Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1161/20.8PBSNT-D.L1-5
Relator: MANUEL JOSÉ RAMOS DA FONSECA
Descritores: PERDÃO DA LEI Nº 38-A/2023 DE 2 DE AGOSTO
PENA DE PRISÃO SUPERIOR A OITO ANOS
CÚMULO JURÍDICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL EM SEPARADO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:  (da responsabilidade do relator)
I – A medida de perdão fixada pela Lei 38-A/2023-2agosto, nas regras estabelecidas pelos n.ºs 1 e 4 do art.º 3.º, só é aplicada, verificados os demais pressupostos, a penas que não sejam superiores a 8 anos de prisão.
II – Tal assim é, não só quando a pena de prisão superior a 8 anos tenha sido aplicada apenas por um crime, como também quando se está perante uma pena única em resultado de cúmulo jurídico de várias penas parcelares, ainda que cada uma delas de medida inferior a 8 anos.
III – Trata-se dum outro nível de exclusão da medida de perdão, consubstanciado na gravidade da conduta ou na multiplicidade de condutas determinantes de uma pena de prisão superior ao limite fixado no art.º 3.º/1, independentemente do tipo de ilícito praticado, sendo que este evidenciado alargamento do campo de exclusões constante da Lei 38-A/2023 não consubstancia uma qualquer novidade, antes se inscreve numa tendência de vontade do Legislador que se vem desenhando em antecedentes leis de clemência, com a introdução de concretas exclusões que vão além da tipologia dos crimes, e antes se focam especificamente nos agentes do crime ou na posição funcional das vítimas.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
1. Decisão recorrida
No âmbito destes autos, mediante despacho de ... (ref. ...), em sede de apreciação de requerimento formulado (a ..., ref. ...) pelo AA, indeferiu-se a aplicação do perdão de pena a que alude a Lei 38-A/2023-2agosto (perdão de penas e amnistia de infrações).
2. Recurso
Inconformado com o referido despacho, do mesmo e junto do Tribunal a quo interpôs o Arguido recurso (... - ref. ...) motivando-o e delimitando-o no objeto com as conclusões (ainda assim minimamente sintéticas e adequadas) que se transcrevem (SIC, com exceção do itálico):
Conclusões
A. “A Lei do perdão, Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto prevê um perdão de penas de um ano de prisão a todos os crimes cometidos até as 00h do dia 19 de Junho de 2023, por pessoas com idades entre 16 anos e 30 anos, cujas penas não ultrapassem os 8 anos de prisão.
B. Ora, o aqui arguido, a nosso ver, preenche todos os requisitos.
C. Ainda que o mesmo haja sido condenado pela prática de um crime de homicídio, (não abrangido pela referida Lei), certo é que, é este diploma legal que prevê no art.º 7º n.º 3, que tal circunstância não prejudica o perdão relativamente a outros crimes, não fazendo qualquer diferenciação.
D. Conforme decidido pelo Tribunal de ..., no proc.º 379/18.8..., pese embora o arguido tenha sido condenado em cúmulo, por um crime de trafico nos termos do art.º 21º (que se encontra previsto na excepção do art.º 7º daquele diploma legal) e por um crime que é passível de ser abrangido como o de tráfico de menor gravidade, o Tribunal ali decidiu aplicar na pena parcelar o perdão, uma vez que quanto àquele crime, se encontram preenchidos os requisitos.
E. E assim se deveria ter decidido no caso dos presentes autos.
F. Pois que quanto a esta a Lei não discrimina em caso de cúmulo ou computo das penas.
G. Assim, dever-se-ia ter decidido de forma mais favorável para o arguido.
H. Por razões de equidade e igualdade, não deverá esta Lei ser a uns aplicada nas penas parcelares ainda que cumuladas, e a outros atender á pena única.
I. Ao invés, dever-se-á aplicar o perdão nas penas parcelares que preencham os requisitos, como foi no conhecido processo em que é arguido BB, entre vários outros.
J. O próprio Ministério Publico, em resposta ao requerimento apresentado pelo arguido, veio promover a concessão do perdão ao aqui arguido.
Entrega o arguido, confiadamente a decisão desta causa, a este Venerando Tribunal, que fará a melhor, ou a mais acostumada e ponderada
JUSTIÇA”
3. Resposta ao recurso
Regularmente admitido o recurso, o Ministério Público junto do tribunal a quo (a ... - ref. ...) respondeu ao mesmo de forma direta, pugnando no sentido da improcedência do recurso, dizendo (no que de momento interessa e em sede de conclusões que formulor) que (SIC, com exceção do itálico):
1. “O arguido AA veio recorrer do despacho proferido em .../.../2023, no âmbito do qual o Tribunal a quo determinou que “não beneficiando o arguido AA do perdão de 1 ano de prisão concedido pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, indefere-se o requerido”.
2. No caso concreto, as questões suscitadas pelo arguido em sede de recurso aludem fundamentalmente a matéria de direito, reportando-se mais concretamente à não aplicação do perdão de pena previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
3. Conforme resulta do douto acórdão condenatório proferido e já transitado em julgado, no âmbito dos presentes autos, o arguido foi condenado “ na pena única de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão” resultante da aplicação das “seguintes penas parcelares: - A pena parcelar de 16 (dezasseis) anos de prisão, pela prática, no dia ... de ... de 2020, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º, n.ºs 1 e 2 al. h) do Código Penal; - A pena parcelar de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, pela prática, no dia ... de ... de 2020, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1 al. c), com referência aos art.ºs 2º, n.º 1 als. p) e s), 2º, n.º 3 al. p), 3º, n.º 6 e 8º, n.º 2 al. a), todos do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, com a redação introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 6 de maio, pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril, pela Lei n.º 50/2013, de 24 de julho, e pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, pelo art.º 73º, n.º 1 als. a) e b) do Código Penal e pelos art.ºs 1º e 4 do D.L. n.º 401/82, de 23 de setembro.”
4. Em .../.../2023, o arguido e ora recorrente veio requerer “a amnistia papal nos termos e ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, uma vez que preenche os requisitos previstos no art.º 2º, e por ser crime não abrangido pelas exceções previstas no art.º 7º do mesmo diploma legal” com o consequente perdão de 1 (um) ano à pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão efetiva pelo qual foi condenado pelo crime de detenção de arma proibida.”
5. A douta decisão do qual o arguido veio agora recorrer, datada de.../.../2023, indeferiu a aplicação do perdão da pena com os seguintes fundamentos: “ pese embora à data da prática dos factos o arguido AA tivesse 30 anos de idade, encontrando-se aqueles igualmente abrangidos pelo período temporal a que alude o art.º 2º, n.º 1 da Lei n.º 38- A/2023, de 2 de agosto, para além da respetiva aplicabilidade ao crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º, n.ºs 1 e 2 al. h) do Código Penal, se encontrar excluída pelo disposto no art.º 7º, n.º 1 al. a) i) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (contrariamente ao que sucede relativamente ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1 al. c) do Regime Jurídico das Armas e Munições), a verdade é que a mesma se mostra desde logo excluída, in totum, pelo quantum da pena única aplicada, manifestamente superior a 8 anos.”, uma vez que “apenas são objeto do perdão de 1 ano de prisão as penas únicas fixadas em medida não superior a 8 anos art.º 3º, n.ºs 1 e 4, in fine, da Lei n.º 38/2023, de 2 de agosto -, o que aqui não se verifica. Pelo exposto, não beneficiando o arguido AA do perdão de 1 ano de prisão concedido pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, indefere-se o requerido”
6. O recorrente veio invocar em sede de recurso que, “Ainda que o mesmo haja sido condenado pela prática de um crime de homicídio, (não abrangido pela referida Lei), certo é que, é este diploma legal que prevê no art 7º nr 3, que tal circunstância não prejudica o perdão relativamente a outros crimes, não fazendo qualquer diferenciação. (...) quanto a esta a Lei não discrimina em caso de cúmulo ou computo das penas. G) Assim, dever-se-ia ter decidido de forma mais favorável para o arguido. Por razões de equidade e igualdade, não deverá esta Lei ser a uns aplicada nas penas parcelares ainda que cumuladas, e a outros atender à pena única.”
7. Na opinião do Ministério Público, não assiste razão ao recorrente, porquanto, conforme de seguida se analisará em concreto, o Tribunal a quo, procedeu a uma correta aplicação do direito, ao não conceder o requerido perdão, uma vez que o legislador expressamente estabeleceu um limite quanto à pena única aplicada, no âmbito do artigo 3.º, n.º 1 e no n.º 4 previu a possibilidade de aplicação de perdão em caso de cúmulo jurídico.
8. Sendo assim, considerando a opção do legislador, expressa na redação da Lei, de não ser concedido o perdão a condenados em pena única superior a 8 anos de prisão, nunca poderia o ora recorrente beneficiar do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, ainda que preenchesse os demais pressupostos, designadamente quanto à idade na data da prática dos factos e quanto o momento temporal em que os factos foram praticados.
9. Pelo exposto, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, fez uma correta interpretação das normas aplicáveis, não tendo violado qualquer preceito legal, designadamente os invocados pelo recorrente, entendendo o Ministério Público que não assiste razão ao recorrente, devendo, por conseguinte, o recurso interposto ser julgado improcedente.
V.as Ex.as, todavia, melhor decidirão, fazendo a costumada e habitual JUSTIÇA.”
4. Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista ao Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, o qual, com concreta e circunstanciada explanação, emitiu parecer (a 17dezembro2023 - ref. 20889123) pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo Arguido, acompanhando a posição do Ministério Público em 1.ª instância.
Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório, inexistindo resposta do Arguido.
Efetuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso seja julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
Sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, é a partir das conclusões que o recorrente extrai da sua fundamentação de motivação que se determina o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem na sede de recurso (art.ºs 402.º; 403.º; 412.º/1CPP e jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19outubro1995, in DR I-Série-A, de 28dezembro1995).
Nos termos do disposto no art.º 428.º/1CPP “[a]s relações conhecem de facto e de direito.”
Excluída pelo recorrente a impugnação da matéria de facto, nada sendo invocável em termos de vício previsto no art.º 410.º/2CPP, os quais somente se aplicam a sentenças, não a despachos, o recurso versa em exclusivo, matéria de direito.
O recurso, ainda que pelos mínimos, cumpre as regras do art.º 412.º/2CPP.
Concluindo, no caso em apreço, enuncia-se a seguinte questão que importa decidir:
a. é admissível a medida de perdão, no âmbito da Lei 38-A/2023-2agosto, numa pena única superior a 8 anos de prisão?
2. Apreciação do recurso
A) Ocorrências processuais antecedentes com relevo
Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão da questão suscitada importa verter aqui as ocorrências processuais com relevo que culminam no despacho recorrido.
1 – acórdão condenatório (1.ª instância)
(ref. ... de ...) (SIC, com exceção do itálico)
(…)
“AA, (…), nascido a ... de ... de 1991,
(…)
“dia ... de ... de 2020”
(…)
“A) Julgar a acusação parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência:”
(…)
“5. Condenar o arguido AA pela prática, em coautoria, na forma consumada e em concurso efetivo, de:
5.1. Um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º, n.ºs 1 e 2 al. h) do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão;
5.2. Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1 al. c), com referência aos arts. 2º, n.º 1 als. p) e s), 2º, n.º 3 al. p), 3º, n.º 6 e 8º, n.º 2 al. a), todos do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, com a redação introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 6 de maio, pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril, pela Lei n.º 50/2013, de 24 de julho, e pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
5.3. Em cúmulo jurídico das penas parcelares descritas em 5.1.) e 5.2.), nos termos do art.º 77º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, condenar o arguido na pena única de 18 (dezoito) anos e 6 (seis) meses de prisão.
5.4. Absolver o arguido do demais que lhe vinha imputado.”
2 – acórdão condenatório (9.ª Secção - TRLisboa)
(ref. ...de ...) (SIC, com exceção do itálico)
(…)
“Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento parcial aos recursos interpostos por AA (…)) e, em consequência, revogar o acórdão recorrido na parte relativa à medida das penas parcelares aplicadas aos Recorrentes relativamente ao crime de homicídio qualificado em que foram condenados e à medida da pena única dos cúmulos aplicada, condenando-se os mesmos, em substituição, nos seguintes termos:
- O arguido AA pela prática, em coautoria, na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, al. h), do Código Penal, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão.
Em concurso efetivo com a prática de um crime de detenção de arma proibida, em coautoria e na forma consumada, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1, al. c), com referência aos art.ºs 2º, n.º 1, als. p) e s), 2º, n.º 3, al. p), 3º, n.º 6, e 8º, n.º 2, al. a), todos do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, com a redação introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 6 de maio, pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril, pela Lei n.º 50/2013, de 24 de julho, e pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, em cúmulo jurídico, na pena única de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão.”
3 – requerimento do arguido
(ref. ... de ...) (SIC, com exceção do itálico)
(…)
“AA (…) vem requerer a amnistia papal nos termos e ao abrigo da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, uma vez que preenche os requisitos previstos no art 2º, e por ser crime não abrangido pelas excepções previstas no art 7º do mesmo diploma legal.
Assim deverá ser-lhe perdoado 1 ano á pena de 1 ano e 6 meses de prisão efectiva pela qual veio condenado, e a qual se encontra a cumprir na presente data, pelo crime de detenção de arma proibida.
Uma vez que, conforme estatui o art.º 7º n.º 3 do referido diploma legal, “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no art.º 3º e da amnistia prevista no art.º 4º relativamente a outros crimes cometidos”.”
(…)
B) Despacho recorrido
(ref. ... de ...) (SIC, com exceção do itálico)
(…)
“Veio o arguido AA, através do requerimento com a referência Citius n.º 23948115, de ..., “requerer a amnistia papal nos termos e ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, uma vez que preenche os requisitos previstos no art.º 2º, e por ser crime não abrangido pelas exceções previstas no art.º 7º do mesmo diploma legal”, com o consequente perdão de 1 (um) ano à pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão efetiva pelo qual foi condenado pelo crime de detenção de arma proibida.
A Digna Procuradora da República pronunciou-se pelo deferimento parcial do peticionado, nos termos que constam da douta promoção com a referência Citius n.º ..., de ....
Cumpre decidir.
Por acórdão datado de ... de ... de 2022, alterado por douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa datado de ... de ... de 2023, transitado em julgado, foi o arguido AA, nascido a ... de ... de 1990, condenado na pena única de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
A referida pena única englobou as seguintes penas parcelares:
- A pena parcelar de 16 (dezasseis) anos de prisão, pela prática, no dia ... de ... de 2020, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art.ºs 131º e 132º, n.ºs 1 e 2 al. h) do Código Penal;
- A pena parcelar de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, pela prática, no dia ... de ... de 2020, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1 al. c), com referência aos arts. 2º, n.º 1 als. p) e s), 2º, n.º 3 al. p), 3º, n.º 6 e 8º, n.º 2 al. a), todos do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, com a redação introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 6 de maio, pela Lei n.º 12/2011, de 27 de abril, pela Lei n.º 50/2013, de 24 de julho, e pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, pelo art.º 73º, n.º 1 als. a) e b) do Código Penal e pelos arts. 1º e 4 do D.L. n.º 401/82, de 23 de setembro.
Conforme se referiu anteriormente, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 2º, n.º 1 e 3º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 agosto (diploma legal que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – cf. art.º 1º), é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas – únicas - de prisão até 8 anos, relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, com exceção dos elencados no art.º 7º, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos (inclusive) de idade à data da prática do facto.
Ora, in casu, pese embora à data da prática dos factos o arguido AA tivesse 30 anos de idade, encontrando-se aqueles igualmente abrangidos pelo período temporal a que alude o art.º 2º, n.º 1 da Lei n.º 38A/2023, de 2 de agosto, para além da respetiva aplicabilidade ao crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, n.ºs 1 e 2 al. h) do Código Penal, se encontrar excluída pelo disposto no art.º 7º, n.º 1 al. a) i) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (contrariamente ao que sucede relativamente ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1 al. c) do Regime Jurídico das Armas e Munições), a verdade é que a mesma se mostra desde logo excluída, in totum, pelo quantum da pena única aplicada, manifestamente superior a 8 anos.
Na verdade, tendo sido desiderato do legislador afastar a aplicação desta medida de clemência - concedida pelo Estado, por ocasião daquele evento - quer às situações de criminalidade grave (cf. art.º 7º, a contrario sensu), quer às penas de prisão de grande duração, a única interpretação consentânea com esse espírito, e com o devido respeito por entendimento diverso, é a de que apenas são objeto do perdão de 1 ano de prisão as penas únicas fixadas em medida não superior a 8 anos – art.º 3º, n.ºs 1 e 4, in fine, da Lei n.º 38/2023, de 2 de agosto -, o que aqui não se verifica.
Pelo exposto, não beneficiando o arguido AA do perdão de 1 ano de prisão concedido pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, indefere-se o requerido.
Notifique, passando-se de imediato à liquidação da respetiva pena.”
C) Análise da questão de direito objeto de recurso:
- é admissível a medida de perdão, no âmbito da Lei 38-A/2023-2agosto, numa pena única superior a 8 anos de prisão?
Cumpre, antes de mais, perceber as reais especificidades de inserção da presente Lei 38-A/2023-2agosto, a qual institui medidas de amnistia e perdão, usualmente referidas na doutrina como formas de “clemência soberana” ou expressão do direito de graça, o qual é, no seu sentido global e abrangente, “a contraface do direito de punir estadual”. (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal, parte geral II, 1993, p. 685) Daí o intitular-se, por vezes, o regime destas medidas como um jus non puniendi mediante o qual o Estado renuncia a esse exercício, in casu como ato essencialmente político com reflexos sobre a política criminal concretamente adotada.
À Assembleia da República cabe, nos termos da alínea f) do art.º 161.º da CRP: "Conceder amnistias e perdões genéricos".
A referência ao perdão genérico foi aditada pela Revisão de 82. Justificando-a, dizia Almeida Carrapatoso (deputado do PS) (in Diário da Assembleia República, I.ª Série, n.º 120, de 16julho1982) "Entre a amnistia e o perdão genérico há uma diferença conceitual. A amnistia é uma forma de extinção do procedimento criminal; o perdão genérico é uma forma de extinção, total ou parcial, da pena. A amnistia dirige-se ao crime, apaga-o, fá-lo cair em esquecimento; elimina os efeitos jurídicos da infracção, suprime a incriminação. O perdão dirige-se à pena. O perdão faz pressupor a perpetração da infracção, não a elimina ou extingue; apaga, total ou parcialmente, os efeitos penais da infracção, mas não apaga o próprio crime que desencadeou aqueles efeitos. O perdão não faz cair o crime em esquecimento, contrariamente à amnistia". (sublinhados nossos)
Conforme nos diz Benjamim Rodrigues (Acórdão do Tribunal Constitucional 488/2008, processo 35/08, de 7outubro2008, acessível in www.tribunalconstitucional.pt), que aqui seguiremos de perto, “[o] perdão de penas constitui uma medida de clemência ou de graça “do príncipe” que é aplicada em função das penas em que as pessoas foram condenadas.
Como medida de clemência, o perdão emerge de um acto político, tornado fonte jurígena de efeitos sobre as penas aplicadas (sobre a compreensão da clemência como virtude do legislador, cf. Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas, tradução de José Faria Costa, 2.ª edição da Fundação Calouste Gulbenkian, pg. 161).
Ele impede a execução da pena aplicada pela prática de crimes (cf. sobre a acepção do conceito e das figuras afins, entre outros, Pedro Duro, «Notas sobre alguns limites do poder de amnistiar», Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano II, n.º 3, 2001, pp. 323 e segs. e Francisco Aguilar, Amnistia e Constituição, Almedina, pp. 37 e segs).
Na medida em que se traduz num irrelevar, para efeitos do seu cumprimento, da pena concretamente aplicada pela prática de um crime tipificado e cominado na lei - ou visto de outro ângulo, numa desconsideração, total ou parcial, da pena aplicada que foi abstractamente adstringida pelo legislador à violação dos bens jurídico-penais que a definição do tipo legal encerra - o perdão genérico de penas é, por regra, por isso, decretado pelo órgão com competência para definir esse ilícito criminal.
Nesta perspectiva, ele é, ainda, um meio específico de concretização da política criminal referente à efectivação das penas aplicadas pela prática dos crimes definidos na lei.
Tratando-se de uma medida de clemência geral que é aplicada a todos em função das penas aplicadas, o perdão é um perdão geral.
Na medida, porém, em que o perdão genérico opera em função das penas aplicadas e abrange, em princípio, todos os condenados, ele distingue-se da amnistia e do indulto.
A própria Constituição reconhece, a partir da revisão de 1982, com o aditamento à parte final da alínea f) do artigo 164.º da expressão «e perdões genéricos», de par com a referência à amnistia e com a previsão já constante do artigo 137.º, n.º 1, alínea e), de competência do Presidente da República para conceder indultos e comutações de penas aplicadas, a diferenciação dos conceitos.
E, assumindo os conceitos tradicionais, presentes no texto constitucional, o artigo 126.º do Código Penal de 1982, publicado posteriormente a tal revisão, a que corresponde agora o artigo 128.º do actual Código Penal, e focando tais institutos pelo lado dos efeitos que desencadeiam, diz que a amnistia «extingue o procedimento criminal (amnistia própria) e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança» (amnistia própria, na primeira situação, e amnistia imprópria no segundo caso); que o perdão genérico «extingue a pena, no todo ou em parte» e que o indulto «extingue a pena, no todo ou em parte, ou substitui-a por outra mais favorável prevista na lei» (para uma compreensão histórica da amnistia, cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 444/97, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Deste modo, a amnistia atinge a punibilidade dos actos definidos como crimes; actua em função dos crimes, deixando os actos praticados até ao momento histórico-jurídico considerado de poderem ser enquadrados nos tipos legais amnistiados.
A amnistia apaga retroactivamente a punibilidade criminal dos factos típicos, continuando os tipos penais a valerem, por inteiro, para o futuro.
Por seu lado, o indulto atinge apenas a pena concretamente aplicada a uma concreta pessoa por decisão transitada em julgado, extinguindo-a, no todo ou em parte, ou alterando-a ou suspendendo-a; falando-se nestas últimas situações de comutação de penas.” (…) (sublinhados nossos)
Ou seja: a amnistia, enquanto medida de graça de carácter geral e pressuposto negativo da punição, é aplicada em função do tipo de ilícito, considerando abstratamente as infrações (i.e., “apagando” a natureza criminal do facto); por seu turno, o perdão genérico, igualmente uma medida de graça de carácter geral e pressuposto negativo da punição, é aplicado em função da pena e, nessa medida, pode ser total ou parcial, conforme seja perdoada a totalidade ou apenas uma parte da pena (implicando que a pena ou a medida de segurança não sejam, total ou parcialmente, cumpridas).
Revertendo à atual Lei 38-A/2023-2agosto, esta estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (art.º 1.º).
Estão abrangidas pela referida Lei (que entrou em vigor em 1setembro2023), no que agora releva, as sanções penais relativas aos ilícitos que, reunidos os demais pressupostos por ela estabelecido, tenham sido praticados até ao final do dia 18junho2023, ou seja, até à meia-noite de 18junho2023 (art.º 2.º/1).
Por outro lado, o agente, à data dos factos, tem de ter entre 16 e 30 anos de idade, inclusive (art.º 2.º/1).
No caso dos autos, está pacificamente adquirida a verificação dos pressupostos de idade e temporalidade do facto atrás referidos.
Tendo tal constatado, sucede que a decisão recorrida (no que agora, em sede de recurso, é acompanhada pelo Ministério Público, de 1.ª instância e junto deste Tribunal ad quem) entende que não opera a medida de perdão numa pena única superior a 8 anos de prisão [in casu foi aplicada a pena única de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses de prisão].
Funda-se, para tanto, no teor do art.º 3.º/1/4, in fine, da Lei 38/2023 - 2agosto, chamando ainda à colação o art.º 7.º.
Por seu turno, o Arguido recorrente (no que foi inicialmente acompanhado pelo Ministério Público de 1.ª instância) perfilha o entendimento que há lugar à aplicação da medida de perdão [de 1 (um) ano] a uma pena única de 16 (dezasseis) anos e 6 (seis) meses, quando uma das penas parcelares é inferior a 8 (oito) anos de prisão e corresponde a crime não excluído do perdão, o que ocorre no caso dos autos, uma vez que o Arguido, entre o mais, foi condenado, pela prática de um crime de detenção de arma proibida (p. p. pelo art.º 86.º/1c), com referência aos art.ºs 2.º/1 p), s) /3p), 3.º/6 e 8.º/2 a), todos do RJAM), na pena (parcelar) de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
E daí que, no seu entendimento, possa invocar que a decisão recorrida viola o art.º 7.º/3 da Lei 38-A/2023.
Face a tal delimitação, dir-se-á que o dissenso passa, então e no nosso modo de ver a situação, pela interpretação e aplicação dos n.ºs 1 e 4 do art.º 3.º da Lei 38-A/2023 (devendo ainda ser ponderada a interpretação do n.º 3 do art.º 7.º, única norma que o Arguido recorrente chama à colação em sede de conclusões).
O art.º 3.º/1 estabelece que “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos” (a ressalva do disposto no art.º 4.º não tem relevo para o caso dos autos, significando apenas que a aplicação da amnistia aí prevista prefere à aplicação do perdão).
O art.º 3º/4 estabelece que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.
O art.º 7.º/3 estabelece que “a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3º e da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes cometidos”.
Cientes que cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas - o quantum do perdão - , quer, em princípio, as espécies de crimes ou infrações a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstrata, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis, perante o conteúdo normativo (na concreta formulação dada pelo legislador), surge a questão da sua interpretação, certo que toda a fonte necessita de interpretação, para que revele a regra que encerra.
É dizer, a amplitude do perdão é dada pelo diploma que o concede, o qual define os seus contornos, não podendo deixar de se reconhecer ao legislador, na concretização da política criminal referente à efetivação das penas aplicadas pela prática dos crimes definidos na lei, uma “discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo”(embora não ilimitada).
E, neste ponto, desde já se estabelece que é princípio geral de interpretação, não exclusivo da análise jurídica, que a conclusão a retirar não seja suscetível de conduzir a um resultado absurdo ou inadequado. Quadro este que assume particular relevo quando se está perante a necessidade de ponderação duma faceta da dimensão pro libertate (como principio geral no domínio dos direitos fundamentais que nos inculca a regra de que, na dúvida, se deve optar pela solução que, em termos reais, seja menos restritiva ou menos onerosa para a esfera de livre atuação dos indivíduos – cfr. José Carlos Vieira de Andrade, in Os Direitos Fundamentais – Na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 1983, 9 131), mas sempre com os limites muito próprios que impõe estabelecer ao nível da interpretação das “leis de clemência” como leis de excecionalidade.
A propósito dos problemas de interpretação e consequente aplicação que, ao longo dos tempos, as Leis de amnistia e perdão têm levantado, a jurisprudência, desde há décadas a esta parte, sempre afirmou e vem afirmando que as normas de tais leis devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas.
Neste sentido, cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, relatados por Avelino da Costa Ferreira (de 16março1977, in BMJ 265.º, p. 145), onde em sumário se pode ler “I - Os diplomas que concedem amnistias e perdões, como providências de excepção, que são, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que neles não venham expressas.”; por José Saraiva (de 21julho1987, in BMJ 369.º, p. 381), onde em sumário se pode ler “I - Sendo a amnistia um facto restritivo do procedimento criminal, ela faz desaparecer a infracção, pelo que a sua aplicação deve fazer-se nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que se atinjam outras condutas susceptíveis de procedimento criminal. II - Como providência de excepção, a lei da amnistia deve interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, observando-se um critério de interpretação estrita, que exclua a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, ainda que daí resultem situações de injustiça relativa.” ; e por Vaz dos Santos (de 29março1995, in BMJ 445.º, p. 146), onde em sumário se pode ler “I -  A aplicação das leis de amnistia deve fazer-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas.”
Daí a razão de se poder afirmar, conforme se referiu no Assento do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça 2/2001, de 25outubro2001 (DR 264, Série I-A, de 14novembro2001, acessível in www.diariodarepublica.pt), em termos aqui convocáveis, que “com a institucionalização do Estado de direito social e democrático, todos os actos de graça são actos que se movem no mundo do direito, desde logo no do direito constitucional, pelo que estão sujeitos ao seu império, portanto ao controlo jurisdicional. (…) Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe. Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam. É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes). Sendo, assim, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147. Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185.”. (sublinhados nossos) (cfr, ainda, o referido por Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado, 16.ª ed., p. 439).
Neste sentido, igualmente, o Acórdão do Pleno das Secção Criminais do Supremo Tribunal de Justiça 2/2023, de 15dezembro2022 (DR 23/2023, Série I, de 1fevereiro2023, acessível in www.diariodarepublica.pt) onde se pode ler “[p]or outro lado, tratando-se de medidas de exceção, a interpretação e aplicação da lei que as consagra deve ser feita nos seus precisos termos, sem extensões, nem restrições que nela não venham expressas. Ou seja, a interpretação deve, no caso, ser feita de forma muito próxima da literalidade (interpretação dita declarativa), qua tale, trait pour trait, Zug um Zug, numa afloração do princípio da especialidade. O qual, nas palavras impressivas e algo metaforicamente exuberantes do Prof. Fernando Capez, explicitando o quid que especifica esse tipo de norma não meramente geral, refere: "a caixa com um laço de fita vermelho prevalece sobre a caixa sem tal adereço" (Apud CUNHA LIMA, Ronaldo/LIMA DE OLIVEIRA, Leonardo Cunha, Princípios e Teorias Criminais (Verbetes), Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 17). (…) Ademais, devemos ter presente que, como se referiu, as leis de perdão não admitem qualquer tipo de interpretação moduladora (tal como a extensiva, restritiva ou analógica), as palavras de tais leis mantêm o chamado "código forte", ou seja, denotativo e não conotativo.”
Nos termos do art.º 9.ºCC: 1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Assim, em conformidade com tal normativo, a letra é não só o ponto de partida da interpretação, mas, também, o seu limite (n.º 2).
Nos casos em que o elemento literal (o exame literal do texto da norma) se mostra ambíguo, impõe-se o recurso aos demais elementos de interpretação previstos no art.º 9.º do Código Civil: partindo do teor verbal, como elemento literal/gramatical (tendo em conta o uso corrente da linguagem e os modos de expressão técnico-jurídica), acrescenta-se o elemento lógico-sistemático (a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos), o elemento histórico (a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica, bem assim a história da génese do preceito, que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios) e, finalmente, o elemento teleológico (o fim particular da lei ou do preceito em singular).
Retomando o caso dos autos, comecemos pela delimitação de interpretação que merece a norma do art.º 7.º/3 (a única que o Arguido recorrente chama à colação) a qual nos diz que [a] exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos”
Esta norma regula a situação em que coexistem, no mesmo processo, crimes excludentes do perdão e da amnistia com crimes deles não excludentes.
É o caso dos autos, na relação do crime de homicídio qualificado (excluído pelo art.º 7.º/1 a) - i)] com o crime de crime de detenção de arma proibida (o qual não o faz parte do catálogo dos crimes excecionado).
Na interpretação que se entende ser a adequada, tal preceito tão só esclarece que, “estando em causa vários crimes, a exclusão da amnistia e do perdão quanto a um ou alguns deles não prejudica a aplicação da amnistia e do perdão relativamente a algum ou alguns dos outros, verificados que estejam os necessários requisitos.”(cfr. Pedro José Esteves de Brito in “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, Revista Julgar, online, agosto2023)
E dai que a leitura que aqui deva ser feita tenha que reportar, essencialmente, a uma confrontação histórica, de específica ligação à antecedente Lei de Graça, a Lei 9/2020-10abril, onde se estabeleceu um “Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID -19”, Lei na qual, ao nível do art.º 2.º/6 se determinava que, “ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão” os condenados pela prática de qualquer um dos crimes elencados nas várias alíneas subsequentes.
Ou seja, face a esta cláusula de “contaminação”, decorria dessa norma que não podia ser aplicado qualquer perdão no caso de o recluso [que à data de 11abril2020 o fosse e cuja(s) condenação(ões) tenha(m) transitado em julgado em data anterior à referida, ou seja, até 10abril2020, pois só a este se aplicava, como veio a esclarecer o já referido Acórdão do Pleno das Secção Criminais do Supremo Tribunal de Justiça 2/2023] ter sido condenado a prisão pela prática de qualquer um desses crimes, quer estivessem em causa apenas crimes dessas naturezas ou tipos, quer eles coexistissem com outros não abrangidos pelas apontadas exclusões legais, quer estivesse em causa apenas uma pena, singular ou única, quer estivesse em presença, no momento da ponderação, mais penas determinantes de prisão, singulares ou únicas, neste último caso quer as penas estivessem já cumpridas, total (caso em que operava ultra-actividade dos efeitos da condenação, como sucede, por exemplo, no caso do instituto da reincidência) ou parcialmente, quer estivesse a decorrer a sua execução, quer esta não se tivesse ainda iniciado. (sobre o conceito de contaminação ou comunicabilidade, cfr. José Quaresma, in Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19 - Estado de Emergência - COVID-19 Implicações na Justiça, ebook CEJ p. 426)
Assim, para o caso de condenação em cúmulo jurídico, à luz da Lei 9/2020-10abril não haveria que aplicar qualquer perdão à pena única quando aí tivesse sido englobada pelo menos uma pena parcelar aplicada pela prática de um crime excludente do perdão (mesmo que também englobasse outras penas parcelares aplicadas pela prática de outros crimes que não determinavam a sua exclusão).
Não é esta, porém, a solução que se mostra comtemplada na Lei 38-A/2023.
É dizer, continuando a seguir as palavras de Pedro José Esteves de Brito, que “em caso de cúmulo jurídico, haverá sempre que ter em conta que o perdão incide sobre a pena única aplicada (cfr. art.º 3.º, n.º 4, da Lei em análise) determinada de acordo com as regras estabelecidas nos art.ºs 77.º e 78.º do C.P. e, assim, mesmo que englobando penas parcelares aplicadas por crimes excluídos do perdão e penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos. Deste modo, nesses casos, o perdão não é afastado pela circunstância de no cúmulo jurídico estarem englobadas, para além de penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos, pelo menos outra pena parcelar aplicada por crime dele excluído.
Saliente-se que não foi essa a solução implementada pela Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, que, nos casos de condenação em cúmulo jurídico, determinou que não havia que aplicar qualquer perdão à pena única desde que naquele estivesse englobada pelo menos uma pena parcelar aplicada pela prática de um crime excludente do perdão e, assim, mesmo que também englobasse outras penas parcelares aplicadas pela prática de outros crimes que não determinavam a sua exclusão (cfr. art.º 2.º, n.ºs 3 e 6).”
Esclarecida a interpretação que temos como correta para a norma do art.º 7.º/3, dir-se-á, então, que não é a dita norma que soluciona o caso em presença. A fonte de solução está, então, na norma do art.º 3.º/1/4, a qual, relembre-se, estabelece que “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos” sendo que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.
Forçosa, de imediato, é a conclusão de que a literalidade do texto da norma não serve de solução ao problema de interpretação colocado para decisão, visto que a expressão legal “todas as penas de prisão até 8 anos” tanto pode significar as penas singulares, como as penas parcelares de prisão em caso de cúmulo jurídico (ambas até 8 anos), como igualmente significar as penas singulares e as penas únicas de prisão em caso de cúmulo jurídico (ambas até 8 anos). Neste último caso, não será aplicado o perdão caso a pena única de prisão resultante de cúmulo jurídico ultrapassasse os 8 anos, ainda que houvesse pena ou penas parcelares inferiores a 8 anos que, abstratamente, beneficiariam do perdão.
Logo, o recurso aos demais elementos de interpretação, acima referidos, revela-se determinante.
Como é salientado no Assento 2/2001 (tal qual no Acórdão que aí figura como acórdão recorrido – TRPorto, de 21junho2000 – Processo 575/00), a ponderação do elemento histórico na interpretação de normas das leis de amnistia e perdão deve ter em devida conta os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência.
No caso dos presentes autos, tais precedentes são os que estabelecem o perdão de penas em função de um limite de gravidade das concretas penas de prisão aplicadas. É dizer, vem-se atendendo à medida da pena de prisão aplicada para estabelecer uma diferenciação para a medida do perdão.
A consideração da medida da pena (de prisão) como critério para a aplicação do perdão [e também para determinar a medida do perdão, por ex., 1/6 da pena)] é habitual nas leis de clemência:
Na Lei 3/81-13março, o art.º 2.º/1, estabelecia que:
“1 – São perdoados, relativamente às penas correspondentes às infracções cometidas até à data referida no artigo 1.º:
a) As penas de prisão até seis meses correspondentes a infracções cometidas por delinquentes primários;
b) Três meses nas penas de prisão até seis meses;
c) Um sexto, nunca inferior a três meses, das restantes penas de prisão;
d) Um oitavo, nunca inferior a quatro meses, das penas de prisão maior variáveis;
e) Um décimo, nunca inferior a doze meses, das penas de prisão maior fixas.”
Na Lei 17/82-2julho, o art.º 5.º/1, estabelecia que:
“1 – São perdoados, relativamente às penas correspondentes às infracções cometidas até à data referida no artigo 1.º:
a) 1 ano em todas as penas de prisão nas infracções cometidas por delinquentes primários;
b) 6 meses em todas as penas de prisão nas infracções cometidas pelos restantes delinquentes;
c) Um sexto, nunca inferior a 10 meses, das penas de prisão maior variáveis, correspondentes a infracções cometidas por delinquentes primários;
d) Um oitavo, nunca inferior a 6 meses, das penas de prisão maior variáveis [correspondentes a infracções] cometidas pelos restantes delinquentes;
e) Um oitavo, nunca inferior a 18 meses, das penas de prisão maior fixas, correspondentes a infracções cometidas por delinquentes primários;
f) Um décimo, nunca inferior a 15 meses, das penas de prisão maior fixas, correspondentes a infracções cometidas pelos restantes delinquentes.”
Na Lei 16/86-11junho, o art.º 13.º/1b) estabelecia que:
“1 – Relativamente a delitos cometidos antes de 9 de Março de 1986, são perdoados
(…)
b) Um ano em todas as penas de prisão, ou um sexto das penas de prisão até oito anos, ou um oitavo ou dezoito meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resultar mais favorável ao condenado.”
Na Lei 15/94-11maio, o art.º 8.º/1d), estabelecia que:
“1 – Relativamente às infracções praticadas até 16 de Março de 1994, são perdoados
(…)
d) Um ano em todas as penas de prisão, ou um sexto das penas de prisão até oito anos, ou um oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resultar mais favorável ao condenado.”
Na Lei 29/99-12maio, o art.º 1.º/1, estabelecia que:
“1 – Nas infracções praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, é perdoado um ano de todas as penas de prisão, ou um sexto das penas de prisão até oito anos, ou um oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resultar mais favorável ao condenado.”.
É também habitual as leis de clemência estabelecerem que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão é aplicado à pena única:
Na Lei 17/82-2julho, o art.º 6.º estabelecia que: “Em caso de cúmulo jurídico o perdão incidirá sobre a pena unitária.”
Na Lei 16/86-11junho, o art.º 13.º/2, estabelecia que: “O perdão referido no nº 1 (…), em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena unitária (…).”
Na Lei 15/94-11maio, o art.º 8.º/4, estabelecia que: “Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (…).”
Na Lei 29/99-12maio, o art.º 1.º/4, estabelecia que: “Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (…).”
A Lei 3/81-13março, não previa norma para o caso de haver concurso de infrações e inerente cúmulo jurídico, o que provocou divergência jurisprudencial, dando origem ao Assento 5/83, de 21outubro1983 (in DR, 1.ª Série, de 11novembro1983, p. 3798 e 3799), com o seguinte teor: “No caso de concurso real de infracções em que, nos termos do artigo 102.º do Código Penal de 1886, tem de aplicar-se ao réu uma pena única, é sobre esta, e não sobre as penas parcelares que o § 2.º do mesmo artigo manda também indicar, que deve incidir o perdão previsto pelo artigo 2.º da Lei nº 3/81, de 13 de Março.”
Aqui chegados logo nos confrontamos com especificidades na presente Lei 38-A/2023 com relação à “normalidade” das antecedentes.
É que, não obstante haver sintonia de aplicação da medida de perdão sobre a pena única, não só o modo de tal aplicação operar, como a dosimetria do perdão, diferem.
Quanto à primeira questão, parece ser linear que no caso de inexistência de crimes abrangidos pela amnistia, sequer se mostra necessário proceder a reabertura de audiência para pela via de aplicação da medida de perdão proceder a reformulação de cúmulo jurídico.
De facto, se recorremos à comparação do teor do art.º 5.º/5 da Proposta de Lei 97/XV/1.ª com o teor do que acabou por ser o art.º 7.º/3 da Lei, fácil constatamos que o trecho final “devendo, para o efeito, proceder-se a cúmulo jurídico, quando aplicável” foi abandonado por imperativos de, digamos, agilização procedimental duma Lei que exigia entrada em vigência num momento em que a realização da diligência processual de inerência – realização de audiência de reporte ao art.º 472.ºCPP - sequer era viável, sendo mesmo desnecessária à luz do que o teor de Lei final consagrou.
Neste caso, uma vez mais recorrendo às palavras de Pedro José Esteves de Brito [n]ão estando englobados no cúmulo jurídico penas parcelares aplicadas por crimes abrangidos pela amnistia, não sendo sequer variável a medida do perdão em função da medida concreta da pena de prisão aplicada, ao contrário do que se passou”[com antecedentes leis] “não se verificando a alteração da moldura abstrata, não se impõe reformular o cúmulo jurídico de penas já efetuado, pelo que nada obsta à aplicação do perdão à pena única por despacho, sem necessidade de designar dia para a realização de nova audiência e subsequente prolação de decisão.”
Já quanto à segunda questão, a Lei 38-A/2023 em absoluto difere das antecedentes, pois ao contrário das mesmas não estabelece escalões de medida de perdão em função da dosimetria concreta de pena aplicada, sim fixa um padrão único de 1 ano.
Continuamos, porém, sem solução para a questão em apreço.
Recorrendo ao teor da Proposta de Lei 97/XV/1.ª, constatamos que o teor do então art.º 3.º/1 é aquele que veio a ser consagrado na Lei (com exceção da referência do valor da medida, então por extenso). Quanto ao teor do então art.º 3.º/3 este passou a constar do art.º 3.º/4 da Lei, sem qualquer alteração de teor.
Aqui chegados, para efeitos de interpretação, não podemos olvidar que tendo sido propósito do legislador afastar a aplicação desta medida de clemência, quer às situações de criminalidade grave – aquela usualmente sentida na sociedade como já integrante do patamar de criminalidade hedionda, e por isso mesmo em certos casos, tais quais os das condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública, tratada ao nível do art.º 1.º l) CPP como integrante do conceito de “criminalidade especialmente violenta” - (cfr. art.º 7.º, a contrario sensu), quer às penas de prisão de grande duração, a única interpretação que parece ser consentânea com esse espírito, sob pena de beneficio do Arguido que pratica crimes em acumulação, é a de que apenas são objeto do perdão de 1 ano de prisão as penas únicas fixadas em medida não superior a 8 anos, o que aqui se não verifica.
Ou seja, o legislador estabeleceu aqui um outro nível de exclusão, consubstanciado na gravidade da conduta ou na multiplicidade de condutas determinantes de uma pena de prisão superior ao limite fixado no art.º 3.º/1, independentemente do tipo de ilícito praticado, sendo que este evidenciado alargamento do campo de exclusões constante da Lei 38-A/2023 não consubstancia uma qualquer novidade, antes se inscreve numa tendência de vontade do Legislador que se vem desenhando desde a Lei 29/99, com a introdução de concretas exclusões que vão além da tipologia dos crimes, antes se focam especificadamente nos agentes, como sejam os delinquentes condenados como reincidentes, agora mantida na lei em análise, ou na posição funcional das vítimas, como é o caso dos membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, como consta da Lei 9/2020 e agora limitadamente se mantém na lei em análise (dada a exceção da menção “guardas dos serviços prisionais”, ali justificada face à inerência de os beneficiários serem, em exclusividade, os reclusos).
E de facto, também à luz da letra da Lei assim parece resultar inequívoca a opção do legislador, porquanto fosse intenção de que tal medida de perdão incidisse não sobre a pena única, mas sim sobre o quantum das penas parcelares que estão quantificadas no cúmulo, bastaria para tal não manter este n.º 4 do art.º 3.º na redação que lhe deu.
Pronunciando-se sobre aquela que, ab initio, parecia ser uma linear interpretação, Pedro José Esteves de Brito, no estudo em referência já nos dizia, em comentário a este art.º 3.º, que “[a]s penas de prisão aplicadas em medida superior a 8 anos não beneficiam de perdão.”
Contudo, face às interpretações que vieram a terreiro – dentre as quais a invocada pelo Arguido recorrente em NUIPC que reporta - afirma Pedro José Esteves de Brito (agora in “Mais algumas notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, Revista Julgar, online, janeiro2024) que “só as penas de prisão inferiores ou iguais a 8 anos são suscetíveis de beneficiar do perdão (cfr. art.º 3.º, n.º 1, da dita Lei), sejam elas parcelares, em caso de diferentes condenações sucessivas, ou únicas, no caso de condenação em cúmulo jurídico, conclusão a que se chega com base nos seguintes elementos:
É novamente utilizada a preposição “até”, expressão inclusiva; e
A lei fala em “todas as penas de prisão até 8 anos” (cfr. art.º 3.º, n.º 1 da dita Lei), esclarecendo que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (cfr. art.º 3.º, n.º 4, da dita Lei).
Assim, no caso de diferentes condenações em penas de prisão de cumprimento sucessivo terá que se atender à medida de cada pena de prisão aplicada em cada decisão e, em caso de condenação em cúmulo jurídico, à pena única, independentemente da medida fixada para as penas parcelares, dado que, neste caso, o perdão incide não sobre as penas parcelares, mas sobre a pena única.
Dos trabalhos preparatórios resulta que, de resto, foi assim que a norma foi interpretada, ou seja, que em caso de condenação em cúmulo jurídico, para beneficiar do perdão de penas, a pena única de prisão não pode exceder 8 anos. Na verdade, consta do parecer do Conselho Superior da Magistratura: “Nestes casos, a aplicação da lei não suscita dificuldades: o perdão incidirá sobre a pena única, sendo perdoado um ano, com o limite previsto no n.º 1 do art.º 3.º (a pena não exceda 8 anos de prisão)”.
Em bom rigor, trata-se de uma opção legislativa de apenas considerar merecedores do perdão aqueles que, nas demais condições previstas, tenham sido condenados numa pena de prisão não superior a 8 anos.
Ora, não se pode dizer que a limitação seja política - criminalmente infundada. Na verdade, uma vez que uma pena de prisão de 8 anos é uma pena grave, não se afigura arbitrário considerar que um agente condenado numa pena de prisão de duração superior a 8 anos não é merecedor de qualquer medida de graça, tenha tal pena sido aplicada apenas por um crime ou se trate de uma pena única em cúmulo jurídico de várias penas parcelares porventura, cada uma delas, de medida inferior.
Por outro lado, no passado, já se atendeu à medida da pena de prisão aplicada para estabelecer uma diferenciação para a medida do perdão (cfr. arts. 1.º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de maio, 8.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 15/94, de 11 de maio, 14.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 23/91, de 4 de julho, 13.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 16/86, de 11 de junho).”
No mesmo sentido, ainda que em abordagem lateral à questão, se pronuncia Ema Vasconcelos (in “Amnistia e perdão – Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto”, Revista Julgar, online, janeiro2024) quando nos diz que[v]ale isto por dizer que, ainda que uma pena parcelar seja objecto de perdão, caso a mesma venha, posteriormente, a integrar um cúmulo jurídico de conhecimento superveniente, tal perdão poderá deixar de ser aplicável, por força da pena única que venha a ser aplicada [p. ex: superior a 8 anos, no caso da actual Lei n.º 38-A/2023, de 2.8], ou passar a ser aplicável em diferente medida [vide, artigo 1.º, n.º 1 da Lei n.º 29/99, de 12.05].”
Cabe então responder à subsequente vertente da pergunta dos autos, no sentido de perceber se é razoável cogitar se qualquer pena superior a 8 anos, que não excluída pela tipologia de crime, de especificidade de agente ou de qualidade de vítima, possa ainda assim ser objeto de perdão.
A resposta deve ser, evidentemente, negativa, não só porque perfilhamos integralmente a posição supra exposta, o que fazemos por ser a única que à luz da globalidade dos elementos de interpretação chamados à colação permite o cumprimento da regra supra enunciada de respeito pelos princípios gerais inerentes, como também porque pensar solução diferenciada – tal qual a da tese propugnada pelo Arguido recorrente - somente conduziria a resultado inadequado e absurdo à luz de qualquer olhar, jurídico ou não.
Consequentemente, não obstante, verificada a delimitação subjetiva de idade do agente e a delimitação objetiva do tempo do ilícito, in casu a aplicação da medida de perdão sempre se mostra excluída pelo quantum da pena única aplicada, porquanto manifestamente superior a 8 anos.
Resta, face à alegação do Arguido por reporte ao art.º 412.º/2 a) CPP, afirmar que não se vislumbra qualquer afronta aos princípios de equidade e igualdade, em especial na vertente constitucional, decorrente da não aplicação ao caso concreto da medida de perdão.
Trata-se, como se disse, duma opção do legislador, no âmbito do seu poder de discricionariedade normativa, na certeza de que qualquer lei de amnistia e perdão, ao menos por força do seu âmbito temporal de aplicabilidade, conduz necessariamente a situações de injustiça relativa.
Diga-se, ainda e por último, que neste sentido vai igualmente a jurisprudência por ora conhecida, como são os casos dos relatos de José António Rodrigues da Cunha e de Maria dos Prazeres Silva, em Acórdãos do TRPorto, datados de 10janeiro2024, respetivamente nos NUIPC 996/04.3JAPRT.P2 e 441/07.2JAPRT-E.P1 (necessariamente ainda inéditos), no primeiro do qual se colhe que “definidas com precisão, como estão na lei, as regras aplicadas, nos seus precisos termos, concretamente que o perdão só tem lugar se a pena de prisão a que possa ser aplicado for até 8 anos [art.º 3.º, n.ºs 1 e 4], índice inultrapassável de gravidade de comportamento do agente adoptado pelo legislador, a interpretação da lei nos exactos termos em que se mostra redigida veda in casu a aplicação do pretendido direito de graça. Se assim não fosse, careceria, aliás, de sentido a fixação daquele limite” e no segundo que [i]mporta notar que a punição do concurso de crimes, efetivada de acordo com as regras estabelecidas no artigo 77.º do Código Penal, exprime a gravidade do comportamento global do arguido que, no caso, justificou a imposição de pena de prisão superior a 8 anos, constituindo essa gravidade fundamento para a não aplicação de perdão da pena única.”
III- DECISÃO
Nestes termos, em conferência, acordam os Juízes que integram a 5.ª Secção Penal deste Tribunal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo AA e, consequentemente, confirmar na íntegra a decisão do Tribunal a quo.
Custas criminais a cargo do AA, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCS, nos termos dos art.s 513.º/1;514.º/1;524.ºCPP e Tabela III anexa de reporte aos art.s 1.º;2.º;3.º/1;8.º/9, acrescidas dos encargos previstos no art.º 16.º, ambos RCP (DL34/2008-26fevereiro e alterações subsequentes).
Notifique (art.º 425.º/6CPP).

D.N.
Lisboa, 23-01-2024.
• o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários; com datação eletrónica – art.º 153.º/1CPC e com aposição de assinatura eletrónica - art.º 94.º/2CPP e Portaria 593/2007-14maio
Manuel José Ramos da Fonseca
João António Filipe Ferreira
Manuel Alexandre Teixeira Advínculo Sequeira