Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1557/13.1TVLSB.L1-7
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
DANOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (Sumário do Relator)O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre os danos sofridos pelo condutor do veículo, nos casos em que a produção do acidente seja devida ao próprio condutor, ainda que não haja culpa dele.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

1. T instaurou ação declarativa de condenação contra “Companhia de Seguros, S.A.” e Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação destes a pagar-lhe EUR 611.042,38, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que, na sequência do  rebentamento inesperado de um pneu, o veículo por si conduzido, derrapou, a cabine desintegrou-se e, depois de rolar no solo, foi embatida por outro veículo que circulava no mesmo sentido de marcha, em consequência do que o autor sofreu diversos danos, que descrimina.

Alegou, ainda, que a responsabilidade civil por danos causados pelo veículo estava transferida para a ré seguradora, através de contrato de seguro, titulado pela apólice 752314676.

Caso se entenda não ser, a ré, responsável pela reparação dos danos sofridos pelo autor, deverá, então, ser o FGA condenado a suportar a indemnização peticionada.

2. O “Centro Hospitalar do Alto Ave, EPE” veio deduzir incidente de intervenção espontânea, pedindo o pagamento da quantia de EUR 15.024,84, montante em que computa os encargos com a assistência prestada ao autor.

3. Foi admitido liminarmente o incidente.

4. A ação foi contestada.

4.1. A ré seguradora alegou, em síntese, que o contrato de seguro não cobre os danos próprios sofridos pelo condutor do veículo sinistrado, pelo que, por essa razão, deve ser absolvida do pedido. Em todo o caso, impugna a versão do acidente veiculada pelo autor.

4.2. O Fundo de Garantia Automóvel excecionou a sua ilegitimidade, alegando, em síntese, que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre os danos próprios sofridos pelo condutor do veículo sinistrado. Por conseguinte, estando a intervenção do FGA condicionada pelo âmbito daquele seguro, nenhuma responsabilidade poderia ser assacada ao FGA.

Por outro lado, tendo o acidente ocorreu em França, nunca poderia, o FGA, ser chamado a indemnizar o autor pelos danos sofridos, dado que o FGA apenas responde pelos acidentes ocorridos em Portugal.

A não ser assim entendido, impugna a versão do acidente veiculada pelo autor.

5. Foi proferido despacho que julgou o FGA parte ilegítima e o absolveu da instância.

6. Seguidamente, foi proferido saneador/sentença que, julgando a ação improcedente, absolveu a ré seguradora do pedido.

7. Inconformados com o saneador/sentença, apelam o autor e o interveniente.

Nas suas alegações, em conclusão, dizem os apelantes:


O Fundo de Garantia Automóvel responde nos termos das disposições combinadas dos arts. 69º e 65º do D.L. 291/2007, nos termos dos quais o Fundo de Garantia Automóvel garante indemnização dos lesados residentes em Portugal com direito a indemnização por danos sofridos em resultado de acidente causado pela circulação de veículo terrestre a motor e ocorrido no estrangeiro, como é o caso dos autos;

O Autor tem direito a ser indemnizado, nos termos combinados dos arts. 503º e 504º do C.C., pois conduzia o veículo acidentado por contra de outrem, tendo o acidente ocorrido sem culpa sua, pois o mesmo resultou do inesperado rebentamento do pneu do lado direito;

Os danos corporais e materiais sofridos pelo condutor do veículo seguro, ora recorrente, em consequência do acidente dos autos, não estão excluídos da garantia do seguro obrigatório, nos termos do artº. 14º, nºs. 1 e 2, do D.L. nº 291/2007, não estando fora do âmbito da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel;

Assim, o FGA é parte legítima, por ter interesse em contradizer, na posição de subsidiariedade em que foi acionado, ou seja para a eventualidade de ser responsabilizado se o Autor-Recorrente não for ressarcido pela 2ª Ré Companhia de Seguros F;

Acresce que os danos corporais e materiais sofridos pelo autor, em consequência do acidente dos autos estão ainda cobertos pelo contrato de seguro referido no artº. 21º da petição, por virtude do qual a Ré Companhia de Seguros F é responsável por aqueles danos.

Nestas circunstâncias, deve a sentença recorrida ser revogada e ordenado que os autos prossigam os seus termos ulteriores.

8. Nas contra alegações, pugna-se pela manutenção da decisão recorrida.

9. Cumpre apreciar e decidir se o Fundo de Garantia Automóvel é parte legítima e se o seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório cobre os danos sofridos pelo condutor.

10. Da (i)Legitimidade do Fundo de Garantia Automóvel

A sentença recorrida considerou o Fundo de Garantia Automóvel  parte ilegítima, argumentado que,  face ao regime legal aplicável, não poderia ser condenado a resarcir o autor pelos danos por ele próprio sofridos.

Ora bem.
Nos termos do art. 26º, nºs 1 e 2, do CPC, há que aferir, em regra, a legitimidade (activa) pela titularidade dos interesses em jogo, no processo, isto é, pelo interesse directo (e não indireto ou derivado) em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação. A regra só deixará de se aplicar nos casos excecionais de atribuição do direito de ação ou do direito de defesa a titulares de um interesse indireto (ação sub-rogatória, por exemplo) e nos de tutela de interesses coletivos e difusos.[1]

Está assim hoje assente que, nos termos do art. 26º, n.º 3, do CPC, «a legitimidade processual tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da ação possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material e controvertida, tal como a apresenta o autor» - cf. M. Teixeira de Sousa, A Legitimidade Singular em Processo Declarativo, BMJ 292-105.

Nesta conformidade, torna-se inequívoca a legitimidade do Fundo de Garantia Automóvel, pois, considerando o pedido e a causa de pedir, os sujeitos da relação jurídica controvertida são, por um lado, o autor e a ré seguradora, e, a título subsidiário, o autor e o FGA, sobre eles impendendo o interesse directo em demandar e em contradizer, respectivamente.

Questão diferente, que se situa já no plano do mérito da ação, é a de saber se recai sobre os réus, a título principal ou subsidiário, a obrigação de indemnizar o autor pelos danos alegadamente sofridos por este.

É dessa questão que nos ocuparemos de seguida.

11. Atenta a posição assumida pelas partes nos articulados, e com relevância para a decisão deste recurso, está assente que:

No dia …/9/2010, o veículo de matrícula … circulava em França, pela A…, no sentido …-…, sendo conduzido pelo ora autor.

Na sequência do despiste daquele veículo, o seu condutor (ora autor) sofreu diversos danos.

A responsabilidade civil por danos causados pelo veículo conduzido pelo autor encontra-se transferida para a ré F, no ámbito do seguro obrigatório, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ….

12. Da obrigação de indemnizar

12.1. Nesta ação, a título principal, o autor peticiona a condenação da ré seguradora a pagar-lhe determinada quantia, a título de indemnização por danos alegadamente sofridos em consequência do “acidente”.

A título subsidiário, pede a condenação do Fundo de Garantía Automóvel, nos mesmos termos.

A sentença recorrida entendeu que os danos em causa não se encontram cobertos pelo seguro obrigatório e julgou a ação improcedente.

Interposto o presente recurso do saneador sentença, cabe agora apreciar - atendendo ao teor das conclusões – se os danos alegadamente sofridos pelo autor se encontram, ou não, excluídos da garantia  do seguro obrigatório.

Apreciando.

12.2. Como refere Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 2009, 205 e ss., o regime jurídico do seguro obrigatório automóvel encontra-se amplamente penetrado por normas de direito da União Europeia sobre as quais o Tribunal de Justiça se tem debruçado e que se reflectem não apenas no domínio do seguro como também nos direitos nacionais em matéria de responsabilidade civil.

Existem hoje cinco directivas no domínio do seguro obrigatório automóvel que, por um lado, visam assegurar a livre circulação dos veículos com estacionamento habitual no território da União Europeia bem como das pessoas neles transportadas, e, por outro, garantir que as vítimas de acidentes causados por esses veículos beneficiem de tratamento comparável, seja qual for o local em que o acidente ocorra. [2]


A nossa Constituição, no seu art. 8º, n.º 2, estabelece uma cláusula geral de recepção automática do direito internacional convencional, internacionalmente vinculativas do Estado português.

Isto é:

As normas internacionais de origem convencional, uma vez incorporadas no ordenamento jurídico nacional, vigoram na ordem jurídica interna, enquanto vincularem internacionalmente o Estado português, o que tem sido apontado pela doutrina como uma clara afirmação do princípio da primazia do direito internacional.[3]

Também o art. 8º, n.º 3, da CRP estabelece uma cláusula geral de recepção plena e permanente do direito comunitário.

Deve, pois, concluir-se que as normas de DIP, em geral, e de direito comunitário, em particular, valem como fonte de direito - directa e autónoma - da ordem jurídica interna e, quando exequíveis, por si mesmas, são diretamente aplicáveis.

No que respeita às Directivas, estabelece o art. 249.º do Tratado que "a directiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios".

Tem sido, porém, entendido que, em determinadas situações, designadamente quando conferem directamente direitos aos particulares, podem ser imediatamente aplicadas pelos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros.

Dito isto, regressemos ao caso em análise.

A 1ª instância considerou que os danos patrimoniais e não patrimoniais invocados pelo autor (condutor do veículo sinistrado), decorrentes das lesões corporais sofridas no acidente, estavam excluídos da garantia do seguro obrigatório celebrado com a ré.

Nesta linha, entendeu-se que o autor não tinha direito a ser indemnizado nem pela seguradora, nem pelo Fundo de Garantía Automóvel.

Ora bem.

Com particular interesse para o caso em apreço importa considerar o teor da 3ª Directiva que - considerando a existência em certos Estados-Membros de lacunas na cobertura pelo seguro obrigatório dos passageiros de veículos automóveis e que, para proteger essa categoria particularmente vulnerável de vítimas potenciais, é conveniente que essas lacunas sejam preenchidas, no seguimento das duas anteriores directivas em matéria de responsabilidade civil automóvel, de modo uniforme (cfr. parágrafos 5º e 12º do preâmbulo da Directiva) -, estabeleceu no seu artigo 1.º o seguinte:

«Article 1 - Without prejudice to the second subparagraph of Article 2 of Directive 84/5/EEC, the insurance referred to in Article 3 of Directive 72/166/EEC shall cover liability for personal injuries to all passengers, other than the driver, arising out of the use of a vehicle.»  [4] [5]

Daqui resulta, com clareza, que o legislador comunitário sentiu a necessidade de distinguir entre “passageiros” e “condutor”, excluindo este do âmbito das garantias que o seguro obrigatório visa cobrir.

Esta Directiva Automóvel foi transposta para o ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei nº 130/94, de 19 de Maio, que deu nova redacção aos artigos 5.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.

Na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 130/94, o art. 7º, do DL nº 522/85, sob a epígrafe «exclusões» dispunha que se excluem da garantia do seguro:

- Os danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro (nº1);

- Quaisquer danos decorrentes de danos materiais causados ao condutor do veículo e titular da apólice; (nº2, al.a).

Entretanto, foi publicado o DL 291/2007, de 21 de Agosto (aplicável ao caso dos autos, atenta a data do acidente) que, revogando o DL nº 522/85, aprovou um novo regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e tranpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a 5ª Directiva nº 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas nºs 72/166/CEE, 84/5/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva nº 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil automóvel.

No art. 14º, nº1, deste Decreto-Lei estabelece-se que:

“1- Excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, assim como os danos decorrentes daqueles.

2- Excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas:
a) Condutor do veículo responsável pelo acidente.

(…)”

Mais uma vez, o legislador reafirmou a exclusão dos danos sofridos pelo condutor, na sequência de acidente que não possa ser imputado a terceiro.

Aliás, o art. 14º, nº1 do DL nº 291/2007,  ao excluir da garantia do seguro os danos sofridos pelo condutor do veículo seguro, parece estar em consonância com o disposto no artigo 15º, nº 1, do mesmo diploma, que estende a garantia do seguro à responsabilidade, entre outros, do condutor do veículo, e esta tem sido uma das razões apontadas para justificar tal exclusão.

Argumenta-se que se trata de um seguro de responsabilidade e não de um seguro de danos, pelo que, sendo o condutor beneficiário da garantia do seguro para com terceiros lesados, não pode simultaneamente ser beneficiário de indemnização, isto é, terceiro, para efeitos de receber, ele próprio, uma indemnização por eventuais danos sofridos em consequência do acidente.

Efectivamente  - e como ensina o Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral , 10ª ed. vol. I, pag 709 - o seguro obrigatório é «um seguro pessoal (de responsabilidade civil da pessoa que possa ser obrigada a reparar os danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões causadas por veículos) e não um seguro real».

Por conseguinte, sendo a sua obrigatoriedade estabelecida no interesse de terceiros vítimas do acidente, e não do condutor ou detentor do veículo, carecia de sentido que o seguro garantisse a indemnização pelos danos sofridos pelo condutor, na sequência de acidente devido ao próprio lesado, mesmo que não haja culpa dele.

Por outro lado, não se vislumbra que este entendimento que vimos defendendo, viole quaisquer princípios fundamentais, de consagração constitucional.

Aliás, sobre a constitucionalidade da norma ínsita no art. 7º, do DL 522/85 (de sentido idêntico à do art. 14º, do DL 291/2007), quando interpretada no sentido da exclusão dos danos sofridos pelo condutor, se pronunciou favoravelmente o acórdão do Tribunal Cosntitucioanl 25/2010, de 13/1/2010, in Jusnet 140/2010.

Neste contexto, é de concluir que a ré seguradora, com quem foi celebrado o seguro obrigatório de responsabilidade civil  não é responsável pelo ressarcimento de eventuais danos sofridos pelo condutor do veículo sinistrado.

Também o Fundo de Garantia Automóvel, ao qual são aplicáveis as exclusões previstas para o seguro obrigatório (art. 52º, nº1, do DL 291/2007) não pode ser chamado, ainda que subsidiariamente, a satisfazer as indemnizações reclamadas pelo ora autor.

Improcede, pois, in tottum, o recurso.

13. Nestes termos, negando provimento à apelação, acorda-se em confirmar a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.

Lisboa, 3 de Junho de 2014

Maria do Rosário Morgado

Rosa Ribeiro Coelho

Maria Amélia Ribeiro

[1] Cfr., a este respeito, Lebre de Freitas, CPC anotado, 51.

[2] Trata-se das directivas 72/166/CEE, de 24 de Abril (1ª Directiva), 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (2ª Directiva), 90/232/CEE, de 14 de Maio de 1990 (3ª Directiva), 2000/26/CE, de 16 de Maio de 2000 (4ª Directiva) e 2005/14/CE, de 11 de Maio (5ª Directiva) [publicadas, respectivamente no Jornal Oficial (1972) L 103, p.1; (1984) L 8, p.17; (1990) L 129 p.33; (2000) L 181, p.65; e (2000) L 149, p.14.

[3] Cfr. Gomes Canotilho e V. Moreira, CRP, anotação ao art. 8º e
João Mota Campos, Manual de Direito Comunitário, 380 e ss.

[4] Cf. os comentários de Calvão da Silva (em anotação ao acórdão STJ de 4 de Outubro de 2007, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137º, n.º 3946, p. 45/46), a respeito da imprecisão da versão em língua portuguesa do texto da Directiva.
[5] O Tribunal de Justiça da União Europeia, no acórdão Elaine Farrel, de 19.4.2007 (que se pode consultar in http://europa.eu.int/cj/index.htm) decidiu que "o artigo 1.º da Terceira Directiva 90/232 reúne todas as condições exigidas para produzir efeito directo e, portanto, confere aos particulares direitos que estes podem invocar directamente perante os órgãos jurisdicionais nacionais."