Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
256/21.5T8OER-C.L2-7
Relator: LUÍS FILIPE BRITES LAMEIRAS
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
ARRENDATÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário:
I – Os embargos de terceiro configuram um meio de defesa de quem, sendo titular de um direito sobre o bem, o vê ofendido por um acto judicialmente ordenado (por exemplo, de entrega desse bem) e com origem numa causa onde não foi parte (artigo 342º, nº 1, do Código de Processo Civil).
II – O sucesso desses embargos supõe a prova da existência do direito do terceiro embargante e, portanto, a prévia alegação (e depois prova) dos factos que o permitam fazer reconhecer na sua esfera jurídica.
III – A chamada autoridade do caso julgado tem por significado, uma vez definida a situação jurídica concreta, o de já não se poder discutir a mesma situação em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas (artigo 619º, nº 1, do Código de Processo Civil).
IV – O julgamento de mérito, com trânsito, de uma acção judicial, onde é autor o terceiro embargante e réu aquele que foi parte primitiva na causa de origem do acto judicial, e é agora embargado, onde aquele pediu contra este o reconhecimento da titularidade de um direito, faz reflectir a sua autoridade de caso julgado sobre os embargos de terceiro que sejam suscitados com base na ofensa desse direito.
V – Não demonstrada a titularidade de um direito sobre o bem, o arrendamento que haja sido celebrado com base nele, não faculta ao putativo arrendatário o uso, com êxito, dos meios de defesa da posse, designadamente, o procedimento dos embargos de terceiro (artigo 1037º, nº 2, do Código Civil).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
(I). A instância da execução.
1. (1.º) T--- suscitou acção executiva, para entrega de coisa certa (além do mais), contra (2.º) C---, fundado em sentença (proc.º nº 631/17.0T8CSC.L1) que o condenou a desocupar e entregar « o prédio urbano, composto de moradia de cave e rés-do-chão, denominado Casa --- » (16.1.2021).
2. No dia 1 de Junho de 2021 a moradia foi entregue ao Fundo exequente.
(II). A instância dos embargos de terceiro.
1. (1.º) D--- SA e (2.º) T--- Lda deduziram embargos de terceiro (1.7.2021 e 19.8.2021).
É a seguinte, em súmula, a sua argumentação.
Em 27.1.2004, a 1.ª embargante adquiriu « o prédio urbano situado na Rua ---, C---, (…) ---, na união de freguesias de --- », inscrito no registo predial em favor do exequente.
Sobre « a propriedade deste prédio está a correr uma acção judicial no […] juízo central civil de Cascais, juiz 3, processo nº 817/11.0TBCSC, em que é autora » a 1.ª embargante, [ao tempo] ainda pendente, e com os pedidos (1.) de nulidade do negócio de transmissão para o exequente do referido prédio, (2.) do cancelamento do registo de aquisição em favor deste e (3.) do reconhecimento judicial do integral e pleno direito de propriedade da autora (e 1.ª embargante).
Na acção judicial, do proc.º nº 631/17.0T8CSC, foi declarada a nulidade do subarrendamento celebrado entre uma empresa, a S--- SA, e o executado, o qual tinha por objecto apenas uma parte do prédio urbano.
Em 2015, a 1.ª embargante arrendou espaço do prédio à 2.ª embargante. Sendo aí que esta arrecadava documentação e utensílios da sua construção civil e empreitadas.
Em 30.6.2021, o acesso à parte arrendada foi vedado pelo exequente.
Ora, estando em discussão judicial a propriedade do prédio (proc.º 817/11) e não se pronunciando a sentença exequenda (proc.º 631/17) sobre o arrendamento, é certo que a posse do exequente ofende o domínio da 1.ª embargante e a locação da 2.ª embargante.
2. Após vicissitudes várias, os embargos foram recebidos (9.12.2021).
O Fundo exequente contestou (31.1.2022).
Desenvolveu argumentação, essencialmente centrada em tipificar promiscuidade empresarial, com o objectivo decisivo de recuperar património entretanto perdido; para o que interessa aos embargos, porém, sem sucesso.
Contestou também o executado (31.1.2022).
Este, essencialmente para dizer que operou o seu negócio de subarrendamento sempre na convicção da melhor acomodação à regularidade; e que se lhe aparenta ser de restituir a posse do prédio às embargantes.
As embargantes responderam (23.5.2022).
Além do resto, disseram que o sucesso da acção em que se pede a propriedade da 1.ª embargante (proc.º 817/11) fará claudicar os direitos da exequente; e, por acção dessa causa prejudicial, suscitaram a suspensão da instância dos embargos.
3. A instância declaratória progrediu.
As embargantes reiteraram pela suspensão da instância, por existência de causa prejudicial (19.9.2022).
O Fundo exequente opôs-se-lhe (28.9.2022 e 24.11.2022).
A dado passo (20.4.2023), o tribunal de 1.ª instância considerou que, para o caso de a acção pendente (proc.º 817/11) ter sucesso, a consequência seria a de consolidar a posição das embargantes; e suspendeu a instância.
Mas o Fundo exequente interpôs, com êxito, recurso (acórdão da Relação de 6.6.2024).
4. A acção judicial, proc.º nº 817/11.0TBCSC, teve sentença final (no dia 19.2.2024); e foi julgada improcedente, com trânsito em julgado (no dia 21.3.2024) (junta em 26.6.2024 e em 14.10.2024).
5. Nos embargos, foi proferido o saneador-sentença (16.4.2025).
E neste basicamente se consignou:
(1.º); a respeito da propriedade da 1.ª embargante.
No essencial; que a presunção do registo predial, em favor do Fundo exequente se não ilidiu; sendo questão apreciada no proc.º nº 817/11, sem êxito da embargante e por conseguinte com autoridade de caso julgado.
(2.º); a respeito do arrendamento da 2.ª embargante.
No essencial; indemonstrado o domínio da 1.ª embargante, a putativa locadora, o contrato celebrado padece de invalidade ou, ao menos, de ineficácia, sendo inoponível ao dono, o Fundo exequente.
O consequente dispositivo foi, nesse quadro, o de improcedência dos embargos.
(III). A instância do recurso de apelação.
1. As embargantes, inconformadas, interpuseram recurso da decisão.
Organizaram assim as conclusões da sua alegação.
1. A sentença recorrida, ao julgar improcedentes os embargos de terceiro, incorreu em múltiplos erros de direito e de apreciação da prova, que impõem a sua revogação.
2. Primeiramente, a aplicação do instituto do caso julgado foi manifestamente errónea, por inexistência de identidade de causa de pedir e pedido com acções anteriores, nos termos dos artigos 580.º, 581.º e 621.º do CPC.
3. A decisão do tribunal a quo não considerou a distinção fundamental entre o objecto material do litígio e o fundamento jurídico da pretensão, nem a ausência de uma questão prejudicial que vinculasse a presente acção.
4. Adicionalmente, descurou o princípio de que o efeito preclusivo, previsto no artigo 573.º do CPC, não se estende a pretensões ou causas de pedir que, embora pudessem ter sido deduzidas, não o foram, e que constituem uma nova base para a defesa dos direitos das embargantes.
5. No que concerne à embargante D---, a sentença desconsiderou a prova da sua aquisição do direito de propriedade ou posse qualificada em momento anterior à penhora, nos termos dos artigos 1251.º e seguintes e 1287.º e seguintes do Código Civil.
6. A falha em permitir a ilisão da presunção registal, nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial e do artigo 344.º do Código Civil, e a desvalorização da prova de posse anterior, que é oponível à penhora independentemente do registo, impediram a correcta tutela do seu direito.
7. Relativamente à embargante T---, a sentença incorreu em erro de direito ao considerar que o seu direito de arrendamento caducaria com a venda judicial. Esta conclusão desconsidera a natureza obrigacional do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1022.º do Código Civil, e a inaplicabilidade do artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil aos direitos obrigacionais.
8. Mais gravemente, a decisão ignorou as normas específicas de protecção do locatário, designadamente o artigo 1057.º do Código Civil e o artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, que garantem a manutenção do arrendamento em caso de transmissão da coisa locada.
9. A capacidade de defesa do locatário, conferida pelo artigo 1037.º, n.º 2 do Código Civil, reforça a sua legitimidade para opor os embargos e proteger o seu direito de gozo.
Em síntese; os embargos de terceiro devem ser julgados procedentes.
2. O Fundo embargado respondeu.
E organizou assim as conclusões da contra-alegação.
1. As recorrentes não impugnaram os factos provados, pelo que não podem os mesmos deixar de ser considerados, e na íntegra, na decisão a proferir nestes autos, sendo que dos mesmo se impõe, sem dúvida, a improcedência dos embargos e, logo, do presente recurso.
2. E o certo é que, mesmo com a oposição do T---, ora recorrido, o tribunal ordenou a suspensão dos autos até ser proferida decisão naquele processo n.º 817/11.0TBCSC (decisão esta de que o T--- veio a recorrer, sendo o recurso julgado procedente e ordenando-se o prosseguimento dos autos).
3. Ora, defenderem agora as recorrentes que, afinal, a decisão preferida – e transitada em julgado – no referido processo deve ser ignorada pelo tribunal a quo, é, além de descabido, de manifesta má-fé.
4. Vindo as recorrentes invocar direitos decorrentes da propriedade do imóvel dos autos, a acção onde se discutiu e provou que tal propriedade pertence ao FUNDO recorrido e não a nenhuma das embargantes, ora recorrentes, não pode deixar de ser considerada na decisão a proferir nos presentes autos, como é facto que nem se pode discutir.
5. Assinale-se, aliás, que a argumentação que as recorrentes desenvolvem na alegação de recurso para desconsiderar a sentença proferida no processo n.º 817/11.0TBCSC, são absurdos e apresentados de forma deturpada, como se já houvesse alguma decisão tomada nestes autos antes do trânsito em julgado da sentença do processo atrás identificado, o que não sucedeu, mostrando-se descabida a alusão a efeitos retroactivos, que de facto, nem se põe.
6. A alegação das [recorrentes] mostra-se distorcida da realidade, invocando regras e decisões que se mostram inaplicáveis aos presentes autos, pois que, por muitas voltas que as recorrentes tentem dar, a decisão tomada nos embargos foi posterior à do processo cujo trânsito em julgado se invocou.
7. E bem se invocou o trânsito em julgado, pois, ao contrário do alegado pelas [recorrentes], está verificada a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, conforme previsto nos artigos 580.º e 581º, que não é minimamente beliscada por nestes autos haver mais uma parte, que é a suposta arrendatária, T---.
8. O mesmo se diga da parte da alegação das [recorrentes] que se refere à suposta errónea aplicação dos princípios do registo predial e da “aquisição tabular”, que a sentença recorrida considerou nos termos em que ficaram provados e decididos no processo n.º 817/11.0TBCSC, e que a recorrente D--- – a quem diz directamente respeito esta parte da decisão – atacou, de todas as formas que entendeu adequadas, na acção em causa, que foi intentada por si contra o FUNDO, estando agora decidida, em definitivo, tal acção, a recorrente D--- já não pode vir, veladamente, e no âmbito de outras acções, impugnar a referida decisão.
9. Por último, e embora seja um facto que se crê de tal forma evidente que até choca que as recorrentes o venham por em causa, não tendo a D--- nenhum direito sobre o imóvel dos autos, como ficou demonstrado, outra não podia ser a solução que não fosse considerar que o suposto contrato de arrendamento celebrado pela mesma com a T--- não se possa considerar nem válido nem oponível ao FUNDO Recorrido.
10. Pelo que nenhuma razão assiste às recorrentes, devendo o recurso ser julgado improcedente.
11. Com efeito, ficou definitivamente decidido que o alegado direito de propriedade da embargante sobre o imóvel dos autos, identificado no artigo 2º da petição de embargos não existe e que tal imóvel pertence ao Fundo, ora recorrido – cfr. sentença proferida nos autos de processo ordinário nº 817/11.0TBCSC, que correram termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Cível de Cascais, Juiz 3, datada de 19/02/2024, transitada em julgado em 21/03/2024 e cuja certidão o embargante já junto a estes autos, com o requerimento (…) de 26/06/2024.
12. Assim a D--- não é proprietária do imóvel dos autos nem tem a seu favor qualquer presunção que fosse oponível ao Fundo recorrido, pelo que os embargos só podiam ser julgados improcedentes.
13. Como consta da certidão predial e da certidão matricial do imóvel dos autos, o Fundo recorrido é o proprietário deste, tendo a propriedade registada a seu favor desde Fevereiro de 2007 (…).
14. Facto que é do conhecimento da embargante D--- e, aliás, fundamentou a apresentação da acção identificada no artigo 4º da petição de embargos.
15. Ora, como ficou já decidido na decisão proferida nos autos de processo ordinário nº 817/11.0TBCSC, que correram termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Cível de Cascais, Juiz 3, datada de 19/02/2024, transitada em julgado em 21/03/2024 e cuja certidão o embargante já junto a estes autos, com o requerimento (…) de 26/06/2024 a D--- não é proprietária do imóvel nem tem a seu favor qualquer presunção que fosse oponível ao Fundo recorrido ou pudesse valer perante o registo e as presunções que daí resultam a favor do T---.
16. Pelo que a D--- carece de legitimidade para dar de arrendamento ou por qualquer forma, praticar algum acto relacionado com o imóvel dos autos, ou alguma parte dele, sendo nulos todos os actos que assim tenha praticado.
17. Não tendo a D--- legitimidade para dar de arrendamento o imóvel dos autos, forçoso se torna concluir que o contrato junto [n]a petição de embargos é nulo, nulidade essa que se deixa expressamente invocada para todos os efeitos legais.
18. E, como tal, bem andou o tribunal a quo ao julgar os embargos improcedes e ao ordenar a restituição da posse de parte do imóvel ao recorrido, devendo manter-se a decisão.
19. De onde se mostra forçoso concluir que o presente recurso carece de fundamento consistindo em mais um expediente dilatório da Família D---, para atrasar a entrega ao Fundo dos bens deste, pretendendo continuar a retirar proveitos do mesmo, o que é inadmissível.
20. Devendo assim, negar-se o provimento ao recurso apresentado pelas recorrentes, por manifesta falta de fundamento mantendo inalterada a sentença recorrida, que não merece qualquer censura.
Em síntese; a sentença recorrida deve manter-se nos exactos termos em que foi proferida.
3. A delimitação do objecto do recurso.
3.1. À partida, são as questões (todas) desfavoráveis ao recorrente, que a decisão contemple, que abrangem o âmbito objectivo (os temas decidendos) do recurso (artigo 635º, nº 3, do Código de Processo Civil).
Não obstante, se as conclusões da alegação desenharem outros contornos mais restritos, sinalizando os particulares assuntos visados, passam a ser estes os temas do recurso (artigo 635º, nº 4, do Código de Processo Civil).
3.2. A hipótese concreta permite circunscrever as seguintes questões:
1.ª; o impacto da sentença final, transitada em julgado, na acção com o nº 817/11.0TBCSC, para a situação jurídica da embargante D---;
2.ª; se a posição jurídica da embargante T--- é afectada pelos efeitos sentidos na esfera jurídica da D---;
3.ª; o impacto destas configurações para os embargos de terceiro suscitados;
4.ª; conexamente; se se pressente má-fé processual das recorrentes (conclusão 3.ª do Fundo apelado).
II – Fundamentos
1. É a seguinte a matéria de facto que a sentença apelada detalha.
a. O exequente intentou acção executiva contra o executado para entrega de coisa certa e para pagamento do valor de € 143 000,00, apresentando como título executivo uma sentença condenatória, proferida no processo n.º 631/17.0T8CSC do Juízo Central Cível de Cascais - Juiz 4.
b. Da sentença referida em a., consta, designadamente, que:
« […]
V – DISPOSITIVO
Pelos fundamentos de facto e de direito supra expostos, julgo procedente a presente acção e, em consequência:
1 - Declaro nulos, por falta de legitimidade da [ré S--- SA], os contratos denominados de “subarrendamento”, celebrados entre [a ré S--- SA] e o [réu C---].
2 - Condeno o [réu C---] a desocupar e entregar ao [Fundo autor], livre de pessoas e bens, os imóveis que (…) ocupa e acima identificado(.), no prazo de 90 (noventa) D---, mais exactamente:
(…) v) o [réu C---], o prédio urbano, composto de moradia de cave e rés-do-chão, denominado C---, sito em Limites do Lugar ---, C---, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de C--- sob o nº --- e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Cascais sob o artigo ---.
[…] »
c. Do requerimento executivo consta, designadamente, que:
« Por sentença de 28 de Março de 2019, já transitada em julgado, foi o ora executado, enquanto [réu], condenado a desocupar e entregar ao autor, livre de pessoas e bens, o imóvel que ocupa, no prazo de 90 (noventa) D---, mais exactamente, o prédio urbano, composto de moradia de cave e rés-do-chão, denominado C---, sito em Limites do Lugar ---, C---, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº --- e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de C--- sob o artigo ---.
(…)
A sentença acima referida foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28 de Novembro de 2019, (…), tendo sido indeferida a reclamação apresentada deste acórdão, conforme decisão de 20 de Fevereiro de 2020 do mesmo Tribunal, (…), pelo que se mantém inalterada a sentença, tendo já transitado em julgado.
O executado não é nem nunca foi arrendatário do imóvel acima identificado, não tendo qualquer título que legitime a respectiva ocupação, a qual continua a fazer, não obstante as diversas insistências do exequente para a respectiva entrega, pretendendo o exequente por via da presente execução que o imóvel lhe seja entregue, livre de pessoas e bens, como determinado na sentença que ora se executa.
[…] »
d. Por escritura pública outorgada no dia 27 de Janeiro de 2004 no Cartório Notarial de Mação, a [1.ª embargante], representada por F---, E--- e M---, declarou comprar a J--- e mulher, F---, (…), e estes declararam vender-lhe o prédio urbano, composto por moradia unifamiliar, com cave, rés-do-chão, garagens e logradouro, sito no lugar da A---, freguesia e concelho de C---, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de C--- sob o nº --- e inscrito na matriz sob o artigo ---, pelo preço de € 45.390,61 (…).
e. Mostra-se registada a aquisição a favor do exequente [o Fundo embargado] o prédio urbano sito nos limites do Lugar da A---, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de C--- sob o n.º ---da freguesia de C--- e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ---, pela ap. 40 de 2007/02/08 (…).
f. Foi proferida decisão, transitada em julgado em 21-03-2024, no processo n.º 817/11.0TBCSC, da qual consta, designadamente, o seguinte:
« 1. Relatório
D--- - IMOBILIÁRIA, S.A., intentou acção declarativa sob a forma de processo comum ordinário contra (…), e T--- - FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO, pedindo que:
«a) [seja] declarada a nulidade do negócio jurídico consubstanciado na transmissão efectuada, por escritura de Constituição de Fundo de Investimento Imobiliário Fechado de Subscrição Particular com subscrição em Espécie, para o património do Fundo T--- - Fundo de Investimento Imobiliário Fechado o prédio urbano destinado a habitação, sito nos limites do lugar de A---, freguesia e concelho de C---, descrito na 1º Conservatória do Registo Predial de C--- sob o nº --- da freguesia de C--- e inscrito na matriz respectiva sob o artº ---.
b) [seja] ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor da T--- - Fundo de Investimento Imobiliário Fechado e a que se refere a apresentação nº 40 de 8/2/2007, bem como inscrições e averbamentos.
c) [seja] reposta a situação no ‘STATUS QUO ANTE’ com reconhecimento judicial do integral e pleno direito de propriedade da autora, condenando-se os [réus] a tal reconhecer.
d) [se proíbam] (…) quaisquer registos que subsequentemente se tentem fazer sobre o mesmo imóvel.
e) [se declare] nulo algum registo que, apesar de tudo, entretanto se faça.
(…)
Subsidiariamente, (…)
[…]
5. Fundamentação de direito
Como relatado, a autora invoca ter um direito de propriedade sobre o imóvel descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de C--- sob o n.º 3150 e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ---.
Alega como facto constitutivo desse direito real o contrato de compra e venda que celebrou (…), por escritura pública outorgada em 27/01/2004. Alega ainda, paralelamente, que, na sequência deste contrato, passou a ocupar e fruir o referido imóvel, tendo nele instalado a sua sede e procedendo ao pagamento de todos os impostos respeitantes ao imóvel. Embora não o explicite, a autora invoca também, deste modo, uma situação de posse sobre o imóvel que, em abstracto, pode relevar como causa de aquisição, por usucapião, do direito de propriedade (artigos 1317.º, alínea c), e 1287.º do CC) - causa de aquisição originária de direitos reais que é imune às vicissitudes do registo predial, como decorre do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do CRP, norma que, em desvio da regra geral consagrada no seu n.º 1, não faz depender a sua oponibilidade a terceiros do registo.
(…)
Vejamos, em primeiro lugar, se a autora adquiriu, por usucapião ou contrato, um direito de propriedade sobre o imóvel acima identificado.
Começando pela alegada causa de aquisição originária (usucapião), deve sublinhar-se que a autora não provou, como lhe competia (artigo 342.º, n.º 1, do CC), que passou a ter o domínio material do imóvel desde 27/01/2004, data da outorga da respectiva escritura pública de compra e venda. Com efeito, embora a autora tenha alegado que, desde então, passou a usar e fruir o imóvel, designadamente nele instalando a sua sede e pagando os respectivos impostos, não logrou provar quaisquer destes factos (…). Por isso, não se pode, desde logo, dar por verificado o elemento corpóreo da posse (artigo 1251.º do CC), nem qualquer das causas de aquisição da posse, designadamente as previstas nas alíneas a) e b) do artigo 1263.º do CC, que o pressupõem.
Analisemos agora a causa de aquisição derivada do direito de propriedade, consubstanciada no contrato de compra e venda celebrado, por escritura pública de 27/01/2004, entre (…), na qualidade de vendedores, e a autora, na qualidade de compradora.
O contrato (…) de compra e venda, é um dos modos de aquisição do direito de propriedade (artigos 1316.º e 879.º, alínea a), do CC).
(…)
Não incorrendo o contrato de compra e venda celebrado entre a autora e (…) em 27/01/2004 (…) em qualquer (…) vício (…) que afecte a sua validade, deve concluir-se que a autora adquiriu o direito de propriedade sobre o imóvel em discussão nos autos, por efeito da celebração desse contrato.
Vejamos agora quais as incidências dominiais decorrentes do facto de a autora não ter registado (logo) essa aquisição, como a própria assumiu e decorre do teor da certidão do registo predial (…).
(…), o contrato de compra e venda celebrado entre a autora e (…), embora não registado, produziu inter partes, para o que agora interessa, o efeito translativo da propriedade previsto na alínea a) do artigo 879.º do CC.
Sucede que os direitos reais emergentes de factos sujeitos a registo só se consolidam, em regra, na esfera jurídica do adquirente, com o registo. Com efeito, ressalvadas as hipóteses excepcionais do n.º 2 do artigo 5.º do CRP, o adquirente só pode opor o seu direito a terceiros a partir do registo, como expressamente decorre da regra de oponibilidade consagrada no n.º 1 do mesmo artigo: «Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo».
Assumindo posição sobre a controvérsia doutrinal e jurisprudencial existente em torno do conceito de terceiro para efeitos de registo predial (…), o Decreto-Lei n.º 533/99, de 11 de Dezembro, consagrou, na linha do entendimento fixado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/99, de 18 de Maio, uma concepção restrita de terceiro para esse efeito, aditando ao artigo 5.º do CRP um n.º 4 com o seguinte conteúdo: «Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si».
É com base no artigo 5.º, nºs. 1 e 4, do CRP (…) que a doutrina tem autonomizado a figura do registo aquisitivo ou tabular, que se caracteriza pelo facto de «ter como efeito a aquisição de um direito em desconformidade com a realidade substantiva» (…).
Resta(.) a(.) norma(.) do artigo 5.º do CRP (…).
O primeiro dos citados preceitos legais inclui no seu âmbito de previsão, por força do conceito restritivo de terceiro constante do seu n.º 4, essencialmente as hipóteses de dupla alienação ou oneração do mesmo bem; nesta hipótese, ocorrem «duas aquisições sucessivas de um mesmo transmitente, tendo sido registada a segunda transmissão, mas não a primeira» (…). Neste caso, a transmissão posterior, se primeiramente registada, prevalece sobre a transmissão anterior, que não foi registada. Embora o n.º 1 do artigo 5.º apenas exija, como condição da aquisição tabular nele prevista, uma situação de dupla alienação ou oneração do mesmo bem e o registo anterior da segunda disposição, tem-se entendido ser também de exigir, (…), que o terceiro tenha adquirido o prédio a título oneroso e esteja de boa fé (…). E, ponderando-se os interesses contrapostos em presença, compreende-se que assim seja: o que justifica o sacrifício do interesse do primeiro adquirente - que é, no plano do direito substantivo, titular do direito -, é precisamente a tutela da confiança do segundo adquirente, que apenas optou por celebrar um negócio imobiliário para si oneroso por ter confiado que o direito adquirido existia e pertencia (ainda) ao titular inscrito no registo, nos precisos termos que dele constam, como assegurado pelo artigo 7.º do CRP, ainda que por meio de uma presunção ilidível.
(…)
Provou-se, no caso concreto, que (…) venderam à autora um determinado prédio urbano, que esta não registou, e, posteriormente, transmitiram o referido prédio ao Fundo réu, que o registou.
Ocorre, pois, uma situação de dupla alienação do mesmo prédio, que se enquadra claramente no âmbito de aplicação do artigo 892.º do CC e do artigo 5.º, nºs. 1 e 4, do CRP.
Com efeito, tendo os [vendedores] transmitido a propriedade do referido prédio à autora, por escritura de compra e venda outorgada em 27/01/2004, careciam de legitimidade para dispor de novo desse bem a favor do [Fundo]. (…)
A questão central que se coloca na acção é a de saber se, apesar disso, o [Fundo] adquiriu a propriedade do imóvel, não por efeito do negócio titulado [em] escritura pública (…) - insusceptível de operar a transmissão desse direito (artigo 892.º do CC) -, mas por efeito do registo predial.
Afigura-se que sim, por estarem preenchidos os pressupostos da aquisição tabular expressamente previstos no artigo 5.º, nºs. 1 e 4, do CRP, e aqueles que, por analogia com as demais hipóteses de aquisição tabular, lhe são extensíveis.
Com efeito, provou-se que a autora não registou a aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel, contrariamente [ao Fundo], que o fez pela Ap. 40 de 08/02/2007 (…).
Ora, como vimos, os factos sujeitos a registo, como é o caso do contrato de compra e venda de um prédio urbano (artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do CRP), só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo (artigo 5.º, n.º 1, do CRP).
Ora, o [Fundo] deve ser considerando terceiro, para efeitos do citado preceito legal: 1) adquiriu de um autor comum [os vendedores] um direito incompatível com aquele que a autora havia adquirido dos mesmos [vendedores] (direito de propriedade); 2) por efeito de um negócio oneroso, (…); 3) registou a sua aquisição antes da autora; 4) finalmente, nada se provou que permita concluir que o Fundo (…), sabia ou devia saber, à data da outorga da escritura (…), que os [vendedores] haviam antes alienado o imóvel a favor da autora, pelo que não há razões para afastar a tutela que lhe é concedida pelo artigo 5.º do CRP.
Tendo o [Fundo] adquirido o direito de propriedade sobre o imóvel, por efeito do registo do negócio titulado na referida escritura pública, extinguiu-se o direito de propriedade que a autora havia adquirido com o contrato de compra e venda celebrado com os [vendedores] em 27/01/2004 (…).
Assim sendo, os pedidos formulados nas alíneas a) a e) do petitório, no pressuposto da existência desse direito, não podem deixar de improceder.
(…)
6. Decisão
Pelo exposto, julgo totalmente improcedente a presente acção e, em consequência, absolvo os RR. do pedido. »
g. No dia 1/06/2021 foi concretizada a entrega do prédio urbano composto de moradia de cave e rés-do-chão, denominado C---, sito em Limites do Lugar da A---, C---, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de C---, sob o n.º ---, e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de C---, sob o artigo ---, (…).
h. Os presentes embargos de terceiro entraram em juízo em 1/07/2021.
2. O mérito jurídico da apelação interposta.
2.1. A situação jurídica da 1.ª embargante no confronto com a sentença da acção com o nº 817/11.0TBCSC.
O quadro (aqui) convocado é o da oposição mediante embargos de terceiro, cujos fundamentos admissíveis se encontram essencialmente contemplados no artigo 342º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Trata-se de um meio de defesa, concedido a quem que não é parte numa causa de onde provém algum acto judicialmente ordenado, designadamente a entrega de bens; e que o supõe na titularidade de algum direito que é incompatível, e portanto ofendido, com a realização ou com o âmbito concreto dessa diligência.
Na hipótese, a diligência é da entrega ao Fundo embargado (1.º) do prédio que se designa por C---, em C---; por modo de cumprir a sentença condenatória que determinou ao embargado (2.º) esse acto (proc.º 631/17).
A decisão exequenda é alheia a qualquer das embargantes (factos a. a c.).
E a embargante D--- (1.ª) invoca a propriedade do prédio.
Revisitemos agora a petição de embargos.
A embargante D--- (1.ª), para apoiar essa invocação, do seu direito, convoca exclusivamente duas condicionantes.
A 1.ª; uma escritura pública de aquisição, de 27.1.2004.
A 2.ª; a existência de acção judicial, então ainda pendente, onde era discutida a questão da propriedade (proc.º 817/11).
Centrou-se a sua alegação apenas (e unicamente) nestes factos.
E por tal modo, em particular no que à acção judicial se comporta, que na pendência dos embargos de terceiro, pugnou reiteradamente pela sua feição de causa prejudicial, hábil a fazer suspender a instância (23.5.2022; 19.9.2022).
Situação a que a 1.ª instância deu até acolhimento (20.4.2023).
E que só o tribunal da Relação veio a reverter (6.6.2024).
Era, portanto, fulcral – foi sempre –, na óptica desta embargante, para o formato do seu direito (ofendido), o curso e a decisão que viesse a ser tomada nessa acção declarativa.
Dito de outro modo.
Tal como configurou, desde início, a sua oposição, por embargos, e afora a acção declarativa conexa, restava apenas, como sustentação para evidenciar a génese da sua posse ou direito de propriedade ofendido(s), a escritura pública de compra, de 27 de Janeiro de 2004 (artigo 2.º da petição de embargos) – e mesmo essa associada a um expresso reconhecimento da inscrição no registo predial em favor do Fundo embargado (1.º) e exequente (artigo 4.º da petição).
Ora; neste particular, de aquisição – da embargante (facto d.) – sem registo predial, mas com inscrição em favor de outrem – o embargado (facto e.) –, logo se permitia a mais fundada expectativa acerca da aplicação do regime do Código de Registo Predial que, com base na óptica restritiva do conceito de terceiro para efeitos de registo (artigo 5º nº 4), dá a prioridade aquisitiva – consolida a eficácia da transmissão substantiva – ao primeiro dos sujeitos que regista (artigo 5º, nº 1).
Suspeita que era sintoma de que a esfera jurídica da embargante não podia, com o registo do embargado, ver-se enriquecida com a propriedade do prédio.
Sendo que, em matéria de posse, era lacunoso o conteúdo da narrativa da petição.
O raciocínio da decisão apelada, neste particular, foi o de que a presunção do registo predial (artigo 7º do Cód. Reg. Predial), em favor do Fundo embargado (1.º), se não ilidiu.
E de que, analisada a questão na acção declarativa conexa, se chegou a essa mesma conclusão.
Com a inverificação, pois, do direito da embargante D--- (1.ª).
E sem nota de crítica, adiante-se desde já.
É que, como dizemos, olhada a petição inicial dos embargos de terceiro, nela se não detecta substrato fáctico algum com a virtude de poder provar o domínio real da empresa embargante (1.ª) sobre o bem que é objecto da entrega judicial.
Não podendo por aí deixar de subsistir a presunção registal (artigos 344º, nº 1, ou 350º, do Código Civil).
Restando tão-só a acção declarativa conexa (proc.º 817/11).
E quanto a esta sendo, no mínimo, estranha a menorização a que é votada, já na apelação interposta, depois de parecer ter sido uma referência capital no desencadear dos embargos, e até no seu curso; e, só agora, que a decisão (transitada) se evidenciou desfavorável às expectativas criadas, em particular pela embargante D--- (1.ª).
Em qualquer dos casos.
Na acção declarativa (facto f.), tomou a posição de autora a embargante D--- (1.ª), e de réu, entre outros, o Fundo embargado (1.º); sendo pedido, entre mais, que se cancelasse o registo em favor deste e se declarasse a propriedade daquela.
A sentença proferida, e transitada, como sublinha a decisão apelada, tratou concretamente das questões associadas; excluiu a aquisição originária da D--- e, na matéria da aquisição derivada, em face da escritura, operou o regime do registo predial e concedeu prioridade ao direito do Fundo no confronto com o da mesma D---.
E não acolheu qualquer dos pedidos que esta (aqui embargante) formulara.
Evoca-se agora, na apelação – depois de, no curso da instância, se ter tentado ver ali uma causa prejudicial perfeitamente determinante para os embargos –, que não opera caso julgado, que se descuraram outras hipóteses de ilisão e fixação dos direitos dos terceiros ou que a aquisição da D--- foi prioritária a outras vicissitudes.
Manifestamente sem razão.
A escritura de aquisição da embargante D--- (1.ª), tem a data de 27 de Janeiro de 2004 (facto d.)
A inscrição da aquisição, em favor do Fundo embargado (1.º), tem a data de 8 de Fevereiro de 2007 (facto e.).
Na acção declarativa (proc.º 817/11) a embargante D--- (1.ª), aí autora, no confronto com o Fundo embargado (1.º), visou que se declarasse a sua propriedade.
A sentença final, aí proferida e transitada, não acolheu a pretensão.
A presunção de propriedade do Fundo embargado (1.º) não adere ex nunc ao trânsito em julgado (21.3.2024); mas opera a partir da data do registo (8.2.2007).
De certa maneira, é nesta última que se consolida o efeito real da transmissão da propriedade, no confronto com o putativo direito, emergente da escritura de venda, em que teve posição de adquirente a embargante D--- (1.ª).
E que a sentença transitada só reconheceu e declarou.
O direito da D---, capaz de alicerçar a pretensão dos embargos de terceiro, não existe, ao menos, desde Fevereiro de 2007.
Por outro lado; não se vê, revisitada a petição dos embargos, a que outro tipo de ilisão a D--- (« uma nova base para a defesa dos direitos das embargantes ») se queira referir.
Como se apontou, não há substrato fáctico que o permita justificar.
Os embargos basicamente foram sustentados na expectativa de sucesso da acção declarativa que, entretanto, conheceu sentença transitada.
Derradeiramente.
Na acção declarativa (proc.º 817/11) discutiu-se a propriedade da D--- (1.ª embargante), no confronto com a propriedade do Fundo T--- (1.º embargado); no essencial, com base em questões da aquisição originária e, por outro lado, dos títulos de aquisição derivada, no confronto com as regras do registo predial, e da posição dos sujeitos, como terceiros para efeitos de registo.
Concluiu-se que cedia o direito da D--- (a 1.ª embargante).
Nos embargos de terceiro confronta-se, outra vez, a propriedade das mesmas duas entidades; sinalizando-se a escritura, título da D---, e o registo, prevalecente da T--- (aliás, o único registo existente).
No quadro jurídico-adjectivo fala-se em repetição de uma causa sempre que há identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (artigo 581º do Cód. Proc. Civ.).
E se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença, que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado (artigo 580º, nº 1, 2.ª parte, do Cód. Proc. Civ.).
Neste caso, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória, mesmo fora do processo, nos limites circunscritos dos sujeitos envolvidos e do objecto convocado (artigo 619º, nº 1, do Cód. Proc. Civ.).
E com o objectivo primordial de evitar que algum tribunal seja colocado na alternativa de ter de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigo 580º, nº 2, do Cód. Proc. Civ.).
Então se reconhece o chamado caso julgado material que, em uma das suas vertentes, a positiva, se impõe por via da autoridade do caso julgado – como a decisão de que se apela faz aliás sobressair –, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido, em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas.
Trata-se aqui de jurisprudência perfeitamente uniforme; pois que, como se diz no acórdão da Relação de Coimbra de 11.6.2019 (proc.º 355/16.5T8PMS.C1):
« o caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objecto da segunda acção mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objecto da primeira decisão »
Ora, é precisamente esta a situação que se confronta nos embargos de terceiro.
Se o tribunal agora, a pretexto destes, fosse a mexer na situação jurídica da embargante D---, em quadro de reconhecer, ou de rejeitar, o seu domínio sobre o prédio que é objecto da entrega judicial, estaria ora a reverter, ora a reproduzir, o antes já julgado na acção declarativa, que já tem sentença com trânsito.
Exactamente o que a lei visa impedir.
2.2. A situação jurídica da 2.ª embargante, pretensa arrendatária da 1.ª.
Neste particular, a questão é de um virtual contrato de arrendamento, ajustado em 2015, entre a D--- (1.ª embargante), como senhoria, e a T--- (2.ª embargante), na qualidade de inquilina.
A decisão apelada, em sede de facto, nem faz eco deste contrato; se bem que, no trecho de enquadramento jurídico, conclua no sentido de, não sendo a outorgante senhoria a dona do bem, sempre a locação seria inoponível ao real proprietário.
No recurso, aponta-se erro de direito, por se julgar caduco o arrendamento com a venda judicial (artigo 824º, nº 2, do Cód. Civ.); omitindo-se que o contrato creditício persiste (artigo 1057º do Cód. Civ.); e que ao arrendatário são facultados os meios de defesa do possuidor (artigo 1037º, nº 2, do Cód. Civ.).
Qualquer dos argumentos é inconsequente.
O 1.º; porque o assunto da caducidade dos direitos reais, em caso de venda em execução, e do impacto no arrendamento (artigo 824º, nº 2, cit.), é perfeitamente alheio à hipótese substantiva convocada pelos embargos de terceiro em causa.
O acto putativamente ofensivo, que justifica a oposição dos terceiros, não é uma venda executiva, onde se careça de expurgar o bem (vendido) de direitos reais menores (ou de um arrendamento) que o afectem, como ali está em causa. O acto alegadamente ofensivo é o de entrega judicial do bem, que uma sentença condenatória determinou.
O 2.º; porque antes mesmo da entrega judicial já o contrato de arrendamento – só celebrado em 2015 – se reconhecia como inoponível ao (real) proprietário, o Fundo embargado (1.º) – que o era desde Fevereiro de 2007 –; e por sentença (transitada).
A invalidade ou, pelo menos, a ineficácia, no confronto com a propriedade do Fundo, subtrai à embargante T--- (2.ª) a posição de arrendatária que pretende; sendo inábil a integrar a previsão normativa da transmissão dessa posição (artigo 1057º cit.).
Por fim, em 3.º; subtraída a posição jurídica à T--- (2.ª embargante), é intuitivo concluir que, se não é inquilina, não cabe também na previsão dos sujeitos a quem são facultados os meios de defesa da posse (artigo 1037º, nº 2, cit.).
2.3. A decisão ajustada dos embargos; e viabilidade da apelação interposta.
Em síntese conclusiva.
Excluída a propriedade da embargante D--- (1.ª), por imposição da autoridade do caso julgado emergente da sentença proferida nos autos de acção declarativa com o nº 817/11.0TBCSC; subtraída a posição de arrendatária da embargante T--- (2.ª), no confronto, tudo, com a propriedade do Fundo embargado (1.º), consolidada pelo menos desde 8 de Fevereiro de 2007; certa e segura é a conclusão de que os embargos de terceiro não têm habilitações para poderem proceder.
Mostrando-se inconsequentes os argumentos e conclusões do recurso interposto.
2.4. A má-fé adjectiva das embargantes e apelantes.
Sugere o Fundo apelado (1.º embargado) na sua contra-alegação que a defesa de a sentença transitada (proc.º 817/11) dever ser ignorada pelos embargos de terceiro é sintoma de má-fé das apelantes (embargantes).
A censura por litigância de má-fé exige, contudo, a demonstração de um juízo de reprovação de certo atributo; porventura com ajuste a uma perturbação acentuada dos parâmetros de boa-fé ou lisura, que devem pautar as intervenções nos casos (artigo 542º, nº 2, do Cód. Proc. Civ.).
Ora, no caso, a argumentação das apelantes, se bem que inconsistente, não cai em tal domínio, merecedor de uma sanção civil. É uma abordagem técnico-jurídica que julgamos em desvio dos critérios normativos; mas a que se acomoda apenas um juízo final de improcedência.
O instrumento da litigância de má-fé não pode servir para rastrear a moldagem jurídica que os sujeitos processuais entendam desenhar; e mesmo que marginal seja.
III – Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelas embargantes e, nesse sentido, em confirmar o saneador-sentença proferido pelo tribunal a quo.
As custas devidas pela apelação são encargo das apelantes e embargantes.

Lisboa, 2 de Dezembro de 2025
Luís Filipe Brites Lameiras
Edgar Taborda Lopes
José Capacete