como esta limita e condiciona o thema probandum da fase processual de instrução. IV- No seu requerimento de abertura de instrução a assistente aduziu argumentos que sustentam a sua opinião de manifesta insuficiência de inquérito e entende que deve a instrução colmatar tal insuficiência realizando diligências e respondendo às questões que descrimina, mas não há uma descrição cabal, escorreita, lógica e cronológica dos factos concretos objetivos e subjetivos subsumíveis a tipos criminais concretos nem uma clara imputação relativa aos seus autores e respetivos graus de participação. V- A pretensão da assistente não se coaduna com a fase de instrução como gizada pelo legislador porquanto a impugnação do despacho de arquivamento por se considerar a investigação insuficiente tem um meio processual, a tanto adequado, que é o da intervenção hierárquica nos termos do artigo 278º do Código de Processo Penal. VI- A instrução, nos termos em que a lei vigente a regula, tem natureza judicial e não investigatória, destinando-se à comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação (artigo 286º nº1 do Código de Processo Penal) e não a constituir um complemento ou substituição da investigação própria da fase de inquérito. VII- Em face da utilização de meio processual inadequado à sua pretensão e do incumprimento do ónus processual imposto à assistente pelos artigos 287º nº2 e 283º nº3 ambos do Código de Processo Penal impunha-se a rejeição do seu requerimento de abertura de instrução. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I-RELATÓRIO: Por despacho proferido, em 11 de abril de 2024, nos autos de instrução com o nº715/18.7T9STR que correm os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Instrução Criminal de Sintra, Juiz 2 decidiu-se rejeitar por inadmissibilidade legal o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente AA * Inconformada com tal despacho veio a referida assistente interpor o presente recurso extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem: A. Por despacho notificado à aqui Apelante, em 01/07/2024, a abertura de instrução requerida pela assistente, ora Apelante, foi rejeitada por "legalmente inadmissível”. B. No despacho a MMª Juíza menciona que a Requerente, ora Apelante, "requer um conjunto de diligências de prova, mas não identifica quem deve ser pronunciado e porque factos, quem praticou o que, como quem, em que circunstâncias e com que finalidade" e que: "o determinação dos agentes de um crime bem como a investigação da existência do mesmo opera-se através do inquérito não cabendo no âmbito e finalidades da instrução"; C.A Apelante não concorda com tal despacho, por não corresponder à realidade dos factos, razão pela qual interpõe o presente recurso; D. Em ... a Apelante apresentou queixa-crime contra: a. BB, NIF ..., residente ...; b. CC, NIF ..., residente na ...; c. DD, NIF ..., ...; d. EE, NIF ..., ...; e. FF, sociedade por quotas, NIPC ..., com sede no ..., com o capital social de € 5.000,00 (cinco mil euros) f. OO., sociedade anónima, NIPC ..., com sede em ... g. ..., sociedade por quotas, NIPC ..., com sede no ... E. A Apelante requereu a condenação dos denunciados pela prática dos crimes de Burla qualificada e Insolvência dolosa, previstos e punidos nos termos do artigo 218.º e 227.º do Código Penal, ambos de natureza pública; F. Além da prova documental junta com a queixa-crime a Apelante requereu também a audição de 4 testemunhas, nomeadamente: a. Dra. GG, casada, titular do cartão de cidadão n.º ... emitido pelos ... e válido até .../.../2022, NIF 218.260.580, com domicílio profissional na sede da Queixosa; b. Dr. HH, casado, NIF ..., portador do Cartão de Cidadão n.º ... emitido pelos ... válido até .../.../2020, com domicílio profissional na sede da Queixosa; c. Dr. II, com domicílio profissional na ..., apartado ... a notificar; d. Eng. JJ, com domicílio profissional na sede da Queixosa, titular do cartão de cidadão n.... emitido pelos ... e válido até .../.../2022, NIF ..., a apresentar; G. A Apelante foi notificada do despacho de arquivamento do processo 6 anos após a apresentação da queixa-crime, H. O despacho de arquivamento foi fundamentado por, alegadamente, existirem falta de indícios suficientes da verificação do crime de Insolvência dolosa (p.p. nos termos do artigo 227.º do CP, I. No despacho de arquivamento não foram analisados os pressupostos do crime de Burla qualificada, p.p. nos termos do artigo 218.º n.º 2 al. a); J. A Apelante requereu a abertura de instrução (RAI), conforme Doc. 1, por não se conformar com o despacho de arquivamento; K. No requerimento de abertura de instrução a Apelante inicia logo com o facto de que: “A denunciante apresentou queixa contra os denunciados pela prática dos crimes de Burla qualificada e de insolvência dolosa, previstos e punidos nos termos dos artigos 218º n.º 2 al. a) e 227º ambos do Código Penal." L. Ora, os denunciados, são os mencionados na queixa-crime apresentada pela Apelante, e também mencionados no ponto 4 do presente recurso, e identificados no RAI, com indicação das moradas correspondentes: a. BB, b. CC, c. DD, d. EE, e. FF, f.OO., g. ..., M. Os crimes pelo qual a Apelante entende que os mesmos devem ser condenados são os mencionados na sua queixa-crime, e também no RAI, crimes de Burla qualificada e de insolvência dolosa, previstos e punidos nos termos dos artigos 218º n.º 2 al. a) e 227.º ambos do Código Penal. N. No despacho de arquivamento proferido pelo MP são enunciadas as diligências probatórias realizadas, mas as mesmas não foram concretizadas da melhor forma, tal como explicado no RAI, O. Inclusivamente, no RAI, são indicados factos suscetíveis de demonstrar o engano aos credores, nomeadamente, a cessação do vínculo dos trabalhadores na sociedade KK e a sua nova admissão como trabalhadores na FF; P.É alegado e provado que a atividade da KK se manteve através de FF Q. A própria denunciante foi parte direta no negócio através da FF pois tanto foi fornecedora da KK, como passou a ser fornecedora da FF, e tal facto foi alegado no RAI, nos artigos 9 e 10; R. Bem como o facto de os denunciados alterarem o nome da sociedade KK para esconder qualquer ligação a essa sociedade, (Cfr. artigo 11 do RAI); S. Alegou, ainda, a Requerente, ora Apelante, o facto de ter existido uma transferência da atividade, com o objetivo de deixar "cair" a empresa originária - KK que é, assim, declarada insolvente (Cfr. artigo 13 do RAI); T. Foram também alegadas as movimentações da conta bancária da FF que só por si significa que a sociedade mantém a sua atividade (Cfr. artigo 24 do RAI), e essa atividade era anteriormente desenvolvida pela LL (KK) (Cfr. artigo 25.9 do RAI); U. Inclusivamente, provou a Apelante que a atividade era exercida, pois a própria apelante recebeu uma transferência da FF em .../.../2014 (Cfr. artigo 26 do RAI), V.A Apelante avocou todos os factos elencados na queixa-crime, mas também acrescentou novos factos, nomeadamente, o facto de a sociedade Denunciada FF não apresentar contas desde 2020, (Cfr. artigo 38 do RAI), indiciando que aquela sociedade está, novamente, a ir pelo caminho da primeira KK, que terminou como LL (NIP ...), nem os contactos telefónicos constantes do site estão em funcionamento; W.A Apelante juntou como Doc. 1 o relatório INFORMA, que aqui se reproduz sob Doc. 2, onde menciona que a denunciada FF LDA iá se encontra registada a lista pública de devedores desde ... de ... de 2023. X.É ainda alegado o facto de existirem diversas ações judiciais intentadas contra a denunciada FF e também contra a Denunciada OO, NIPC ... Y. Menciona o n.º2 do artigo 287.º do CPP que: "O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b)e d) do nº3 do artigo 283º não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas Z. Ficou demonstrado que a Apelante, no seu RAI, expressou as razões de facto e de direito de discordância relativamente ao arquivamento, inclusivamente, indicou atos de instrução para serem levados acabo, nomeadamente, a produção de determinados meios de prova que não foram considerados no inquérito; AA. No que concerne ao disposto na alínea b) e d) do n.9 3 do artigo 283.9 do CPP, menciona o artigo que: a."3 - A acusação contém, sob pena de nulidade: b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c.(...) d) A indicação das disposições legais aplicáveis;" BB. A Apelante, narrou de forma sintética os factos que, no seu entender, fundamentam a aplicação aos denunciados de uma pena, tendo inclusivamente trazidos novos factos ao processo, bem como, logo no seu artigo 1.» do RAI indica os crimes pelos quais deveriam os denunciados ser condenados; CC. No mencionado artigo é também estabelecido que "incluindo, se possível o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicável, mas somente se for possível. DD. Os crimes em questão e na situação de facto em análise, não é possível estabelecer o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, nem tão pouco o grau de participação que o agente neles teve, pois Para a verificação dessa situação é necessário que as diligências probatórias sejam realizadas, EE. Sem elas será impossível a condenação de qualquer um dos agentes, FF. Não pode a MMª juíza rejeitar o RAI com o fundamento de que não foi indicado quem praticou o crime, como, e em que circunstâncias, quando o próprio preceito legal não o exige, tendo na sua redação a expressão "se possível", GG. É claro no RAI da apelante que o seu objetivo é de levar os denunciados a julgamento por factos pelos quais o Ministério Público entendeu não deduzir acusação - nomeadamente, a prática dos crimes de burla qualificada e insolvência dolosa (Cfr. artigos 218.º nº 2 al. a) e 227.º ambos do Código Penal); HH. O RAI pode não se encontra devidamente elaborado, em termos semelhantes ao de uma acusação, mas a lei também, não o exige – art. 287º nº2 do CPP, II. Ao longo do RAI são identificados todos os denunciados e, após tecer algumas considerações quanto à discordância do despacho de arquivamento são descritos os factos suscetíveis de serem imputados a todos os denunciados, e apenas não são feitas alusão a data, local e demais circunstâncias das ocorrências porque não é possível sem recurso às diligências probatórias requeridas, JJ. A assistente verteu no RAI a narração dos factos, objetivos e subjetivos, que imputa à arguida, fundamentadores da aplicação de uma sanção penal, indicando as disposições legais aplicáveis (Cfr. Artigo 1ºdo RAI), pelo que o mesmo não pode ser considerado nulo, nos termos do art. 283º, n.º 3 do CP, inexistindo fundamento para a sua rejeição por inadmissibilidade legal da instrução, KK. Encontram-se preenchidos os pressupostos do RAI. Termina requerendo que despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que admita a instrução ou, caso assim não se entenda, pela revogação do despacho e a sua notificação para aperfeiçoar o RAI, uma vez que não está em causa a omissão de narração sintética dos factos. * Admitido o recurso no Tribunal a quo o Ministério Público respondeu ao mesmo extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem: O requerimento para a abertura da instrução apresentada pelo assistente, quando o Ministério Público arquiva o inquérito, fixa o objeto do processo, traçando os limites dentro dos quais se irá desenvolver a atividade investigatória do juiz de instrução. Por tal motivo, o assistente tem o ónus de narrar factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis (cfr. artigo 287.°, n.°2 do Código Processo Penal ao remeter para o artigo 283.°, n.°3 alíneas b) e c) do mesmo Código), onde se comina com nulidade a falta de cumprimento de qualquer destes ónus. Essa nulidade prevista no artigo 283.° n.°3 alínea b) com referência ao n.°2 do artigo 287.° é de conhecimento oficioso. In casu, não descrevendo a assistente os factos que pretende imputar a cada arguido, qualquer descrição, que se venha a fazer numa eventual pronúncia, redundaria necessariamente numa alteração substancial do requerimento, ferindo uma eventual pronúncia do vício de nulidade. Isso resulta claramente dos artigos 303.° n.°3 e 309.°, n.°1 do Código de Processo Penal, onde se proíbe a pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para abertura da instrução. Uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido, por ausência de factos, é uma instrução que a lei não pode admitir (legalmente inadmissível — artigo 287.°, n.°3 do Código Processo Penal), até porque seria inútil e não é lícito praticar no processo actos inúteis (artigos 130.° do Código Processo civil e 4.° do Código Processo Penal). Falecem, face ao exposto, os argumentos expendidos pela recorrente, pelo que deverá o recurso ser julgado improcedente. * Remetido o processo a este Tribunal da Relação, foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso em consonância com o Ministério Público do tribunal recorrido. * Tendo sido observado o disposto no artigo 417º nº2 do Código de Processo Penal nada foi deduzido. * Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência. * Cumpre, assim, apreciar e decidir. 2-FUNDAMENTAÇÃO: 2.1- DO OBJETO DO RECURSO: É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.1 Destarte e com a ressalva das de conhecimento oficioso são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar2. A este respeito e no mesmo sentido ensina Germano Marques da Silva3:«Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões». Esclarecem os artigos 368º e 369º do Código de Processo Penal aplicáveis por via do disposto do artigo 424º nº2 do mesmo diploma legal a prevalência processual das questões a conhecer iniciando-se a apreciação pelas obstativas do conhecimento do mérito e caso o conhecimento das demais não fique prejudicado de seguida as respeitantes à matéria de facto, mormente a impugnação alargada e os vícios do artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal e finalmente as questões relativas à matéria de direito. Assim, à luz do que a recorrente assistente invoca nas suas conclusões a questão a apreciar é se o requerimento de abertura de instrução devia ter sido admitido pelo tribunal recorrido por conter os requisitos necessários à sua admissibilidade. 2.2- DA APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO: Exara o despacho recorrido o que a seguir se transcreve: Os presentes autos de inquérito tiveram início em queixa de “AA” contra BB, CC, DD, EE, “FF”, “Goldenpremium SGPS. S.A” e “...” Os autos foram encerrados com despacho de arquivamento fundamentado na inexistência de indícios da prática de crime pelos denunciados: Pode ler-se no despacho final “(...) Não obstante as diligências encetadas não se logrou apurar condutas concretas das sociedades denunciadas que se traduzissem ou conduzissem à concreta, diminuição real ou fictícia do activo patrimonial da sociedade KK. Do cotejo das informações da Autoridade Tributaria, Segurança Social, informação bancária e informação contabilística fornecida pelo Administrador da Insolvência não resultou nenhum indício que indiciasse dissipação de património através da transferência de activos da sociedade declarada insolvente para as demais sociedades constituídas pelos denunciadas: dos extratos bancários não foram identificadas transações suspeitas, não houve transferência de trabalhadores entre as sociedades, as sociedades não têm registados bens moveis ou imoveis, pelo que não houve concreta transferência de activos móveis ou imóveis. Acresce que o relatório apresentado pelo A.I. no âmbito do processo de insolvência concluiu pela inexistência de elementos para considerar a insolvência dolosa, tendo a mesma sido declarada fortuita. Por fim, consideramos inexistirem outras diligências com utilidade a desenvolver. Assim, face ao exposto determino o arquivamento dos autos por falta de indícios suficientes da verificação de crime, nos termos do art. ° 277. °, n. °2, do Código de Processo Penal. Inconformada com o arquivamento dos autos veio a Assistente requerer a abertura da fase de instrução com o objetivo de: “(...) declarada a abertura de instrução e, consequentemente, produzida a prova indicada, devendo, a final, ser proferido despacho de pronuncia. Diligências Probatórias Requer como diligências instrutórias: - Que seja oficiada a Segurança Social para esclarecer se no período entre ... de 2012 e ... de 2017 foram cessados vínculos laborais na sociedade KK que passou a LL (NIP ...), e se sim, quais os vínculos? - Que seja oficiada a Segurança Social para esclarecer se no período entre ... 2012 e ... de 2017 foram comunicados vínculos laborais na sociedade FF - Que seja oficiada a Autoridade Tributária para esclarecer se no período entre janeiro de 2012 e ... de 2017 as sociedades abaixo indicadas detiveram bens móveis ou imóveis e em caso afirmativo identificar os respetivos bens: - KK que passou a LL (NIP ...); - FF (NIPC...) - GOLDENPREMIUN SGPS, S.A., NIPC ..., - ..., NIPC... Que seja oficiado o Banco de Portugal para indicar qual o endividamento dos denunciados e desde quando; Que sejam ouvidos os denunciados: BB, ...; CC, ...; DD, ... g 4, 3 E, Venda do Pinheiro; EE, .... Requer ainda que sejam ouvidas as seguintes testemunhas melhor identificadas também na queixa apresentada pelo assistente, uma vez que não foram ouvidas em sede de inquérito, pretendendo a assistente com tal diligência demonstrar os factos relatados na queixa: HH, NIF ..., com domicílio profissional na sede da Denunciante; Dr. II, com domicílio profissional na ..., ...— Administrador de insolvência da Denunciada LL JJ, NIF ..., residente na ... Prova documental: Requer-se ainda a admissão do documento 1 mencionado no requerimento referente ao relatório INFORMA da denunciada FF.” * Cumpre neste momento apreciar da verificação dos pressupostos de admissibilidade da fase de instrução. A fase de instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento artigo 286.° do CPP. No caso, a abertura da fase de instrução é o meio processual concedido ao assistente para reagir contra a decisão de arquivamento do inquérito quando estão em causa crimes de natureza pública ou semipública (artigo 287° n.°1 al b) do CPP). De acordo com o n° 2 do artigo 287.° o requerimento não está sujeito a formalidades devendo conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação bem como, sendo caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretenda que o Juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito, e dos factos que através de uns e outros se espera provar. Sendo da iniciativa do assistente o requerimento deve, ainda, obedecer ao disposto nos art. 283.° n.°3 b) e c) do CPP, i.e. para além das razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação e a indicação dos atos de instrução que o requerente pretenda que o Juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito, e dos factos que através de uns e outros se espera provar o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deve conter, ainda: “b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”; c) A indicação das disposições legais aplicáveis". A inobservância destas formalidades determina, como resulta do referido preceito legal, a nulidade da acusação, neste caso, do requerimento de abertura de instrução (RAI). O requerimento de abertura da fase de instrução a requerimento do assistente é, substancialmente, uma acusação e deve, sob pena de nulidade obedecer aos referidos requisitos legais. No caso pretende a assistente que o Juiz de Instrução Criminal leve a cabo um conjunto de diligências de prova com o objetivo de a final, proferir um despacho de pronúncia não identificando sequer quem deve ser pronunciado e porque factos; Quem praticou o quê, como, com quem, em que circunstâncias e com que finalidade. A fase de instrução não tem por finalidade a fiscalização ou o complemento da atividade de investigação realizada na fase de inquérito (Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal, tomo III, Ed Verbo, 1994) p 140), nem se destina «a suprir a falta de inquérito, que nunca poderia suprir (...), pois à instrução apenas compete controlar a existência de indícios do crime denunciado em ordem à pronuncia (havendo indícios de que uma certa pessoa praticou factos considerados crime) ou não pronuncia (não havendo indícios), e não investigar se foi ou não praticado, por certa pessoa ou não, um dado facto que é crime ou não».- Figueiredo. Dias ("Jornadas de Processo Penal", ed. do CEJ, pg. 32 e segs). A determinação dos agentes de um crime bem como a investigação da existência do mesmo opera-se através do inquérito não cabendo no âmbito e finalidades da instrução Assim sendo, pelas razões enunciadas, ao abrigo do disposto no art. 287.° nº 3 do Código do Processo Penal, rejeita-se por legalmente inadmissível o requerimento de abertura de instrução. Notifique-se. O despacho recorrido incide sobre o requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos pela assistente, ora recorrente e que a seguir e na parte relevante para este recurso se transcreve: AA, Denunciante e assistente (…) vem, nos termos e para os efeitos do artigo 287.º e seguintes do Código de Processo Penal (doravante, CPP), apresentar REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO O que faz, nos termos e com os fundamentos seguintes: 1. A denunciante apresentou queixa contra os denunciados pela prática dos crimes de Burla qualificada e de insolvência dolosa, previstos e punidos nos termos dos artigos 218.º n.º2 al. a) e 227.º ambos do Código Penal. 2. Entendeu o Ministério Público, de ora em diante somente designador por MP, arquivar os autos por "falta de indícios suficientes da verificação de crime" 3. Não pode a denunciante aceitar tal decisão, muito menos com os fundamentos invocados, Senão vejamos, 4. Afirma o MP que, oficiada a Segurança Social, "extrai transferência de trabalhadores" 5. Ora, a questão que se coloca, é, como é que foi realizado o ofício? Foi simplesmente colocada a questão se existiu a transferência de trabalhadores? 6. A verdade é que tendo os denunciados o objetivo de enganar os credores, não iriam realizar qualquer transferência de trabalhadores, 7. O mais certo é terem cessado o vínculo dos trabalhadores na sociedade KK e voltarem a admitir esses mesmos trabalhadores na FF 8. E tal investigação deve ser feita para os períodos entre 2012 e ... de 2017, 9. Pois provado está que a atividade da KK se manteve através de FF 10. Inclusive, a própria denunciante foi parte direta nessa situação, pois tanto foi fornecedora da KK, como passou a ser fornecedora da FF, 11. Os denunciados até o nome da GLOBOPEIXE alteraram para tentarem esconder qualquer ligação, 12. Ora, se a atividade não fosse para manter, qual a razão de mudar o nome da GLOBOPEIXE que ficou insolvente? 13. É claro que existiu uma transferência da atividade, com o objetivo de deixar "cair" a empresa originária - KK que é, assim, declarada insolvente, 14. E assim desaparece uma empresa, desviando-se os seus ativos, utilizando-se, para o efeito, o "escudo" de novas personalidades jurídicas de outras sociedades. 15. Afirma, também, o MP que as sociedades denunciadas não possuem bens móveis ou imóveis registados em seu nome, 16. Mais uma vez não cumpre saber se têm ou não bens móveis ou imóveis registados em seu nome, mas sim, se no período em que foram constituídas as novas sociedades e até a KK ficar insolvente se houve transação de ativos móveis ou imóveis, 17. Se foram, em algum momento, detentoras de bens móveis ou imóveis, 18. Pelo que, é essencial que a AT se pronuncie sobre todos os bens móveis ou imóveis no período entre... de 2012 e ... de 2017 19. Quanto ao ofício realizado ao Banco de Portugal, é também importante e relevante saber qual o endividamento dos denunciantes. 20. Relativamente ao Administrador de Insolvência, não é só relevante a junção da documentação, mas também a sua inquirição, conforme foi requerido pela Denunciante, 21. Pois há diversas questões por responde referentes ao processo de insolvência da LL (anterior KK), nomeadamente: • Existia ativo aquando da insolvência? • Se existia ativo qual foi o destino do mesmo? • Quando a sociedade deixou de ter ativo? • Quando a sociedade deixou de ter atividade? • Quantos trabalhadores tinha a sociedade à data da insolvência? • Quando a sociedade deixou de ter trabalhadores? 22. Diz o MP que "foi junto o extrato da conta bancária titulada pela FF reportado ao período de ...-...-2013 e ...-...-2015", mas não teceu quaisquer considerações, e porquê? 23. A mesma situação para a conta bancária na ... 24. 24. É evidente que tais extratos evidenciam movimentação nessas contas bancárias o que, só por si, significa que esta mantém uma atividade, 25. Atividade essa que anteriormente era desenvolvida pela LL (KK), 26. E não haja dúvidas que essa atividade era exercida, pois a própria denunciante recebeu uma transferência da FF em .../.../2014, 27. Não se percebe a razão do MP ter desistido da investigação, quando indícios não lhe faltavam, 28. É determinante para o desfecho do presente processo a audição dos denunciados: BB; CC; DD; EE; 29. Pelo que, não se percebe como é que o MP se conformou com " o desconhecimento do paradeiro” 30. Pois, se uma ação cível foi intentada contra a denunciante (Processo n.º 661/17.1T8MFR - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Central Cível de Sintra - Juiz 2), certamente que o mandatário não agiu por vontade própria, teve de ser mandato, pelo menos, por algum dos denunciados, 31. Da breve pesquisa realizada através da autoridade tributária verifica-se que os denunciantes têm como residência fiscal à data de hoje (.../.../2024): BB, ...; CC, ... 32. As autoridades têm ao seu dispor ainda mais mecanismos para encontrar os denunciados, pelo que a Denunciante não se pode conformar com a afirmação de que "as diligências frustraram-se sendo desconhecido o seu paradeiro" 33. Acrescente que no despacho nada é dito quanto às denunciadas MM e NN, 34. E é essencial, para a descoberta da verdade que as mesmas sejam ouvidas, • DD, ...; • EE, ... 35. A estes factos acresce que não foram ouvidos os administradores da Denunciante, nem tão pouco a testemunha indicada Eng. JJ, 36. Como pode o MP concluir pelo arquivamento dos autos se não foram esgotadas todas as diligências probatórias, nem ouvidas testemunhas? 37. A verdade é que estamos muito longe da descoberta da verdade, pelo que, os autos devem prosseguir com os respetivos com a produção de prova indicada, 38. A todos os factos elencados na queixa da denunciante acrescem novos factos, nomeadamente o facto de a sociedade Denunciada FF (NIPC ...) não apresentar contas desde 2020. 39. Parece que aquela sociedade está, novamente, a ir pelo caminho da primeira KK, que terminou como LL (NIP ...), nem os contactos telefónicos constantes do site estão em funcionamento, 40. Não podem os Denunciados ficar impunes e continuar a burlar os seus fornecedores, e o Estado, conforme se prova por relatório INFORMA que se junta como Doc. 1, onde menciona que a denunciada FF já se encontra registada a lista pública de devedores desde ... de ... de 2023. 41. No mencionado relatório é ainda possível verificar que inúmeras ações foram intentadas contra a denunciada FF 42. E o mesmo se passa com a Denunciada OO, NIPC ..., 43. E, pelo mesmo caminho, está a ir a Denunciada ..., NIPC ..., que apresentou as últimas contas em .... Nestes termos e nos demais de Direito, requer a V.º Exª que seja declarada a abertura de instrução e, consequentemente, produzida a prova indicada, devendo, a final, ser proferido despacho de pronuncia. Diligências Probatórias Requer como diligências instrutórias: A. Que seja oficiada a Segurança Social para esclarecer se no período entre ... de 2012 e ... de 2017 foram cessados vínculos laborais na sociedade KK que passou a LL (NIP ...), e se sim, quais os vínculos? B. Que seja oficiada a Segurança Social para esclarecer se no período entre ... 2012 e ... de 2017 foram comunicados vínculos laborais na sociedade FF, e se sim, quais os vínculos? C. Que seja oficiada a Autoridade Tributária para esclarecer se no período entre ... de 2012 e ... de 2017 as sociedades abaixo indicadas detiveram bens móveis ou imóveis e em caso afirmativo identificar os respetivos bens: •KK que passou a LL (NIP ...); • FF • OO., NIPC ..., • ..., NIPC 510 323 898 D. Que seja oficiado o Banco de Portugal para indicar qual o endividamento dos denunciados e desde quando; E. Que sejam ouvidos os denunciados: • BB, ...; • CC, ...; DD, ...; • EE, .... Requer ainda que sejam ouvidas as seguintes testemunhas melhor identificadas também na queixa apresentada pelo assistente, uma vez que não foram ouvidas em sede de inquérito, pretendendo a assistente com tal diligência demonstrar os factos relatados na queixa: A. HH, NIF ..., com domicílio profissional na sede da Denunciante; B. Dr. II, com domicílio profissional na ...- Administrador de insolvência da Denunciada LL C. JJ, NIF ..., residente na ... Prova documental: Requer-se ainda a admissão do documento 1 mencionado no requerimento referente ao relatório INFORMA da denunciada FF. Esclarecido o teor do despacho recorrido bem como do requerimento de abertura de instrução que lhe subjaz impõe-se proceder à apreciação da questão suscitada pela recorrente assistente e que se traduz em aferir se o requerimento de abertura de instrução devia ter sido admitido pelo tribunal recorrido por conter os requisitos necessários à sua admissibilidade. Insurge-se a recorrente relativamente à rejeição do seu requerimento de abertura de instrução por considerar, em suma, que o mesmo cumpre os requisitos legais. Vejamos, pois, se lhe assiste razão: Decorre do estatuído no nº1 al. b) do artigo 287º do Código de Processo Penal que a instrução só pode ser requerida pelo assistente se o procedimento não depender de acusação particular e relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação. Pese embora, o nº2 do citado preceito indique no seu início que o requerimento de abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, tal não significa que tal requerimento seja isento de requisitos, pois, que também se estipula que aquele deve conter em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar e, ainda, se impõe a aplicação a tal requerimento do disposto nas alíneas b) e d) do nº3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Mercê de tal imposição, não tendo sido proferido despacho de acusação pelo Ministério Público, o requerimento de instrução está sujeito ao formalismo da acusação, designadamente, além do mais, terá do mesmo constar a identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o tempo, o lugar, a motivação da prática e grau de participação e a indicação das disposições legais aplicáveis. Esta exigência encontra fundamento na estrutura acusatória do processo penal, devido à qual a atividade do tribunal se encontra delimitada pelo objeto fixado na acusação, em consonância com as garantias de defesa do arguido (art. 32º nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa), que, deste modo, fica salvaguardado contra qualquer arbitrário alargamento do objeto do processo e tem a possibilidade de exercer relativamente a tal objeto o contraditório, ou seja, a sua defesa. Com efeito, «(…) Integrando o requerimento de instrução razões de perseguibilidade penal, aquele requerimento contém um a verdadeira acusação; não há lugar a uma nova acusação; o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, «formal e materialmente a acusatoriedade do processo», delimitando e condicionado a atividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia. (…)» 4. Por outro lado, a jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de o objeto da instrução ser rigorosamente fixado pelo requerimento de abertura de instrução, não podendo ser considerados quaisquer outros factos para efeitos de juízo de indiciação: «I – O requerimento para abertura da instrução equivalerá em tudo a uma acusação, condicionando e limitando, nos mesmos termos que a acusação formal, seja pública, seja particular, a atividade de investigação do juiz e a própria decisão final, instrutória. É que, tal como acontece na acusação, também, no caso, o requerimento de abertura de instrução tem em vista delimitar o thema probandum da atividade desta fase processual. (…) II – O objeto da instrução tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, dito de uma forma simplista, os factos narrados como integrantes da conduta ilícita do agente têm de “caber” nos elementos objetivos e nos elementos subjetivos do tipo legal em causa (do respetivo preceito)» 5. Também o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido de «A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objeto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.»6 Ademais e como se exara no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-05-20187 «tem sido entendimento pacífico que o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação, devendo, como tal, conter todos os elementos da mesma, ou seja, a matéria de facto que consubstancie o ilícito que se pretende imputar ao arguido, bem como a indicação desse mesmo ilícito e da pessoa contra quem a instrução é dirigida. O princípio do acusatório, mas também o contraditório, impõem a necessidade de tal especificação.» A instrução quando efetuada a requerimento do assistente, na sequência da abstenção do Ministério Público de acusar o arguido, tem por finalidade obter a submissão deste a julgamento pelos factos que no entender do assistente consubstanciam a prática de uma atividade criminosa e, assim, idónea à subsequente aplicação de uma pena ou medida de segurança. Por isso a exigência da sua estrutura semelhante a uma peça acusatória sendo essencial e, além do mais, imposto pelo já citado artigo 287º nº2 do Código de Processo Penal que o requerimento de abertura de instrução deduzido pelo assistente contenha uma descrição clara, ordenada, à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública ou particular de todos os factos suscetíveis de responsabilizar criminalmente o arguido, ou seja, a factualidade atinente à ação ou omissão do arguido que preencha todos os requisitos objetivos e subjetivos do tipo legal denunciado. E tal requerimento, se elaborado nos termos sobreditos e legalmente exigidos, equivale a uma acusação, pois, tal como esta limita e condiciona o thema probandum da fase processual de instrução. Como se exara no já citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-05-2018 «os «factos» que constituem o «objeto do processo» têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea8. Acresce que a estrutura acusatória do processo exige que a intervenção do juiz não seja oficiosa e, além disso, que tenha de ser delimitada pelos termos da comprovação que se lhe requer sobre a decisão de acusar ou, se não tiver sido deduzida acusação, sobre a justificação e a justeza da decisão de arquivamento. Nesse conspecto, compreende-se por que motivo a narração dos factos no requerimento para abertura da instrução assume particular relevo, estabelecendo-se no art. 309°, n° 1, do CPP que «a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução», prevendo o art. 303° do mesmo diploma as consequências da alteração não substancial e substancial dos factos descritos em tal requerimento e constatadas em sede de instrução.» Importa referir, porque relevante para apreciação deste recurso, que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-05-20059, fixou jurisprudência no sentido de que «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.°, nº2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.», aí se reiterando o ensinamento supra citado de Germano Marques da Silva e se exarando também que «a falta de narração de factos na acusação conduzem à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.°, nº3, alínea b), e 311.°, nº2, alínea a), e 3 alínea b), do CPP. A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a perentoriedade da consequência legal desencadeada: o ser manifestamente infundada igual proibição de convite à correção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.» Revertendo ao caso concreto, importa salientar que a mera leitura do requerimento de abertura de instrução apresentado pela ora recorrente permite concluir pelo acerto da decisão recorrida. Com efeito, a recorrente omite no seu requerimento de abertura de instrução a narração factual necessária à eventual prolação de um despacho de pronúncia incumprindo o ónus processual que sobre si processualmente impende. É certo que se exige uma «narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível o lugar o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer indicações relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada» mas o que decorre do requerimento de abertura de instrução não é uma narração dos factos integradores dos crimes de Burla qualificada e de insolvência dolosa, previstos e punidos nos termos dos artigos 218.º n.º2 al. a) e 227.º ambos do Código Penal cuja prática se pretende imputar nem uma imputação individualizada aos alegados agentes dos mesmos. Conforme resulta do artigo 283º n° 3 al. b) do Código de Processo Penal na formulação da acusação não há lugar à existência de factos implícitos, mas apenas à "narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena...". Ora, tudo o que foi detetado pelo tribunal a quo na decisão é, também, detetado por este Tribunal da Relação, ou seja, a omissão de narração fática idónea a permitir a realização da fase de instrução e a propiciar uma decisão. Com efeito, no seu requerimento de abertura de instrução a assistente aduziu argumentos que sustentam a sua opinião de manifesta insuficiência de inquérito e entende que deve a instrução colmatar tal insuficiência realizando diligências e respondendo às questões que descrimina no seu requerimento de abertura de instrução, mas não há uma descrição cabal, escorreita, lógica e cronológica dos factos concretos objetivos e subjetivos subsumíveis a tipos criminais concretos nem uma clara imputação relativa aos seus autores e respetivos graus de participação. O requerimento de abertura formulado pela assistente consubstancia apenas uma impugnação do arquivamento e um requerimento de produção de prova para suprir as alegadas insuficiências de inquérito. E, em face do teor do mesmo, afigura-se-nos que a assistente perfilha o entendimento que a fase de instrução visa colmatar insuficiências de investigação, pois o que no mesmo faz é questionar a investigação levada a cabo pelo Ministério Público e requerer que sejam efetuadas diligências que no seu entendimento foram omitidas. Aliás, a assistente inclusivamente afirma que não é possível estabelecer o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, nem tão pouco o grau de participação que o agente neles teve, pois para a verificação dessa situação é necessário que as diligências probatórias sejam realizadas e sem elas será impossível a condenação de qualquer um dos agentes, afirmação que revela a sua pretensão de através da fase de instrução empreender o que é próprio da fase de inquérito. Porém, a pretensão da assistente não se coaduna com a fase de instrução como gizada pelo legislador porquanto a impugnação do despacho de arquivamento por se considerar a investigação insuficiente tem um meio processual, a tanto adequado, que é o da intervenção hierárquica nos termos do artigo 278º do Código de Processo Penal. Com efeito, a instrução, nos termos em que a lei vigente a regula, tem natureza judicial e não investigatória, destinando-se à comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação (artigo 286º nº1 do Código de Processo Penal) e não a constituir um complemento ou substituição da investigação própria da fase de inquérito. Aliás, a estrita vinculação temática do tribunal aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução enquanto limitação da atividade instrutória relaciona-se com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no artigo 32º nº5 da Constituição da República Portuguesa. Não pode, portanto, pretender-se, através da instrução, alcançar os objetivos próprios do inquérito quer porque existem outros meios processuais adequados a esse efeito (basta perscrutar os artigos 278º e 279º ambos do Código de Processo Penal) quer porque a admitir-se entendimento diverso estar-se-ia a transferir para o juiz de instrução o exercício da ação penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transmutar a natureza desta fase processual que passaria de contraditória a inquisitória. No sistema processual penal vigente e nos crimes de pendor público ou semipúblico se o Ministério Público não tiver deduzido acusação e o assistente não concordar com tal decisão e caso considere que os indícios existentes no inquérito não permitem por omissão ou insuficiência de investigação sustentar o arquivamento deve suscitar a intervenção hierárquica. No caso vertente a ora recorrente não reclamou hierarquicamente e apresentou requerimento para abertura de instrução sendo que o conteúdo do mesmo não tem qualquer verosimilhança com aquilo que a lei determina nos artigos 287º nº1 al. b) e nº2 e 283º nº2 al. b) ambos do Código de Processo Penal como já supra esclarecido. Ademais é vedado ao juiz de instrução criminal aditar os factos com a virtualidade de compor a ausência de exposição da factualidade que deve constar, de harmonia e em obediência ao n.º2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal. No caso em apreço é claro que a assistente utilizou o meio processual inadequado e é, também, claro o incumprimento do ónus processual legalmente imposto nos citados artigos sendo vasta a jurisprudência sobre as consequências da omissão do ónus imposto ao assistente pelos preceitos em questão. De facto, não contendo o requerimento de abertura da instrução deduzido pelo assistente o indispensável conteúdo fáctico e não respeitando o constante da citada alínea do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, «não só se torna inexequível a instrução, ficando o juiz sem saber quais os factos que o assistente gostaria de ver julgados indiciados – e também o arguido, ficando inviabilizada a sua defesa -, como também, caso mesmo assim se prosseguisse a instrução, qualquer despacho de pronúncia que se proferisse na sua sequência sempre seria nulo nos termos do art. 309.º do CPP”, e, por isso, “inútil e proibido, tal como os actos eventualmente subsequentes»10. E a inobservância de tal imposição legal é cominada com nulidade nos termos previstos no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal ex vi do art. 287º, n.º 2, parte final, do mesmo diploma a qual é de conhecimento oficioso11 e tem como consequência a não admissão do requerimento de abertura de instrução, pois, que a instrução não é exequível por falta ou insuficiência de objeto o que configura uma situação de inadmissibilidade legal nos termos do artigo 287º nº3 in fine do Código de Processo Penal12 . Ademais, é unânime o entendimento por parte dos tribunais superiores de que não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento apresentado pelo assistente13, pois que, a existir, este convite colocaria em causa o carácter perentório do prazo referido no art.º 287, n.º1 do Código de Processo Penal e a apresentação de novo requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, para além daquele prazo, violaria as garantias de defesa dos arguidos14. Destarte a decisão recorrida procedeu a uma correta análise do requerimento de abertura de instrução da assistente tendo-se limitado a aplicar as regras processuais penais e a jurisprudência pacífica, unânime e uniformizada sobre a matéria não merecendo a rejeição por inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução qualquer censura. Assim, naturalmente, improcede o recurso da assistente. 3- DECISÓRIO: Nestes termos e, em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em não conceder provimento ao recurso interposto pela assistente AA e, em consequência, confirmar na íntegra o despacho recorrido. Custas a cargo do assistente fixando-se a taxa de justiça em 4 UC nos termos do artigo 515º nº1 al. b) do Código de Processo Penal. * Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificadas supra. * Tribunal da Relação de Lisboa, 3 de dezembro de 2025 Ana Rita Loja Joaquim Jorge da Cruz Sofia Rodrigues _______________________________________________________ 1. vide Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995. 2. Artigos 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 proferido no processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30/06/2016 proferido no processo 370/13.0PEVFX.L1. S1. 3. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335 4. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol III, p. 125, apud Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, publicado na 1.ª Série do D.R. n.º 212 de 4 de novembro de 2005. 5. Acórdão da Relação de Lisboa de 27 de maio de 2010 proferido no processo n.º 1948/07.7PBAMD- A. L1-9. 6. Acórdão do TC n.º 358/2004, de 19 de maio, publicado na 2.ª série do D.R. n.º 150, de 28 de junho de 2004. 7. No processo n° 1553/16.7T9BRG.G1 relatado por Ausenda Gonçalves, igualmente em www.dgsi.pt. 8. Vide Ac. STJ no Ac. de 17-06-2004 (04P908 - Santos Carvalho): «Não são factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado ('procediam à venda de produtos estupefacientes", ‘‘essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos”, “a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína", utilizavam também "correios”, “utilizavam também crianças", etc.). As afirmações genéricas, contidas no elenco desses factos "provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efetivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como factos” inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32° da Constituição.». E Ac. do STJ de 2-07-2008 (07P3861 - Raul Borges): «Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insuscetível de sustentar uma condenação penal — f. Acs. de 06-05-2004, Proc. n. ° 908/04 - 5.“, de 04-05-2005, Proc. n.° 889/05, de 07-12-2005, Proc. n.°2945/05, de 06-07-2006, Proc. n.° 1924/06 - 5.“, de 14-09-2006, Proc. n.°2421/06 - 5.°, de 24-01-2007, Proc. n.°3647/06 - 3.‘, de 21-02-2007, Procs. n.°s 4341/06 - 3.“ e 3932/06 - 3.‘, de 16-05-2007, Proc. n.° 1239/07 - 3.‘, de 15-11-2007Proc. n.°3236/07 - 5.°, e de 02-04-2008, Proc. n.°4197/07 - 3‘.». 9. Publicado no Diário da República de 04.11.2005, série I-A, de que foi relator o Conselheiro Armindo Monteiro. 10. cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de outubro de 2001, in CJ, XXVI, 4. º, pág. 141. 11. Acs. do TRP, datado de 06/07/2011, no Proc. N.º 6790/09.8TDPRT.P1, de 15/09/2010, no Proc. N.º 167/08.0TAETR-C1. P1, e Ac. TRC, datado de 07/01/2009, Proc. N.º 6210/08. 12. vide, neste sentido e entre outros Ac. da Relação de Lisboa de 7/5/2015 proferido no processo nº315/13.8PELSB.L1-9 e Ac. da Relação de Lisboa de 13/2/2019 proferido no processo nº25/17.7SRLSB.L1-3. 13. Já citado AUJ n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005 D.R. I Série A, de 4/11/05 14. Ac. do TC n.º 27/2001 de 31/01/01 DR 2ª série de 23/03/01 e Ac. n.º 358/04, de 19/05, DR 2ª série de 28/06/04. |