Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA | ||
| Descritores: | DOCUMENTOS EM PODER DA PARTE CONTRÁRIA JUNÇÃO AOS AUTOS REQUISITOS ÓNUS DE ALEGAÇÃO PASTA DE ARQUIVO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 12/06/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | I - Nos termos do Artigo 429º, nº1, do Código de Processo Civil, cabe ao requerente alegar a efetiva necessidade e da pertinência da junção dos documentos que estejam em poder da parte contrária (situação de necessidade probatória), cabendo-lhe individualizar tais documentos de molde a habilitar a contraparte a tomar posição sobre a existência do documento e sobre a proteção de que o mesmo possa eventualmente beneficiar. II - O nosso sistema processual civil veda o acesso a uma prova exploratória na medida em que tal colide com os princípios do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes, visando obter – de forma enviesada – prova que possa sustentar eventuais novas pretensões ou meramente hostilizar a parte contrária. III - Requerer a junção pela contraparte de um dossier de crédito/ pasta de arquivos não é requerer a junção de um documento concreto, sendo que cada documento deve ser concretamente indicado. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO Em 20.6.2022, FC e MF, Embargantes, formularam o seguinte requerimento: 1. Na sequência do requerimento de junção de documentos com a ref. CITIUS nº 42427254, de 31 de Maio, os Embargantes suscitaram, logo na sessão de Audiência de Julgamento daquela data, alguns aspectos formais identificados quanto a vários dos documentos em análise, 2. Em particular, e no que aqui releva, . Quanto ao Documento nº 2, o mesmo encontrava-se ilegível e referia ser uma página 2 de 2, não se mostrando junta a página 1 de 2, tendo os Embargantes requerido que fosse junta versão completa e legível do referido documento; . Quanto ao Documento nº 3, refere-se no final da sua segunda página que se encontra junta cópia de despacho, mas esse despacho não se mostrava anexo ao documento junto, pelo igualmente requereram os Embargantes que fosse ordenada a junção do documento na íntegra. Tendo o requerido sido objecto de deferimento pelo douto Tribunal, veio a Embargada apresentar a 6 de Junho p.p. o requerimento com a ref. CITIUS nº 42490430, no qual: . Relativamente ao Documento nº 2, e apesar de juntar a sua primeira página, referiu não ser possível extrair versão mais legível; . No que respeita ao Documento nº 3, informou que o documento anexo seria "o despacho que se juntou sob o doc. Nº 4 (financiamento de 518.000,00 euros, onde se pode ler "Decisão na operação complementar")." Ora, 4. No que se refere ao aludido Documento nº 2, consideram os Embargantes que, atenta a alegada impossibilidade de junção de versão legível do documento, e a sua relevância para o que se discute nos presentes autos, se impõe a junção aos autos (v.g., para consulta a título devolutivo) do respectivo original de onde foi extraída a versão Citius, 5. Julgando-se inteiramente verificado o circunstancialismo a que alude o disposto no artigo 144º, nº 5 do CPC para que se imponha a exibição do original do documento junto via Citius; 6. Sob pena de, não sendo possível analisar tal original, se manterem os fundamentos da impugnação — ilegibilidade — oportunamente deduzidos, e que inquinam o respectivo documento. Por outro lado, 7. No que respeita ao anexo ao Documento nº 3, os Embargante entendem não poder aceitar-se a afirmação da Embargada de que este será a proposta do mútuo aprovado na mesma data. Na verdade, 8. Como resulta evidente do texto da proposta comercial constante da página 2 deste documento, o despacho anexo reporta-se a uma operação "já em fase de escritura", "com o mesmo propósito (aquisição e obras transformação de herdade rústica em Portalegre", i.e., a uma operação previamente aprovada, e não à que na mesma data se aprovou. Pelo que, 9. Mais plausível seria que se reportasse ao Despacho do mútuo de €425.000,00, cuja Escritura ocorreu no dia seguinte ao do Despacho junto como Documento nº 3. 10. O que vem de se expor, a par da circunstância de a Embargada apenas ter junto versões completas dos documentos que lhe foi ordenado juntar após requerimento dos Embargantes a apontar discrepâncias e insuficiências nos mesmos, suscita fundadas dúvidas nestes últimos sobre a fidedignidade e genuinidade dos documentos efectivamente juntos aos autos, bem como das informações prestadas sobre quais os anexos aos mesmos, 11. Quer no que concerne ao Documento nº 3 em análise, relativamente ao qual este concreto problema se logrou identificar, quer quanto aos demais Despachos, em que, eventualmente por falta de visibilidade, outras imprecisões e faltas poderão ficar por encontrar. 12. A importância da documentação em análise para os presentes autos, bem como toda a tramitação que conduziu à sua junção (marcada por uma permanente postura de dificuldade e falta de transparência exibida pela Embargada) mais justificam o que vem de se referir. Pelo exposto, Requer-se a Vossa Excelência se digne determinar a junção pela Embargada (v.g., também para consulta a título devolutivo) do original do dossier de concessão de crédito relativo aos mútuos contratados em 2008, e sua tramitação subsequente, por forma a que seja possível aos Embargantes e ao douto Tribunal examinar a aludida documentação nos termos em que a mesma se encontra arquivada, e de forma integral, E não nos moldes em que a Embargada escolhe juntá-los aos autos ou nas condições de legibilidade que a digitalização por esta efetuada permite.» Sobre tal requerimento, recaiu o despacho de com o seguinte teor [despacho impugnado]: «A alegada ilegibilidade e/ou incompletude dos concretos documentos identificados no requerimento em apreço não são de molde a colocar em crise a autenticidade ou genuinidade dos documentos junto com os requerimentos da embargada de 31/05/2022 e 06/06/2022. Por outro lado, carece de fundamento legal o pedido genérico de acesso a toda a documentação contida no dossier interno da embargada, atinente aos contratos de mútuo executados nos autos. Relembre-se que, em processo civil, não vigora o princípio da investigação, recaindo sobre as partes, desde logo, o ónus de alegar e provar os factos constitutivos dos pedidos formulados e aqueles em que se baseiam as excepções peremptórias (artigos 5º do CPC e artigo 342º do Código Civil). A esta luz, incumbe à parte o ónus de especificar os concretos documentos em poder da parte contrária a que pretende aceder, como expressamente decorre da segunda parte do nº 1 do artigo 429º do CPC. Ora, a pretensão de aceder indiscriminadamente a toda a documentação relacionada com os referidos contratos de mútuo, constantes do dossier interno da embargaria, não observa minimamente tal onus legal. Pelo exposto, indefiro o requerido. Notifique. * Sem prejuízo, notifique a exequente para, em 10 dias, juntar aos autos o original da totalidade do documento 2, constituído por duas páginas, junto com o seu requerimento de 31/05/2022.» * Não se conformando com a decisão, dela apelaram os requerentes, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES: «1. Vem o presente recurso interposto do Despacho com a ref. CITIUS nº 138502944, que indeferiu o pedido dos Recorrentes de notificação da Embargada para juntar aos autos o original do dossier de concessão de crédito relativo aos mútuos contratados em 2008, e sua tramitação subsequente, por forma a possibilitar aos Recorrentes e ao douto Tribunal o exame da documentação junta aos autos pela Embargada nos termos em que a mesma se encontra arquivada, e de forma integral. 2. Salvo o devido respeito, que muito é, não podem os Recorrentes conformar-se com a referida decisão, que fez incorrecta interpretação e aplicação do Direito aos factos em presença, em evidente prejuízo da descoberta da verdade material e consequente realização da justiça. 3. A decisão proferida assenta num pressuposto manifestamente errado — o de que o seu requerimento visaria uma autónoma junção, ex novo, de documento em poder da parte contrária, nos termos do disposto no artigo 429º, nº 1 do CPC. 4. O que os Embargantes pretendem é aceder ao contexto documental do qual os documentos já juntos se alega terem sido extraídos, por forma a assegurar o seu devido contraditório ao aludido meio de prova, nos termos do disposto no artigo 415º, nº 2 do CPC, que é manifestação do acesso ao Direito e à Justiça consagrados no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, e garantir um efectivo juízo crítico do Tribunal sobre a documentação junta. 5. Tal exibição é requerida num contexto específico, em que, tendo sido ordenada a junção de documentos cuja tipologia (os despachos de aprovação e carências respectivas dos mútuos objecto dos autos), não permite aos Embargantes (ou ao Tribunal) saber quantos documentos estão em causa, ou qual a sua composição, se constataram na junção efectuada pela contra parte diversas incongruências, devidamente identificadas nos autos, que suscitam dúvidas sobre se o ordenado — diversas vezes! — pelo Tribunal — a junção de determinados documentos — está de facto a ser cumprido. 6. Só a requerida exibição do dossier assegura o exercício do direito à prova por parte dos Embargantes e a efectiva realização da descoberta da verdade material, fim último da administração da Justiça, num quadro de manifesta falta de colaboração por parte da Embargada, em violação do disposto no artigo 417º do CPC. 7. Em todo o caso, e sem conceder, os Embargantes deram cumprimento ao disposto no artigo 429º, nº 1 do CPC, identificando, quanto possível, o dossier cuja junção se requer se encontra, e justificando devidamente a pertinência da sua junção. 8. Ao decidir diversamente fez o Tribunal a quo errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 415º, nº 2, 417º, e 429º do CPC, incorrendo igualmente numa interpretação desconforme à Constituição da República Portuguesa do artigo 20º dessa Lei Fundamental. 9. Deverá, em consequência, ser o Despacho recorrido revogado e, consequentemente, substituído por outro que defira o requerido pelos Embargantes. Termos em que, Deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o Despacho com a ref. CITIUS nº 138502944 na parte em que indeferiu o pedido dos Embargantes de junção aos autos do original do dossier de concessão de crédito relativo aos mútuos contratados em 2008, substituindo-o por outro que defira tal pedido. Assim decidindo farão Vossas Excelências JUSTIÇA!» * Contra-alegou a (...), SA, propugnando pela improcedência da apelação, formulando as seguintes Conclusões: « 1. A recorrida opôs-se à junção indiscriminada do seu dossier interno nos termos do seu requerimento apresentado em 24-06-2022, refª' Citius 21327887; 2. Os recorrentes não relacionam o pedido de acesso indiscriminado com a prova de factos concretos, tal como decorre das regras processuais, nomeadamente, do objeto da instrução: os temas da prova enunciados ou os factos necessitados de prova (art.º 410º CPC). Não o tendo feito, não pode proceder o pedido; 3. O Tribunal a quo foi impecável na aplicação do direito e reconheceu que carece de fundamento legal o pedido de genérico acesso a toda a documentação contida no dossier interna da embargada. Logo após esse despacho ordenou à recorrida a junção aos autos do original da totalidade do documento 2, constituído por duas páginas, junto com o seu requerimento de 31/05/2022, despacho que foi cumprido com o requerimento apresentado em 12/09/2022 e notificado à contraparte em 13/09/2022. Tendo sido juntos os originais aos autos, o pedido dos recorrentes torna-se objetivamente impossível, pois os documentos já não se encontram no dossier interno da embargada. 4. As dúvidas suscitadas pelos recorrentes quanto à fidedignidade e genuinidade dos documentos juntos e das informações prestadas, são apenas pretexto para o pedido que formulam quanto à junção aos autos do dossier de concessão de crédito relativo aos mútuos contratados em 2008. O dossier de concessão de crédito é composto por cinco pastas, com pelo menos 100 folhas cada, que abrangem não só os documentos juntos aos autos, como também certidões dos contratos e correspondência subsequente, inclusive comunicações entre a (…) e os mandatários. Nenhuma delas se encontra numerada nem cosida à mão como se de um processo judicial se tratasse. Ao longo dos anos, as pastas foram manuseadas para extração de documentos, estando já alguns deles manifestamente fora de ordem; 5. O pedido formulado pelos embargantes não tem cabimento legal. Por um lado, apenas está prevista a junção de documentos em poder da parte contrária nos termos do art.º 429º do CPC. Esses documentos têm que ser concretos e tudo o que foi pedido foi junto aos autos; 6. A junção dos dossiers fere o sigilo profissional, pois seria violada a correspondência trocada entre o mandatário e a cliente; 7. O contraditório está assegurado, pois a parte pode impugnar os documentos juntos pela recorrida, o que, de resto, já fez. 8. Não se vislumbra qualquer interpretação desconforme à Constituição da República Portuguesa, nomeadamente, o seu art.º 20º. Nestes termos, e contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores, deve o recurso de Apelação ser julgado improcedente e não provado, mantendo-se inteiramente o douto despacho recorrido, pois só assim se fará a costumada e sã JUSTIÇA.» QUESTÕES A DECIDIR Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2] Nestes termos, a questão a decidir consiste em saber se deve ser ordenada a junção do dossier de crédito pretendido. Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A matéria de facto relevante para a apreciação do recurso é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Nos termos do Artigo 429º, nº 1, do Código de Processo Civil: «1- Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar. 2- Se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação.» No que tange à pertinência para a decisão da causa, há que entender que «(…) um meio de prova será pertinente desde que se pretenda provar com o mesmo um facto relevante para a resolução do litígio, seja de um modo direto, por se tratar de um facto constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo, seja de um modo indireto, por se tratar de um facto que permite acionar ou impugnar presunções das quais se extraiam factos essenciais ou ainda por se tratar de facto importante para apreciar a fiabilidade de outro meio de prova» ( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 554). Na jurisprudência a propósito deste regime, ressaltam os seguintes arestos: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.2.2020, Adeodato Brotas, 492/18, com este teor: «O deferimento da junção de documento em poder da parte contrária está dependente da efectiva necessidade e da pertinência da junção: impõe-se que a parte que pretenda a cooperação do tribunal justifique, de forma convincente, que não consegue obter esses elementos e, que deles carece efectivamente para uma finalidade processual.» Cabe ao requerente especificar os factos controvertidos para cuja prova se destinam os documentos, por modo a habilitar o juízo sobre a pertinência e idoneidade dos mesmos, para os fins propostos (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.2.2022, Isoleta Costa, 26576/21). Os factos com interesse para a decisão da causa são, por princípio, os factos que cabe às partes alegar, ou seja, “os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9.9.2019, Jerónimo Freitas, 10830/17). «A razão de ser da tanto quanto possível individualização dos documentos pretendidos para efeitos instrutórios nos termos previstos no nº 1 do artigo 429º do Código de Processo Civil é a de permitir à pessoa a quem se dirige a requisição uma tomada de posição esclarecida sobre essa pretensão, designadamente sobre a existência do documento e sobre a proteção de que o mesmo possa eventualmente beneficiar ou, dito de outro modo, para possibilitar um eficaz contraditório relativamente a tal pretensão instrutória» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.6.2020, Carlos Gil, 8583/18). Na doutrina, esta temática é analisada com pormenor por Fernando Silva Pereira, “O regime da exibição instrutória – um sistema baseado no princípio «nemo tenetur edere contra se…» moderado, na proibição de «prova exploratória», e nas regras do ónus da prova”, in Julgar Online, Outubro de 2021, de que ressaltamos os seguintes excertos mais impressivos (pp. 24-27): «No nosso sistema jurídico, inserido numa família de direito, de raiz romano-germânica, tradicionalmente baseada no princípio «nemo tenetur edere contra se…», não se verificou um corte total com este princípio, já que não existe uma obrigação de as partes, espontaneamente, fazerem prova contra si mesmo. Nessa medida, não se leva tão longe, ao contrário do que acontece em sistema jurídicos como o inglês e o americano, as exigências de um dever de litigar de boa fé. Pelo contrário, o legislador privilegia a proibição da chamada prova exploratória (Ausforschungsbeweise), evitando que a parte se sirva da prova com um escopo exploratório: para a aquisição de fundamentos de ação ou de defesa que desconhecia (modelo americano), ou, em todo o caso, de fontes de prova que desconhecia (modelo inglês) . Trata-se, então, de situações em que uma parte se pretende servir de um documento ou conjunto de documentos, mas não tem possibilidade de os obter, sem a colaboração de vontade da parte contrária. O fundamento do dever de exibição, por mão do princípio da boa fé processual, consiste, pois, na salvaguarda do direito à prova, sendo este, por sua vez, reflexo do direito a uma tutela jurisdicional efetivo. A colaboração é, assim, no nosso sistema, uma colaboração forçada, e destinada a salvaguardar este princípio: se uma parte detém um documento, e o mesmo tem valor probatório na concreta ação, essa parte pode, pelo menos de iure condito, não ter o dever de o revelar, mas não tem a possibilidade de não o apresentar, no caso de isso lhe ser concretamente requerido, ou pelo menos não o pode fazer sem sofrer consequências processuais, inclusivamente no plano probatório. Tal pressupõe que a parte se encontre numa situação de necessidade probatória, apenas isso justificando o dever de colaboração da parte contrária, havendo, no entanto, outras causas de inexigibilidade. A razão de ser da indicação específica da coisa a exibir reside, assim, na finalidade de evitar que uma parte se sirva do instituto da exibição com um escopo meramente exploratório, trazendo para o processo factos estranhos à causa, ou factos ainda nele não introduzidos. O limite mínimo do dever de específica descrição do documento deve, assim, ser dado pela ideia de que a exibição não pode ter um escopo meramente informativo, em ordem à eventual obtenção de novos elementos de prova, sem se saber previamente quais sejam, ou de novos fundamentos de ação ou exceção. Mas não é fácil encontrar o melhor equilíbrio entre, por um lado, a salvaguarda do direito a uma tutela jurisdicional efetiva (de onde resulta que não se deve onerar em demasia o requerente) e a finalidade de prevenir uma prova com uma finalidade exploratória. Creio que se pode dizer o seguinte, em jeito de conclusão. Casos há, em particular quando se trate de documentos presumidos, em que não será necessária uma descrição tão precisa do documento, mas não deve dispensar-se uma referência ao concreto documento, que deve ser identificável (como vimos, num sistema baseado no princípio de responsabilidade das partes, não pode ser tarefa do juiz, pela primeira vez, procurar entre o conjunto de documentos a informação relevante). Isto por um lado. Por outro lado, o juiz deve convencer-se de que o documento ou documentos em causa são relevantes para a prova de factos introduzidos pela parte no processo, de um modo fundamentado, ou seja, com cumprimento do ónus de alegação fundamentada. Não se prescindindo aqui, naturalmente, de uma avaliação casuística.» Revertendo ao caso concreto, o requerimento - que deu azo ao despacho impugnado – insere-se numa sequência processual em que os embargantes vieram requerer a junção de diversos documentos em posse da embargada/exequente. A embargada procedeu à junção de tais documentos. No requerimento em causa, os embargantes vêm, nas suas próprias palavras, suscitar “dúvidas nestes últimos sobre a fidedignidade e genuinidade dos documentos efectivamente juntos aos autos, bem como das informações prestadas sobre quais os anexos aos mesmos”. Ora, a impugnação da genuinidade de documentos ou a ilisão da autenticidade dos documentos têm regime próprios nos Artigos 444º e 446º do Código de Processo Civil, cabendo aos apelantes suscitá-lo no tribunal a quo, se assim o entenderem. Tratam-se de faculdades processuais com campo de aplicação distinto do instituto da exibição instrutória contemplado no Artigo 429º, nº 1, do Código de Processo Civil. Em segundo lugar, os apelantes não especificam, no requerimento em causa, quais os factos que queriam provar com a junção do (restante) dossier de crédito da embargada. Também não individualizaram, minimamente, quais os documentos integrantes de tal dossier cujo conhecimento é essencial para a prova dos factos por si alegados, tidos como essenciais face à posição que assumem nos embargos. Ou seja, os apelantes não alegaram suficientemente a existência de uma situação de necessidade probatória. Assim, nos termos genéricos em que está formulado o requerimento, infere-se que o que os apelantes pretendem é aceder a uma prova exploratória, o que está vedado no nosso sistema processual civil, consoante explicitado supra, na medida em que tal colide com os princípios do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes, visando obter – de forma enviesada – prova que possa sustentar eventuais novas pretensões ou meramente hostilizar a parte contrária. Conforme refere pertinentemente Fernando Silva Pereira, Op. Cit., p. 15, citando uma autora alemã a propósito do pedido de junção de uma pasta de arquivos: «SONJA LANG observa que, uma «pasta de arquivos», não é um «documento concreto», nem, para este efeito, pode ser visto como «um conjunto de documentos». Cada documento (nota a autora) deve ser concretamente indicado. A apresentação de uma «pasta de arquivos» completa, dentro da qual o tribunal, ou um perito por si designado, tenha a obrigação de procurar documentos concretos, constitui uma solução contrária à intenção do legislador, no sentido de obter uma célere resolução do litígio, e constituiria uma aproximação ao modelo norte-americano, ao permitir que uma parte fosse obrigada a apresentar um conjunto larguíssimo de documentos, sem a indicação do concreto documento a exibir. Ao mesmo tempo, tal solução seria pouco conforme com um sistema baseado no princípio de responsabilidade das partes.» Note-se ainda que o tribunal a quo ordenou a junção do documento nº2 completo, o que foi cumprido (cf. contra-alegações). Argumentam, ainda, os apelantes que “Ao decidir diversamente fez o Tribunal a quo errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 415º, nº 2, 417º, e 429º do CPC, incorrendo igualmente numa interpretação desconforme à Constituição da República Portuguesa do artigo 20º dessa Lei Fundamental.” Arrazoando desta forma, pretendem os apelantes suscitar uma questão de inconstitucionalidade. Todavia, esta alegação genérica de inconstitucionalidade não está concretizada nem especificamente fundamentada. Com efeito, a questão da inconstitucionalidade tem de ser colocada de forma atempada, clara e percetível para que o tribunal saiba que questão tem para resolver – cf. Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, Breviário de Direito Processual Constitucional, 2ª ed., p. 47. Conforme se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 242/2007: «Para além de não se apontar aqui para a violação de qualquer norma ou princípio constitucional, não se especifica uma determinada interpretação normativa em termos de o Tribunal a poder vir a enunciar numa decisão. Ora, quando “se suscita a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa (ou de certas) normas jurídicas, necessário é que se identifique essa interpretação em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os destinatários delas e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa (ou essas) normas não podem ser aplicadas com um tal sentido” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 106/99, não publicado).» Os apelantes limitam-se a arguir genericamente a inconstitucionalidade sem propor um concreto enunciado interpretativo que, a ser acolhido, possa integrar um dispositivo de declaração de inconstitucionalidade. Assim sendo, não se aprecia a arguida inconstitucionalidade porquanto a mesma não foi suscitada com observância dos requisitos exigidos pelo Artigo 70º, nº1, al. b), da Lei nº 28/82, de 15.11. Flui de todo o exposto que a apelação deverá improceder. A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes). DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão impugnada. Custas pelos apelantes na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil). Lisboa, 6.12.2022 Luís Filipe Sousa José Capacete Carlos Oliveira _______________________________________________________ [1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115. [2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119. Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12). |