Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
101821/22.2YIPRT.L1-8
Relator: ANA PAULA NUNES DUARTE OLIVENÇA
Descritores: PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
CLÁUSULA PENAL CONTRATUAL
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A acção especial para cumprimento de obrigações implica a existência de uma relação contratual e que o pedido corresponda a obrigação pecuniária, decorrente de forma clara e linear do contrato firmado entre as partes;
2. O procedimento de injunção é adequado à cobrança de obrigações pecuniárias de quantidade ou de soma, isto é, dívidas em dinheiro pelo que, pode concluir-se que, quando a lei se refere a «…obrigações pecuniárias emergentes de contratos…» prevê contratos cuja prestação principal, a cargo do devedor, consiste na obrigação pecuniária de quantidade (ou de soma) ou seja, dívidas em dinheiro.
3. O procedimento de injunção não é o meio processual adequado para cobrança de quantias resultantes de cláusulas penais;
4. Verificando-se que o procedimento de injunção não era o adequado porque por via dele não é possível ao credor obter a cobrança de valor atinente a cláusula penal, a acção especial para cobrança de obrigações pecuniárias de valor inferior à alçada da Relação, iniciada em consequência de transmutação do procedimento de injunção também não poderá ser aproveitada por ter tido origem em procedimento não admissível, estando comprometida a própria instância verificando-se uma excepção dilatória inominada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

1.Relatório
A, LDA.,
veio apresentar requerimento de INJUNÇÃO que se transmutou em acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias a que se reporta o regime anexo ao Dec. Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro contra,
B, LDA. e C,
solicitando a sua condenação solidária no pagamento da quantia global de 7.113,81 EUR, sendo (i) 5.334,23 EUR respeitante fornecimento de bens e (ii) 1.333,55 EUR relativos a cláusula penal convencionada pelo incumprimento do pagamento dos bens fornecidos à Ré B.
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Considerando o eventual erro na forma de processo relativamente ao pedido de condenação no pagamento de cláusula penal, foram as partes notificadas para se pronunciarem em respeito pelo disposto no art.3.º, n.º 3 do CPCivil aplicável aos presentes autos por força do disposto no art.º 549.º do mesmo diploma legal.
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Nessa sequência, apenas a Autora se pronunciou, defendendo a improcedência da excepção de erro na forma de processo.
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Veio então a ser proferida a decisão final ora sob recurso que, a final, decide:
«… ao abrigo dos artigos 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b), e 578.º, todos do CPC, julga-se verificada a exceção dilatória de nulidade de todo o processo, resultante do erro na forma de processo e, em consequência, absolvem-se as Rés B e C da instância.»
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Do assim decidido, veio a A. interpor recurso concluindo como segue:
«CONCLUSÕES
I. O presente recurso tem como objecto a matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos que julgou verificada a excepção dilatória inominada de erro na forma de processo e, como consequência, absolveu as Rés da instância, por entender que o procedimento de injunção não é o meio processual adequado para cobrança de quantias resultantes da fixação de cláusulas penais.
II. Ora, os presentes autos correspondem a acção declarativa especial destinada ao cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, nessa espécie distribuídos em face da oposição deduzida pelas Requeridas.
III. O processo especial será o adequado quando o pedido formulado se enquadre no escopo da Lei ao estabelecer esse processo, apenas havendo erro na forma do processo quando seja feito uso de uma forma de processo que não se adeque à pretensão deduzida.
IV. A referida acção declarativa especial tem, precisamente, como finalidade a obtenção do cumprimento coercivo de obrigações pecuniárias de fonte contratual, dizendo-se que a obrigação é pecuniária «quando na fixação da prestação se atende ao valor da moeda devida, e não às espécies concreta ou individualmente determinadas ou ao género de certas espécies monetárias, abstraindo do seu valor liberatório ou aquisitivo» (cf. João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10.ª Edição, Revista e Actualizada [Reimpressão], Coimbra [2003], Almedina, págs. 845 a 848).
V. Com a obrigação pecuniária principal, as partes poderão, no contrato de que ela emerge, estipular cláusulas acessórias, como é o caso da cláusula penal através de que as partes estabelecem, por acordo, o montante indemnizatório a ser satisfeito ao credor em caso de não cumprimento definitivo, mora ou cumprimento defeituoso da obrigação principal.
VI. Efectivamente, tem vindo a ser entendido por alguns Tribunais que os procedimentos previstos no DL 269/98, de 1 de Setembro, não são adequados para exigir o pagamento da indemnização prevista na cláusula penal, designadamente por esta constituir uma dívida de valor ou uma obrigação valutária, não tendo por objecto uma importância monetária, pelo menos enquanto essa obrigação não for convertida em dívida de dinheiro, seja por decisão judicial, seja por acordo.
VII. Acontece que o mesmo raciocínio implicaria, em bom rigor, que também se considerasse estar, nestes procedimentos, vedado ao credor exigir o pagamento de juros moratórios.
VIII. Afigurando-se, porém, pacífico o entendimento de que os autores/requerentes, que recorrem a estes procedimentos não estão impedidos de reclamar o pagamento dos respectivos juros moratórios, não se crê haver, por identidade de lógica e de razão, qualquer motivo que justifique a oposição judicial de entraves a que o credor possa peticionar a cláusula penal, acordada e prevista, aliás, para a situação de mora.
IX. Acresce que, ao convencionarem uma cláusula penal em que o valor da indemnização, desde logo, se encontra definitivamente estabelecido, como in casu sucede, as partes acabam não só por determinar o valor da indemnização, mas também por operar a referida conversão da dívida de valor em dívida de dinheiro, cuja prestação passará, assim, a ser entendida, sem necessidade de mais, como uma obrigação pecuniária stricto sensu.
X. No mais, considerando a evolução legislativa do regime do procedimento injuntivo bem como o disposto nos artigos 7.º e 11.º, n.º 1, do Anexo ao DL 269/98, de 01/09, e 3.º e 10.º n.º 1 do DL 62/2013, de 10/05, não se vislumbra que a simplicidade e a celeridade que caracterizam tais procedimentos possam mostrar-se incompatíveis com a eventual discussão da exigibilidade da cláusula penal, tanto mais que é tendencialmente admissível a formulação de pedido relativo a cláusula penal quando esta seja de natureza compulsória (cf., além do mais, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26 de Junho de 2011, proferido no âmbito do processo n.º 365/09.9TBCNT-A.C1, e Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 6.ª Edição Actualizada e Ampliada, Coimbra [2008], Almedina, pág. 50 ).
XI. Por regra, «[o] erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei» (artigo 193.º do CPC), nada impedindo, ademais, que, sendo caso disso, apenas o pedido relativo à cláusula penal fosse desconsiderado ou viesse a improceder.
XII. Acresce que, uma vez deduzida a oposição e apresentados os autos à distribuição (i. e., ultrapassada a fase administrativa ou injuntiva), caberá ao Tribunal apenas tramitar e julgar a acção declarativa, tanto mais que, em face da referida distribuição, já não existirá um procedimento de injunção propriamente dito cuja verificação - que foi da incumbência da respectiva Secretaria - possa agora ser novamente realizada pelo Tribunal, estando-lhe, por isso, vedado decidir que o procedimento de injunção não era, afinal, o meio adequado.
XIII. Em face do exposto, ao decidir como decidiu – i. e., que o procedimento de injunção não é o meio processual adequado para cobrança de quantias resultantes da fixação de cláusulas penais, sejam de índole indemnizatória ou tenha natureza compulsória, sob pena de verificação da excepção dilatória de nulidade de todo o processo, por erro na forma de processo – , o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 1.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, 7.º e 11.º, n.º 1 do respectivo Anexo, 2.º, 3.º e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, 193.º, 196.º, 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea b), do Código de Processo Civil, e 804.º, 806.º e 810.º do Código Civil, preceitos estes que, conjugadamente, deveriam ter sido interpretados no sentido de que do referido pedido formulado pela Autora, considerado isoladamente ou em conjugação com a finalidade para que o procedimento em causa foi estabelecido, não emerge qualquer uso indevido ou inadequado do procedimento injuntivo ou qualquer erro na forma do processo.
XIV. Ademais, ao julgar, após distribuição, verificada a excepção de uso indevido do procedimento de injunção, o Tribunal a quo violou, ainda, o disposto nos artigos 7.º e 11.º, n.º 1 do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, 2.º, 3.º e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que uma vez apresentados os autos à distribuição como acção declarativa, caberá ao Tribunal apenas tramitar e julgar a mesma, posto que não existe, nessa fase, um procedimento de injunção propriamente dito cuja verificação possa agora ser novamente realizada pelo Tribunal a quo.
TERMOS EM QUE e noutros que VV. Exas. suprirão, concedendo-se a apelação e revogando-se a sentença revidenda, substituindo-se por outra que considere adequada a providência requerida pela Recorrente, julgue inverificada a excepção dilatória e mande prosseguir os autos, far-se-á JUSTIÇA.»
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O recurso foi devidamente admitido em 1ª instância pelo que cumpre apreciar e decidir.
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Foram colhidos os vistos legais.
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2. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art.ºs 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
In casu importa a única questão que importa decidir é se acção pode prosseguir nos termos em que se encontra processada ou se se verifica erro na forma de processo susceptível de determinar a absolvição das Rés da instância.
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3. Fundamentação
3.1. Fundamentação de Facto
Os factos a considerar para a decisão do recurso são os constantes do relatório que acima se deixaram relatados.
3.2. Fundamentação de Direito
Estando em causa a nulidade de erro na forma de processo cumpre, antes de mais, estabelecer os contornos doutrinários de tal figura.
A nulidade de erro na forma de processo vem prevista no art.º 193º do CPCivil cujo teor é o seguinte:
«1 - O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
2 - Não devem, porém, aproveitar-se os atos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu.
3 - O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.»
De forma simples, poder-se-á dizer que o erro na forma de processo existe quando se propõe a acção segundo uma forma inadequada. É em função do pedido concretamente formulado que o juiz deve aferir da propriedade e adequação da forma de processo usada ou seja, «da correspondência ou conformidade da forma de processo a que recorreu com os critérios abstractos da lei».[1]
Trata-se de nulidade que não determina a anulação de todo o processado, importando, apenas, a anulação dos actos que, de todo, não possam ser aproveitados.
Verificado erro no meio processual usado pelo autor, incumbe ao juiz adaptar o processo à tramitação adequada praticando os actos que, para o efeito se lhe afigurem necessários, desde que isso não implique uma diminuição das garantias do Réu. Se da adaptação do processado à forma de processo adequada resultar a diminuição de tais garantias então impõe-se a anulação de todo o processado, com a consequente absolvição do Réu da instância, assumindo, assim, tal vício a verdadeira natureza de excepção dilatória[2]. Cfr. art.ºs 278º, nº 1. al. b) e 577º, al. b) e 578º, todos do CPCivil.
Se for possível o aproveitamento dos actos praticados, ou de parte deles e a convolação do processado na forma adequada, estaremos perante uma mera irregularidade, sanável - art.º 193º, nºs 1 e 3 do CPCivil.
Como salientam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, «a idoneidade da fora de processo (…) afere-se em função do tipo de pretensão formulada pelo autor e não em referência à pretensão que devia ser por ele deduzida (aqui trata-se, não de uma inapropriedade da forma do processo, mas de uma situação de eventual manifesta improcedência da ação), ocorrendo o erro e a correspondente nulidade quando o autor usa uma via processual inadequada para fazer valer a sua pretensão»[3].
Na mesma senda, LEBRE DE FREITAS defende «este erro é aferido em face do pedido deduzido, e não perante a natureza objetiva da relação material controvertida ou da situação jurídica que serve de base à acção, sem prejuízo da adequação da forma de processo (art.º 547).
Não deve, efectivamente, confundir-se a questão de fundo com a questão de forma: se o pedido for deduzido com base num direito que o autor não tem, embora tendo outro direito em que podia ter fundado um pedido diverso que desse lugar a uma forma de processo distinta, o erro está no pedido e não na forma de processo, pelo que a consequência a tirar é a improcedência da acção»[4].
Não obstante, a mencionada relação de conformidade entre a pretensão, ou seja, o pedido e a forma de processo pressupõe a interpretação destes no contexto da causa de pedir, tal como o autor ou requerente a configura.
Revertamos ao caso sob recurso.
No caso vertente, a ora apelante intentou contra as Rés um procedimento de injunção, previsto e regulado no regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, aprovado pelo Dec.Lei nº 269/98, de 01-09 (rectificado pela Dec. Rectif. 16-A/98, de 30-09), e sucessivamente alterado pelos seguintes diplomas: Dec.Lei 3889, de 23-09; Dec.Lei 183/2000, de 10-08; Dec.Lei 232/2001, de 17-12; Dec.Lei 32/2003, de 12-02; Dec.Lei 38/2003, de 08-03; Dec.Lei 324/2003, de 27-12 (rectificado pela Dec. Rectif. 26/2004, de 24-02); Dec.Lei 107/2005, de 01-07 (rectificado pela Dec. Rectif. 63/2005, de 19-08); Lei 14/2006, de 26-04; Dec.Lei 303/2007, de 31-12; Lei 67-A/2007, de 31-12; Dec.Lei 34/2008, de 26-02; Dec.Lei 226/2008, de 20-11; e Lei 117/2019, de 13-09.
O requerimento de injunção encontra-se definido como correspondendo à «(…) providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular [obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15 000 EUR], ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro [ou do D.L. n.º 62/2013, de 10 de maio]», tal como decorre do art.º 7.º do Regime anexo ao DL n.º 269/98.
Como explica PAULO DUARTE TEIXEIRA[5], a delimitação do âmbito de aplicação do procedimento de injunção faz-se através do estabelecimento de pressupostos objectivos e subjectivos.
Quanto aos pressupostos objectivos, releva a densificação dos conceitos de obrigação pecuniária emergente de contrato (art.º 1º do DL 269/98) e transacção comercial (art.º 3º, al. b) da Lei 62/2013); ao passo que no tocante aos pressupostos subjectivos avulta a concretização dos conceitos de consumidor (art.º 2º, nº 2 da Lei 62/2013), entidade pública (art.º 3º, al. c) da Lei 62/2013) e empresa (art.º 3º, al. d) da Lei 62/2013).
No caso dos autos, não sofre dúvidas que se mostram reunidos os pressupostos objectivos do contrato de compra e venda como fonte do crédito reclamado e da natureza pecuniária do mesmo, porém, o conceito de obrigação pecuniária subjacente ao Dec.Lei nº269/98 deve interpretar-se de modo estrito, no sentido de uma determinada quantia monetária. Daqui resulta que só pode ser objecto do pedido de injunção o cumprimento de obrigações pecuniárias directamente emergentes de contrato, mas já não poderá ser peticionado naquela forma processual obrigações cuja génese é outra fonte, designadamente, obrigações advenientes do instituto da responsabilidade civil.
Adianta-se desde já, que se entende que o pedido processualmente admissível será, assim, a prestação contratual estabelecida entre as partes cujo objecto seja em si mesmo uma soma de dinheiro e não um valor representado em dinheiro.[6]
A acção especial para cumprimento de obrigações implica a existência de uma relação contratual e que o pedido corresponda a obrigação pecuniária, decorrente de forma clara e linear do contrato firmado entre as partes.
Nos termos do disposto no artigo 16º, nº1, do Dec.Lei nº269/98 e no caso de causas de valor inferior à alçada da Relação, a dedução de oposição determina a remessa dos autos à distribuição pelo Tribunal competente seguindo-se após os termos previstos nos arts.3º e 4º.
A aplicação desta forma de processo especial após a remessa para distribuição não afasta, todavia, os requisitos para a utilização do procedimento injuntivo situados a montante.
In casu, a A. para além da prestação monetária adveniente directamente do incumprimento do contrato, peticiona, ainda, outras quantias a título de cláusula penal pelo que terá de concluir-se que o objecto dos autos não resultará restringido às quantias directamente em dívida por virtude do incumprimento.
Na verdade, nos autos, está em causa aferir, também, dos montantes que se prendem com a actuação da cláusula penal.
E, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 15.01.2019[7], «...a lógica que preside ao procedimento de injunção é a da cobrança, rápida e simples, de dívidas pecuniárias, acompanhada das consequências indemnizatórias mais imediatas e necessárias dessa cobrança (juros e despesas de cobrança).
Dívidas que, pela sua própria natureza, implicam uma tendencial certeza da existência do direito de crédito.
Acontece que quando esteja em causa uma obrigação secundária derivada do incumprimento do contrato, e não se vise o seu cumprimento, estar-se-á a extravasar o âmbito deste procedimento, pelo que sempre se deverá concluir que a injunção não é a via processual adequada para acionar a cláusula penal, mesmo que compulsória, decorrente de mora ou de qualquer vicissitude na execução do contrato.»
Dispõe o art.º 810º, nº1, do CCivil, que «As partes podem, porém, fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal».
A lei não refere qualquer função específica da cláusula penal, mas, a respeito, tem a doutrina distinguido a cláusula penal enquanto instituto que visa determinar o devedor ao cumprimento da obrigação principal (cláusula penal compulsória), podendo, também, destinar-se, caso o devedor não cumpra a obrigação principal, a fazer com que indemnize o credor (cláusula penal indemnizatória).[8]
Assim, nas cláusulas penais indemnizatórias, o acordo das partes visa a liquidação da indemnização devida em caso de incumprimento. Nas compulsórias, o acordo das partes tem por finalidade determinar o devedor ao cumprimento ou a sancionar o devedor pelo não cumprimento.
In casu, vem alegado que, das condições de venda resulta que a falta de pagamento das facturas no prazo acordado implicaria o pagamento de juros de mora à taxa legal para as dívidas comerciais, acrescida da sobretaxa de 3 %, bem como da quantia correspondente a 25 % do valor total da factura, em valor nunca inferior a 250,00€, a título de cláusula penal, para acorrer a despesas de contencioso, o que a Requerida aceitou expressamente.
A questão que se põe, é, pois, a de saber, se o pedido de pagamento de cláusula penal é admissível em sede de procedimento de injunção.
Como em muitas outras questões, a jurisprudência não é unânime distinguindo-se duas correntes:
-A corrente que nega a possibilidade de lançar mão do procedimento de injunção para obter o pagamento de quantia estipulada por cláusula penal[9] e,
- A corrente que admite o recurso ao procedimento de injunção como meio processual para obter o pagamento de quantia pecuniária indemnizatórias ainda que estabelecida por cláusula penal[10]
A corrente que defende não ser possível o recurso ao processo injuntivo argumenta que a quantia estabelecida a título de cláusula penal não constitui uma obrigação pecuniária em sentido estrito e, por isso, está afastada a possibilidade de recurso à via injuntória porque reservada a pedidos de quantia pecuniária stricto sensu.
Aquela que não restringe o recurso à injunção nestes casos defende ser admissível ao credor exigir do devedor a indemnização fundada em cláusula penal desde que a prestação prometida pelo devedor consiste numa soma pecuniária.
No que toca às correntes doutrinárias, também se identificam posições distintas.
Salvador da Costa entende «…distinguir consoante a natureza da cláusula penal em causa, isto é, conforme ela foi convencionada a título indemnizatório, para o caso de incumprimento de um contrato, ou com escopo meramente compulsório. Na primeira situação trata-se de indemnização por incumprimento contratual antecipadamente fixada e, consequentemente não pode ser exigida neste tipo de acção ou de procedimento; na segunda situação, em que se está perante uma sanção aplicável sempre que se verifique ou não um facto contratualmente previsto, parece que nada obsta a que o pedido do montante convencionado possa ser objecto da acção ou procedimento em causa.»[11].
Carlos Pereira Gil, seguindo na esteira de Salvador da Costa, escreve a propósito: «…se se tratar de uma cláusula penal indemnizatória, estaremos face a uma típica indemnização pelo dano fixada prévia e contratualmente. Daí que, a nossa ver, não possa tal cláusula penal ser exigida nessa acção. Porém, se a cláusula penal tiver escopo exclusivamente compulsório, não poderá afirmar-se que constitua uma indemnização pelo dano. Nesta situação depara-se-nos uma soma monetária estipulada a título de mera sanção sempre que ocorra ou não o evento contratualmente previsto. Deste modo, parece-nos que nesta modalidade de cláusula penal poderá ser reclamada nesta acção, pois trata-se de uma mera importância pecuniária pactuada para sancionar certa conduta.»[12]
Diferentemente, João Vasconcelos Raposo e Luís Batista Carvalho defendem: «…esta não é a via processual adequada para accionar cláusula penal, mesmo que compulsória, decorrente de mora ou qualquer vicissitude na execução do contrato…(…) …o sentido do diploma e das regras que o integram é o de conceder uma via especialmente simples para a cobrança das dívidas que estejam directa e necessariamente previstas no contrato e não quaisquer obrigações pecuniárias condicionais.»[13]
Perante as divergências jurisprudenciais e doutrinais, cumpre decidir in casu.
O Art.º 1º do Dec.Lei 269/98, apenas estabelece que o procedimento de injunção se destina a exigir «(…) o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (…)» Cfr. Art.º 1º do Dec.Lei 269/98, redacção Dec.Lei nº 303/2007. Na esteira do CCivil, não define, pois, o que se deve entender por obrigações pecuniárias pelo que terá de entender-se que se visa a noção comum de dinheiro.
No dizer de Menezes Cordeiro, «a prestação pecuniária será, pois, aquela que consista na entrega de uma determinada quantia em dinheiro, entendido como valor monetário…».[14]
As obrigações pecuniárias, por sua vez, podem subdividir-se em obrigações de quantidade -as partes indicam uma quantia que o devedor há-de pagar ao credor; obrigações de moeda específica - o cumprimento deve ser feito em moeda metálica ou em valor de moeda metálica; e obrigações valutárias - cujo cumprimento deve ser feito em moeda estrangeira.
O critério de distinção entre as dívidas de dinheiro e as dívidas de valor reside no seguinte: nas dívidas de dinheiro a prestação pecuniária é a prestação devida; já nas dívidas de valor, a prestação pecuniária é uma prestação substitutiva da prestação devida.
A esta luz cumpre decidir a que tipo de obrigações pecuniárias se refere o Dec.Lei nº 269/98.
Tal diploma surgiu da necessidade de se criar um meio processual, de natureza administrativa, que permitisse ao credor de obrigação pecuniária a obtenção, de forma célere e simplificada, de um título executivo sem contraditório. Estas características de simplicidade, ausência de apreciação judicial, rapidez e intuito de descongestionamento dos tribunais, revelam o fim que o legislador visou alcançar.
Assim, quando no requerimento injuntivo se refere «valor do capital» há-de concluir-se que o procedimento de injunção é adequado à cobrança de obrigações pecuniárias de quantidade ou de soma, isto é, dívidas em dinheiro pelo que, pode concluir-se que, quando a lei se refere a «…obrigações pecuniárias emergentes de contratos…» prevê contratos cuja prestação principal, a cargo do devedor, consiste na obrigação pecuniária de quantidade (ou de soma) ou seja, dívidas em dinheiro. Daqui resultam, afastadas as obrigações pecuniárias de valor, sejam a título de prestação principal, sejam enquanto prestação acessória ou como obrigação com faculdade alternativa, como sucede com as obrigações emergentes de cláusulas penais, ainda que pecuniárias.
E assim sendo, desnecessário se torna distinguir entre cláusulas penais indemnizatórias e cláusulas penais compulsórias para admitir, ou não, consoante se trate de umas ou de outras, a possibilidade de o credor, para as cobrar, lançar mão do procedimento de injunção.
As cláusulas penais não encerram a estipulação de prestações principais de obrigações pecuniárias de quantidade, constituem cláusulas acessórias que determinam o pagamento de obrigações de valor, substitutivas da prestação principal ainda que estabelecidas em quantidade pelo que, o procedimento de injunção nunca seria o meio processual adequado para cobrança de quantias resultantes da fixação de tais cláusulas qualquer que seja a sua natureza.
Perante a decisão da 1ª instância que absolveu as requeridas por erro na forma de processo e a argumentação da apelante que defende que, « “[o] erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei” (artigo 193.º do CPCivil), nada impedindo, ademais, que, sendo caso disso, apenas o pedido relativo à cláusula penal fosse desconsiderado ou viesse a improceder.» necessário se torna apreciar o vício em causa.
Será que estamos perante o erro na forma de processo previsto no referido art.º 193º?
Evidenciam os autos que o procedimento de injunção intentado pela requerente foi transmutado em acção especial para cobrança de obrigações pecuniárias de valor inferior à alçada da Relação, em virtude das requeridas terem apresentado oposição.
Nos termos do art.º 17º, nº 1, do citado diploma legal, remetido o requerimento a distribuição, segue-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 1.º e nos artigos 3.º e 4.º, estipulando o art.º 3º, nº 1, que se «… a ação tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo   procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa». Daqui se conclui, que nesta fase inicial da acção e com vista ao conhecimento de qualquer excepção, compete ao juiz apreciar a concreta pretensão que o requerente configurou no requerimento de injuntivo e caso verifique a ocorrência de alguma excepção dilatória insuprível, cumpre-lhe absolver a parte demandada da instância, em conformidade com o estipulado no art.º 278º, nº 1, al. e), do CPCivil, assim lhe ficando vedado o conhecimento de mérito.
Terá sempre o juiz de apreciar e decidir analisada a pretensão do requerente, se o recurso ao procedimento de injunção como meio de obter a satisfação do crédito reclamado era admissível.
O recurso ao processo de injunção, quando não se mostram preenchidos os pressupostos legalmente exigidos para o efeito, configura uma verdadeira situação de uso indevido daquele meio como forma de exigir o cumprimento das obrigações a que se reporta o art.º 1º do referido diploma preambular e tal, como tem vindo a ser decidido, consubstancia uma verdadeira excepção dilatória inominada.[15]
E, verificando-se que o procedimento de injunção não era o adequado porque por via dele não era possível ao credor obter a cobrança de valores atinentes a cláusulas penais acordadas, como se concluiu nos autos, o vício está a montante e a acção especial para cobrança de obrigações pecuniárias de valor inferior à alçada da Relação, iniciada em consequência de transmutação do procedimento de injunção também não poderá ser permitida, nem aproveitada por qualquer forma por ter tido origem em procedimento não admissível, estando comprometida a própria instância o que obsta ao conhecimento de mérito da totalidade do pedido.[16]
Pelo exposto, ainda que não por erro na forma de processo, mas por se entender proceder excepção dilatória inominada, entende-se confirmar a decisão recorrida, mantendo-se a absolvição da instância das apeladas.
4. Decisão
Na sequência do exposto e pelos fundamentos indicados, acordam as Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação e manter a sentença recorrida.
Notifique.
Custas pela apelante.
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Lisboa, 25/1/2024
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Carla Cristina Figueira Matos
Carla Mendes
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[1] Cfr. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol.I, pág. 631, cit. Ac. da Rel.Évora, de 12.11.1998, CJ, 1998, Tomo V, pág.256, Desemb. Fernando Bento.
[2]  Francisco Ferreira de Almeida, Ob. cit., pág. 631
[3]  “Código de Processo Civil anotado”, I vol., Almedina, 2018, p. 232
[4]  «A ação declarativa comum – à luz do Código de Processo Civil de 2013», 4ª ed., Gestlegal, 2017, p. 62.
[5] “Os pressupostos objetivos e subjetivos do procedimento de injunção” Revista Themis, VII, n.º 13, pp. 169-212.
[6] Neste sent., Paulo Duarte Teixeira, Ob cit., págs.184-185
[7] Processo n.º 141613/14.0YIPRT.P1, www.dgsi.pt.
[8] Neste sent.A.Pinto Monteiro, «Cláusula Penal e indemnização», Ed. Almedina, 1990, págs.577 a 681.
[9] Cf., entre outros, T.Rel. Lisboa, de 17.12.2015, Rel.Maria Teresa Albuquerque; T.Rel.Porto, de 15.01.2019, Rel. Rodrigues Pires; T. Rel. Porto, de 7.6.2021, Rel. Joaquim Moura, T.Rel.Porto, de 14.9.2023, Rel.Judite Pires
[10] Cf., entre outros, TRL, de 18/03/2010, Bruto da Costa; TRC, de 26/06/2012. Henrique Antunes).
[11] A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 5ª edição, Almedina, pág. 43
[12] Algumas Notas Sobre os DL. 269/98 e 274/97, CEJ, 1999, pág. 3, nota 7
[13] Injunções e Ações de Cobrança, Quid Juris, 2012
[14] Direito das Obrigações, AAFDL, 1º Vol., pág. 350.
[15] Ac. Rel.Lisboa, Rel. Edgar Taborda Lopes, Proc. nº88236/190YIPRT
[16]  Cfr. neste sent. Ac. STJ, de 14.2.2012, Proc. nº 19937/10.3YIPRT.L1.S1, Rel. Salazar Casanova e Ac. Rel. Coimbra, de 20.5.2014, Proc. nº30092/13.6YIPRT.C1