Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3744/18.7T8CSC-A.L1-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRAÇÃO DA INSOLVÊNCIA PELO DEVEDOR
2ª INSTÂNCIA
CADUCIDADE DO MANDATO FORENSE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Se na assembleia de credores, no âmbito do processo de insolvência, foi decidido manter a administração pela devedora do estabelecimento compreendido na massa insolvente, não caduca o mandato conferido pela devedora a advogado que a representa em acção contra esta instaurada.
II- Neste caso, não se aplica o disposto nos artigos 110.ºe 112.ºdo CIRE e nos termos dos artigos 81.º, n.º 1 e 226.º do mesmo diploma legal, quando a administração da insolvente seja exercida pela Devedora, ao Administrador de Insolvência compete apenas o poder de fiscalização do exercício dessa mesma administração.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 6.ª secção do Tribunal da Relação
de Lisboa:

I- RELATÓRIO

CONDOMÍNIO DO PRÉDIO sito na Rua …, Oeiras, intentou acção declarativa de condenação em processo comum, contra:
1.ª- L, com sede na Rua …, Lagos e
2.º- R, com última morada conhecida na Rua …, Porto.
O Autor pretende a declaração de nulidade da doação efectuada pelo segundo Réu à L, tendo por objecto a fracção “AD” do prédio sito na Rua ….
A acção foi proposta em 05-12-2018, tendo a Ré L apresentado a sua contestação em 01-02-2019. Juntou procuração a favor do Ilustre Advogado Dr. MC, datada de 16 de janeiro de 2019.
Os autos prosseguem até que em 22 de Setembro de 2020, foi proferido o seguinte despacho:
“(…) Conforme resulta da certidão que antecede, a Ré L foi declarada insolvente por decisão transitada em julgado em 12/06/2020 proferida no âmbito do processo n.º ….
Em consequência da declaração de insolvência da Ré, caducou o mandato conferido ao ilustre mandatário, nos termos do art.º 110.º n.º 1 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.
Deste modo, ao abrigo do disposto no art.º 40.º, n.º 1, al. a) e 41.º do Código de Processo Civil, com cópia da petição inicial e da contestação, notifique o sr. AI nomeado para, em vinte dias, constituir mandatário e ratificar o processado, sob pena de, não o fazendo, ficar sem efeito a sua defesa.”

Posteriormente, em 30 de Abril de 2021, veio a ser proferido o despacho com o seguinte teor:
Conforme resulta dos autos, por despacho proferido em 22/09/2020, considerou-se que o mandato conferido ao Ilustre Mandatário da 1.ª R. caducou, em razão da sua declaração de insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 110.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Nessa sequência, foi o Senhor Administrador da Insolvência nomeado notificado para, em 20 dias, constituir mandatário, sob pena de ficar sem efeito a sua defesa.
Em resposta, veio o Ilustre Administrador da Insolvência informar que foi decidido em assembleia de credores suspender a liquidação e partilha da massa insolvente, concedendo-se prazo para a apresentação de um plano de insolvência, bem como foi decidido que se mantivesse a devedora administradora do estabelecimento compreendido na massa insolvente. Não tendo sido proferida decisão quanto à homologação do plano apresentado, entende que se mantém válido o mandato conferido pela insolvente aos mandatários.
Dos autos resulta que, por decisão proferida em 11/12/2020, foi aprovada a proposta de plano apresentada em assembleia de credores, ao abrigo do disposto no artigo 212.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, vindo a R. informar que foi recusado a homologação do plano de insolvência apresentado por despacho proferido em 19/01/2021, o que não se mostra comprovado documentalmente.
Sem prejuízo, diremos o seguinte:
De facto, uma das causas de encerramento do processo de insolvência é, nos termos do artigo 230.º, al. b) do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, a homologação do plano de insolvência, se a isso não se opor o conteúdo deste, tendo como efeitos os previstos no artigo 233.º do referido diploma legal, entre eles, a recuperação por parte do devedor do direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios (al. a)).
Por seu turno, de acordo com o artigo 110.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, caducam os contratos de mandato que não se mostre serem estranhos à massa insolvente, ou seja, não caducam, por efeito da declaração da insolvência do mandante, os contratos relativos a negócios de carácter não patrimonial ou relativos a bens que não integram, nem possam vir a integrar a massa insolvente – in Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa, 2013, pág. 508.
No presente caso, peticionando o A. a nulidade da escritura de doação celebrada entre os RR., mediante a qual a 1.ª R. adquiriu a propriedade do prédio melhor identificado nos autos, parece-nos manifesto que está em causa um negócio de carácter patrimonial e, como tal, o mandato conferido ao ilustre mandatário caducou.
E, também, a representação processual da Ré encontra-se acometida ao Senhor Administrador da Insolvência nos termos do artigo 81.º, n.º 4 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Daí que, não obstante até ao momento não haver notícia de que foi declarado o encerramento do processo de insolvência da primeira R., mesmo que tal se venha a verificar no futuro, a verdade é que se mantém actualmente o Sr. Administrador da Insolvência como representante da Ré.
 Por outro lado, também no caso de ser declarado o encerramento da insolvência, a caducidade do mandato entretanto ocorrida não deixará de subsistir.
Deste modo, face ao exposto, renovando o despacho anterior, ao abrigo do disposto no artigo 40.º, n.º 1, al. a) e 41.º do Código de Processo Civil, notifique o Sr. Administrador da Insolvência nomeado para, em 10 dias, constituir mandatário e ratificar o processado, sob pena de, não o fazendo, ficar sem efeito a sua defesa.”

Este despacho foi notificado ao Senhor Administrador, e este, no prazo determinado no despacho, nada fez.

Então, com data de 1-06-2021, foi proferido o seguinte despacho:

Na presente acção declarativa sob a forma de processo comum, na sequência da caducidade do mandato conferido pela R. L ao Ilustre Mandatário, foi o Ilustre Administrador da insolvência nomeado, notificado nos termos do artigo 41.º do Código de Processo Civil para constituir mandatário no prazo de 10 dias, sob pena de ficar sem efeito a sua defesa.
Decorrido o prazo legal, o Senhor AI nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do artigo 40.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil, é obrigatória a constituição de advogado nas causas de competência de tribunais com alçada, em que seja admissível recurso ordinário. Por seu turno, nos termos do artigo 44.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, a alçada dos tribunais de primeira instância é de € 5000,00.
Ora, o artigo 41.º do Código de Processo Civil estabelece que, se a parte não constituir advogado, sendo obrigatória a constituição, o juiz, oficiosamente ou a requerimento da parte contrária, determina a sua notificação para o constituir dentro de prazo certo, sob pena de o réu ser absolvido da instância, de não ter seguimento o recurso ou de ficar sem efeito a defesa.
Deste modo, considerando o valor da causa, não tendo sido constituído mandatário pelo R., representada pelo seu Administrador da Insolvência, julga-se sem efeito a contestação por si apresentada.
Notifique.”

Inconformada com esta decisão, a Ré interpôs, da mesma, o presente recurso de apelação que subiu em separado e com efeito meramente devolutivo.
Formula as seguintes conclusões:
a) Vem o presente recurso, interposto do douto despacho do Mmo. Juiz a quo com a ref.ª citius: 131075264, proferido no dia 01/06/2021, onde veio julgar sem efeito a contestação apresentada pela recorrente nos presentes autos no dia 01/02/2019;
b) O Advogado da recorrente, sustentando que o mandato constituído era regular, veio apresentar os requerimentos com as ref.ªs citius: 39068923 e 39071287, de 02/06/2021;
c) Sobre tais requerimentos não recaiu ainda qualquer despacho por parte do tribunal a quo.
d) A Recorrente foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 21 de Maio de 2020, pelas 12:42h, no âmbito do processo n.º 56/20.0T8LGA, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Comércio de Lagoa – Juiz 1.
e) Regra geral, a declaração de insolvência priva o insolvente dos poderes de administração e disposição de bens da massa insolvente, os quais são assumidos pelo administrador da insolvência.
f) Todavia, o referido capítulo X do CIRE permite que verificados determinados pressupostos, e com condicionalismos, a administração da massa insolvente seja assegurada pelo devedor: em tais situações o administrador da insolvência fiscaliza a administração da massa insolvente pelo devedor e comunica imediatamente ao juiz e à comissão de credores quaisquer circunstâncias que desaconselhem a manutenção da situação (n.º 1 do artigo 226.º);
g) Incumbe ao devedor exercer os poderes conferidos ao administrador da insolvência, embora só este possa resolver actos em benefício da massa insolvente.
h) É certo que o contrato de mandato que não se mostre estranho à massa insolvente caduca com a declaração de insolvência do mandante, e que com a declaração de insolvência do representado caducam as procurações que digam respeito ao património integrante da massa insolvente (artigos 110.º, n.º 1 e 112.º, n.º 1, do CIRE; isto embora, no caso, o mandato forense seja anterior à declaração de insolvência, pelo que, em rigor, nem sequer se poderá considerar neste caso concreto a possibilidade de caducidade do mandato, em face do supra exposto.
i) Por despacho datado de 19/1/2021, proferido no âmbito do processo n.º 56/20.0T8LGA, do Juízo de Comércio de Lagoa-Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, foi recusado a homologação do plano de insolvência apresentado pela recorrente que havia sido aprovado por despacho de 12/12/2020.
j) A recorrente apresentou recurso desse despacho, que veio posteriormente desistir, tendo submetido nos autos um novo plano de insolvência, que foi aprovado pelos credores, encontrando-se apenas a aguardar a sua homologação por sentença por parte do tribunal, conforme se pode comprovar pelo Anúncio publicado via citius, no dia 28 de Maio de 2021, já junto autos como DOC. 1, no dia 02/06/2021.
k) No âmbito do plano de insolvência aprovado pelos credores, foi deliberado pelos mesmos manter a administração da massa pela Ré (art.ºs 223.º a 229.º do CIRE), continuando esta a ter poderes de disposição e administração sobre o bem em litígio (art.º 81.º, do CIRE).
l) Entende a Recorrente que se mantém válido e em vigor o mandato forense por si conferido nestes autos ao seu mandatário.
m) Em face da não privação da Recorrente dos poderes de disposição e administração dos bens que integram a massa insolvente, a mesma não perdeu correspectivamente a sua legitimidade processual no âmbito dos presentes autos.
n) O mandato forense constituído pela recorrente, em 16 de Janeiro de 2019, não só era válido à data, como se mantém válido à data de hoje, pelo que, os actos praticados pelo ora signatário não carecem de ratificação pelo Sr. Administrador de Insolvência.
o) Nos termos do artigo 81.º, n.º 1 e 226.º do CIRE, quando a administração da insolvente seja exercida pela Devedora, ao Administrador de Insolvência compete apenas o poder de fiscalização do exercício dessa mesma administração.
p) Quando tenha sido deliberada a administração pelo Devedor, como sucedeu no caso em apreço o qual apenas aguarda na presente data a sua homologação, ao administrador de insolvência assistem apenas poderes de fiscalização e não de representação.
q) Tendo sido deliberado, aprovado e atribuído pelos credores a administração da massa insolvente a aqui recorrente, a procuração forense subscrita a favor do mandatário não caducou.
r) No limite deveria o tribunal a quo aguardar ou solicitar informação sobre a decisão de homologação ou não do plano de insolvência transitada em julgado, no âmbito do processo n.º …. do Juízo de Comércio de Lagoa-Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, e em caso negativo aí sim considerar o mandato conferido pela recorrente ao seu mandatário como caducado e sem efeito.
s) Nestes termos, deverão proceder as conclusões do presente recurso, e em consequência, revogar-se o despacho recorrido que declarou sem efeito o articulado de contestação apresentado pela recorrente e, deverá ser substituído por outro despacho que admita o mesmo articulado em causa, apresentado pela Recorrente.
*
Foi proferida decisão nos termos do art.º 656.º do CPC, em 4-06-2022, que julgou a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
*
 L, ora Apelante apresentou RECLAMAÇÃO para a CONFERÊNCIA da referida decisão singular, concluindo:
I.O meio de impugnação jurisdicional legalmente adequado para se reagir contra a decisão singular do Relator é a reclamação;
II- A decisão singular do Relator é sindicável em conferência, nos termos previstos no n.º 3, do art.º 652.º, do CPC;
III- A reclamação “sub-judice” deve ser apreciada, desta feita em sede de conferência, decidindo-se admiti-la e julgar procedente a respectiva pretensão, determinando-se a final procedência do recurso interposto pelo recorrente;
IV- Entende o Mmo. Juiz Desembargador-Relator na sua decisão singular que concordando com a posição doutrinária constante no despacho proferido pela 1.ª instância, que o mandato forense conferido pela Ré ao mandatário judicial caducou em face da sua declaração de insolvência, pelo que, não tendo o Sr. AI constituído mandatário e ratificado o processado, ficou sem efeito a contestação apresentada pela Ré.
V- A Ré foi declarada insolvente por sentença judicial já transitada em julgado proferida no dia 21 de maio de 2020, pelas 12:42h, no âmbito do processo n.º …, que corre termos no Juízo de Comércio de Lagoa-Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Faro.
VI- A Ré apresentou contestação nos autos principais, no dia 01 de fevereiro de 2019.
VII- A procuração forense subscrita pela Ré a favor do mandatário data de 16 de janeiro de 2019.
VIII- Não corresponde à verdade o constante na douta decisão singular do Relator quando refere que “Ora este Excelentíssimo Advogado já havia subscrito contestação e apresentado a mesmo nos autos em data posterior à da declaração da insolvência.”
IX- No âmbito do plano de insolvência aprovado pelos credores, foi deliberado pelos mesmos manter a administração da massa pela Ré (art.ºs 223.º a 229.º do CIRE), continuando esta a ter poderes de disposição e administração sobre o bem em litígio (art.º 81.º, do CIRE).
X- A Autora pede nos autos principais a declaração de nulidade de escritura de doação onde a Ré figura como donatária, referente à fração autónoma designada pela letra “AD”, do prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º …, freguesia de Oeiras e São Julião da Barra.
XI- O administrador de insolvência nomeado no processo de insolvência não tem poderes nem autoridade para substituir a Ré numa ação declarativa de condenação onde se discute a nulidade de negócio com mais de seis anos prévios à declaração de insolvência.
XII- A ideia constante nos artigos 110.º, n.º 1, n.º 2, al. a), e 112.º, n.º 1, do CIRE é de que, quer o mandato, quer a procuração, caducam, no “pressuposto de que, não dispondo o insolvente de poderes de administração e disposição de bens da massa, não devem manter-se os contratos que ele concluiu para que terceiro realize negócios jurídicos sobre tais bens” – cfr. Ana Prata, Jorge Morais Carvalho, Rui Simões in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, 2013, pág. 334.
XIII- No caso sub judice, está em discussão a prática de um ato processual – contestação – em ação de processo comum intentada contra a Ré (entretanto mais tarde declarada insolvente) e o doador na qual se pede entre outros pedidos, a declaração de nulidade de escritura pública de doação de imóvel, bem como o reconhecimento de que, por via dessa nulidade seja proprietário do imóvel o Autor.
XIV- É pacifico na doutrina e na jurisprudência que a caducidade do mandato não ocorre quando o próprio devedor é o administrador da massa insolvente.
XV- No caso concreto, estamos perante eventual ineficácia da contestação deduzida pela Ré antes da sua declaração de insolvência, por força da caducidade do mandato forense outorgado para o efeito, por via da declaração de insolvência – contestação essa apresentada antes de tal declaração, com o fundamento de que o devedor perde a disponibilidade de praticar quaisquer atos relativos a bens ou direitos que possam integrar a massa insolvente.
XVI- Acontece que, essa perda de disponibilidade é relativa.
XVII- No caso sub judice, negar-se à Ré insolvente do direito de pleitear por si, contestando a ação em que foi demandada ainda antes até de ter sido declarada insolvente, com a invocação da nulidade de escritura pública de doação de um imóvel por si adquirido, equivale na prática negar o direito de defesa da Ré insolvente.
XVIII- Os interesses da massa insolvente, ou seja, o eventual alargamento do património da massa não deixam de estar acautelados através do direito de defesa exercido pela Ré insolvente na ação, no lado passivo.
XIX- Razão esta na qual se entende, que a Ré insolvente que havia sido demandada para a ação, e que veio a contestar essa mesma ação antes até da sua declaração de insolvência, dispõe não só de capacidade judiciária como também de legitimidade processual, podendo assim estar em juízo mesmo desacompanhada do administrador da sua massa insolvente.
XX- Em suma, em face das razões supra aduzidas, não obstante a representação da Ré insolvente pelo administrador subjacente à defesa dos interesses de natureza patrimonial, no caso sub judice de imputado negócio nulo, o direito de contestar por parte da Ré não integra propriamente uma indisponibilidade do insolvente que a lei da insolvência estabelece nos apontados preceitos como consequência da declaração de insolvência, caso contrário mostrava-se precludido verdadeiramente o exercício do contraditório, arredando-se uma tutela efetiva dos direitos da Ré insolvente.
Termina pedindo a procedência da reclamação e que a decisão singular proferida seja revogada.

Entretanto o presente processo foi distribuído a esta 6.ª secção Cível, pelo facto de o Sr. Relator a quem inicialmente tinha sido distribuído o processo, ter ido para outro Tribunal, como dos autos consta.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

II- OS FACTOS

Os elementos com relevo para a decisão são os que constam do relatório supra. Destaca-se ainda o seguinte que dos autos consta:
1- Por sentença proferida em 21 de maio de 2020, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo de Comércio de Lagoa, Juiz 1, no processo …, foi declarada a insolvência da Associação L, conforme informação prestada aos autos, em 21-09-2020, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
2- A referida sentença transitou em julgado em 12 de junho de 2020.
3- No dia 8 de julho de 2020, realizou-se a assembleia de credores no âmbito do processo de insolvência supra identificado, tendo sido decidido suspender a liquidação e partilha da massa insolvente concedendo-se 60 dias à devedora para apresentação do plano de insolvência, bem como manter a administração pela mesma devedora do estabelecimento compreendido na massa insolvente. (Cfr, Acta junta aos autos a 09-10-2020).
4- Em 15 de Outubro de 2022, foi proferida sentença no processo principal de que este recurso é apenso, que julgou a acção parcialmente procedente e declarou a nulidade do contrato de doação, relativamente à fracção autónoma designada pelas letras “AD”.

III- O DIREITO

Tendo em conta as conclusões formuladas neste recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal a questão que importa apreciar consiste em saber se, no caso de o devedor insolvente manter a administração da massa insolvente, como é a situação sub judice, são aplicáveis as regras gerais da caducidade do mandato e da procuração.

Conforme estabelece o art.º 110.º n.º1 do D.L. nº 53/04, de 18.3, que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), “os contratos de mandato, incluindo os de comissão, que não se mostre serem estranhos à massa insolvente, caducam com a declaração de insolvência do mandante, ainda que o mandato tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, sem que o mandatário tenha direito a indemnização pelo dano sofrido”. O nº 2, na alínea a), estatui que se considera que o mandato se mantém “ caso seja necessária a prática de actos pelo mandatário para evitar prejuízos previsíveis para a massa insolvente, até que o administrador da insolvência tome as devidas providências”.
Por sua vez, o art.º 112.º n.º 1 do mesmo diploma estatui: “salvo nos casos abrangidos pela alínea a) do nº 2, do artigo 110º, com a declaração de insolvência do representado caducam as procurações que digam respeito ao património integrante da massa insolvente, ainda que conferidas também no interesse do procurador ou de terceiro”.
A regra geral é, pois, a de que tanto o mandato como a procuração caducam no pressuposto de que, não dispondo o insolvente de poderes de administração e disposição de bens da massa, não devem manter-se os contratos que ele concluiu para que terceiro realize negócios jurídicos sobre tais bens.
Porém, o caso que nos ocupa apresenta uma especificidade que, necessariamente, tem de ser considerada e altera, afastando-a, a aplicabilidade de tais normas.
Com efeito, conforme está provado, no dia 8 de julho de 2020, realizou-se a assembleia de credores no âmbito do processo de insolvência supra identificado, tendo sido decidido manter a administração pela mesma devedora do estabelecimento compreendido na massa insolvente. Ora, quando assim sucede, quando o próprio devedor é o administrador da massa insolvente, é entendimento pacífico na Jurisprudência que não ocorre a caducidade do mandato, como já foi decidido nesta mesma 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão datado de 17-03-2022[1].
Como ali se pode ler: “não serão assim abrangidos por tais normas[2] o mandato ou a procuração que sejam atributivas de poderes alheios a bens da massa insolvente.
Segundo o art.º 81º, nº4, CIRE, o administrador judicial assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.

Também
será pacífico que a caducidade do mandato não ocorre quando o próprio devedor é o administrador da massa de insolvência. [3]
Na verdade, não faria sentido que, mantendo a Ré os poderes de administração da massa insolvente, perdesse a sua legitimidade processual para se defender numa acção em que está em causa um bem que poderá ou não fazer parte dessa massa, conforme o destino da acção.
Como decorre do disposto nos artigos 81.º, n.º 1 e 226.º do CIRE, quando a administração da insolvente seja exercida pela Devedora, ao Administrador de Insolvência compete apenas o poder de fiscalização do exercício dessa mesma administração.
Cremos igualmente que esta argumentação não é contrariada pelo facto de a administração da devedora se manter apenas em relação ao “estabelecimento compreendido na massa insolvente”, parecendo inculcar a ideia de que essa administração não atinge toda a massa insolvente. Ora, a verdade é que resulta dos autos que na prática, o dito “estabelecimento” da L constitui a totalidade da massa insolvente, incluindo os imóveis onde funciona o dito “estabelecimento”, como resulta, designadamente, da análise do plano de recuperação junto aos autos em 13-04-2022, na parte em que é descrito o activo móvel e o activo imóvel. Por outro lado, se essa administração reservada à devedora fosse parcial, teria de resultar da acta essa restrição, com especificação dos bens em relação aos quais não se manteria tal administração.
Pelas razões supra expostas, impõe-se concluir que, no caso concreto em apreço, não caducou o mandato conferido ao ilustre mandatário da Ré.
De qualquer modo, ainda que tivesse caducado, nunca essa caducidade poderia ser retroactiva, ou seja, nunca poderia produzir efeitos para o passado, mas sempre para futuro.
Ora, no caso em apreço, conforme está provado, a insolvência foi decretada por sentença de 21 de maio de 2020 que transitou em julgado em 12 de junho de 2020. Sucede que a contestação da Ré Associação L foi apresentada em 01-02-2019. Ou seja, a contestação foi apresentada mais de um ano antes da declaração de insolvência. Nunca poderia, nessas circunstâncias, ser dada sem efeito a contestação apresentada, pois nunca poderia ficar afectado tal acto por uma eventual futura caducidade do mandato.
Procedem, pois, as conclusões da Apelante, procedendo, por conseguinte, o recurso.
Verifica-se, porém que, entretanto, já foi proferida sentença final, não obstante não ter sido ainda proferida decisão neste recurso com evidente influência nessa mesma decisão. Entendemos, todavia, que a decisão deste recurso não perdeu utilidade.


IV- DECISÃO

Em fave do exposto, acordamos nesta 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e, por consequência, revogando a decisão recorrida que julgou sem efeito a contestação apresentada pela Apelante, determinar a sua substituição por outra que admita o mesmo articulado, seguindo-se os demais termos legais do processo.

Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024
Maria de Deus Correia
Maria Teresa Pardal
Octávia Viegas (vencida conforme declaração de voto que segue)


Voto de vencido

Entendo que embora a caducidade do mandato não ocorra quando o devedor é administrador da massa insolvente, apesar do disposto no art.º 81, nº 4, do CIRE, no caso dos autos, à Insolvente em assembleia de credores foi-lhe permitido prosseguir a actividade comercial que vinha exercendo antes da declaração de insolvência e administrar o estabelecimento integrado na massa insolvente, o restante da massa insolvente, nomeadamente o bem em causa nestes autos passou nos termos do art.º 81, nº 1, do CIRE, para a administração e disposição do Sr. Administrador da Insolvência.
No caso dos autos foi proferido despacho que declarou a caducidade da procuração forense conferida pela Insolvente.
A acção exige constituição de advogado (Art.º 40.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil, - nos termos do artigo 44.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, a alçada dos tribunais de primeira instância é de €5.000,00).
O artigo 41.º do Código de Processo Civil estabelece que se a parte não constituir advogado, sendo obrigatória a constituição, o juiz, oficiosamente ou a requerimento da parte contrária, determina a sua notificação para o constituir dentro de prazo certo, sob pena de o réu ser absolvido da instância, de não ter seguimento o recurso ou de ficar sem efeito a defesa.
Não tendo sido constituído advogado após ter sido proferido o despacho em 22/09/2020, considerou caducado o mandato conferido pela Insolvente e notificou o Sr. Administrador da Insolvência para juntar procuração, não tendo sido junta a procuração fica sem efeito a contestação a foi junta procuração relativa a mandato que se mostrava caducado.
Assim, manteria a decisão recorrida, proferida no Tribunal a quo.

Octávia Viegas
______________________________________________________
[1] Vide Processo 6707/17.6T8LSB.L1-6, disponível em www.dgsi.pt
[2] Refere-se aos artigos supra mencionados 110.º e 112.º do CIRE.
[3] Sublinhado nosso.