Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
251/16.6IDSTB.L2-3
Relator: FRANCISCO HENRIQUES
Descritores: EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/03/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
2. O arguido é gerente de duas sociedades: uma delas, que só tem um funcionário (o arguido), presta à outra serviços de consultoria na área de captação de serviços. A captação de serviços é precisamente uma das funções de um gerente de uma sociedade. Ou seja, o arguido gerente pede consultadoria ao arguido trabalhador de outra sociedade. Não é impossível, mas, sem mais, não é de acordo com as regras da experiência, e, conjugado com os restantes factos apurados, revela a existência de um erro notório na apreciação da prova.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
No processo comum, com intervenção do tribunal singular com n.º 251/16.6IDSTB, foi proferida sentença a 23/04/2025 pelo Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Lisboa do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa que decidiu:
- absolver AA da prática, em autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p., nos artigos 103.º n.º 1 alínea a), n.º 2 e 104.º n.º 2 alínea a) da Lei n.º 15/2001, de 05/06 (Regime Geral das Infracções Tributárias) pela qual vinha pronunciado;
- declarar extinto o procedimento criminal contra "BB".
Inconformado o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões:
"1. Nos presentes autos, os arguidos BB e AA foram submetidos a julgamento e absolvidos da acusação contra eles formulada pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 5º, 7º, n.º 3, 103º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, 104º n.º 2, alínea a) do RGIT aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5/06.
2. Dessa decisão interpôs o Ministério Público recurso.
3. Por Acórdão datado de 21.04.2024 foi concedido provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, referindo-se no mesmo que, "(…) o Tribunal não fundamentou a sua decisão de forma conveniente a pontos de tornar a mesma compreensível. Mas o mais grave é a questão documental. É que o Tribunal refere os documentos mas não explica porque é que estes documentos são tão relevantes. No fundo, o que é que deles resulta que permita afastar a prova de primeira impressão que resulta de todo o quadro existente aquando da dedução da acusação."
4. E continua, "o Tribunal não explica, não fundamenta, porque é que os documentos têm a virtualidade de afirmar a versão do arguido em detrimento da versão da acusação. E mais o Tribunal não explica porque e como é que o contrato foi cumprido e já agora não se debruça sobre a data da perfeição do contrato escrito".
5. O que veio a determinar a nulidade da decisão, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 379.º e n.º 2 do 374.º, ambos do CPP, tendo ficado prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo Ministério Público.
6. Nessa senda, no dia, 23.04.2025, o Tribunal recorrido proferiu nova sentença por imposição do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
7. Porém, quanto a nós, a sentença recorrida continua a padecer dos mesmos vícios da anterior sentença declarada nula pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
8. Assim sendo, as razões da discordância relativamente à nova sentença proferida prendem-se com a falta de fundamentação da matéria de facto (artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, alínea a) do Cód. de Processo Penal), erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a matéria de facto e a decisão (art.º 410.º, n.º 2, al. b), bem como discordância ao enquadramento jurídico dos factos.
9. No que respeita à falta de fundamentação, continua a constar da motivação da matéria de facto não provada, para além de considerações acerca da prova testemunhal, que os factos não provados resultam de quarenta e um documentos juntos pelo arguido (desprovidos de análise por parte do Tribunal, que não explica em que medida estes documentos são relevantes para afastar "a prova de primeira impressão que resulta de todo o quadro existente aquando da dedução da acusação".
10. Sucede que, na ausência de qualquer outra explicação, continua a não ser perceptível quais os documentos que fundamentaram aquela decisão quanto aos factos provados, nomeadamente quanto ao facto de o arguido ter declarado ter pago tudo o que tinha para pagar.
11. Deste ponto de vista, continua a constatar-se que da fundamentação da matéria de facto provada não resultam quais os exactos documentos que sustentaram aquela decisão, pelo que continua a incorrer a nova sentença em nulidade nos termos dos artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, alínea a) do Cód. de Processo Penal.
12. Por outro lado, continua a resultar da matéria de facto dada como provada sob os pontos s) e t) da douta sentença, "s) As facturas em causa correspondem a um contrato celebrado, de prestação de serviços, entre a ... e a BB que foi, realmente, prestado e executado nos de 2015 e 2016. t) Tal prestação de serviços tem como contrato "físico" que se encontra nos autos".
13. Contudo, encontra-se junto aos autos a fls. 279 a 281, contrato de prestação de serviços referente ao período compreendido entre ... de ... de 2015 e ... de ... de 2016.
14. Mas resulta da prova documental constante dos autos que aquele documento foi criado em ........2018 (fls. 373, 423 a 425 e 277 a 281).
15. Assim sendo, continua a não se compreender como a Mmª Juiz dá como provada a existência de contrato, colocando entre aspas a expressão "físico" quando aquele contrato é nitidamente forjado por ter sido elaborado aquando da solicitação por parte da Autoridade Tributária de documentação de suporte às facturas emitidas.
16. Neste sentido, resulta evidente que o tribunal a quo deu como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido, fazendo-o de uma forma ilógica, arbitrária e notoriamente violadora das regras da experiência.
17. Ainda que assim não se entenda, ao dar como provada a existência de um contrato, ao mesmo tempo que omite a data de produção daquele, a Mmª Juiz incorre em contradição insanável entre a matéria de facto e a fundamentação.
18. Deste modo, a douta sentença incorreu em erro notório na apreciação da prova e em contradição entre a fundamentação e a decisão, nos termos do artigo 410º, n.º 1, alíneas b) e c) do Cód. de Processo Penal.
19. A conduta típica do crime pelos quais os arguidos vêm pronunciados consiste na ocultação ou alteração de factos ou valores fiscalmente relevantes, englobando o encobrimento fáctico de dados e informações de forma a dificultar a sua comprovação por parte da administração fiscal, traduzindo-se num não revelar, informar ou dar a conhecer elementos nas declarações de rendimentos apresentadas. Por seu lado, a alteração ocorre quando se deturpam os referidos dados e informações, de molde a modificar a realidade tributária.
20. Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, o agente visa obter vantagem patrimonial ilegítima, actuando este com intenção defraudatória dirigida à obtenção dessas vantagens através da diminuição das receitas tributárias.
21. No caso dos autos, decorre da matéria de facto provada a emissão de facturas por parte da sociedade ... à sociedade arguida, gerida pelo arguido, sem qualquer suporte documental ou físico da respectiva estrutura empresarial, pelo que, não se compreende como pode a Mmª Juiz legitimar a emissão de todas aquelas facturas e inerente prejuízo patrimonial causado ao Estado.
22. Pelo exposto, atendendo a todos os elementos supra expostos, não restam dúvidas de que a conduta dos arguidos integrou os elementos objectivos e subjectivos do crime de fraude fiscal por que foram acusados, pelo que, a Mmª Juiz deveria tê-los condenado em conformidade".
O arguido AA apresentou resposta, tendo concluído pela improcedência do recurso e para tal formulou as seguintes conclusões:
"1. A Sentença ora colocada em crise não enferma de nenhum vício que possa originar nulidade.
2. A Meritíssima Juiz fez uma ponderação adequada das provas produzidas e num juízo criterioso assente nas regras da experiência comum.
3. A análise designadamente da prova documental foi realizada com elevado sentido de indagação para que o Direito fosse aplicado.
4. Os fundamentos em que o Recorrente baseia a sua inconformidade não encontram eco no teor da Sentença colocada em decesso.
5. Ponto da desconformidade "mor" do Recorrente é alicerçado na ausência de documento escrito ou na sua não correspondência temporal quantos aos factos a apura e que originaram o desenvolvimento comercial.
6. Para a validade da prestação de serviços e consequente incremento de faturação questionada pelo Recorrente a lei não exige formalidade ou forma escrita ou de documento escrito.
7. A substância das relações comerciais basta se com a consensualidade.
8. O incremento e maior facturação foi cabalmente demonstrada e justificada e assente na contabilidade.
9. O Tribunal a quo não merece pois qualquer critica porquanto aplicou o Direito perante a prova produzida com as melhores regras de sagacidade, exame critico, adequação às regras e principio da experiencia comum.
10. A Meritíssima Juiz formou a sua convicção de modo consentâneo à melhor prática judicial.
11. Assim e porquanto a Sentença não enferma de nenhum vício deve a mesma ser dada por válida nos seus exactos termos".
Os autos subiram a este Tribunal e nos mesmos o Ministério Público elaborou parecer em que conclui pela procedência do recurso.
Uma vez que o parecer adere às razões fundamentos da resposta não houve (nem tinha de haver) cumprimento do disposto no artigo 417.º n.º 2 do Código Processo Penal.
Os autos foram a vistos e a conferência.
2. Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º n.º 2 do Código Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr., Acórdão do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995 e artigos 403.º n.º 1 e 412.º n.º 1 e n.º 2, ambos do Código Processo Penal).
Inexistindo questões de conhecimento oficioso que importe decidir e face ao teor das conclusões da motivação apresentadas, nos presentes autos as questões a apreciar respeitam: à falta de análise crítica da prova, ao erro vício, nas modalidades de contradição insanável e erro notório na apreciação da prova.
3. Fundamentação
A sentença recorrida no que respeita à factualidade provada e não provada e respectiva fundamentação tem o teor que segue.
"2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1. – Matéria de facto provada
a) A BB, com o NIPC ..., tinha como actividade o desenvolvimento, consultoria e apoio a projectos imobiliários de construção, arquitectura, design e implementação de soluções de interiores e exteriores, bem como importação, exportação de materiais, revestimentos, sanitários e acessórios associados à construção, a que cabe o CAE 47523; tinha sede na ...
b) Em sede de IVA, a Sociedade estava enquadrada no regime normal trimestral, sendo que, em IRC, era tributada pelo regime geral.
c) A ..., com o NIPC ..., foi uma representação permanente com estabelecimento estável, tendo domicílio fiscal em ....
d) A empresa estava registada pela actividade principal de "Outras actividades de consultadoria para os negócios e a gestão", com o CAE 70220, apresentando também como actividade secundária a "Construção de edifícios (residenciais e não residenciais)" a que cabe o CAE 41.200.
e) Em sede de IVA, a Sociedade esteve enquadrada no regime normal trimestral, tendo cessado a sua actividade em .../.../2017.
f) A representação permanente foi cessada e registada comercialmente no dia .../.../2011, tendo a matrícula sido cancelada em .../.../2011.
g) O AA foi o representante da ..., desde .../.../2007 até .../.../2011.
h) O AA não foi sócio fundador da BB, mas gerente da mesma desde ........2012.
i) A ..., teve um "funcionário" em Portugal, pois uma pessoa bastaria para desenvolver a actividade a que tal sucursal se propunha; o AA.
j) O Arguido tem currículo e competências para desenvolver a actividade referida em i): terminou o ensino secundário nos ..., na ...; Licenciou-se em ... da ..., com especialização em ...; tirou o Mestrado em ... na ..., concluiu o estágio de ... na ..., trabalhou na área de ....
k) A representação ..., nos anos de ...1...-2016, não teve veículos, imóveis ou contratos de arrendamento; e a sua sede situava-se numa garagem abandonada.
l) Mas, a própria natureza jurídica de uma sucursal, estando associada a uma sociedade comercial com sede no estrangeiro (sociedade-mãe), cujos recursos humanos e materiais podem estar localizados no estrangeiro, não tem necessariamente que ter qualquer representação para além de uma só pessoa.
m) Na era da digitalização em que vivemos, uma sucursal não tem que ter uma sede física, imóveis ou contratos de arrendamento para que seja considerada boa ou verdadeira.
n) Tal estrutura é típica de empresas e normais sociedades, dotadas de personalidade jurídica e sede em Portugal, e não de sucursais.
o) Nos anos de 2015 e 2016, a ... não efectuou qualquer movimento bancário na sua conta existente no ..., de que o AA é único titular com poderes de movimentação.
p) A ... e a BB não simularam uma prestação de serviços.
q) A ... emitiu as facturas que se descriminam, e a BB pagou-as do seguinte modo:
a. Para o pagamento da factura ..., emitida em .../.../2015, no valor total de € 30.047,77, foi emitido o cheque nº ...;
b. Para o pagamento da factura ..., emitida em .../.../2015, no valor total de € 39.717,50 foi emitido o cheque nº ...;
c. Para o pagamento da factura ..., emitida em .../.../2015, no valor total de € 44.985,64 foi emitido o cheque nº ...;
d. Para o pagamento da factura ..., emitida em .../.../2016, no valor total de € 22.583,72 foi emitido o cheque nº ...;
e. Para o pagamento da factura..., emitida em .../.../2016, no valor total de € 29.933,81 foi emitido o cheque nº ....
r) As facturas acima descritas não titularam operações inexistentes; tais operações existiram e são materialmente verdadeiras.
s) As facturas em causa correspondem a um contrato celebrado, de prestação de serviços, entre a ... e a BB que foi, realmente, prestado e executado nos anos de 2015 e 2016.
t) Tal prestação de serviços tem como contrato "físico" o que se encontra nos autos.
u) A ..., pela mão do seu representante, o AA, por força das suas aptidões e valências, executou diligências de angariação de clientes e serviços de intermediação para a compra de serviços, bens e execução de empreitadas por parte da BB, contribuindo para a internacionalização dos negócios da empresa, nomeadamente no mercado Angolano.
v) Por essa prestação de serviços, a BB acordou pagar 25% (vinte e cinco por cento) do valor dos negócios angariados por parte da ....
w) A BB actuava no mercado de importação e comercialização de materiais de construção e decoração, como é caso de equipamentos de banho, revestimento e pavimentos.
x) Por efeito da execução do contrato por parte da ..., existiu um incremento significativo das encomendas efectuadas à BB, consequentemente da sua facturação nos anos de 2015 e 2016, conforme se poderá verificar do IES / Declaração Anual de Informação Contabilística e Fiscal.
y) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foram efectuadas 34 encomendas, no ano de 2015, no valor total de 36.802,40 €.
z) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foram efectuadas 2 encomendas, no ano de 2015, no valor total de 131.847,14 €.
aa) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foram efectuadas 6 encomendas, no ano de 2015, no valor total de 46.882,20 €.
bb) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foram efectuadas 5 encomendas, no ano de 2015, no valor total de 16.849,83 €.
cc) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foi efectuada 1 encomenda, no ano de 2015, no valor total de 7.274,66 €.
dd) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foi efectuada 1 encomenda, no ano de 2016, no valor total de 119 €.
ee) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foram efectuadas 2 encomendas, no ano de 2016, no valor total de 21.777,57 €.
ff) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foram efectuadas 3 encomendas, no ano de 2016, no valor total de 39.994,68 €.
gg) Por referência à sociedade M. ..., NIF ..., foram efectuadas 2 encomendas, no ano de 2016, no valor total de 38.819,49 €.
hh) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foram efectuadas 3 encomendas, no ano de 2016, no valor total de 4.213,12 €.
ii) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foram efectuadas 19 encomendas, no ano de 2016, no valor total de 48.522,19 €.
jj) Por referência à sociedade ... LDA., NIF ..., foram efectuadas 4 encomendas, no ano de 2016, no valor total de 7.960,49 €.
kk) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foram efectuadas 12 encomendas, no ano de 2016, no valor total de 7.940,10 €.
ll) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foram efectuadas 20 encomendas, no ano de 2016, no valor total de 64.123,35 €.
mm) Por referência à sociedade ..., NIF ..., foram efectuadas 2 encomendas, no ano de 2016, no valor total de 71.557,96 €.
nn) A evidência do contributo da ... para a actividade da BB traduziu-se em: - 12 clientes, 116 notas de encomendas, no valor total somado dos anos de 2015 e 2016 de 544.684,18 € (quinhentos, quarenta e quatro mil, seiscentos e oitenta e quatro euros e dezoito cêntimos), tudo devidamente contabilizado, facturado e espelhado nas contas do IES.
oo) Tais negócios eram conhecimento da Contabilista da ..., DD.
pp) A ... prestou um serviço à BB.
qq) A BB operava no mercado desde ..., e sempre cumpriu, sem excepção, com os pagamentos a todos os fornecedores e prestadores de serviço.
rr) Nos anos de 2015 e 2016, a ... não efectuou qualquer movimento bancário na conta existente no ... de que o AA é único titular com poderes de movimentação, uma vez que essa conta bancária era de uma outra sucursal, que não está em causa nestes autos; e que, à data dos factos, já se encontrava encerrada e sem actuar em Portugal.
ss) O número de contribuinte dessa sucursal era (NIF) ..., sendo que a ..., em causa nestes autos, tinha o NIF ....
tt) Pelo que, os cheques mencionados na acusação foram emitidos ao portador, porque a ... não tinha, na data da prestação de serviços, qualquer conta bancária aberta junto de instituição financeira.
uu) Os montantes acima descritos, pagos pela prestação de serviços efectuada, iriam destinar-se a abrir uma conta bancária e a pagar o IVA devido.
vv) Todas as agências bancárias a que o AA se dirigiu, antes de terem sido efectuados os pagamentos em cheque, se recusaram a abrir conta bancária para a ..., dado que esta não dispunha de quaisquer montantes para abrir conta bancária.
ww) Na altura, todas as agências bancárias afirmaram que, assim que fosse concretizado algum capital pela ..., a mesma poderia dirigir-se a um balcão para, através de um depósito em numerário, abrir a conta bancária.
xx) Porém, no dia .../.../2016, data em que fez o levantamento, o AA foi vítima de um furto no ..., sito na Av. ....
yy) Logo, aquando do acontecimento relatado, o Arguido explicou à Contabilista da ..., DD, o sucedido.
zz) Esse furto foi registado no balancete acumulado entre saldos iniciais de 2016 e final de 2016.
aaa) Tal valor foi, de igual modo, contabilisticamente refletido no IES / Declaração Anual de Informação Contabilística e Fiscal, demonstração de resultados do ano de 2016.
bbb) Apenas não se encontra aí registado como furto, porquanto não é possível introduzir essa mesma indicação no formulário "desenhado" pela AT.
ccc) Nesse momento de singular transtorno, AA perdeu todo o fruto do trabalho da ..., sabendo que ficaria impedido de cumprir com as obrigações fiscais da ..., no que ao IVA e IRC diz respeito.
ddd) AA não apresentou, na altura, queixa-crime, porque bem sabe, e as regras da experiência comum ditam, que não tendo qualquer pessoa testemunhado o que aconteceu, não tendo o aqui Arguido visualizado a pessoa que levou a sua bolsa, qualquer processo que fosse instaurado para investigação do furto descrito não surtiria qualquer efeito e seria arquivado.
eee) A AT mantém os processos de execução fiscal e pretende cobrar coercivamente o IVA e IRC à ...:
1. IRC, período do imposto de 2015, proc. nº ..., com quantia exequenda de € 28.067,38; IRC,
2. período do imposto de 2016, proc. nº ... com quantia exequenda de € 9.642,18;
3. IVA, relativo ao período do imposto de imposto de ... (factura 2015ª1/151), proc. nº ..., com quantia exequenda de € 5.618,69;
4. IVA, relativo ao período do imposto de imposto de ... (facturas 2015ª1/156 e 2015ª1/157), proc. nº ..., com quantia exequenda de € 15.838,80;
5. IVA, relativo ao período do imposto de imposto de ... (factura 2015ª1/161 e 2015ª1/162), proc. n.º ..., com quantia exequenda de € 9.820,35.
fff) A ... notificada para pagar os valores devido a título de IVA com vista à eventual extinção do procedimento criminal.
ggg) A ... requereu o pagamento em prestações do IVA que era devido
hhh) Tais processos só se encontram suspensos em virtude de plano de pagamento a prestações elaborados e pela própria iniciativa da AT.
iii) Assim o Estado reconhece essas dívidas à ..., conforme decorre da certidão do ..., emitida a .../.../2021.
jjj) A BB não tem qualquer dívida, como atesta certidão do ..., emitida a .../.../2021.
kkk) O Arguido AA é ... e ..., auferindo cerca de 1.000€, por mês; tem uma filha de 35 anos de idade; vive em casa de sua irmã.
lll) Não tem antecedentes criminais.
mmm) A matrícula da BB encontra-se cancelada.
*
2.2. - Matéria de facto não provada
Com interesse para a decisão, não resultou provado:
Da Acusação
- que o AA fosse, em exclusivo, o responsável pela gestão administrativa e financeira, em nome e por conta da BB;
- que as facturas que a seguir se discriminam, emitidas com o descritivo Prestação de serviços de consultaria, gestão e management, não correspondessem à verdade;
- que tenha sido ciente de as mesmas não corresponderem à verdade, que o AA, nas datas abaixo indicadas, na sua sede, por si e no interesse exclusivo da ... e da representada ..., emitiu as facturas que a seguir se indicam:
FACTURADATAMONTANTE TOTALIVAVALOR LÍQUIDOPERÍODO DE IMPOSTO (IVA)FLS.
FT2015Al/15131-03-2015€ 30.047,77€ 5.618,69€ 24.429,082015/03T309v
FT2015Al/15607-12-2015€ 39.717,50€ 7.426,85€ 32.290,652015/12T109
FT2015Al/15729-12-2015€ 44.985,64€ 8.411,95€ 36.573,692015/12T108
FT2016A1/16129-02-2016€ 22.583,72€ 4.222,97€ 18.360,752016/03T116
FT2016Al/16228-03-2016€ 29.933,81€ 5.597,38€ 24.336,432016/03T115
TOTAL________€ 167268,44€ 31277,84€ 135990,60_________________
- que tenha sido para melhor simular a prestação dos alegados serviços, que o AA efectuou as seguintes operações bancárias:
- Para o pagamento da factura 2015A1/156, emitida em .../.../2015, no valor total de € 39.717,50 foi emitido o cheque nº ...;
- Para o pagamento da factura 2015ª1/157, emitida em .../.../2015, no valor total de € 44.985,64 foi emitido o cheque nº ...;
- Para o pagamento da factura 2015A1/161, emitida em .../.../2016, no valor total de € 22.583,72 foi emitido o cheque nº ...;
- Para o pagamento da factura 2015A1/162, emitida em .../.../2016, no valor total de € 29.933,81 foi emitido o cheque nº ...;
- Para o pagamento da factura 2015A1/151, emitida em .../.../2015, no valor total de € 30.047,77, foi emitido o cheque nº 69216923;
- que tenha sido para melhor simular a prestação dos alegados serviços, que, para o pagamento desses cheques, a conta nº ... do ... da BB., cujo único titular com poderes de movimentação é o AAfoi previamente creditada, no mesmo dia .../.../2016, por 3 movimentos nos valores de € 58.000,00, € 45.000,00 e € 55.000,00, proveniente da conta nº 46454064.10.001 do ... de que é titular a sociedade ...", sociedade da qual é sócio gerente o arguido AA e por ordem deste;
- A factura 2015A1/157 emitida em .../.../2015, no valor total de € 44.985,64 foi paga através do cheque n.º ..., o qual foi levantado ao balcão, em numerário, no dia .../.../2016. Nesse mesmo dia foi feito um depósito desse mesmo valor, € 44.985,64, na conta bancária da ... acima indicada;
- A factura 2015A1/161 emitida em .../.../2016, no valor total de € 22.583,72 foi paga através do cheque n.º ..., sendo que a factura 2015A1/162 emitida em .../.../2016, no valor total de € 29.933,81 foi paga através do cheque n.º ..., tendo ambos os cheques sido levantados ao balcão, em numerário, no dia .../.../2016. A soma destas duas facturas perfaz o montante de € 52.517,53. Ora nesse mesmo dia, .../.../2016, foi feito um depósito desse mesmo valor na conta bancária da ... acima indicada;
- A factura 2015A1/156 emitida em .../.../2015, no valor total de € 39.717,50 foi paga através do cheque nº ..., sendo que a factura 2015A1/151 emitida em .../.../2015, no valor total de € 30.047,77 foi paga através do cheque n.º 69216923, tendo ambos os cheques sido levantados ao balcão, em numerário, no dia .../...12016. A soma destas duas facturas perfaz o montante de € 69.765,27. Ora nesse mesmo dia, .../.../2016, foi feito um depósito desse mesmo valor na conta bancária da ... acima indicada;
- que as facturas descritas supra sejam falsas e que titulem operações inexistentes;
- que tenha sido com o objectivo da diminuição do imposto a pagar, que a emissão das facturas constantes do quadro supra foram registadas na contabilidade da BB o que permitiu a esta sociedade, não só a dedução do IVA das mesmas nas respectiva declarações periódicas nos períodos respectivos, bem como a sua inclusão como gastos do período das mesmas nos anos de 2015 e 2016, originando a diminuição do lucro tributável apurado na Modelo 22 e consequentemente diminuição do IRC apagar;
- que o os Arguidos tenham tido como único objectivo a diminuição do imposto a pagar por parte da Decosan, uma vez que esta aproveita a dedução do IVA e a diminuição dos custos, em sede de IRC, suportados com as facturas acima descritas; ao qual acresce o facto da representação da ... estar cessada e cancelada desde ........2011, não tendo por isso personalidade jurídica;
- que, deste modo, a vantagem patrimonial obtida em sede de IVA pela BB tenha sido a seguinte:
FACTURAIVA
DEDUZIDO
PERÍODO DE IMPOSTO (IVA)
FT2015Al/151€ 5.618,692015/03T
FT2015Al/156€ 7.426,852015/12T
FT2015Al/157€ 8.411,952015/12T
FT2016A1/161€ 4.222,972016/03T
FT2016Al/162€ 5.597,382016/03T
TOTAL€ 31277,84________
- que, em sede de IRC, a vantagem patrimonial obtida em sede de IRC pela BB tenha sido a seguinte:
FACTURADATAGASTOS DO PERÍODO (VALOR LÍQUIDO)TAXA
IRC
VANTAGEM PATRIMONIAL ILEGÍTIMA
FT2015Al/15131-03-2015€ 24.429,08
FT2015Al/15607-12-2015€ 32.290,65
FT2015Al/15729-12-2015€ 36.573,69
TOTAL 2015€93.293,4221%€ 19.591,62
FT2016A1/16129-02-2016€ 18.360,75
FT2016Al/16228-03-2016€ 24.336,43
TOTAL 2015€ 42.697,1821%€ 8.966,41
TOTAL GERAL€ 135 990,60€ 28.558,03
- que o AA, no interesse e representação da BB, tenha agido com o propósito conseguido de diminuírem a tributação a título de IVA e IRC, utilizando para tal facturas que titulam operações inexistentes na contabilidade que reflectiram nas declarações fiscais que apresentaram a título de IVA e IRC, nos anos de 2015 e 2016, auferindo vantagens patrimoniais ilegítimas, causando prejuízos ao Estado de valor equivalente, colocando em crise o regular funcionamento do sistema fiscal e dos interesses por este servidos;
- que os Arguidos tenham agido livre e conscientemente, embora sabendo que tais condutas eram reprovadas e punidas por lei.
*
2.3. – Motivação
"O que significa (…), exactamente, livre apreciação da prova, valoração desta segundo a livre convicção do juiz? (…) se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária tem evidentemente esta discricionaridade (…) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo (…). (…) Do mesmo modo, a «livre» ou «íntima» convicção do juiz, de que se fala a este propósito, não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. (…) Se a verdade que se procura é, já o dissemos, uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (máxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando (…) o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável."
[Jorge de Figueiredo Dias – Direito Processual Penal – 1ª ED. 1974 Reimpressão – Coimbra Editora 2004, pág. 202 e ss.]
O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do AA, relativamente aos factos cuja prática negou, afirmando que as contas são públicas, a prestação de serviços existiu, o negócio não foi fictício, e a BB pagou tudo o que tinha a pagar, no que respeita ao IVA; sustentou as suas declarações com a prova documental que juntou aos autos. Mais esclareceu as vicissitudes por que passou, na altura. Recordou que faziam um trabalho de angariação de clientes, um trabalho comercial e de divulgação do produto. O que gerou um acréscimo de facturação. Na altura trabalhavam com o ..., sendo que o Arguido tem muitos contactos, nomeadamente em .... O Arguido deu o exemplo de parcerias que desenvolveram com a ..., e com a .... Mais atendeu o Tribunal às suas declarações, relativas às respectivas condições pessoais, familiares e profissionais.
Atendeu o Tribunal ao depoimento de DD, Contabilista da BB, desde 2013 até ...1.../2017. A depoente esclareceu que também era a Contabilista certificada da ..., a qual era uma sucursal espanhola. Para desempenhar funções junto da BB, foi o Arguido quem a contratou. A depoente deslocava-se todos os meses à sede da BB, onde também fazia a contabilidade da .... Revelou conhecimento da existência de um contato de prestação de serviços entre a ... e BB, tendo-o visto. Tratava-se de serviços de consultoria e de apoio empresarial. Mais esclareceu se tratou do princípio da actividade da ... em Portugal, por cerca de 2014, e aquelas foram as suas facturas iniciais. Na altura, houve aumento de facturação na BB, recordando a depoente que foram realizados negócios, nomeadamente, com ... e .... Mais esclareceu que entregou tudo aquilo que as Finanças solicitaram. A testemunha prestou um depoimento claro, denotando um conhecimento dos factos que resulta das suas funções de Contabilista, nomeadamente da BB, um depoimento sem obscuridades ou contradições que se afigurou objectivo e isento; pelo que mereceu inteiro crédito ao Tribunal.
Atendeu o Tribunal ao depoimento de EE, Inspectora da AT.. A depoente esclareceu que teve intervenção no início da investigação à ..., por suspeitas da prática de crime de abuso de confiança fiscal. No que respeita às facturas à BB, considerou que as mesmas exibiam um descritivo vago do serviço. Quanto ao Arguido, afirmou que o mesmo era sócio-gerente de ambas as Sociedades; o que não correspondia à realidade. Mais esclareceu que, posteriormente, a investigação continuou com a testemunha FF. A testemunha denotou um conhecimento lacunar e muito difuso dos factos; ainda assim, afigurou-se objectiva e isenta.
Atendeu o Tribunal ao depoimento de GG, Inspector da AT., o qual coordenou a investigação que deu origem ao presente processo. O depoente esclareceu que, inicialmente, a investigação dirigia-se à ..., por suspeitas da prática de crime de abuso de confiança fiscal; a ... era uma sucursal. No que respeita às facturas à BB, as mesmas suscitaram-lhe dúvidas quanto à prestação do serviço. Fizeram uma busca, e não existia nada, nem a empresa tinha pessoal. Concluiu o depoente que as facturas eram falsas, e que não titulavam verdadeiras transacções. Afirmou o depoente que fez uma investigação superficial de variações de ganhos da BB, a qual qualificou como uma empresa normal. No que respeita à produção de prova relativa à matéria em investigação, pediram autorização aos Bancos, reconhecendo o depoente que estes não as devem dar; mas, como estes a deram, a culpa é dos Bancos (!). A testemunha evidenciou um conhecimento difuso e pouco aprofundado dos factos; ainda assim, denotou objectividade e isenção.
Atendeu o Tribunal ao depoimento de FF, Técnico da AT.. O depoente esclareceu que a investigação se dirigia à ...; mas, não se recorda de ter investigado a BB. Porém, no que respeita às facturas desta, as mesmas suscitaram-lhe dúvidas, quanto à prestação do serviço que se lhe afigurou um bocado vago. Fizeram uma busca, e não existia uma estrutura empresarial. Concluiu o depoente que não havia actividade empresarial, que as facturas eram falsas, e que não titulavam verdadeiras transacções ou operações. Reconhece, no entanto, que não é obrigatória a existência de um suporte físico para a actividade. Afirmou o depoente, no que respeita à produção de prova relativa à matéria em investigação, que pediu autorização ao Ministério Público, para obter informação bancária. A testemunha evidenciou um conhecimento difuso, pouco aprofundado dos factos, e, sobretudo, muito marcado pelas suas próprias convicções, não tendo investigado a fundo a matéria em apreço, não tendo investigado a fundo as duas empresas, a forma como estas se articularam e o contrato de prestação de serviços que, efectivamente, celebraram; ainda assim, denotou objectividade e isenção.
Atendeu o Tribunal ao depoimento de HH, Especialista em Informática junto da AT. O depoente esclareceu que interveio nas buscas e procedeu à extracção de ficheiros nos computadores da empresa. Talvez tenha a recolha sido feita com base em palavras-chave. Quando assim é, copiam e colocam num contentor fechado. A testemunha evidenciou um conhecimento difuso dos factos; ainda assim, denotou objectividade e isenção.
Atendeu o Tribunal ao depoimento de II, Inspector da AT. O depoente esclareceu que interveio numa diligência perto das ..., e estava acompanhado da testemunha anterior. Fizeram, então, uma recolha de prova digital, mas não se recorda se a pesquisa foi por palavras-chave. É feita a recolha de muita coisa, mas nem tudo interessa. Os passos subsequentes foram realizados por outra pessoa. A testemunha evidenciou um conhecimento difuso dos factos; ainda assim, denotou objectividade e isenção.
Atendeu o Tribunal ao depoimento de JJ, Perito Informático junto da AT. O depoente esclareceu que não se recorda da situação em causa. Tendo sido confrontado com o exame pericial de fls. 418 a 425, e, logo após, com fls. 425, afirmou que uma coisa nada tinha a haver com a outra; e mais não disse. A testemunha evidenciou um conhecimento muito difuso dos factos; ainda assim, denotou objectividade e isenção.
Os documentos juntos aos autos, nomeadamente as várias notas de encomendas e correspectivos documentos contabilísticos evidenciam, a nosso ver, a realidade da empresa, e reflectem prestações de serviços que foram cumpridas. E não podemos deixar de realçar que nos encontramos no âmbito de um contrato de prestação de serviços.
Porém, e não obstante, houve o cuidado, por parte dos Arguidos, em verter documentalmente essa realidade empresarial.
Traduzem uma demonstração de desempenho, um aumento de facturação em termos significativos, e uma progressão nos negócios da empresa, mormente com ....
A Senhora Contabilista DD, ouvida em audiência de julgamento, corroborou a realidade traduzida na documentação, não nos tendo a credibilidade do seu depoimento suscitado qualquer dúvida.
Aliás, os documentos juntos aos autos foram-no ainda na fase de Instrução. E, de então para cá, não foram objecto de qualquer impugnação.
Pelo que se nos afigura que, até ao Ministério Público, tais documentos não suscitaram qualquer dúvida, tal como não suscitam ao Tribunal.
Assim, atendeu o Tribunal aos quarenta e um documentos juntos com o requerimento de abertura de Instrução, de fls. 655 a 799, bem como à certidão permanente do registo comercial a fls. 348 a 351, ao documento de fls. 279, ao contrato de prestação de serviços, que se encontra a fls. 280 e 281 dos autos; ao doc. IES / Declaração Anual de Informação Contabilística e Fiscal (doc.s 1 e 2, juntos com aquele requerimento), à tabela junta como documento nº 3, bem como as notas de encomendas realizadas (doc. nº 4), à tabela junta como documento nº 5, bem como as notas de encomendas realizadas juntas como documento nº 6, à tabela junta como documento nº 7, bem como as notas de encomendas realizadas juntas como documento nº8, à tabela junta como documento nº 9, bem como as notas de encomendas realizadas juntas como documento nº 10, à tabela junta como documento nº 11, bem como a nota de encomenda realizada junta como documento nº 12, à tabela junta como documento nº 13, bem como a nota de encomenda junta como documento nº 14, à tabela junta como documento nº 15, bem como as notas de encomendas realizadas juntas como documento nº 16, à tabela junta como documento nº 17, bem como as notas de encomendas realizadas juntas como documento nº 18, à tabela junta como documento nº 19, bem como as notas de encomendas realizadas juntas como documento nº 20, à tabela junta como documento nº 21, bem como as notas de encomendas realizadas juntas como documento nº 22, à tabela junta como documento nº 23, bem como as notas de encomendas realizadas juntas como documento nº 24, à tabela junta como documento nº 25, bem como as notas de encomendas realizadas juntas como documento nº 26, à tabela junta como documento nº 27, bem como as notas de encomendas realizadas juntas como documento nº 28, à tabela junta como documento nº 29, bem como as notas de encomendas realizadas juntas como documento nº 30, à tabela junta como documento nº 31, bem como as notas de encomendas realizadas juntam como documento nº 32; ao documento nº 33, onde se poderá ver inscrito o valor de 167.268,44€ (cento e sessenta e sete mil euros e duzentos e sessenta e oito euros e quarenta e quatro euros) em "Outro activos Correntes (Furto)"; ao documento nº 2, acima junto, indicado na parcela de A5125 "Outros activos correntes"; aos documentos nºs 34, 35, 36, 37, 38; ainda, ao teor de fls. 154 e 155, à comunicação electrónica junta como documento nº 39; ao teor de fls. 533 a 535 dos autos, assim como da certidão do ... emitida a .../.../2021, junta como documento nº 40, e ao documento nº 41.
Mais atendeu o Tribunal aos seguintes documentos: - De folhas 39, 45 (Autos de Notícia); - De folhas 51 a 65, 93 a 96, 178, 182 a 188, 211 a 236 (prints do Sistema informático da AT, assim como cópias das declarações de imposto); - De folhas 97 a 100 (prints da declaração periódica de IV A); - De folhas 107 a 109, 114 a 116, 267 a 276, 297 a 300, 309 a 314 (elementos contabilísticos, facturas, extratos de conta, balancetes); -Cópias de cheques e levantamentos de fls. 135 a 138, 142 a 145; - De folhas 239 a 243,252 a 260, (relatos de diligência externa); - De folhas 279 a 281 (contrato de prestação de serviços enviado pela sociedade BB); - Cópia das facturas e meios de pagamento (cheques) de fls. 282 a 293; - Elementos bancários da contado ... A de fls, 303 a 305 e 342 a 344; - Auto de busca e apreensão de fls. 370 a 373; - De folhas 374 a 390 (elementos informáticos e documentação apreendida, nas buscas realizadas); - Declaração do ... relativo ao cheque 69216928,69216933 de fls, 379 a 380; - Extrato da conta nº ... do ... relativamente às transferências da ... de fls. 381 a 385; - Relatório de extracção de ficheiros informáticos de fls. 419 a 425 e disco externo do apenso I; - De folhas 430 a 472 (extractos bancários da sociedade ... do ...); - De folhas 474 a 483 (talões de depósito do ... da conta pertencente a ...); - Parecer (art. 42º, nº3, do RGIT) de fis. 540 a 549; - Certidão permanente da sociedade ... de fls. 594 a 596 e verso; - Certidão permanente da sociedade arguida BB de fls. 597 a 598 e verso.
Antecedentes criminais: C.R.C. junto aos autos.
A matéria de facto dada como não provada encontra o seu fundamento na circunstância de a prova testemunhal se ter mostrado lacunar e contraditória; sendo que o
Arguido negou a prática dos factos, afirmando peremptoriamente a existência de um contrato de prestação de serviços entre a ... e a BB, bem como a fidedignidade das facturas referidas supra. Mas, acima de tudo, resulta da prova documental junta pela Defesa na fase de Instrução, quarenta e um documentos que, no entender do Tribunal, sustentam a tese do Arguido".
3.1. Do mérito do recurso.
Da falta de análise crítica da prova.
Na senda do primeiro recurso interposto – o qual declarou nula a decisão proferida nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º e n.º 2 do artigo 374.º, ambos do Código Processo Penal –, o recorrente volta a invocar a nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova.
Com efeito, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 21/02/2024, escreveu-se que:
"Ora, lida a motivação de facto, temos para nós que o Tribunal não fundamentou a sua decisão de forma conveniente a pontos de tornar a mesma compreensível.
Não existem dúvidas que a contribuição do arguido é clara: nega os factos e refere que tudo fez correctamente no âmbito de um contrato.
Quanto à prova testemunhal, o Tribunal refere onde é que a mesma foi lacunar e o porquê mas não indica uma única instância em que a mesma seja contraditória.
Mas o mais grave é a questão documental. É que o Tribunal refere os documentos mas não explica porque é que estes documentos são tão relevantes. No fundo, o que é que deles resulta que permita afastar a prova de primeira impressão que resulta de todo o quadro existente aquando da dedução da acusação.
Vejamos:
O arguido é gerente de duas sociedades: uma delas, que só tem um funcionário (o arguido), presta à outra serviços de consultoria na área de captação de serviços. A captação de serviços é precisamente uma das funções de um gerente de uma sociedade. Ou seja, o arguido gerente pede consultadoria ao arguido trabalhador de outra sociedade.
Não é impossível, mas, sem mais, não é de acordo com as regras da experiência.
Depois o mistério adensa-se, embora seja perfeitamente irrelevante para efeitos da sociedade arguida: A sociedade paga em cheques ao portador ?; 167.268,44€ (cento e sessenta e sete mil duzentos e sessenta e oito euros e quarenta e quatro cêntimos) em cheques? Os quais não são depositados em banco porque um banco não abre uma conta ?
Tudo soa mal … como se não se tratassem de negócios entre sociedades geridas por alguém que, como o Tribunal refere, é muito qualificado para a função e que seguramente sabe que a abertura de contas bancárias e algo simples e que meios de pagamento não devem ser ao portador pois que são a forma de seguir o rasto ao dinheiro.
Enfim … nada disto é explicado. O Tribunal não explica, não fundamenta, porque é que os documentos têm a virtualidade de afirmar a versão do arguido em detrimento da versão da acusação. E mais o Tribunal não explica porque e como é que o contrato foi cumprido e já agora não se debruça sobre a data da perfeição do contrato escrito.
E tal leva, inevitavelmente, à nulidade da decisão.
Tal nulidade não pode ser suprida nesta instância pois que assenta na convicção formada a qual não pode ser afirmada em primeira instância por este Tribunal".
E, proferida nova sentença pelo tribunal a quo, veio o recorrente alegar que:
"Sucede que, na ausência de qualquer outra explicação, não é percetível quais os documentos que fundamentaram aquela decisão quanto aos factos não provados, nomeadamente quanto ao facto de o arguido ter declarado ter pago tudo o que tinha para pagar. No fundo, e como se diz no douto Acordão do Tribunal da Relação que se pronunciou sobre o nosso anterior recurso, "(…) porque é que esses documentos são tão relevantes. (…) o que é que deles resulta que permita afastar a prova de primeira impressão que resulta de todo o quadro existente aquando da dedução da acusação".
E, acrescenta que "deste ponto de vista, constata-se que da fundamentação da matéria de facto provada e não provada não resultam quais os exactos documentos que sustentaram aquela decisão, pois são enumerados, mas nunca analisados, pelo que quanto a nós continua a incorrer a douta sentença em nulidade nos termos das disposições "supra" citadas".
Dispõe o artigo 374.º n.º 2 do Código Processo Penal que:
"Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal".
O Senhor Juiz Conselheiro Henriques Gaspar relatou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/03/2005, proferido no processo 05P662, sumariado da seguinte forma:
"1. O artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), que dispõe sobre os "requisitos da sentença" (relatório – nº l; fundamentação – nº 2; e dispositivo ou decisão stricto sensu, indica no nº 2 os elementos que têm de integrar a fundamentação, da qual deve constar uma «exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
2. A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.
3. A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão.
4. O tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico contido numa decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.
5. O "exame crítico" das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular fundamentação em matéria de facto – mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência.
6. A noção de "exame crítico" apresenta-se como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito.
7. O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
8. A integração das noções de "exame crítico" e de "fundamentação envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos".
Analisada a sentença recorrida, conclui-se que na mesma a decisão de facto se encontra fundamentada e, incluindo, exposto o exame crítico das provas.
Com efeito, no acórdão recorrido encontram-se enunciadas as "razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção".
E, de tal forma foi efectuado o exame crítico que perante a sua leitura é compreensível as razões que levaram o julgador a dar maior credibilidade aos diferentes meios de prova.
Com efeito, a análise crítica da prova documental não pode ser levada ao extremo de impor que o tribunal de julgamento proceda a uma análise exaustiva de cada um dos documentos juntos ao processo e que fundamentam a convicção criada.
Lida a fundamentação da decisão de facto compreende-se que, perante os documentos juntos na fase instrutória, o tribunal a quo convenceu-se que os mesmos retratam uma realidade verdadeira e não uma ficção, como pretende entender o recorrente.
Assim sendo, o tribunal recorrido fez a análise critica dos meios de prova e fundamentou de forma compreensível a convicção que formou da análise do acervo probatório produzido no processo.
Questão distinta consiste na averiguação da validade da análise da prova feita pelo tribunal recorrido. Assim, a análise da validade do juízo probatório efectuado é questão que se discutirá adiante.
Pelo que, nesta medida e desta feita, a argumentação do recorrente não merece acolhimento.
Do erro vício, nas modalidades de contradição insanável e erro notório na apreciação da prova.
Na perspectiva do erro vício, o artigo 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
Assim sendo, os vícios têm de resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àqueles estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.
O recorrente imputa à sentença recorrida o erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da matéria de facto.
Ora, o vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código Processo Penal, ocorre em quatro situações:
- quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada;
- quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada;
- quando há contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto; e,
- quando há contradição entre a fundamentação e a decisão.
O vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código Processo Penal, ocorre quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância do erro não passar despercebido ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, por ser grosseiro, ostensivo ou evidente.
É um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir à revelia das provas produzidas ou ser dado como provado facto não pode ter ocorrido.
O recorrente alegou que:
"Resulta da matéria de facto dada como provada sob o ponto s) da douta sentença: “s) As facturas em causa correspondem a um contrato celebrado, de prestação de serviços, entre a ... e a BB que foi, realmente, prestado e executado nos de 2015 e 2016.” “ t) Tal prestação de serviços tem como contrato “físico” o que se encontra nos autos.” Contudo, encontra-se junto aos autos a fls. 279 a 281, contrato de prestação de serviços referente ao período compreendido entre ... de ... de 2015 e ... de ... de 2016.
Resulta da prova documental constante dos autos que aquele documento foi criado em ........2018 (fls. 373, 423 a 425 e 277 a 281). Assim sendo, não se compreende como a Mmª Juiz continua a dar como provada a existência de contrato, colocando entre aspas a expressão “físico” quando aquele contrato é nitidamente forjado por ter sido elaborado aquando da solicitação por parte da Autoridade Tributária de documentação de suporte às facturas emitidas.
Neste sentido, resulta evidente que o tribunal a quo deu como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido, fazendo-o de uma forma ilógica, arbitrária e notoriamente violadora das regras da experiência.
Ainda que assim não se entenda, ao dar como provada a existência de um contrato, ao mesmo tempo que omite a data de produção daquele, a Mmª Juiz incorre em contradição insanável entre a matéria de facto e a fundamentação".
Em primeiro lugar, os vícios da decisão enumerados no artigo 410.º n.º 2 do Código Processo Penal devem resultar da simples análise da decisão recorrida. Na argumentação do recorrente é aduzido um elemento que não consta da sentença recorrida – a data da criação do contrato de prestação de serviços.
Este elemento era susceptível de fundamentar uma reapreciação da prova nos termos do artigo 412.º n.º 3 do Código Processo Penal – a qual está vedada a este tribunal ad quem por não ter sido invocado o erro de julgamento.
No caso em apreciação, na sentença recorrida não se verifica uma clara contradição insanável na matéria de facto.
Os factos provados são compatíveis entre si e com a fundamentação aduzida.
No entanto, existe um erro notório na apreciação da prova produzida no processo.
Já o anterior acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa apontou uma estranheza em todo o quadro factual dado como provado. Repetindo o já transcrito:
"O arguido é gerente de duas sociedades: uma delas, que só tem um funcionário (o arguido), presta à outra serviços de consultoria na área de captação de serviços. A captação de serviços é precisamente uma das funções de um gerente de uma sociedade. Ou seja, o arguido gerente pede consultadoria ao arguido trabalhador de outra sociedade.
Não é impossível, mas, sem mais, não é de acordo com as regras da experiência.
Depois o mistério adensa-se, embora seja perfeitamente irrelevante para efeitos da sociedade arguida: A sociedade paga em cheques ao portador?; 167.268,44€ (cento e sessenta e sete mil duzentos e sessenta e oito euros e quarenta e quatro cêntimos) em cheques? Os quais não são depositados em banco porque um banco não abre uma conta?
Tudo soa mal … como se não se tratassem de negócios entre sociedades geridas por alguém que, como o Tribunal refere, é muito qualificado para a função e que seguramente sabe que a abertura de contas bancárias e algo simples e que meios de pagamento não devem ser ao portador pois que são a forma de seguir o rasto ao dinheiro".
Como bem aponta este aresto, o arguido celebrou um contrato de prestação de serviços consigo mesmo – encapotado por dois veículos societários. E, pretende fazer crer que se estabeleceram reais relações comerciais entre ambas as empresas. Tendo a ... cobrado a módica quantia de € 167.268,44 pela angariação de € 544.684,18 de serviços para a "BB", o que representa mais de 30% desta facturação. De acordo com as regras da experiência comum não é comum – mas, extraordinário – uma actividade comercial produzir lucros superiores a 30% do montante facturado. Então é de crer que a "BB" produziu lucros superiores a 30% ou teve prejuízo decorrente da relação comercial que estabeleceu com a ....
Assim para além do rocambolesco da factualidade dada como provada, existe este pormenor da percentagem paga "BB" pela angariação de serviços, a qual, de acordo com as regras da experiência comum, não pode ser tida como real. Desta forma, o tribunal a quo incorreu num erro notório ao considerar como reais os serviços prestados e facturados pela ... à "BB".
Desta forma, determina o n.º 1 do artigo 426.º do Código Processo Penal, sob a epígrafe "reenvio do processo para novo julgamento", que "sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio".
Assim sendo, face à verificação do vício de erro notório na apreciação da prova, a sentença recorrida terá de ser anulada e, na impossibilidade de ser ultrapassado esse vício, deve ser determinada a realização de novo julgamento, por diferente juiz e relativamente à totalidade do objecto processual.

4. Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar provido o recurso e, consequentemente, declaram nula a sentença proferida e determinam a realização de novo julgamento, por diferente juiz e relativamente à totalidade do objecto processual.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 03 de Dezembro de 2025
Francisco Henriques
Mário Pedro M.A. Seixas Meireles
Joaquim Jorge da Cruz