Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
340/23.0T8ALM-A.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: DIREITO À HABITAÇÃO
EXECUÇÃO
ENTREGA JUDICIAL
LEGISLAÇÃO COVID-19
LEI TEMPORÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- Incumbindo ao Estado a adopção de uma política tendente a assegurar a execução do comando constitucional que determina que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar” (de acordo com o nº 1 do art.º 65º da Constituição da República Portuguesa), tal não significa que um cidadão possa utilizar como sua habitação própria um imóvel de terceiro, sem que deva a este qualquer contrapartida por essa utilização habitacional, apenas porque a sua condição económica não lhe permite satisfazer o pagamento dessa contrapartida.
2- Através da Lei 31/2023, de 4/7, o legislador considerou não mais se verificar a “situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, assim deixando de ser necessário o regime processual excepcional e transitório a que respeita o art.º 6º-E da Lei 1-A/2020, de 19/3, na medida em que tal regime havia sido estabelecido no âmbito de tal situação excepcional, vulgarmente designada como a pandemia de COVID-19.
3- Sendo considerado não mais se verificar a referida situação excepcional, por não mais haver que afirmar a existência de uma pandemia causada pela doença COVID-19, não se pode afirmar que a razão de ser do referido regime processual excepcional e transitório se mantém, porque a situação de pandemia ainda se mantém e tende a agravar-se, apenas porque o tempo está a ficar mais frio e a incidência da doença COVID-19 está a aumentar.
4- Nessa medida, nada justifica uma interpretação ab-rogante da norma revogatória do referido regime processual excepcional e transitório, no sentido de não haver que aplicar a mesma revogação apenas porque chegou o Outono e o Inverno e as temperaturas baixaram, assim estando colocado em perigo o direito dos executados à casa de morada de família, caso seja concretizada a entrega judicial determinada por sentença já transitada em julgado e ordenada no âmbito da execução correspondente.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
Em 23/12/2022, RE intentou contra CS e AL acção executiva para entrega de coisa certa e para pagamento de quantia certa, apresentando como título executivo a sentença condenatória proferida em 12/10/2022 e transitada em julgado, com o seguinte dispositivo:
a) Condenam-se os Réus CS (…) e AL (…) a restituir ao Autor RE (…) o imóvel sito na Rua (…) livre de pessoas e bens.
b) Condenam-se os Réus CS (…) e AL (…) no pagamento ao Autor RE (…) da quantia de 3.700,00€ (três mil e setecentos euros), a título de rendas vencidas e não pagas referentes aos meses de Dezembro de 2020 a Julho de 2021, acrescida de juros à taxa de 4%, devidos desde a data de vencimento de cada uma das rendas até efectivo e integral pagamento;
c) Condenam-se os Réus CS (…) e AL (…) no pagamento ao Autor RE (…) da quantia de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros), a título de indemnização correspondente a 3 meses de rendas relativas aos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2021, acrescida de juros à taxa de 4%, devidos desde a data da citação dos Réus para a presente acção até efectivo e integral pagamento”.
Em 18/1/2023 o agente de execução veio requerer que fosse judicialmente autorizada a intervenção das autoridades policiais, tendo em vista a entrega do imóvel ao exequente, se necessário com arrombamento, e invocando que “no passado dia 11 de Janeiro de 2023, pelas 14:20 horas, desloquei-me à Rua (…), para na qualidade de agente de execução nomeado no processo acima identificado, proceder à tomada de posse e entrega do imóvel ao exequente, não me tendo sido possível realizar a mesma em virtude de a executada CS (…) me ter informado, na rua, à entrada do prédio, que não tinha para onde ir, informação que me foi prestada pelo seu marido, o executado AL (…), telefonicamente, pelo que os informei que deveriam entrar em contacto com os serviços sociais do município e freguesia competentes, bem como com a Segurança Social e ainda com a Misericórdia da zona”.
Em 25/1/2023 o executado constituiu mandatário judicial e juntou aos autos a respectiva procuração.
Por despacho de 9/2/2023 foi autorizada a intervenção das autoridades policiais, nos termos requeridos pelo agente de execução em 18/1/2023.
Em 10/2/2023 foi junto aos autos da execução requerimento do executado, apresentado em 16/1/2023 nos autos da acção declarativa onde tinha sido proferida a sentença condenatória, aí sendo pedida a suspensão da efectivação da entrega da casa de morada de família, com fundamento no disposto na al. b) do nº 7 do art.º 6º-E da Lei 1-A/20202, de 19/3, na redacção introduzida pela Lei 13-B/2021, de 5/4.
Tal requerimento foi objecto de conhecimento pelo despacho de 6/3/2023, onde foi decidido não autorizar a entrega judicial do imóvel, com fundamento no disposto na al. b) do nº 7 do art.º 6º-E da Lei 1-A/2020, de 19/3, e considerando que “o executado tem no imóvel a sua casa de morada de família”, mais ficando aí afirmado que essa diligência de entrega judicial se encontrava suspensa enquanto perdurasse o regime processual transitório e excepcional estabelecido no âmbito da pandemia pela doença COVID-19.
Em 8/8/2023 o exequente requereu que fossem “retomadas as diligências de tomada de posse da Fracção Autónoma” sustentando tal pretensão, em síntese, com a revogação do disposto na al. b) do nº 7 do art.º 6º-E da Lei 1-A/2020, de 19/3, em face da entrada em vigor da Lei 31/2023, de 4/7.
Em 13/9/2023 foi proferido despacho que deferiu o requerido, “atentos os fundamentos legais invocados”.
Em 19/9/2023 a executada apresentou requerimento em que pede “se digne ordenar a imediata suspensão da execução para salvaguarda da casa de morada de família uma vez que a efectivação das diligências de colocação do agregado familiar na rua causa directa e necessariamente a colocação da Requerente, do companheiro e dos seus 3 filhos menores numa situação de fragilidade por falta de habitação própria e por outra razão social imperiosa que respeita à falta de meios económicos”, invocando “que a Lei 1 - A/2020, de 19/3 mais precisamente a al. c) do nº 7 do artº 6º e mantém-se em vigor e por força da mesma ficam suspensos os actos da execução da entrega do locado arrendado, no âmbito das acções de despejos, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou razão social imperiosa e por maioria de razão de execução de providência cautelar relacionada com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família”.
Após o exercício do contraditório pelo exequente, em 23/10/2023 foi proferido despacho com o seguinte teor:
No dia 8 de Agosto de 2023, o Exequente deu entrada nos presentes autos de um requerimento no qual pedia ao Tribunal, com base na revogação da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, o prosseguimento da execução, através da tomada de posse efectiva da Fracção Autónoma. Tendo sido regularmente notificada deste pedido, a Executada optou por não deduzir qualquer resposta no prazo que a lei prevê para o efeito – prazo de dez dias, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 149.º do CPC -.
No passado dia 4 de Julho de 2023, através da publicação da Lei n.º 31/2023 de 4 de Julho, procedeu-se à revogação do disposto na alínea c), do n.º 7 do artigo 6.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março de 2023. Razão pela qual cessou, definitivamente, o motivo com base no qual a Executada alegou o seu pedido de suspensão da tomada de posse do imóvel. Tendo assim cessado também qualquer utilidade que pudesse existir referente ao despacho a que a Executada faz alusão na sua “Resposta à Alegação” (sobre a aplicação da aludida norma que a Executada alegou juntar, embora não o tenha feito).
Pelo exposto indefere-se o requerido.
Custas pelo incidente que se fixam em 3 ucs”.
O executado recorre deste despacho, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem (com excepção do teor do art.º 647º do Código de Processo Civil, constante da 14ª conclusão):
1ª O Estado deve promover a construção de habitação económica e social, estimulando a construção privada (subordinada ao interesse geral), o acesso à habitação própria ou arrendada e a criação de cooperativas de habitação e de autoconstrução. Também deve fomentar o estabelecimento de um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e o acesso à habitação própria.
2ª Sobressai em toda a sua importância o princípio da legalidade – a Administração está sujeita ao princípio da precedência da lei e tem de cumprir as leis que estabelecem os direitos a prestações, destacando-se o dever de emitir os regulamentos e praticar os actos necessários à respectiva execução.
3ª Na sua vertente negativa, e conforme ensinam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, cit., pág. 834, em anotação ao art. 65º:
Consiste (…) no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de «direito negativo», ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos «direitos, liberdades e garantias» (cfr. art.º 17º).
4ª Por outro lado, a consagração de um direito fundamental à habitação não se compadece com soluções que admitam a privação arbitrária sem fundamento razoável, do direito a uma morada digna.
5ª Com um regime de arrendamento que salvaguarda (ainda que de modo variável) o vínculo do contrato, impondo restrições ao proprietário privado, tais como a proibição de despejos sem motivo e a instituição de limites ao valor da renda — rendas apoiadas e condicionadas -, visando sempre a protecção dos cidadãos com menos possibilidades económicas.
6ª O agregado familiar constituído pelo Recorrente, pela companheira e por um filho menor com 5 anos de idade depositou toda a sua confiança no Estado Português que perante a existência de uma pandemia tudo iria fazer para preservar os cidadãos de tal situação deveras clamorosa enquanto subsistir.
7ª Os fundamentos da consagração da suspensão dos actos de execução do despejo basearam-se precisamente na subsistência da pandemia, a serem mantidos enquanto esta não cessar.
8ª É natural que no Verão, tratando-se de uma gripe que só sobrevive com o frio, os efeitos tenham sido mitigados e daí que tivesse sido obtido consenso para a revogação da suspensão.
9ª A questão que se coloca é a de saber se neste momento a pandemia continua ou não em processo de forte crescimento e na verdade é público e notório que tem vindo a ser imposto o uso de máscaras nas instituições hospitalares e o frio ainda nem sequer se tornou evidente. Coloca-se, pois, em causa o princípio da legalidade pois que a um aumento da gravosidade da pandemia deveria corresponder um acréscimo na defesa da casa de morada de família, sobretudo quando como é o caso se trata de uma família sem recursos, tal como resulta da concessão do benefício de apoio judiciário.
10ª A colocação na rua faz com que os perigos para o agregado familiar sejam ainda mais gravosos, sendo certo que o Tribunal recorrido de forma inexplicável não se dignou proceder à marcação da inquirição das testemunhas arroladas, tudo se passando como se o concreto pedido de suspensão nunca tivesse sido formulado, com manifesto prejuízo para o Recorrente que assim se vê numa situação de inferioridade face aos Requerentes que tendo obtido a produção de tal podem continuar a sustentar a manutenção da medida enquanto se subsistam os pressuposto do agravamento causado pelo despejo.
11ª Logo, terá de se concluir que levantamento da suspensão da execução do despejo é ilegal pois que contraria os fundamentos de tal medida no adiantar do Outono e progressivo agravamento do Covid 19.
12ª Mais, é ainda inconstitucional no caso concreto ao colocar o agregado numa situação de perigo que faz piorar a fragilidade económica, ficando evidente uma discriminação em razão da origem. Naturalmente que tal exposição ao perigo choca face ao desejo de aumento exorbitante das rendas visto que foi o propósito do senhorio que alegou optar pelo despejo para alcançar uma renda superior.
13ª De facto, o legislador que pretende efectivar os despejos estará a tratar de modo diverso aos arrendatários dado que não limita os aumentos de renda, nada justificando tal desigualdade de tratamento.
O exequente apresentou alegação de resposta, aí sustentando, para além da fixação de efeito devolutivo ao recurso, por não estar em causa decisão que ponha termo ao processo, o prosseguimento dos autos com a entrega judicial do imóvel.
O recurso foi admitido com efeito devolutivo e a subir em separado.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, a questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, prende-se unicamente com o direito dos executados à suspensão da entrega judicial do imóvel onde têm instalada a sua habitação.
E face ao objecto do recurso assim delimitado, logo se alcança porque é que ao mesmo não foi fixado efeito suspensivo, em contrário do pretendido pelo executado/recorrente. É que o despacho recorrido, apesar de proferido numa acção executiva em que está em causa a entrega do imóvel onde os executados têm instalada a sua habitação, não respeita a qualquer decisão que ponha termo ao processo, assim estando fora da previsão da al. b) do nº 3 do art.º 647º do Código de Processo Civil, e tendo efeito devolutivo, nos termos do disposto conjugadamente nos art.º 551º, nº 2, 853º, nº 4 e 862º, todos do Código de Processo Civil.
Pelo que, ainda que como questão prévia, não há que fixar ao recurso efeito suspensivo, em vez do efeito devolutivo que lhe foi fixado pelo tribunal recorrido.
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Para sustentar a suspensão da entrega do imóvel ao exequente argumenta o executado, desde logo, com a vertente positiva do direito constitucional à habitação, a demandar a actividade do Estado na adopção de políticas de acesso à habitação, incluindo um regime de arrendamento que proíba despejos sem motivo e que institua limites ao valor das rendas.
Com efeito, não sofre qualquer controvérsia a dimensão constitucional do direito à habitação, como decorre da norma programática do art.º 65º da Constituição da República Portuguesa, desde logo quando determina que incumbe ao Estado adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
Todavia, essa dimensão programática do direito constitucional à habitação não conduz a qualquer direito subjectivo dos particulares.
Com efeito, e como bem refere o executado na sua alegação, “as normas que prevêem os direitos (sociais) a prestações, contêm directivas para o legislador (…), não conferindo aos seus titulares verdadeiros poderes de exigir, porque visam, em primeira linha, indicar ou impor ao Estado que tome medidas para uma maior satisfação ou realização concreta dos bens protegidos”. Pelo que (continuando a acompanhar o afirmado pelo executado na sua alegação), os “preceitos constitucionais respectivos não são, por isso, directamente aplicáveis sem intervenção legislativa, muito menos constituem preceitos exequíveis por si mesmos”. E só “uma vez emitida legislação destinada a executar os preceitos constitucionais em causa é que os direitos sociais se consolidarão como direitos subjectivos plenos, mas, então, não valem, nessa medida conformada, como direitos fundamentais constitucionais, senão enquanto direitos criados por lei”.
Dito de outra forma, incumbindo ao Estado a adopção de uma política tendente a assegurar a execução do comando constitucional que determina que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar” (de acordo com o nº 1 do referido art.º 65º), tal não significa que um cidadão possa utilizar como sua habitação própria um imóvel de terceiro, sem que deva a este qualquer contrapartida por essa utilização habitacional, apenas porque a sua condição económica não lhe permite satisfazer o pagamento dessa contrapartida, antes devendo tal utilização ser regulada por um quadro legal que, por um lado, salvaguarde o direito do proprietário à fruição do seu património imobiliário e, por outro lado, salvaguarde as necessidades habitacionais do arrendatário, designadamente impedindo comportamentos especulativos na fixação das rendas e apoiando os arrendatários com carências económicas.
Ou seja, e reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, a invocada circunstância de a situação económica do agregado familiar dos executados não possibilitar o pagamento das rendas devidas ao exequente não constitui fundamento para que assista aos mesmos o direito a continuar a habitar no imóvel do exequente, não obstante ter sido já decretada a cessação do contrato de arrendamento e determinado o despejo dos mesmos desse imóvel, com fundamento na resolução do contrato por tal falta de pagamento de rendas. O que é o mesmo que afirmar que não assiste aos executados o direito a permanecer no imóvel do exequente, porque carecem de uma habitação e não têm meios económicos para suportar o encargo correspondente.
Do mesmo modo, vem o executado argumentar com a dimensão negativa do direito constitucional à habitação, não podendo ser arbitrariamente privado do imóvel do exequente, para aí habitar.
É certo que, como igualmente refere o executado na sua alegação de recurso, tal vertente negativa do direito constitucional à habitação expressa-se na “garantia dos particulares contra ingerências indevidas por parte do Estado ou de terceiros”, entendida esta como a proibição da privação de habitação condigna sem fundamento razoável.
Sucede que, no caso concreto, não se está perante qualquer privação arbitrária do direito dos executados a habitar no imóvel do exequente, já que a mesma privação emerge de uma decisão judicial condenatória, o que significa que a ausência do direito dos executados a habitar no imóvel do exequente foi declarada no âmbito de um processo judicial, enformado pelos princípios do dispositivo, da igualdade e do contraditório. E, nessa medida, o fundamento para a condenação dos executados a entregarem ao exequente o imóvel deste, deixando de aí habitar, decorreu do reconhecimento do correspondente direito do exequente, à luz dos preceitos legais aplicados na sentença que reconheceu e declarou tal direito. Ou seja, mais do que se estar perante um fundamento razoável para que se afirme a privação dos executados a habitar no imóvel do exequente, está-se perante o único fundamento apto a tal afirmação, que é o do primado da lei e dos tribunais.
Do mesmo modo, a execução da decisão judicial condenatória em questão não se efectua à margem de qualquer processo judicial, mas antes no âmbito do processo de execução promovido pelo exequente, a correr termos no tribunal recorrido, e sendo nesse âmbito que foi proferido o despacho recorrido, que indeferiu a pretensão da executada no sentido de se manter a suspensão da desocupação do imóvel pelos executados.
Pelo que, também neste âmbito, não se pode afirmar a falta de fundamento para a privação da utilização do imóvel pelos executados, como habitação do seu agregado familiar, a demandar a convocação da vertente negativa do direito constitucional à habitação, como pretendido pelo executado.
Argumenta ainda o executado com a ilegalidade do decidido, já que contraria os fundamentos da medida de suspensão da execução da entrega do imóvel, assentes na subsistência da pandemia causada pela doença COVID-19 e no seu agravamento, no momento em que foi decidido o levantamento da referida suspensão.
Torna-se evidente que o executado optou por ignorar totalmente o afirmado no despacho de 6/3/2023, bem como no despacho recorrido, relativamente à natureza excepcional e transitória do regime processual decorrente do art.º 6º-E da Lei 1‑A/2020, de 19/3, e de onde resultava, no que aqui releva, a suspensão automática das diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
Assim, e recuperando o que já ficou afirmado no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 9/2/2023 (relatado pela ora 2ª adjunta e onde o ora relator teve intervenção como 1º adjunto, disponível em www.dgsi.pt), “grosso modo, o regime do primitivo art.º 7.º da Lei n.º 1‑A/2020 foi sendo substituído por preceitos que lhe correspondem (com alterações mínimas, irrelevantes para o caso), designadamente o art.º 6.º-A (…), depois o art.º 6.º-B e finalmente o art.º 6.º-E, aditado pela Lei n.º 13‑B/2021, de 05-04, que, sob a epígrafe “Regime processual excepcional e transitório”, dispõe, no que ora importa, que:
“1 - No decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excepcional e transitório previsto no presente artigo.
(…)
7 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo:
(…) b) Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
(…)”.
Do mesmo modo, aí ficou afirmado que “não parece que o citado n.º 7 do art.º 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03 possa ser qualificado como lei temporária (isto é, limitada a um determinado período de vigência, por estar na mesma prevista a sua vigência durante um período temporal fixado ou enquanto durar um certo acontecimento aí indicado) – neste sentido, veja-se o referido acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022, proferido no proc. n.º 17696/21.2T8LSB.L1-6.
Ademais, apesar de o legislador ter já vindo reconhecer - no Decreto-Lei n.º 66‑A/2022, de 30 de Setembro (que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação) - a cessação de vigência de diversos artigos de decretos-leis publicados, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, tal ainda não sucedeu com a referida Lei n.º 1-A/2020. Isto mesmo foi, aliás, reconhecido pelo acima citado acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022, referindo-se no ponto 4 do respectivo sumário que «O  Artigo 6.º-E, nº 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, não foi pelo Decreto‑Lei 66‑A/2022,de 30 de Setembro, visado/atingido, mantendo-se em vigor, o que deverá suceder enquanto permanecer a “situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”.»”.
E, do mesmo modo, nesse mesmo acórdão ficou ainda afirmado que “no referido acórdão da Relação de Lisboa de 13-10-2022 entendeu-se que «nada permite concluir que a “situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, deixou já de existir [antes tudo obriga a considerar que continuamos ainda hoje a viver em estado de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica, ainda que, é verdade, já não em período de estado de emergência (…), de calamidade (…), ou sequer de alerta - estado v.g. decretado e regulamentado através de Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022, de 30 de Agosto e para vigorar até às 23:59 h do dia 30 de Setembro de 2022]”.
E, nessa medida, foi então afirmado que “embora tecnicamente não se confundam tais situações, não há dúvida que o legislador, ao aludir à “situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19” estava a considerar a situação epidemiológica vivida em Portugal na sequência da pandemia da doença COVID-19 que motivou as sucessivas declarações do Estado de Emergência e das Situações de Calamidade e Alerta”. Mas também foi destacada a “Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30-04 - que estabeleceu “uma estratégia de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia da doença COVID 19” -, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2020, de 26-06 - que declarou “a situação de calamidade, contingência e alerta, no âmbito da pandemia da doença COVID-19” tendo em consideração o território, nos termos da Lei de Bases da Protecção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de Julho, na sua redacção actual - e a Resolução do Conselho de Ministros n.º 51-A/2022, de 30-06 - que veio prorrogar a declaração da Situação de Alerta, no âmbito da pandemia da doença COVID-19 até 31 de Julho de 2022, em todo o território nacional continental”. E, “nesta senda, apenas nos parece possível afirmar que, com o fim do estado de alerta em território continental nacional, a partir das 23h59 de 30 de Setembro, foi pelo Governo dado um sinal claro de que já seria oportuno que a Assembleia da República legislasse sobre a cessação de vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia, incluindo naturalmente as citadas normas legais previstas para vigorarem no decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
Aliás, que assim é resulta inequívoco da circunstância de ter sido pelo Governo apresentada na Assembleia da República, em 11-11-2022, a Proposta de Lei n.º 45/XV, aprovada em Conselho de Ministros de 29 de Setembro de 2022”.
Ora, é exactamente tal Proposta de Lei que foi entretanto aprovada pela Assembleia da República, dando lugar à Lei 31/2023, de 4/7, respeitante à cessação da vigência de leis publicadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, e resultando da al. a) do seu art.º 2º a revogação da Lei 1-A/2020, de 19/3 (com excepção do seu art.º 5º).
Ou seja, através da referida Lei 31/2023 o legislador considerou não mais se verificar a referida “situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, e assim deixando de ser necessário o regime processual excepcional e transitório a que respeita o art.º 6º-E da Lei 1-A/2020, de 19/3, na medida em que tal regime havia sido estabelecido no âmbito de tal situação excepcional, vulgarmente designada como a pandemia de COVID-19.
Dito de outra forma, em face da situação excepcional de pandemia causada pela doença COVID-19 o legislador entendeu justificar-se todo um quadro legislativo de natureza excepcional, não só tendente a combater a situação epidemiológica, mas igualmente destinado a combater situações de fragilidade económica e social causadas por tal situação epidemiológica. E igualmente considerou que essa situação de fragilidade se verificava em situações em que podia estar em causa a manutenção da casa de morada de família, criando uma norma processual de natureza excepcional e transitória, tendente à suspensão da realização de actos em processo executivo relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
Conforme a pandemia foi evoluindo favoravelmente, assim também o legislador foi considerando a desnecessidade de todas as normas criadas no âmbito de tal quadro legislativo de natureza excepcional, fazendo-as cessar na medida dessa evolução, e ainda que não pudesse considerar ter deixado de se verificar o referido quadro excepcional epidemiológico.
Todavia, a partir do momento em que foi considerado não mais se verificar a referida situação excepcional, por não mais haver que afirmar a existência de uma pandemia causada pela doença COVID-19, o legislador optou pela cessação de toda a legislação ainda em vigor, criada excepcional e transitoriamente para tal período de alteração da saúde pública. E, entre o mais, optou pela cessação do regime processual excepcional e transitório a que respeitava o art.º 6º-E da Lei 1‑A/2020, de 19/3.
Pelo que não se pode afirmar que a razão de ser de tal regime processual excepcional e transitório se mantém, porque a situação de pandemia ainda se mantém e tende a agravar-se, apenas porque o tempo está a ficar mais frio e a incidência da doença COVID-19 está a aumentar.
Com efeito, se é um facto público e notório que é a partir do Outono e durante o Inverno que se verifica um aumento dos casos de gripe, doenças respiratórias e mesmo COVID-19, isso não significa que se está perante uma situação epidemiológica excepcional e, muito menos, perante uma situação pandémica.
Ou seja, nada justifica a interpretação ab-rogante da norma revogatória da Lei 31/2023, de 4/7, que o executado propõe, no sentido de não haver que aplicar a mesma revogação apenas porque chegou o Outono e o Inverno e as temperaturas baixaram, assim estando colocado em perigo o direito dos executados à casa de morada de família, caso seja concretizada a entrega judicial determinada por sentença já transitada em julgado e ordenada no âmbito da execução correspondente.
Do mesmo modo, não se alcança onde encontra o executado a invocada “discriminação em razão da origem”, ou tão pouco a invocada “desigualdade de tratamento”, a sustentar a inconstitucionalidade da referida norma revogatória da Lei 31/2023, de 4/7, quando interpretada no sentido de fazer cessar a suspensão da entrega judicial do imóvel.
É que, como já se referiu, o direito constitucional à habitação não confere aos executados o direito subjectivo à utilização do imóvel do exequente, ainda que contra a decisão judicial de cessação dessa utilização, mas apenas determina a adopção de uma determinada política habitacional pelo Estado, a partir da qual se concretize o princípio do acesso à habitação, independentemente da condição económica de cada cidadão.
Assim, não se pode afirmar que a invocada fragilidade económica do agregado familiar do executado faz surgir o direito do mesmo à suspensão da entrega judicial do imóvel, enquanto tal situação de fragilidade económica se verificar, e independentemente da inexistência de lei ordinária que afirme tal direito.
E, do mesmo modo, não se pode afirmar que o direito de propriedade do exequente deve sofrer a compressão visada pelo executado, apenas em razão da invocada fragilidade económica.
Aliás, é exactamente porque a invocada situação de fragilidade não é apta a fazer surgir o referido direito à suspensão da entrega judicial do imóvel, nos termos visados pelos executados (e que, recorde-se, se prendem com o invocado “aumento da gravosidade da pandemia” e com as consequências daí decorrentes para o agregado familiar dos executados), que se encontra justificada a dispensa da inquirição de testemunhas arroladas pela executada com o seu requerimento de 19/9/2023, já que se tratava de um acto processual inútil para o conhecimento desse requerimento, nos termos em que tal conhecimento ocorreu através do despacho recorrido.
Em suma, por nenhuma das vias argumentativas utilizadas pelo executado é possível afirmar o direito dos executados à suspensão da entrega judicial do imóvel onde têm instalada a sua habitação, antes havendo que manter o despacho recorrido, face à total improcedência das conclusões do recurso do executado.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se o despacho recorrido.
Custas do recurso pelo recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024
António Moreira
Arlindo Crua
Laurinda Gemas