Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1871/19.2T8LRS-B.L1-6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: FUNDAMENTOS DE EMBARGOS DE TERCEIRO
CITAÇÃO DO TERCEIRO
TÍTULO EXECUTIVO
SUSPENSÃO DA PENHORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I–Resulta do requerimento executivo que o ora apelante é parte, pois vem identificado como executado.

II–Se a exequente dispõe ou não de título executivo contra o ora apelante, se este foi ou não citado ou se a citação não foi realizada com as formalidades legais, são questões que não constituem fundamentos para deduzir embargos de terceiro, como resulta do art. 352º do CPC; o mesmo se diga sobre a questão da suspensão das diligências para penhora ao abrigo da legislação que foi publicada devido à situação de pandemia.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–Relatório


A deduziu embargos de terceiro por apenso à execução instaurada pela B, Sa, alegando que não é executado e que é titular de um direito de uso e habitação sobre um prédio urbano destinado à habitação do qual foi privado, pois o agente de execução procedeu ao arrombamento da porta e mudança de fechadura.
Terminou pedindo que seja ordenada a restituição provisória da posse do imóvel.
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Foi proferida decisão de indeferimento liminar em 16/11/2022, nestes termos:
«Nos termos do artigo 342º do Código de Processo Civil, quando a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofenda a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer mediante a dedução de embargos de terceiro.
Contrariamente ao sustentado pelo embargante, este é executado nos autos principais, pelo que não pode deduzir embargos de terceiro, os quais, por isso, não são de admitir.».
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Apelou o embargante, terminando a alegação com estas conclusões:
«A)-Vem o presente recurso interposto da decisão que indeferiu liminarmente os embargos de terceiro deduzidos pelo ora Apelante.
B)-Porquanto, o Apelante é titular de um direito de uso e habitação registado sobre o prédio urbano destinado à habitação, sito no Casal …, freguesia …, concelho de Torres Vedras, distrito de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o número …. da freguesia … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, que constitui a sua habitação própria e permanente.
C)-O referido imóvel foi, aparentemente, penhorado no âmbito dos presentes autos.
D)-O Apelante NUNCA FOI CITADO, desconhece os fundamentos que deram origem aos autos, não é devedor de quaisquer quantias, a qualquer entidade e nunca prestou garantia ou aval.
E)-Após tomar conhecimento do arrombamento e mudança de fechadura do imóvel sobre o qual tem um direito real registado, deduziu embargos de terceiro.
F)-Os embargos foram liminarmente indeferidos porquanto, segundo o entendimento do tribunal a quo, o Apelante é Executado nos autos e não terceiro.
G)-Posição com a qual não pode concordar.
H)-Senão vejamos, o Apelante só recebeu uma única notificação, a 28.07.2022 e dizia meramente respeito à realização de uma diligência.
I)-Consequentemente, o Apelante não pode ser Executado nos autos porque nunca foi citado no âmbito dos mesmos.
J)-A citação é a forma de dar a conhecer a pessoa interessada na causa de que foi proposta contra si determinada acção e se chama ao processo para se defender.
K)-A falta de citação ou nulidade da citação implica que o ora Apelante não tem conhecimento da pendência do processo, do teor dos autos ou dos factos que lhe deram origem, nem lhe foi concedida oportunidade de se defender.
L)-Nos termos do art.º 188.º e do art.º 191.º do Código de Processo Civil, estamos perante uma nulidade processual, que desde já expressamente se invoca.
M)-Consequentemente, o Apelante mantém-se como terceiro de boa-fé.
N)-A nulidade invocada acarreta a destruição de todo o processado nos autos.
O)-Mais, nos termos do art.º 6.º-E, n.º 7, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, com a alteração mais recente foi introduzida pela Lei n.º 91/2021, de 17 de Dezembro, resulta que estão suspensos os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
P)-O que significa que a diligência de arrombamento foi ilegal e o Agente de Execução não ter qualquer título habilitante ou direito legal a manter a posse do imóvel, razão pela qual deverá ser ordenada a imediata devolução do imóvel ao Apelante.
Q)-O Apelante encontra-se impedido de exercer a posse sobre a sua habitação própria e permanente, razão pela qual deverá ser atribuído efeito suspensivo ao presente recurso de apelação, nos termos e para os efeitos do art.º 647.º, n.º 3, alínea b), in fine, do Código de Processo Civil.
R)-Por todo o exposto deverá ser a nulidade por falta de citação ser considerada procedente, destruindo-se todo o processado nos autos principais, deverá ser também substituída a decisão do tribunal a quo de indeferimento liminar por uma de deferimento e, por fim, ordenada a restituição da casa de morada de família ao ora Apelante.».
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Não há contra-alegação.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II–Questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:
- se o apelante é terceiro
- se, nos termos do art.º 6.º-E, n.º 7, alínea b) da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, com a alteração mais recente foi introduzida pela Lei n.º 91/2021, de 17 de Dezembro, resulta que estão suspensos os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família
- se deve ser conhecida neste apenso a arguição de falta de citação ou nulidade da citação
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III–Fundamentação

A)-É de considerar:
1.–A B, SA, instaurou execução comum para pagamento de quantia certa em 21/02/2019, identificando como executados:
          C
          D
          A
2.–Na exposição de factos, lê-se no requerimento executivo, além do mais:
«MM)- Importa referir que os executados C e D transmitiram, por doação, a favor de A o prédio urbano sito no Casal …, lugar e freguesia …., concelho de Torres Vedras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o n.º …, da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo …, aquisição que se encontra registada na Conservatória do Registo Predial pela AP. 676 de 2016/10/107 – cfr. doc. 14
NN)-Nessa medida, assiste legitimidade à exequente para instaurar a presente acção também contra A, atenta a sua qualidade de proprietário do imóvel hipotecado a favor da aqui exequente uma vez que, apesar de ser terceiro no âmbito da relação obrigacional, não o é face à execução, circunstância que impõe que a presente acção seja movida também contra ele de modo a permitir a penhora do bem afecto ao ressarcimento do crédito exequendo.
OO)-Assim, considerando que não é permitida a penhora de bens de alguém que não figure como executado, assiste legitimidade à exequente para instaurar a presente execução contra N…, Lda., C, D e A, este último em razão de ser o actual proprietário de um dos bens hipotecados, nos termos do art.º 54.º do CPC.».

3.–Pela Ap. 2081 de 2019/05/07 foi registada a penhora do prédio identificado na petição de embargos de terceiro no âmbito da referida execução, constando como sujeito activo a B, SA e como sujeitos passivos: C, D e A.

4.–Pela Ap. 1508 de 2021/06/16 foi registado quanto a esse prédio e à mesma execução:
- «Incide sobre a nua propriedade»
- sujeitos passivos: C e D.

5.–Está junto à execução auto de penhora de «2021/07/05» onde se lê:
«Nua propriedade do prédio urbano sito na freguesia …, concelho de Torres Vedras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº …, e inscrito na matriz sob o artigo … da dita freguesia.» e que é «Depositário A»

6.–Estes embargos de terceiro foram deduzidos em 10/11/2022.

7.–Em 03/03/2023 o ora apelante deduziu oposição à execução (apenso C) em que alegou que a exequente não apresentou qualquer título executivo que o responsabilize pelo pagamento da quantia exequenda, pelo que é parte ilegítima na execução e que por mera cautela de patrocínio, invoca a prescrição da dívida cuja cobrança é reclamada.

8.–Em 10/11/2023 foi proferida a seguinte decisão nesse apenso C:
«Com referência ao despacho proferido em 10/04/2023 nos autos principais, indefiro liminarmente o presente requerimento, por extemporaneidade. Notifique e comunique ao agente de execução.
Custas pelo executado.».

9.–Nesse despacho de 10/04/2023 consta:
«Requerimento de 28/11/2022 – arguição de falta de citação
Arguiu o executado A a falta da sua citação, alegando que “desconhece se houve falta de citação ou se simplesmente não foram cumpridas as formalidades”.
Exercido o contraditório, apenas o agente de execução se pronunciou (requerimento de 30/11/2022), juntando documento comprovativo da citação.
Por despacho proferido em 23/01/2023 foi o executado convidado, querendo, a apresentar/requerer meios de prova.
O executado nada disse.

Cumpre decidir.

Com relevância para a apreciação da questão, o tribunal dá como sumariamente provados os seguintes factos, todos documentados na execução:
A.–O requerimento executivo que instrui os presentes autos foi apresentado em 21/02/2019, para pagamento da quantia de € 112.940,51, decorrente do incumprimento de dois empréstimos contratados entre a B, aqui exequente, e a sociedade “N…, Lda.”, executada.
B.–Por escrituras datadas de 19/02/2007 foi, para garantia de contratos específicos que aqui não relevam e para segurança de obrigações assumidas ou a assumir pela N…, constituída hipoteca genérica sobre os seguintes imóveis:
a)-Fração autónoma designada pela letra D do prédio urbano sito em Torre, freguesia de …, concelho de Silves, descrito na Conservatória do Registo Predial de Silves sob o nº …, da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo …, até ao limite de € 130.000,00 de capital, acrescido de juros.
b)-Prédio urbano sito no Casal …, lugar e freguesia …, concelho de Torres Vedras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº …, da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo …, até ao limite de € 210.000,00 de capital, acrescido de juros.
C.–A é titular inscrito do direito de uso e habitação do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº ….
D.–A foi citado por carta registada com AR, datada de 28/10/2019, endereçada para a morada profissional sita Rua …, em Lisboa.
E.–O AR da carta referida em D foi assinado em 31/10/2019 por terceira pessoa.
F.–Em 05/11/2019, o Sr. Agente de execução deu cumprimento ao disposto no artigo 233º do Código de Processo Civil.
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São duas as modalidades de nulidade da citação consagradas na nossa lei processual:

A falta de citação propriamente dita, prevista no artigo 188º do Código de Processo Civil;
Dispõe o artigo 188º n.º 1 do Código de Processo Civil que há falta de citação:
a)-Quando o ato tenha sido completamente omitido;
b)-Quando tenha havido erro de identidade do citado;
c)-Quando se tenha empregado indevidamente a citação edital;
d)-Quando se mostre que foi efetuada depois do falecimento do citando ou da extinção deste, tratando-se de pessoa coletiva ou sociedade;
e)-Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável.

A nulidade da citação, em sentido estrito, regulada no artigo 191º.
Nos termos do disposto no artigo 191º:
1–Sem prejuízo do disposto no artigo 188.º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei.
2–O prazo para a arguição da nulidade é o que tiver sido indicado para a contestação;
sendo, porém, a citação edital, ou não tendo sido indicado prazo para a defesa, a nulidade pode ser arguida quando da primeira intervenção do citado no processo.
3–Se a irregularidade consistir em se ter indicado para a defesa prazo superior ao que a lei concede, deve a defesa ser admitida dentro do prazo indicado, a não ser que o autor tenha feito citar novamente o réu em termos regulares.
4–A arguição só é atendida se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado.
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Os elementos apurados permitem concluir que houve citação, efetivada na morada profissional, tendo o respetivo AR sido assinado por terceira pessoa.
Cabia ao executado demonstrar, por qualquer meio, que “não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável” – o que não fez.
Conclui-se, assim, pela regularidade da citação, improcedendo a arguida falta.
Notifique e comunique.
Sem custas, atenta a simplicidade.».

10.–O ora apelante interpôs recurso dessa decisão, que foi admitido por despacho de 10/11/2023.
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B)–O Direito

O art. 352º nº 1 do CPC (Código de Processo Civil) estatui:
«Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.».

Resulta do requerimento executivo que o ora apelante é parte, pois vem identificado como executado, aí se justificando a sua demanda com o disposto no art. 54º do CPC.

Se a exequente dispõe ou não de título executivo contra o ora apelante, se este foi ou não citado ou se se citação não foi realizada com as formalidades legais, são questões que não constituem fundamentos para deduzir embargos de terceiro, face ao disposto no art. 352º; o mesmo se diga quanto à questão da suspensão das diligências para penhora ao abrigo da legislação publicada devido à situação de pandemia que, entretanto, até já está ultrapassada (cfr Lei 31/2023 de 04/07).

Por quanto se disse, a decisão de indeferimento liminar está correcta.
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IV–Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2024

Anabela Calafate
Jorge Almeida Esteves
Nuno Gonçalves