Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18945/22.5T8SNT.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
AUTORIZAÇÃO
AUDIÇÃO DO REQUERIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (cf. artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
I. O regime do maior acompanhado e o processo conducente a que uma pessoa dele beneficie foram uma criação da Lei 49/2018, de 14 de agosto, que, do mesmo passo, eliminou da ordem jurídica os institutos da interdição e da inabilitação.
II. A alteração da nomenclatura foi acompanhada de profunda alteração nos regimes de que podem beneficiar as pessoas que, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, estão impossibilitadas de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres (artigo 138.º do CC); o rumo foi na direção do respeito da vontade e da autonomia do visado, sendo o regime casuisticamente definido de acordo com o necessário ao cumprimento dos seus fins  (bem-estar, recuperação, e pleno exercício dos direitos e cumprimento dos deveres do acompanhado – artigos 140.º, 145.º e 146.º do CC).
III. O acompanhamento é solicitado pelo próprio ou pelo Ministério Público, apenas o podendo ser por terceiros (cônjuge, companheiro ou parente sucessível) com autorização do futuro acompanhado (n.º 1 do artigo 141.º do CC).
IV. Se, em face das circunstâncias, o requerido (beneficiário da medida) não puder livre e conscientemente dar a sua autorização à propositura da ação, o tribunal pode supri-la (artigo 141.º, n.º 2, do CC), podendo o requerente cumular o pedido de suprimento da autorização do beneficiário com o pedido de acompanhamento (n.º 3 do mesmo artigo e diploma), e tendo, em tal caso, de alegar os factos que fundamentam a sua legitimidade e que justificam a proteção do maior através de acompanhamento (artigo 892.º, n.º 1, al. a),  e n.º 2, do CPC).
V. O tribunal aprecia as provas necessárias e suficientes para decidir a questão prévia do suprimento da autorização do requerido para a propositura da ação; para o fazer não tem de realizar todas as diligências probatórias pedidas pelo requerente. Se pela audição pessoal e direta do requerido for evidente que este está no uso de faculdades plenas, ou, pelo menos, mais do que suficientes para poder livre e conscientemente dar autorização, simplesmente não a quer dar, não vislumbrando o tribunal a existência de um fundamento atendível para o suprimento (por exemplo, grave risco para a vida ou saúde do visado, na falta de acompanhamento), a autorização requerido não deve ser suprida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
«A», filha de «R», relativamente à qual intentou a presente ação de acompanhamento de maior, com processo especial, notificada da sentença proferida em 21 de novembro de 2023, que julgou a ação improcedente, e com essa sentença não se conformando, interpôs o presente recurso.

A requerente intentou a ação alegando, em síntese, que:
- A beneficiária/requerida, nascida em …1930, é mãe da requerente;
- A requerente tem uma irmã mais nova, «B», com quem a beneficiária reside;
- A requerida está desorientada no tempo e no espaço, não consegue andar na rua sozinha, não consegue cozinhar uma refeição, não tem discernimento para tomar a sua medicação, não se veste sozinha, não conhece o valor do dinheiro, tem dificuldade em manter, com sentido, uma conversa simples, não tem, enfim, capacidade de gerir a sua vida, sendo que quem o faz por si é a filha mais nova, sem qualquer controlo;
- A requerida não tem, como tal e também, capacidade para exercer o cargo de cabeça-de-casal da herança indivisa por óbito de seu marido;
- A irmã mais nova da requerente tem impedido a requerente de visitar a mãe, de a acompanhar aos médicos, de se inteirar do seu estado de saúde, enfim, de dela se ocupar.
Termina pedindo que se a requerida permaneça ao cuidado de ambas as filhas, residindo alternadamente com cada uma delas em períodos de 15 dias, que as consultas sejam acompanhadas por ambas, que a requerida seja inibida de tomar decisões sobre o seu património sem o suprimento do tribunal, que seja exonerada da obrigatoriedade de ser cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do marido, e que ambas as filhas sejam nomeadas suas tutoras.
Notificada para se pronunciar sobre a demanda, a irmã mais nova opôs-se à pretensão da requerente.
A requerida contestou, impugnando os factos e impetrando pela improcedência da ação.

Realizada avaliação neuropsicológica da requerida, consta do respetivo relatório: «foi possível apurar que o funcionamento cognitivo da examinada revela um Quociente de Inteligência Global compatível com uma Inteligência “Normal Reduzida”, quando comparada com outros sujeitos da sua faixa etária. Apesar de não terem sido apurados sinais de deterioração mental, apuraram-se indícios de deterioração mnésica, em grau ligeiro, sendo necessário considerar este resultado com prudência, uma vez que questões mnésicas que exigem o uso da visão (e.g., teste de reprodução visual) não foram contempladas derivado da situação particular da examinada. Desta forma, constata-se mantida alguma capacidade de raciocínio verbal (i.e., compreensão, conceptualização e abstração) por parte da examinada a par de uma certa capacidade de juízo moral. Contudo, a par da acentuada diminuição da capacidade visual da examinada, apuram-se dificuldades ao nível do seu desenvolvimento e conhecimento geral e fragilidades no que respeita aos seus processos atencionais, tendo-se, igualmente, denotado um certo grau de impulsividade» (conclusões do relatório de 10/07/2023).

O exame pericial psiquiátrico concluiu não existir (nem nas peças processuais, nem nos elementos clínicos) referência a doença psiquiátrica relevante, que «da avaliação efetuada em conjugação com o resultado de avaliação psicológica, não se verifica qualquer impacto funcional que ultrapasse as características próprias de pessoa com a diferenciação académica, cultural e etária da examinanda. Aliás, as dificuldades apresentam-se essencialmente como sendo, sensoriais i.e., hipovisão e hipoacusia que na verdade, não são graves e não comprometem sequer a realização da presente avaliação médico-legal. Assim, no caso concreto, admite-se existir apenas alguma dificuldade do raciocínio complexo decorrente de eventual deterioração própria da idade. No entanto, esta dificuldade não é suficiente para configurar relevante perturbação cognitiva, conseguindo a requerida responder e colaborar na entrevista percebendo a sua situação e dificuldades pragmáticas. (…)
Deverá manter seguimento médico regular, que a examinanda aceita e está consciente, na especialidade de medicina geral, neurologia e cardiologia.
O regime do maior acompanhado trata essencialmente de suprir ou reduzir a capacidade de exercício de um determinado individuo, sendo que a presunção da manutenção da capacidade jurídica constitui a regra geral e a exceção será, pois, a inexistência da incapacidade. O recurso adaptado – que cremos existir - às normas que regulam a incapacidade por menoridade, implica na nossa modesta opinião que o acompanhamento de maiores se exerça de modo a que seja dado espaço de realização à capacidade concreta existente no/a Requerido/a. Igualmente, constituindo este instituto uma restrição da liberdade individual, as situações previstas devem considerar-se taxativas e insuscetíveis de aplicação analógica, sendo que na impossibilidade de prova objetiva de incapacidade, deve presumir-se a capacitação.
Adicionalmente, deste caso em particular, extrai-se, salvo melhor opinião e devido respeito, que a manutenção dos direitos de cidadania da beneficiária, parece ser a solução que melhor serve à estabilidade da requerida, mesmo em termos de saúde mental, ou seja, a que para si é menos geradora de stress desestabilizador e potencialmente catalisador de incapacitação.
Pelas razões atrás aduzidas, estamos em crer que, salvo melhor opinião e devido respeito, a Decisão a ser tomada deverá ir no sentido da não procedência da Acão» (conclusões do relatório de 31/10/2023).

A requerida foi ouvida em juízo.

O Ministério Público pronunciou-se pela improcedência da ação, por ilegitimidade da requerente para a sua propositura (considerando a falta de autorização da requerida para o efeito e a capacidade desta para a dar).

Em 21/11/2023 foi proferida sentença que absolveu a requerida da instância por ilegitimidade da requerente para a propositura da ação.

A requerente não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1) A presente sentença incorre num vício de nulidade da sentença, nos termos e para os efeitos do artigo 615.º n. 1, alínea c) e d), do Código de Processo Civil, que ora se suscita.
2) Uma vez que a sentença proferida, não se pronuncia sobre os relatórios juntos aos autos, quer do Centro de Saúde de São Marcos, quer do Hospital Egas Moniz, sobre o estado de saúde da requerida.
3) Não fazendo análise crítica e fundamentada sobre essa matéria alegada nos referidos relatórios, de extrema relevância para a presente decisão.
4) Também não se pronunciou nem nos autos, nem agora na Douta Sentença, e como tal, nem ordenou a realização de exame neuropsicológico, fundamental para aferir o verdadeiro estado de saúde da requerida, para tomar decisões sobre a sua vida, apesar de peticionado pela Requerente, e recomendado pelo Hospital Egas Moniz, no seu relatório.
5) Não se pronunciou o Douto Tribunal, sobre o pedido de acompanhamento das técnicas da segurança social a requerida em ambiente familiar a fim de elaborarem relatório sobre o seu estado de saúde, bem como da sua capacidade de independência para gerir o básico do seu dia a dia.
6) Não individualizou os factos provados ou não provados, bem como os seus fundamentos e direito aplicável.
7) Tornando esta sentença incoerente, omissa e imprecisa nos termos do art.º 615º, nº 1, al. b) do CPC, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
8) Fulcral em toda a sentença é o dever de fundamentação das decisões, o qual tem consagração constitucional (art.º 205º, nº 1 da CRP) e está também previsto no art.º 154º do CPC.
9) O Douto Tribunal a quo baseou a sua sentença única e exclusivamente no relatório do Instituto de Medicina Legal, que foi feito com base em escalas interpretativas, que não comtemplam exames médicos, nem tão pouco preencheu todos os quesitos necessários para a tomada da presente decisão.
10) Sem prescindirmos que o referido relatório, tem a participação da filha mais nova da requerida, interveniente no presente processo, e a quem esta sentença beneficia, estando totalmente comprometido o referido relatório por imparcialidade que lhe é devido.
11) Igualmente é omissa a Douta Sentença, da qual se recorre, no que respeita ao peticionado ao longo do processo, pela requerente, de retomar os contactos com a sua progenitora mãe, atento que a sua irmã mais nova, os proibi-o por completo, nem prestando qualquer informação sobre o estado de saúde da mesma, mesmo quando solicitado.
12) A presente impugnação é feita nos termos do disposto no artigo 640º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil.
13) A presente sentença viola os direitos fundamentais da ora requerente nos artigos artigo, 26º n.º 1, 36º n. º6, da Constituição da República Portuguesa.»

A requerida e o Ministério Público responderam ao recurso, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) A sentença enferma de nulidade?
b) A matéria de facto deve ser alterada?
c) A sentença deve ser revogada?

II. Fundamentação de facto
A 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos:
1. A beneficiária não apresenta qualquer impacto funcional que ultrapasse as características próprias de pessoa com a diferenciação académica, cultural e etária da mesma.
2. O funcionamento cognitivo da beneficiária revela um Quociente de Inteligência Global compatível com uma Inteligência “Normal Reduzida”, quando comparada com outros sujeitos da sua faixa etária.
3. As dificuldades que a beneficiária apresenta situam-se essencialmente ao nível sensorial, isto é, hipovisão e hipoacusia que não são graves.
4. Existe alguma dificuldade do raciocínio complexo decorrente de eventual deterioração própria da idade, não provocando, no entanto, relevante perturbação cognitiva.
5. A beneficiário tem capacidade para, de forma livre e consciente, decidir da necessidade de lhe ser aplicada uma medida de acompanhamento.

III. Apreciação do mérito do recurso
1. Enquadramento jurídico necessário à apreciação desta ação
O regime do maior acompanhado e o processo conducente a que uma pessoa beneficie do respetivo estatuto foram uma criação da Lei 49/2018, de 14 de agosto, que, do mesmo passo, eliminou da ordem jurídica os institutos da interdição e da inabilitação, antes previstos nas mesmas normas.
As interdições e inabilitações decretadas à data da entrada em vigor da citada lei converteram-se automaticamente em medida de acompanhamento com poderes gerais de representação do acompanhante e em medida de acompanhamento com poderes de autorização do acompanhante, tendo os tutores e curadores passado a ter o estatuto de acompanhantes, e prevendo-se a revisão de todos os processos de interdição e inabilitação anteriores à entrada do novo regime (artigo 26.º da Lei 49/2018).
As alterações incidiram sobretudo nos artigos 138.º a 156.º do Código Civil e 891.º a 904.º do Código Civil, mas alcançaram também inúmeras outras normas dos mesmos códigos e, ainda, do Código do Registo Civil, do Código de Processo Penal, do Código das Sociedades Comerciais, do Código Comercial, do Regime de Proteção das Uniões de Facto, da Lei de Saúde Mental, do Regulamento das Custas Processuais, do Regime Legal de Concessão e Emissão de Passaportes, da Lei de Investigação Clínica, do Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online, da Lei do Jogo, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, entre outros diplomas. Todas as referências legais a incapacidades por interdição ou por inabilitação, que não tenham sido expressamente alteradas pela Lei 49/2018, passaram a ser tidas como remissões para o regime do maior acompanhado, com as necessárias adaptações (artigo 23.º da Lei 49/2018).
A alteração da nomenclatura foi acompanhada de profunda alteração nos regimes de que podem beneficiar as pessoas que, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, estão impossibilitadas de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres (artigo 138.º do CC).
O acompanhamento é decidido pelo tribunal após audição pessoal e direta do beneficiário (e ponderadas as provas) – assim o afirma o artigo 139.º, n.º 1, do CC. Ou seja, a audição pessoal e direta do beneficiário é imprescindível.
O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença; e não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam (artigo 140.º do CC).
Repare-se na diferença de linguagem, de finalidades, de pressupostos… Onde agora lemos o que consta dos três precedentes parágrafos, antes liamos: «Podem ser interditos do exercício dos seus direitos todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrem incapazes de governar suas pessoas e bens», «o interdito é equiparado ao menor», sendo-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, «as disposições que regulam a incapacidade por menoridade e fixam os meios de suprir o poder paternal», «pertence ao tribunal por onde corre o processo de interdição a competência atribuída ao tribunal de menores nas disposições que regulam o suprimento do poder paternal».
Acresce que, no atual regime, o acompanhante é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, e só na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário (artigo 143.º do CC). Por outro lado, a medida de acompanhamento limita-se ao necessário e o seu conteúdo é casuístico: o que for pedido, se deferido, podendo o tribunal completar com algum ou alguns dos regimes indicados nas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 145.º do CC e/ou com «intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas» (alínea e)).

Prosseguindo, chegamos à norma que esteve no âmago da resolução desta ação: O acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público (n.º 1 do artigo 141.º do CC). Com uma válvula de segurança: se, em face das circunstâncias, o beneficiário não puder livre e conscientemente dar a sua autorização à propositura da ação, o tribunal pode supri-la (n.º 2 do mesmo artigo). O pedido de suprimento da autorização do beneficiário pode ser cumulado com o pedido de acompanhamento (n.º 3 do mesmo artigo).
De par com estas normas de direito substantivo, o artigo 892.º do CPC (o segundo do título «Do acompanhamento de maiores», que regula os trâmites do novo processo instituído pela Lei 49/2018), estabelece que, no requerimento inicial, o requerente tem de, entre o mais, alegar os factos que fundamentam a sua legitimidade e que justificam a proteção do maior através de acompanhamento (al. a) do n.º 1); e, nos casos em que for cumulado pedido de suprimento da autorização do beneficiário, deve o requerente alegar os factos que o fundamentam (n.º 2 do mesmo artigo e diploma).

Em suma, onde antes havia um elenco taxativo de causas de incapacidade (anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira), há agora conceitos de mais elevado nível de generalidade (saúde, deficiência ou comportamento); onde antes havia a imposição da incapacidade ao visado, temos agora o beneficiário a requerer o acompanhamento ou, pelo menos, a autorizar a propositura da ação; onde antes figurava o elenco das pessoas a serem nomeadas tutoras ou curadoras, agora prevalece a vontade do beneficiário na escolha do acompanhante; onde antes havia regimes fechados, determinados na lei, temos agora a determinação casuística do regime, em função das necessidades do acompanhado e com preservação da sua liberdade e autonomia, na medida do que for adequado ao seu bem-estar, recuperação, e pleno exercício dos seus direitos e cumprimento dos seus deveres.

Entre os princípios ordenadores do atual regime: a subsidiariedade, pois a medida de acompanhamento só tem lugar quando as finalidades que com ela se prosseguem não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação e assistência (artigo 140.º, n.º 2, do CC); a salvaguarda da vontade do sujeito, desde logo porque o acompanhamento tem de ser requerido pelo próprio maior carecido de proteção ou com autorização deste, ressalvados os casos de propositura da ação pelo Ministério Público (artigo 141.º do CC); o respeito pela autonomia da pessoa, sendo o acompanhante escolhido pelo acompanhado (artigo 143.º, n.º 1, do CC); e, um princípio de necessidade, expresso no artigo 145.º, n.º 1, do CC, nos termos do qual o acompanhamento se limita ao necessário (identificando estes princípios, Mafalda Miranda Barbosa, «Maiores acompanhados: da incapacidade à capacidade?», Revista da Ordem dos Advogados, I-II, 2018, pp. 231-258).
Aderimos à sua reflexão conclusiva: «do que ficou dito, podemos concluir que situações pontuais podem conduzir à exclusão da capacidade do sujeito. Porém, tal incapacitação é determinada pela real necessidade concreta do sujeito, não sendo imposta de forma generalizante, sempre que se verifique um fundamento do acompanhamento. A esta aliam-se outras vantagens: a preservação da autonomia do beneficiário, conjugada com um princípio de subsidiariedade e de necessidade, determina a ausência de um elenco taxativo de fundamentos do acompanhamento, ao mesmo tempo que nos permite aplicar a medida em situações transitórias. Ademais, garante-se que o próprio beneficiário possa decidir acerca do seu acompanhamento futuro, através da figura do mandato em previsão da incapacidade» - ob. cit., pp. 257-8, ênfases acrescentadas.

Na situação dos autos, a requerente, filha da requerida/beneficiária, não tinha a autorização da mãe para propor a ação, pelo que, no requerimento inicial, cumulou o pedido de acompanhamento com um pedido de suprimento da autorização da beneficiária. Sucede que o tribunal a quo não supriu o consentimento da requerida, e bem, pois, como melhor veremos, a requerida estava no uso de faculdades plenas, ou, pelo menos, mais do que suficientes para poder livre e conscientemente dar autorização, simplesmente não quis dá-la, nem tão-pouco havia razões para que a desse.

2. Da invocada nulidade da sentença
Entende a recorrente que a sentença enferma de nulidade, integrando os factos que reputa geradores de nulidade nas alíneas b), c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Para suportar esta sua pretensão, diz a recorrente, em suma, que a sentença:
- não se pronuncia sobre os relatórios juntos aos autos, relativos ao estado de saúde da requerida, realizados pelo Centro de Saúde de São Marcos e pelo Hospital Egas Moniz;
- não analisa crítica e fundamentadamente o que consta desses relatórios;
- não individualiza os factos provados ou não provados, nem os seus fundamentos e o direito aplicável;
- é omissa no que respeita ao peticionado ao longo do processo, pela requerente, de retomar os contactos com a sua progenitora mãe, atento que a sua irmã mais nova, os proíbe por completo e não lhe presta informação sobre o estado de saúde da mãe de ambas.
Mais alega que, no curso dos autos, não foi ordenada a realização de exame neuropsicológico, fundamental, no entender da requerente, para aferir o verdadeiro estado de saúde da requerida para tomar decisões sobre a sua vida; nem foi ordenado o requerido relatório sobre o estado de saúde e capacidade de independência para gerir o básico do seu dia a dia, a realizar com acompanhamento das técnicas da segurança social em ambiente familiar.

Vejamos, ponto por ponto.
i. Da invocada nulidade da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC: falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão
A sentença elencou os facto que considerou provados e relevantes para a apreciação da causa, os mesmos que reproduzimos acima no ponto II.
Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência (n.º 4 do artigo 607.º do CPC).
Ainda que imediatamente a seguir ao rol dos factos, o tribunal tenha discorrido sobre o artigo 141.º do CC e jurisprudência sobre o tema, em seguida, quase todo o texto da sentença é dedicado a justificar a capacidade da requerida, constante dos factos.
Assim, lê-se na sentença:
«Ora, no âmbito dos presentes autos procedeu-se, entre o mais, à audição da beneficiária que, conforme referido pelo M.P., se constatou que esta se desloca por si mesma, de bengala, e apresenta um discurso fluído, não denotando confusão do pensamento e revelando coerência nas respostas às questões colocadas, assim como orientação no espaço e no tempo. Referiu residir com a filha mais nova e o genro, que a acompanham sempre nas consultas médicas e em tudo o mais que necessite, dizendo confiar plenamente em ambos.
Mencionou ter outra filha mais velha, com quem disse não se dar muito bem, e acrescentou ter três netos da filha mais filha e já ter também bisnetos. Afirmou conseguir fazer a sua higiene sozinha, sendo relativamente autónoma no que respeita a alimentação e vestuário, e que, no resto, conta com o auxílio de uma empregada. Disse possuir uma conta bancária onde é depositada a sua pensão, no valor de € 200,00, mas que é o genro que faz a sua gestão.
Respondeu que saiu da casa da filha mais velha por ter sido daí expulsa, e que não quer viver de 15 em 15 dias com cada uma das filhas. Questionada sobre quem escolheria para a acompanhar/ajudar, respondeu que não precisa de ninguém, porque ainda sabe o que faz, mas que se tivesse de escolher, seria a filha mais nova e o genro, que são quem já a ajuda em tudo.
Indagada sobre o seu património, referiu ter armazéns e rendas, dizendo ser ela própria a geri-los, afirmando conhecer o dinheiro, notas e moedas.
Por outro lado, resulta do relatório de avaliação psicológica instrumental (11-07-2023), entre o mais, que “o funcionamento cognitivo da examinada revela um Quociente de Inteligência Global compatível com uma Inteligência “Normal Reduzida”, quando comparada com outros sujeitos da sua faixa etária”, sendo que o relatório pericial (31.10.2023) concretizou, ainda, que “(…) não se verifica qualquer impacto funcional que ultrapasse as características próprias de pessoa com a diferenciação académica, cultural e etária da examinada” e que “(…) não existem razões significativas de saúde ou de deficiência mental ou de comportamentos conducentes a incapacidade atual para o exercício dos seus direitos de forma consciente e de acordo com a vontade que a própria consegue aparentemente formar (…) a sua capacitação para o exercício dos seus direitos e cumprimento dos seus deveres, pode ser garantido através da aplicação de outros regimes de apoio (social), ou instrumentos voluntários, ou decorrente porventura de deveres gerais de cooperação e assistência familiar, maximizando-se desta forma o princípio da máxima efetividade dos seus direitos fundamentais devendo ser preferida a interpretação (médico-legal) que menos ponha em causa esses mesmos direitos constitucionalmente protegidos”, concluindo que “(…) a manutenção dos direitos de cidadania da beneficiária, parece ser a solução que melhor serve à estabilidade da requerida, mesmo em termos de saúde mental, ou seja, a que para si é menos geradora de stress desestabilizador e potencialmente catalisador de incapacitação”.
Não podemos ainda esquecer que a beneficiária veio opor-se ao prosseguimento dos autos, não admitindo o pedido de suprimento de autorização, por o considerar “totalmente injustificado”.
Ora, nestas situações, é de entender que a atividade e colaboração do perito é essencial para determinar se a beneficiária pode livre e conscientemente autorizar a outorga de poderes processuais, ou se, face às circunstâncias, esta não pode livre e conscientemente autorizar a condução do processo.
Assim sendo, e fazendo um resumo do acima consignado, temos de concluir que nada nos autos permite concluir que a beneficiária não tem as condições psicológicas que lhe permitem tomar e manifestar uma decisão livre e consciente acerca da autorização para a propositura da ação de maior acompanhado, uma vez que no relatório pericial se refere expressamente que “(…) não existem razões significativas de saúde ou de deficiência mental ou de comportamento conducentes a incapacidade atual para o exercício dos seus direitos de forma consciente e de acordo com a vontade que a própria consegue aparentemente formar. Salvo melhor opinião e devido respeito e independentemente da ponderação jurídica que apenas ao Tribunal compete, a sua capacitação para o exercício dos seus direitos e cumprimento dos seus deveres, pode ser garantido através da aplicação de outros regimes de apoio (social), ou instrumentos voluntários, ou decorrente porventura de deveres gerais de cooperação e assistência familiar, maximizando-se desta forma o principio da máxima efetividade dos seus direitos fundamentais devendo ser preferida a interpretação (médico-legal) que menos ponha em causa esses mesmos direitos constitucionalmente protegidos».
Houve, portanto, fundamentação da decisão de facto, e extensa.
Se não tivesse havido, caberia a este tribunal supri-la nos termos do disposto no artigo 665.º do CPC.   
No que respeita à fundamentação de direito, o tribunal a quo, como referimos, inverteu a ordem e colocou-a antes da fundamentação dos factos. Pode não ser a melhor técnica, mas não gera nulidade.

ii. Da invocada nulidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC: oposição entre fundamentos e decisão ou ocorrência de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível
Manifestamente não se verifica esta nulidade. Os fundamentos, de facto e de direito, afirmam clara e consistentemente a capacidade da requerida, e a decisão é a eles conforme: não tendo havido autorização da requerida para a propositura da ação, nem havendo fundamento para suprir aquela autorização, a requerente não tem legitimidade para propor a ação e a requerida é absolvida da instância.

iii. Da invocada nulidade da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC: omissão de pronúncia sobre questões que devesse apreciar
O artigo 608.º do CPC, epigrafado «Questões a resolver - Ordem do julgamento», estabelece que a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica; e que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim foi feito. O tribunal a quo apreciou as provas necessárias e suficientes para decidir a questão prévia do suprimento da autorização da requerida para a propositura da ação. Para o fazer não tinha de realizar todas as diligências probatórias pedidas pela requerente. Quanto a relatórios juntos ao processo pela requerente, o facto de o juiz não os ter mencionado na sentença não significa que não os tenha analisado, mas simplesmente que o seu conteúdo não é de molde a pôr em causa os factos que considerou provados, tendo em conta os meios de prova por indicados na mesma sentença.
Fundamental era a audição da requerida, que fez. Entretanto, o tribunal tinha ordenado e foram realizados exames forenses, dos foros da psicologia e da psiquiatria, que também foram consentâneos com a capacidade da requerida.
O tribunal a quo expressou na sentença «que nenhuma outra diligência processual cumpre realizar, sendo que os autos contêm já os elementos necessários para a decisão da questão do suprimento do consentimento».

De concluir que a sentença é válida. Se enfermasse de alguma das apontadas nulidades caberia a este tribunal supri-la, visto os autos conterem todos os elementos a tanto necessários (artigo 665.º do CPC).
A latere diremos que a inquirição da requerida foi, na nossa ótica, suficiente para, sem mais, se perceber a capacidade mental da mesma e a impossibilidade de se lhe nomear um acompanhante contra a sua vontade. A requerida depôs longamente, a instâncias da meritíssima juíza, tendo respondido às mais variadas questões com propriedade, acerto e consistência. Fê-lo, ainda, de forma espontânea, com riqueza de pormenores e com muita expressão. Concretizando, alguns exemplos, respondeu o seu nome completo, o dia e mês de nascimento, embora não recordando o ano; referiu que a data de registo não era a data de nascimento efetiva, como muitas vezes naquele tempo sucedia, pois «o pai tinha 8 filhos e às vezes não havia dinheiro para pagar logo» o registo; quanto à idade, «92, quase 93»; indicou a morada completa, no Cacém; reside com a filha mais nova, de quem também disse o nome completo; sim, tem uma filha mais velha, «essa é que me fez cá vir, com 92 anos», «não me dou bem nem mal, ela é que me faz estas coisas a mim, não posso dizer muito bem»; pela mais nova «tenho sido sempre acarinhada, ela é que me tem acompanhado»; «eles [filha mais nova e genro] é que me levam aos médicos e que pagam»; «recebo uma pensão de 200 e tal euros», o genro levanta para fazer face às despesas da requerida; tem bisnetos 2 raparigas e um rapaz; não recordou há quantos anos vive com a filha mais nova, foi «desde que a minha filha mais velha me pôs fora de casa»; antes vivia com a mais velha mas a dada altura ela disse-lhe que não a podia ter mais lá em casa; «não cozinho, tenho medo de mexer no fogão, mas se tiver de aquecer uma sopa ou o comer, aqueço no micro-ondas»; «tenho uma empregada que me dá banho e se não tiver tomo banho sozinha e visto-me sozinha»; a relação com a filha mais velha não é boa «porque ela quer coisas que não pode querer», «os bens não são só dela»; «tomo medicamentos, mas é a minha filha que mos arranja»; «gosto de viver com a minha filha mais nova»; «não estou de acordo em ficar 15 dias com cada uma»; «não quero, ela não manda em mim», «tenho 92 anos e sei bem aquilo que faço e aquilo que digo»; a filha mais velha tem ido visitá-la, «chega, fala, pergunta se estou bem, se estou melhor, eu digo que sim, e pronto»; às perguntas sobre o seu estado de saúde, respondeu que tem estado doente, teve uma broncopneumonia, fez uma operação à hérnia, outra ao coração; à pergunta se tem ido a médicos, «tenho ido a todos os senhores que me mandam ir, a minha filha leva-me»; à pergunta «se o tribunal entendesse que precisava de uma pessoa para a acompanhar, quem acha que devia ser», depois de insistir que «não precisa de ninguém» como acompanhante, acaba por dizer que, se precisasse, era a sua filha «B» que escolheria.
Enfim, como começámos por referir, a tudo respondeu com propriedade, coerência e espontaneidade. Apenas amiúde pediu para repetir, porque nitidamente não ouvia bem.

Não tendo a requerente legitimidade para a propositura da ação, não tinha o tribunal a quo de apreciar outras questões, nomeadamente a relativas a uma hipotética medida de acompanhamento, que ficaram prejudicadas.

3. Da impugnação da matéria de facto
Nas alegações de recurso, a recorrente, após discorrer sobre as nulidades que imputa à sentença, afirma, na p. 6:
«A presente impugnação é feita nos termos do disposto no artigo 640º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil.»
O mesmo sucede nas conclusões, após 11 conclusões sobre nulidades, escreve:
«12) A presente impugnação é feita nos termos do disposto no artigo 640º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil.»

O citado número do artigo 640.º do CPC tem a seguinte redação:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
A requerente, manifestamente, não cumpriu nenhum dos referidos ónus, nem no corpo das alegações, nem nas conclusões do recurso; não explicitou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, não indicou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre esses pontos, nem especificou os factos que entendia estarem provados no lugar dos impugnados.
Consequentemente, rejeita-se o recurso da matéria de facto.

Concluindo:
A requerida não autorizou a requerente a propor uma ação de acompanhamento de maior a ela relativa.
Provou-se que a requerida está no uso de faculdades que lhe permitem, de forma consciente e livre, dar autorização para a propositura da ação, e não se vislumbra qualquer fundamento atendível para que o tribunal supra a sua autorização.
Logo, não se verificam os pressupostos para o referido suprimento da autorização da requerida (artigo 141.º do CC).  
Consequentemente, a requerente não tem legitimidade para a propositura da ação (além do indicado artigo do CC, artigo 892.º do CPC).
Todos os factos alegados na ação e no recurso sobre a vivência da requerida, a ajuda que lhe é prestada pela outra filha, a eventual falta de convívio com a requerente, a eventual falta de acompanhamento e conhecimento pela requerente de dados de saúde da requerida, a eventual influência que a outra filha tem sobre as decisões de vida da requerida, etc., são insuscetíveis de ser aqui apreciados. A requerida conta com a ajuda informal de quem entende e é, do alto dos seus 93 anos, senhora da sua vontade, não desejando nem necessitando de um acompanhante formal.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 08/02/2024
Higina Castelo (relatora)
Pedro Martins (primeiro adjunto)
Laurinda Gemas (segunda adjunta)