Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
39730/05.3YYLSB-D.L1-8
Relator: AMÉLIA PUNA LOUPO
Descritores: EXECUÇÃO
CESSÃO DE CRÉDITOS
COMUNICAÇÃO
EFICÁCIA
INCIDENTE DE HABILITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Do artº 583º do CCivil resulta que a notificação da cessão de créditos em regra ocorrerá judicialmente, podendo, mas não necessariamente devendo, sê-lo extrajudicialmente.
II - Sendo promovido incidente de habilitação de cessionário a notificação judicial terá lugar no âmbito desse incidente, que constitui mecanismo próprio para o efeito, e tal importa a eficácia da cessão de créditos relativamente aos devedores.
III - A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade (cfr. artº 372º nº 1 CCivil).
IV - Tendo a cessão de créditos sido efectuada por escritura pública, documento autêntico cuja força probatória plena não foi ilidida, a mesma materializa e demonstra a transmissão do crédito a favor da Requerente do incidente de habilitação de cessionário.
V - No âmbito da contestação ao incidente de habilitação de cessionário o fundamento de que “a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo” carece da alegação de factos concretos, objectivos, que, uma vez provados, demonstrem que a transmissão foi feita com o propósito malicioso de obter esse resultado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa, em que é exequente [em resultado de habilitação anteriormente ocorrida] “….” e executados “…” e “…”, veio “…” deduzir o incidente de habilitação de cessionário com fundamento em que em 15/07/2020 celebrou um contrato de cessão de créditos com a exequente “…” através do qual esta lhe cedeu, entre outros, o crédito que detinha sobre a executada “…”, resultante do incumprimento de contratos de locação financeira mobiliária e de contrato de mútuo que haviam sido celebrados com o “…”; crédito esse que lhe foi cedido na totalidade e livre de quaisquer ónus ou encargos, tendo incluído a transmissão para a cessionária, requerente do incidente, da garantia real do crédito cedido.
A exequente “…” não contestou o incidente.
A executada “…” igualmente não contestou.
Já a executada “…” apresentou articulado em que começou por arguir a nulidade da sua notificação para os termos do incidente com fundamento na exiguidade/insuficiência dos elementos constantes da mesma para que pudesse exercer cabalmente o seu direito ao contraditório, em síntese, por desconhecer a Requerente, os seus accionistas e o beneficiário efectivo, impedindo-a de determinar de forma segura se a invocada transmissão foi efectuada para tornar mais difícil a sua posição no processo, e também por desconhecer a invocada cessão de créditos uma vez que não havia antes sido dela notificada.
Afirmou, por isso, que o seu articulado não constituía uma verdadeira oposição porque apenas estaria em condições de exercer o seu direito ao contraditório quando notificada daqueles elementos.
De todo o modo, alegou ainda desconhecer a genuinidade e autenticidade da letra e assinatura do documento relativo à cessão de créditos junto com o requerimento inicial, defendeu que os documentos juntos não provam a cessão, mais afirmando que esta visa prejudicar os devedores, sendo que o valor da dívida é de € 2.642.000,00 e não € 5.143.000,00 referidos no documento relativo à cessão.
Assim, pugna pela improcedência do incidente.
A Requerente do incidente respondeu, conforme lhe permite o artº 356 nº 1 al. b) do CPC, alegando, em síntese, que é uma sociedade comercial por quotas podendo a executada conhecer a sua estrutura societária mediante consulta do seu registo.
Por outro lado, a circunstância de desconhecer a cessão anteriormente à sua notificação para o incidente não é motivo de improcedência nem de nulidade. De outra banda, o documento é uma escritura de contrato de cessão de créditos, que faz prova plena dos factos atestados e a sua força probatória apenas poderia ser ilidida com base na sua falsidade, sendo esse documento prova suficiente da cessão e do valor desta. Refere ainda que a mera substituição da exequente “…” pela requerente não modificará a substância e o objecto da causa, ou seja, a posição da requerida manter-se-á a mesma. Por fim, diz que o valor da cessão é irrelevante para a requerida.
O Tribunal a quo apreciou e decidiu o incidente julgando a Requerente “…” habilitada, como cessionária do direito em litígio, para prosseguir os ulteriores termos da acção executiva na qualidade de exequente.
Inconformada, veio a executada “…” interpor o presente recurso de apelação sustentando que deve ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que julgue improcedente o incidente de habilitação de cessionário.
Para tanto, das suas alegações extraiu as seguintes
CONCLUSÕES
«i. Vem o recorrente ser notificado de decisão com a qual não pode colher entendimento, pois que na verdade, mal andou a mesma na subsunção que fez dos factos ao Direito.
ii. Com efeito, vem o tribunal julgar improcedente a nulidade invocada.
iii. O ora recorrente alegou, de forma tempestiva uma nulidade processual uma vez que, não foi devidamente notificada da petição inicial nos presentes autos.
iv. A recorrente desconhece quem é a entidade e o respectivo beneficiário efectivo que alegadamente figura como parte activa na mesma, i e, a …. LDA.
v. Na verdade o ora recorrente nunca foi notificado de qualquer cessão de créditos, nem tão pouco tomou conhecimento da mesma.
vi. O que de per si determina a nulidade imediata dos presentes autos e, assim, todos os actos subsequentes.
vii. Não estamos apenas perante uma cessão de créditos mas sim perante uma alegada situação jurídica na qual a credora cede os seus créditos a uma entidade terceira.
viii. Pelo que se afigura mesmo como essencial a prossecução dos presentes autos, ter conhecimento de quem são os accionistas desta sociedade e em particular da sociedade que ora vem requerer a habilitação como parte activa nos presentes autos.
ix. Com efeito, e uma vez que estamos perante uma nulidade absoluta e, em consequência, de conhecimento oficioso e, por isso, invocável a todo o tempo.
x. E bem assim perante um acto omitido que a lei reputa por essencial para a prossecução ulterior dos termos processuais, no qual se inclui a própria sentença.
xi. Veio ainda a recorrente alegar o desconhecimento e genuinidade do documento junto com a petição inicial.
xii. A presente habilitação soçobra necessariamente por não demonstrada a transmissão do crédito em apreço em seu favor mas sim visa prejudicar os putativos devedores (cf. Prof. A. Varela, ob. cit. 287 e nota 1; Prof. Vaz Serra, “Cessão de Créditos ou de Outros Direitos”, BMJ, 1955, 130; e Prof. Ribeiro de Faria, “Direito das Obrigações”, II, 2.ª ed., 539).
xiii. A intenção única da requerente da habilitação é colocar os devedores numa posição sobremaneira fragilizada em termos jurídicos.
xiv. É manifesto que nos presentes autos visa também a requerente o mesmo tipo de litígio conforme nos autos acima referidos, cujo objectivo é tornar a posição das devedoras mais difícil exigindo um crédito manifestamente superior àquele que se encontra devido nos autos.
xv. O que assim viola de forma directa e expressa o artigo 356.º/1, alínea a) do CPC.
xvi. Termos em que também por aqui e por manifesta, clara e censurável violação do normativo processual que determina que a cessão não pode afectar, em termos de prejudicar, a posição que o devedor tinha para com o cedente, se deverá determinar a improcedência da presente habilitação, tudo o que respeitosamente se requer para todos os devidos efeitos legais.»
A Recorrida contra-alegou defendendo o acerto do decidido, pugnando pela manutenção da sentença sob recurso, para o que apresentou as seguintes
CONCLUSÕES
I. O presente recurso baseia-se nos exactos mesmos argumentos que foram alegados pela Requerida ora Recorrente em sede de Contestação ao incidente de habilitação revelando tal facto que a Recorrente apenas discorda da decisão tomada;
II. A decisão tomada na Sentença a quo é inatacável face aos factos carreados para os autos, devendo a mesma manter-se;
III. A Recorrente alega nesta sede a nulidade da notificação do Requerimento Inicial da habilitação, alegando, resumidamente, como motivos que:
a) desconhece a Requerente, seus accionistas e beneficiário efectivo e que tal facto não lhes permite estar em condições de determinar se a transmissão efectuada torna ou não mais difícil a sua posição no processo;
b) desconhece a cessão de créditos, nunca tendo sido informada da mesma;
c) desconhece a genuinidade e autenticidade da letra e assinatura da Escritura de Cessão de Créditos junta ao Requerimento Inicial;
IV. Para além de tais argumentos a Recorrente alega ainda que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo;
V. A Recorrente foi citada para o presente incidente em 16/08/2022 através da notificação com a ref.ª citius 418139681. Notificação esta que continha quer o Requerimento Inicial apresentado pela ora Recorrida, quer os documentos que acompanhavam tal requerimento;
VI. Pelo que a Recorrente foi notificada para o presente incidente nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 356.º do CPC tendo sido seguidas à risca todas as regras relativas ao presente incidente;
VII. Motivo este pelo qual não existe qualquer nulidade por falta de citação;
a) Do desconhecimento da Requerente ora Apelada
VIII. A Apelada é uma sociedade comercial por quotas criada ao abrigo da legislação nacional pelo que a Recorrente poderia ter consultado tais informações, bastando para o efeito pedir certidões e consultar o registo do beneficiário efectivo;
IX. Se não tem tais informações tal facto deve-se inteiramente a si;
X. Acresce que a notificação para apresentar contestação no âmbito de um incidente de habilitação de cessionário não tem que conter tal informação e não é nula por esse facto;
b) Do desconhecimento da Cessão
XI. Nos termos do art. 583.º do Código Civil a cessão produz efeito em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente;
XII. Motivo pelo qual é válida se efectuada na decorrência do presente incidente uma vez que os devedores serão notificados judicialmente de tal cessão para, querendo, se oporem à mesma;
XIII. Sendo esta a posição maioritária da Jurisprudência da qual as seguintes decisões são meros exemplos:
“1.- Ocorrendo cessão de créditos na pendência da execução, a notificação ao devedor (executado), para efeitos do art.583 do CC, tem-se por efectuada no próprio incidente de habilitação, aquando da notificação do mesmo ao executado para contestar o incidente.”, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 12 de Junho de 2012, disponível em www.dgsi.pt.
“V – Do art. 583º do Código de Processo Civil resulta que o que torna a cessão eficaz em relação ao devedor é o facto de este a conhecer e esse conhecimento pode revelar-se de várias maneiras entre as quais a notificação efectuada por um dos contraentes da cessão.
VI – Não tendo sido dado conhecimento ao devedor antes de deduzido o incidente de habilitação, o mesmo ter-se-á verificado com a notificação que lhe foi feita no âmbito deste.”, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 17 de Setembro de 2009, disponível em www.dgsi.pt.”
XIV. Face ao exposto verifica-se que tal facto – o desconhecimento anterior à notificação, não é motivo de improcedência do incidente e, muito menos, de nulidade dos autos ou da notificação;
c) Desconhecimento da genuinidade e autenticidade da letra e assinatura da Escritura de Cessão de Créditos
XV. O doc. 1 junto ao Requerimento Inicial corresponde a uma Escritura de Contrato de Cessão de Créditos, sendo por isso um documento autêntico – cfr. arts. 369.º e seguintes do Código Civil;
XVI. Tal documento faz prova plena dos factos praticados pelo Notário e dos factos atestados com base nas percepções deste – cfr. art. 371.º do Código Civil;
XVII. A força probatória de tal documento apenas pode ser ilidida com base na sua falsidade – cfr. art. 372.º do Código Civil e art. 446.º do CPC
XVIII. Acontece que a Recorrida faz alusão à impugnação prevista no art. 444.º do CPC relativa a documentos particulares;
XIX. Face ao exposto cai por terra também este motivo apontado pela Requerida para se opor à habilitação;
- Da alegação de que a transmissão foi realizada para tornar mais difícil a sua posição no processo
XX. A posição que a ora Recorrida visa tomar nos autos principais é a de Exequente, posição esta actualmente ocupada pelo …;
XXI. A Recorrida tomará exacta mesma posição do … nestes autos, aceitando tudo o que neles se passou até ao momento da Sentença, sem possibilidade de o modificar (para além das modificações que o próprio … poderia levar a cabo);
XXII. Motivo pelo qual a mera substituição processual do … pela Recorrida, não levará à modificação da substância e do objecto da presente causa;
XXIII. Ainda para mais quando se trata de uma instância executiva, na qual se visa apenas e só obter o pagamento de uma dívida (certa, líquida e exigível no momento da apresentação destes autos algures no ano de 2005 ou seja, há praticamente 20 anos atrás!!);
XXIV. A posição da Recorrente manter-se-á exactamente a mesma, motivo pelo qual esta não tem qualquer razão quando alega que a sua posição ficará mais difícil no processo se a Recorrida tomar a posição do …;
XXV. Verifica-se que a Recorrente vai aludindo a pequenas questões que, apesar da sua óbvia inutilidade para a procedência do Recurso, não pode deixar de se dizer uma palavra acerca das mesmas;
XXVI. No que diz “litígio de grande envergadura” entre as partes dir-se-á apenas que a ora Recorrida é, de facto, parte num outro processo no qual são executadas as duas Requeridas/Executadas nestes autos bem assim como diversos outros Executados, no qual, tal como nos autos principais deste apenso, os Executados insistem em não pagar as suas dívidas não restando outra hipótese aos seus credores que não seja executar os seus patrimónios;
XXVII. Relativamente ao crédito cedido exceder o montante máximo da hipoteca tal facto não acarreta qualquer ilegalidade, apenas tendo implicações ao nível da ordem de pagamentos entre credores ou seja, até ao montante máximo garantido o crédito terá uma natureza e, para além desse, terá outra natureza, podendo concorrer com outros créditos da mesma natureza caso existam outros credores;
XXVIII. E, por fim, mesmo que o montante do crédito cedido referido no contrato de cessão estivesse errado, no que não se concede, tal não implicaria qualquer alteração ao valor do processo e, por conseguinte, qualquer alteração à posição da Recorrente;
XXIX. Face a tudo o supra aduzido e em conclusão, o acto de cessão titulado pela escritura junta como doc. 1 do Requerimento Inicial é válido e a habilitação da ora Recorrida no lugar do … não coloca a ora Recorrente em posição mais difícil no âmbito do presente processo;
XXX. Face a tudo o supra aduzido deverá o presente recurso ser considerado totalmente improcedente, o que desde já se requer.»
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Colhidos os vistos, importa apreciar e decidir.
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Questões Prévias
No requerimento com que apresentou as suas contra-alegações, a Recorrida suscitou, em jeito preliminar, as seguintes questões:
- Da falta de pagamento da taxa de justiça por parte da Recorrente : Trata-se de aspecto que foi devidamente regularizado no Tribunal de 1ª instância, tendo a Recorrente pago a taxa de justiça devida pela interposição do recurso acrescida da multa própria, após ter sido para tanto notificada pela secretaria.
Assim, a esse respeito nada subsiste para apreciar.
- Da falta de indicação do valor do recurso : A este respeito há que atentar no disposto pelo artº 12º nº 2 do RCProcessuais, de acordo com o qual o valor a atender para efeitos de recurso é o da sucumbência se esta for determinável, e o recorrente deve indicá-lo no requerimento de interposição do recurso; nos restantes casos, isto é, caso a sucumbência não seja determinável ou não esteja indicado no requerimento de interposição de recurso, prevalece o valor da acção.
Deste modo se vê que a única consequência da falta de indicação do valor da sucumbência pelo Recorrente, mesmo que ela seja determinável, é atender‑se ao valor da acção. E a recorrida não teve dúvidas a esse respeito pagando a sua taxa em conformidade com tal regra, como a Recorrente também veio a pagá-la nos termos mencionados no ponto anterior.
Nada há, pois, a decidir a este respeito.
- Omissão de indicação pela Recorrente do efeito e modo de subida do recurso :
É certo que o artº 637º nº 1 CPC estabelece que no requerimento de interposição de recurso o Recorrente indica a espécie, o efeito e o modo de subida do mesmo, e a Recorrente não o fez.
No entanto, para essa omissão a lei não prevê qualquer consequência e certamente a mesma não constitui causa de rejeição ou de inadmissibilidade do recurso (cfr. artº 641º nº 2 CPC), tanto mais que a espécie, o efeito e o modo de subida que sejam indicados pelo Recorrente não vinculam o Tribunal recorrido nem o Tribunal ad quem (cfr. artºs 641º nº 5 e 652º nº 1 al. a) CPC).
Assim se alcança tratar-se de omissão que não acarreta consequências no que à tramitação do recuso respeita, consistindo apenas numa irregularidade que não afecta o exame ou a decisão do recurso. E ele foi devidamente admitido pelo Tribunal de 1ª instância quanto à espécie, efeito e modo de subida.
Deste modo, nada mais há a decidir a esse respeito.
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É sabido que, nos termos dos artºs 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam (neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil” 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117), certo que esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica quanto à qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. artº 5º nº 3 do CPC).
Assim, no sentido de delimitarmos as questões a decidir, devemos destacar que muito embora a Recorrente no artº 18 da motivação das suas alegações se reporte a uma omissão de pronúncia a invocação de tal vício não consta das suas conclusões, as quais, como dito, delimitam o objecto do recurso exercendo função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr. artºs 635º nº 4 e 639º nº 1 do CPC // neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106), razão pela qual essa temática não constitui questão submetida à apreciação do Tribunal ad quem.
Contudo, os aspectos que na motivação servem de substracto àquela invocação feita no artº 18 constituem questões suscitadas nas conclusões e também sustentam a posição geral defendida pela Recorrente quanto à pretendida improcedência do incidente em discussão, pelo que nessa perspectiva deverão ser apreciadas.
Deste modo, e interpretadas as conclusões à luz da respectiva motivação, as questões a decidir consistem em saber :
1- Se ocorre nulidade processual decorrente de irregular notificação do requerimento inicial do incidente à Recorrente, resultante de esta desconhecer a requerente do incidente, quem são os seus accionistas e o respectivo beneficiário efectivo, e de não ter sido anteriormente notificada de qualquer cessão de créditos.
2 - Se o alegado desconhecimento por parte da Recorrente do documento relativo à cessão de créditos e bem assim da sua genuinidade acarreta a improcedência do incidente.
3 - Se está ou não demonstrada a transmissão do crédito a favor da requerente do incidente.
4 - Se a única intenção da requerente do incidente de habilitação é colocar os devedores/executados numa posição processual mais difícil, designadamente por exigir um crédito superior àquele que é devido nos autos.
II - FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença sob recurso foram dados como provados os seguintes factos:
«1. O exequente originário …. Ldª. havia proposto ação executiva para pagamento de quantia certa, no valor de 2 391 697,45€, com base em “Mútuo com hipoteca”, datado de 9 de Maio de 2000, com “Aditamento ao contrato de Mútuo com hipoteca”, datado de 9 de Agosto de 2001.
2. A …, S.A, Sucursal em Portugal foi habilitada como exequente.
3. A …, S.A, Sucursal em Portugal e a requerente …, Ldª. celebraram, em 15.07.2020, escritura pública de “Cessão de créditos” pelo montante de 2 195 000,00€, pela qual aquela cedeu a esta, entre os demais, o crédito exequendo, incluindo todos os direitos acessórios e garantias.»
Não foram firmados factos não provados.
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Vejamos que dizer quanto à primeira questão suscitada.
Verificar-se-á, como defendido, uma nulidade processual decorrente de irregular notificação do requerimento inicial do incidente à Recorrente, resultante de esta desconhecer a requerente do incidente, quem são os seus accionistas e o respectivo beneficiário efectivo, e de não ter sido anteriormente notificada de qualquer cessão de créditos?
Revelam os autos – e na verdade a Recorrente não o pôs em causa nem na sua contestação nem nas alegações de recurso – que foi notificada para os termos do presente incidente de habilitação de cessionário por notificação com data de 16/08/2022 certificada pelo sistema informático, e a mera consulta dos autos ostenta que essa notificação se fez acompanhar do requerimento inicial do presente incidente e da documentação que o instruiu, designadamente a escritura de cessão de créditos.
Portanto, a notificação foi regularmente efectuada nos termos e para os efeitos do disposto no artº 356º nº 1 al. a), 1ª parte, e acompanhada dos elementos a que alude o artº 219º nº 3 CPC.
Acontece que, devidamente interpretada a posição expressa pela ora Recorrente quer na sua contestação quer no presente recurso, a mesma entende que aquela notificação não foi cabalmente realizada, no sentido de lhe permitir o adequado exercício do contraditório, por a mesma não ter sido anteriormente notificada de qualquer cessão de créditos, por desconhecer a requerente do incidente e quem são os seus accionistas e o respectivo beneficiário efectivo.
No tocante à notificação e conhecimento da cessão de créditos previamente à dedução do presente incidente de habilitação de cessionário, a sentença sob recurso discorreu bastante e com acerto, invocando, ademais, esclarecedora jurisprudência a tal respeito.
O artº 583º do CCivil, ao dispor sobre os efeitos da cessão em relação ao devedor, estabelece que “A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite” [sublinhado nosso], donde resulta que a notificação da cessão em regra ocorrerá judicialmente, podendo, mas não necessariamente devendo, sê-lo extrajudicialmente.
E a notificação judicial teve lugar precisamente no âmbito do presente incidente, que constitui mecanismo próprio para o efeito como ressalta dos Acórdão invocados pela Recorrida a titulo exemplificativo, o que, nos termos do citado preceito, importa a eficácia da cessão de créditos relativamente aos devedores, entre os quais se conta a Recorrente, com a notificação operada neste domínio.
Se o legislador entendesse que os direitos do devedor, nomeadamente o do contraditório, não ficariam devidamente acautelados sem que o mesmo tivesse conhecimento da cessão anteriormente à promoção do incidente de habilitação, necessariamente imporia como requisito de procedibilidade do incidente que a cessão tivesse sido notificada ao devedor previamente, o que não fez, presumindo-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (cfr. artº 9º nº 3 CCivil).
Por conseguinte, a circunstância de a Recorrente não ter sido notificada da cessão anteriormente à propositura do presente incidente não gera qualquer vício, processual ou substantivo.
E esses argumentos e ordem de razões são igualmente válidos quanto ao invocado desconhecimento da cessionária e de quem são os seus accionistas e o respectivo beneficiário efectivo.
Trata-se de elementos que a lei não prevê, muito menos exige, que instruam o requerimento do incidente de habilitação como se alcança do artº 356º nº 1 al. a), 1ª parte, do CPC, que apenas prevê a (óbvia) junção do título da cessão.
Entendesse o legislador ser necessária, nomeadamente para a defesa do devedor, a junção de quaisquer elementos relativos ao cessionário e, no caso de pessoa colectiva, aos seus membros societários, não deixaria de o ter estabelecido, o que não fez; presumindo-se, como se disse, que consagrou as soluções mais acertadas.
De todo o modo, reputando tais elementos de necessários, a Recorrente, tomando conhecimento da identidade da cessionária ao receber com a notificação o titulo da cessão, tem ao seu dispor meios públicos, a saber o registo comercial, que lhe permitiriam tomar conhecimento de todos os dados societários daquela e a identificação dos seus sócios [e não accionistas, pois trata-se de sociedade por quotas, como a sua denominação revela].
Portanto, também este alegado desconhecimento não gera qualquer vício, processual ou substantivo.
No concernente à segunda questão suscitada, a primeira consideração surge como decorrência do acima exposto : com a notificação judicial para os termos do presente incidente a Recorrente inevitavelmente tomou conhecimento do documento respeitante à cessão de créditos e esta, nos termos do acima citado artº 583º nº 1 do CCivil, tornou-se eficaz relativamente a ela, isto é, a cessão passou a ser-lhe oponível.
O desconhecimento da cessão, enquanto perdurasse, importava a inexigibilidade da dívida pelo cessionário. Mas esse desconhecimento findou com a notificação para o incidente em causa, com a qual a cessão se tornou eficaz, e essa eficácia tem como consequência a imediata exigibilidade da dívida pelo novo credor, o cessionário.
 Efectivamente, como se diz na sentença sob recurso com sustento no Ac do STJ de 03/06/2004, proc. nº 04B815, “(…) o conhecimento que a citação implica, noticiando ao Réu que o seu credor passou a ser outro, não pode significar outra coisa senão que o novo credor pode exigir-lhe o pagamento do crédito de que ele é, agora, o titular.”; e como apontam os Acs. deste Tribunal da Relação ali citados (de 12/05/2009, proc. nº. 29488/05.1YYLSB.L1-7, e de 15/03/2011, proc. nº. 24649/05.6YYLSB.L1-1) “(…) Não é de esperar, aliás, que o Código de Processo Civil tenha de prever, como efeito específico da citação, o de tornar eficaz em relação ao devedor a cessão do crédito cujo pagamento é exigido na acção ou execução.”, quando, ademais, “(…) nas relações entre as partes, o contrato de cessão de créditos produz imediatamente o efeito translativo da titularidade do crédito, independentemente da sua notificação ao devedor.”.
Deste modo, logo se alcança que o desconhecimento da Recorrente (por referência a momento anterior à notificação para o incidente) do documento relativo à cessão de créditos, se revela inconsequente posto que veio a ter dele conhecimento com a notificação no âmbito processual e com ela adquiriu o conhecimento que aporta a eficácia da cessão, pelo que tal não se reconduz a fundamento de improcedência da habilitação do cessionário.
Já no que toca ao desconhecimento por parte da Recorrente da genuinidade do documento relativo à cessão de créditos, a mera invocação desse desconhecimento é inconsequente se desacompanhada do mecanismo legal adequado a pô-lo em crise.
Ora, o documento em causa é uma escritura pública, lavrada por notário no seu cartório notarial no livro de notas para escrituras diversas (cfr. dita escritura).
Trata-se, portanto, de um documento autêntico face às disposições conjugadas do artº 369º nº 1 do CCivil e artºs 1º nº 1, 2º nº 1, 4º nºs 1 e 3, 7º nº 1 al. b), 12º e 35º nºs 1 e 2 do Código do Notariado.
E a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade (cfr. artº 372º nº 1 CCivil); falsidade que a Recorrente não arguiu, sendo à mesma que caberia ilidir a força probatória do documento autêntico nos termos prescritos pelo artº 446º CPC.
Acontece que os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, no caso o notário, e dos factos que neles são atestados com base nas percepções daquele (cfr. art. 371º do CCivil). O que nos remete para a terceira questão enunciada.
Estando em causa documento autêntico, cuja força probatória plena não foi ilidida, o mesmo materializa e demonstra a transmissão do crédito a favor da Requerente do incidente.
Improcedem, assim, também esses fundamentos recursórios.
Invoca ainda a Recorrente nas conclusões xiii a xv que “A intenção única da requerente da habilitação é colocar os devedores numa posição sobremaneira fragilizada em termos jurídicos” “(…) exigindo um crédito manifestamente superior àquele que se encontra devido nos autos”, sintetizando essa conclusão a motivação versada nos pontos 25 a 35 das suas alegações (à semelhança do que alegou nos artºs 38º a 50º da sua contestação) que são do seguinte teor :
«25. A cessão e consequente substituição processual subjetiva dela dimanante, visa apenas prejudicar os putativos devedores.
26. Ou seja, a cessão de créditos não pode prejudicar a posição que o devedor tinha para com o cedente (cf. Prof. A. Varela, ob. cit. 287 e nota 1; Prof. Vaz Serra, “Cessão de Créditos ou de Outros Direitos”, BMJ, 1955, 130; e Prof. Ribeiro de Faria, “Direito das Obrigações”, II, 2.ª ed., 539).
27. O que ocorreu nos presentes autos com a habilitação ora em crise.
28. Onde a intenção única da requerente da habilitação é colocar os devedores numa posição sobremaneira fragilizada em termos jurídicos.
29. Ora, sobejamente encontra-se provado nos presentes autos que a cessionária do crédito … LDA., se encontra a tornar mais difícil a posição das devedoras nos presentes autos, violando assim o disposto no artigo 356.º/1 alínea a) do CPC.
30. O recorrente é à presente data titular de um litígio de grande envergadura, no montante de € 7.187.000,00 (sete milhões cento e oitenta e sete mil euros), que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução de Lisboa - Juiz …., Processo: ….
31. Assim, é manifesto que nos presentes autos visa também a requerente o mesmo tipo de litígio conforme nos autos acima referidos, cujo objectivo é tornar a posição das devedoras mais difícil exigindo um crédito manifestamente superior àquele que se encontra devido nos autos.
32. Pelo que o crédito da recorrente nos presentes autos não pode de forma alguma ultrapassar o montante máximo da amplitude da garantia da hipoteca.
33. Assim manifesto se torna que ao ceder um crédito pelo montante manifestamente superior ao que efectivamente se encontra em dívida nos presentes autos, a requerente cedente e cessionária pretende tornar de forma expressa e directa mais difícil a posição das devedoras nos presentes autos.
34. O que assim viola de forma directa e expressa o artigo 356.º/1, alínea a) do CPC.
35. Termos em que também por aqui e por manifesta, clara e censurável violação do normativo processual que determina que a cessão não pode afectar, em termos de prejudicar, a posição que o devedor tinha para com o cedente, se deverá determinar a improcedência da presente habilitação, tudo o que respeitosamente se requer para todos os devidos efeitos legais.».
Como se vê da transcrição supra, o principal argumento da Recorrente para defender que a Requerente da habilitação, com a cessão de créditos operada, tem a única intenção de colocar os devedores, designadamente a Recorrente, numa posição processual fragilizada radica na exigência de um crédito superior ao que é devido nos autos.
Salvo o devido respeito, tal afirmação apenas poderá resultar de evidente equívoco, por um lado porque do requerimento do incidente nada consta de onde se possa extrair que a cessionária pretende exigir um crédito superior ao devido nos autos, e por outro lado, particularmente relevante, tal é manifestamente impossível por via do incidente de habilitação de cessionário, o qual tem por único efeito uma substituição subjectiva da instância : o cessionário, habilitado que seja, passa a ocupar a exacta e precisa posição processual da cedente/exequente, designadamente quanto à titularidade do crédito exequendo, que se mantém precisamente o mesmo.
De outra banda, devemos ter presente que nos termos do artº 356º nº 1 al. a), 2ª parte, do CPC a contestação do incidente de habilitação de cessionário – além da impugnação da validade do acto, aspecto já acima abordado e resolvido – pode ter por fundamento a alegação de que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a posição do devedor contestante no processo, sendo, por conseguinte, irrelevantes as meras intenções; relevante é que a transmissão tenha sido feita propositadamente por forma a efectivamente tornar mais difícil a posição do devedor no processo.
E para que o Tribunal possa formular esse juízo não basta a simples afirmação, conclusiva e baseada na percepção subjectiva do devedor, necessário é que este alegue factos concretos, objectivos, que, a provarem-se, demonstrem que a transmissão do crédito ocorreu com o propósito de lhe tornar mais difícil a sua posição na causa principal (no caso na execução).
A este propósito já Alberto dos Reis ensinava (in CPC Anotado, Vol. I, pág. 605/606) que a oposição fundada no propósito de tornar mais difícil a posição da parte contrária, reveste o aspecto duma questão de facto, para cuja resolução pode haver necessidade de recolher provas.
Acresce que “para que possa proceder a oposição ao incidente de habilitação do adquirente da coisa ou direito litigioso com fundamento na maior dificuldade da posição processual do opoente, não basta demonstrar-se essa maior dificuldade, sendo necessário apurar que a transmissão foi feita para obter esse resultado, ou seja, que obedeceu a um propósito malicioso” (Salvador da Costa, in Os Incidentes da Instância, Almedina, 3ª Edição, p. 257).
Portanto, não basta demonstrar, para o que sempre seria necessário alegar factualidade concreta e objectiva, que em consequência da substituição do sujeito processual activo se agravará a posição da parte contrária, nomeadamente por ter de defrontar um adversário mais forte do que o cedente, como parece ser o sentido da argumentação da Recorrente ao fazer menção a uma outra acção executiva em que - de acordo com o expresso na sua contestação mas não no recurso - será exequente a ora Recorrida também em resultado de habilitação de cessionário. É indispensável que se apure ter a transmissão sido feita com o propósito de obter esse resultado.
Ora, como ressalta do acima transcrito, nada de objectivamente factual existe nos autos que permita afirmá-lo.
Portanto, também este aspecto do recurso improcede.
Aqui chegados, perante a improcedência dos fundamentos de impugnação apresentados pela Recorrente, temos que a escritura pública de cessão de créditos, documento autêntico cuja validade, eficácia e fidedignidade não se encontra beliscada, como acima vimos, prova a cessão de créditos invocada como fundamento do presente incidente.
A cessão de créditos consiste no contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito com as respectivas garantias e direitos acessórios, traduzindo-se na substituição do credor originário por outra pessoa sem que produza a substituição da obrigação antiga por uma nova, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional, importando apenas a modificação subjectiva do lado activo da relação obrigacional. É quanto decorre dos artºs 577º nº 1 e 582º nº 1 CCivil.
A cessão em causa tornou-se eficaz relativamente aos devedores, designadamente a Recorrente, como vimos, mediante notificação judicial realizada para os termos do presente incidente (cfr. artº 583º nº 1 CCivil).
Deste modo, estão verificados os requisitos necessários à modificação subjectiva da instância em resultado de acto entre vivos, operada por via do incidente de habilitação de cessionário, cuja consequência é a habilitação como cessionária da ora Recorrida “…, Ldª” para, em substituição da exequente “…, S.A, sucursal em Portugal”, prosseguir os ulteriores termos da acção executiva (cfr. artºs 262º al. a), 263º nºs 1 e 2 e 356º do CPC).
Deste modo se conclui pela improcedência do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.

III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a sentença de 1ª instância.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique.

Lisboa, 08/02/2024
Amélia Puna Loupo
Rui Pinheiro de Oliveira
Marília Leal Fontes