Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
472/24.8T8SXL.L1-7
Relator: ALEXANDRA DE CASTRO ROCHA
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO
ATRIBUIÇÃO DO USO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ACORDO
HOMOLOGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário:
I – A nulidade a que alude o art. 615.º n.º1 b) do Código de Processo Civil pressupõe que haja ausência total de fundamentos de direito e de facto.
II – Tendo os cônjuges, em acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge convolada em acção de divórcio por mútuo consentimento, acordado na atribuição do uso da casa de morada de família à mulher, mediante o pagamento de determinado quantia mensal, e não existindo nos articulados ou na tramitação processual, quaisquer factos que, no momento da apresentação e análise desse acordo, permitissem ao juiz concluir que poderiam não estar suficientemente acautelados os interesses de um dos cônjuges ou dos filhos, deve o tribunal, como resulta dos n.º5 e 6 do art. 1778.º-A do Código Civil, dar cobertura ao acordo livremente celebrado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO:
C… intentou a presente acção especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra D…, alegando que A. e R. são casados e que se verifica a ruptura definitiva do casamento. Finaliza pedindo que seja «decretada a dissolução do casamento entre Autora e Réu».
Em 26/6/2024, realizou-se tentativa de conciliação, no decurso da qual ambos os cônjuges acederam em convolar a acção em divórcio por mútuo consentimento, na sequência do que foi proferido despacho ordenando que os autos passassem a seguir a tramitação prevista «nos artigos 994.º e seguintes, do Código de Processo Civil, que se aplica por via do disposto no artigo 931.º, n.º4, desse mesmo diploma legal».
Na sequência dessa decisão, foi consignado em acta que, relativamente ao divórcio, pelas partes foi declarado o seguinte:
«- Prescindem reciprocamente de alimentos;
- Existem como bens comuns do casal a partilhar, a casa, o respetivo recheio e dois veículos automóveis;
- Cumpre prever destino/utilização da que foi casa de morada de família ao cônjuge mulher até à partilha, fixando-se a prestação da parte da mesma no valor de € 637,50.
- As regulações das responsabilidades parentais dos filhos menores, E… e F… encontram-se reguladas provisoriamente no apenso A.
- Não existem animais de companhia».
Após, ainda na mesma diligência, foi proferido o seguinte despacho:
«Uma vez que as partes não manifestaram, de forma expressa, acordo relativamente à data de separação, discutindo-se a sua importância para efeitos patrimoniais subsequentes ao divórcio e entendendo o réu que tal não é passível de acordo, determino que o mesmo seja notificado, com cópia da petição inicial, para, querendo, contestar a ação, no prazo legal, conforme o disposto no n.º 5, do artigo 931, do Código de Processo Civil».
A regulação provisória das responsabilidades parentais, mencionada naquele acordo, foi efectuada na mesma data de 26/6/2024, pela seguinte forma[1]:
«1. As responsabilidades parentais do E… e do F…, relativamente às questões de particular importância, serão exercidas por ambos os progenitores.
2. As questões de vida corrente serão decididas pelo progenitor com quem o jovem e a criança se encontrem naquele preciso momento.
2. A residência do E... e do F... será fixada com ambos os progenitores – com a progenitora na casa morada de família e com o progenitor na casa dos avós paternos, no Pombal), alternadamente e à semana, em que a troca ocorre à segunda-feira, devendo o progenitor trazer o F... ao estabelecimento de ensino até entrar em férias. Sendo que o jovem E... permanecerá com o progenitor até ao final do dia, entregando-o em casa da progenitora / casa morada de família, ficando os filhos com a progenitora até ao domingo – tudo considerando o período de férias escolares, a suspensão de funções do progenitor, as condições habitacionais da casa dos avós paternos e o agrado na solução pelo jovem.
3. As despesas escolares e de saúde (médica e medicamentosas) com o jovem e a criança, estas na parte não comparticipada, serão suportadas na proporção de 50% por cada um dos progenitores. O progenitor que fizer a despesa apresenta a fatura com o número de contribuinte do filho ao outro progenitor e essa despesa terá de ser paga no prazo máximo de 30 dias seguintes à sua apresentação, por transferência bancária.
4. Os progenitores exercerão o cargo de encarregados de educação alternadamente, no próximo ano letivo de 2024/25 será a progenitora, devendo dar o devido conhecimento ao outro progenitor, de todas as informações que lhe sejam prestadas no exercício desse cargo. No ano de 2025/26 será o progenitor a exercer tais funções».
O R. contestou, declarando aceitar o divórcio, entendendo que a data da separação de facto deve ser fixada em 22 de Julho de 2023 e pretendendo que a atribuição exclusiva da casa de morada de família à A. deveria ter como contrapartida o montante de renda mensal de € 1.750,00, desde 1 Janeiro de 2024.
Em 27/12/2024, foi proferido o seguinte despacho:
«Conforme decorre de forma clara da acta de 26.06.2024, as partes chegaram a acordo relativamente ao seguinte:
Prescindem reciprocamente de alimentos;
Existem como bens comuns do casal a partilhar, a casa, o respetivo recheio e dois veículos automóveis;
Cumpre prever destino/utilização da que foi casa de morada de família ao cônjuge mulher até à partilha, fixando-se a prestação da parte da mesma no valor de € 637,50.
As regulações das responsabilidades parentais dos filhos menores, E... e F... encontram-se reguladas provisoriamente no apenso A.
Não existem animais de companhia.
Daqui se conclui que as partes acordaram o pagamento por parte da Autora, pelo uso e fruição da casa de morada de família, até à partilha, da quantia mensal de € 637,50.
Não se vê, consequentemente, necessidade de alterar a acta supra mencionada.
Os autos só prosseguiram para a fase de julgamento para apuramento da data da separação do casal.
Notifique».
Em 17/1/2025, realizou-se audiência prévia, no decurso da qual, não se mostrando possível a obtenção de uma solução consensual que pusesse termo aos autos, o processo foi tabelarmente saneado, foi indicado o objecto do litígio [«a existência dos fundamentos para a ruptura do casamento entre Autora e Réu»] e foram enunciados os temas da prova [«I. Do casamento (assente por documento autêntico); II. Da separação entre Autora e Réu desde 22.07.2023»].
Na sequência do despacho de 27/12/2024, a A. veio requerer, em 30/1/2025, que se considerasse não escrita toda a matéria alegada pelo R. que não dissesse respeito à data da separação do casal.
Em 19/3/2025, procedeu-se a audiência final, após o que, em 14/5/2025, foi proferida sentença, que concluiu com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, ao abrigo das citadas disposições normativas, decreto o divórcio entre C... e D..., declarando dissolvido o respetivo casamento e fixando as seguintes consequências do divórcio entre ambos:
1) Autora e Réu prescindem mutuamente de alimentos.
2) Autora e Réu acordam em atribuir à Autora o uso da casa de morada de família, sita na Rua …, em Corroios, até à partilha, mediante o pagamento mensal de € 637,50.
3) Do casamento existem dois filhos menores: E..., nascido em ---.---.2011, e F..., nascido em ---.---.2020, sendo que as responsabilidades parentais em relação aos mesmos encontram-se provisoriamente reguladas no apenso B.
4) Autora e Réu não têm animais de companhia em comum que cumpra fixar o destino.
5) Existem bens comuns: a casa de morada de família, o seu recheio e dois veículos automóveis.
6) Fixo em 22 de Julho de 2023 a data da produção dos efeitos do presente divórcio.
*
As custas são devidas pela Autora e pelo Réu, em partes iguais, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º1, parte final, do Código de processo Civil».
Não se conformando com o ponto 2 desta decisão, dela apelou a A., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
«1. Deverá ser revogada a identificada Decisão proferida na sentença recorrida, especificamente o parágrafo 3. da decisão, que ordene ao Tribunal ‘a quo’ que proceda à declaração de que a partilha da casa de morada de família já foi efectuada através da venda da mesma e partilha do produto desta venda com a consequência de Réu Recorrido e Autora Recorrente nada terem a pagar ou a exigir um ao outro em nada que esteja relacionado directa ou indirectamente com a casa de morada de família.
2. O presente trecho decisório que ora se impugna viola o disposto no artigo 615º nº1 alínea b) do Código de Processo Civil, conjugado com o artigo 662º nº2 alíneas c) e d) do mesmo Código.
3. a decisão de atribuir à Autora o uso da casa de morada de família, sita na Rua …, em Corroios, careceu de fundamentação e tal é necessário para que compreenda a totalidade da decisão, devendo especificado e detalhadamente fundamentado quais os factos que subjazem a esta atribuição, bem como ao valor atribuído ao Réu aqui Recorrido e a duração dessa atribuição.
4. É assim, notório, que foi o Réu aqui Recorrido, por decisão sua e unilateral, abandonar o lar, a casa de morada de família, deixado a Autora aqui Recorrente a cuidar, sem qualquer ajuda (monetária ou de divisão do trabalho) do imóvel bem como dos dois filhos menores.
5. A casa de morada de família não foi atribuída à Autora aqui Recorrente por vontade livre desimpedida da mesma, mas por força das circunstâncias em que se viu obrigada a permanecer na casa de morada de família para poder cuidar dos filhos menores do casal.
6. Estando a Mma. Juíza ‘a quo’ obrigada a especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, não poderia a Autora aqui Recorrente deixar de salientar a completa ausência dos mesmos no que concerne à atribuição a um dos cônjuges a casa de morada de família.
7. Não ficou explanado em ponto nenhum da sentença, como se chegou ao valor em causa de € 637,50 mensais, nem o porquê de ser a Autora aqui Recorrente a pagar ao Réu aqui Recorrido, tanto mais que um valor tão específico carece de minuciosa racionalização fáctica e posterior imputação ao direito que visa proteger este bem jurídico e, na sentença recorrida, nenhum dos dois se vislumbra.
8. Tanto mais que, à data em que a douta Sentença Recorrida foi proferida (14 de maio de 2025), o imóvel estatuído como casa de morada de família tinha sido vendido (09 de janeiro de 2025).
9. Consequentemente não pode o tribunal a quo atribuir à Autora aqui Recorrente a casa de morada de família por sentença quando esta já não existe, e não poderia o valor de € 637,50 mensais, até à partilha, ser pago ao Réu aqui Recorrido uma vez que a partilha já aconteceu.
10. O imóvel foi vendido, os ónus sobre o imóvel foram removidos e o valor remanescente foi dividido equitativamente entre Autora e Réu conforme resulta da leitura do Documento 1 ora junto.
11. No pagamento do remanescente preço, pelo qual a casa de morada de família foi vendida, o Réu aqui Recorrido não fez qualquer menção de dívida que a Autora aqui Recorrente tivesse para com ele derivada do imóvel.
12. Se assim for entendido e a transacção judicial revestir a natureza de um contrato processual, bivinculante, oneroso, constitutivo de obrigações recíprocas para os litigantes, dirimente da relação material controvertida trazida à liça no processo e, por consequência, estiver sujeita ao regime geral do negócio jurídico (arts. 217.º ss. do CC), gozando as partes, dentro dos limites legalmente estabelecidos, da liberdade de o conformarem, pela melhor forma que satisfaça os seus interesses (art. 405.º do CC) e, por conseguinte, o seu sentido e o seu alcance, terão de ser aferidos, o mesmo é dizer, interpretados, à luz das regras contidas nos arts. 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1, do CC.
13. Assim, mesmo que consideremos a transacção judicial como tendo a natureza de um contrato processual e nos guiarmos pelos princípios de direito estatuídos nos arts. 217.º ss. do CC e 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1, do CC, continuamos sem poder deixar de observar a exigência legal que vincula o tribunal à devida fundamentação subjacente à manifestação da vontade de Autora Recorrente e Réu Recorrido.
14. Voltamos a revisitar o ponto 3. da sentença recorrida, aquele foi o mais controverso facto dado como provado e reforçado por decisão do tribunal a quo, em que vincula a casa de morada de família à posse da Autora Recorrente e, em consequência, vincula esta ao pagamento mensal de € 637,50 ao Réu Recorrido.
15. Esta justificação teria obrigatoriamente que constar da sentença ora recorrida e não poderemos aceitar a validade da mesma com tamanha omissão em violação do direito adjectivo.
Em face do exposto, deverá ser revogada a identificada Decisão proferida na sentença recorrida, especificamente o parágrafo 3. da decisão, e prolatado douto Acórdão que julgue procedente o presente Recurso de Apelação, e assim, ordene ao Tribunal ‘a quo’ que proceda à declaração de que a partilha da casa de morada de família já foi efectuada através da venda da mesma e partilha do produto desta venda com a consequência de Réu Recorrido e Autora Recorrente nada terem a pagar ou a exigir um ao outro em nada que esteja relacionado directa ou indirectamente com a casa de morada de família».
Juntou, em 8/7/2025, um contrato de compra e venda datado de 9/1/2025, afirmando que só por lapso não o apresentou com as alegações de recurso (nas quais refere que junta um documento, mas não tendo este último acompanhado aquela peça processual).
O R. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta dos arts. 635.º n.º4 e 639.º n.º1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao da causa de pedir e do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões [de facto e de direito] formuladas pela recorrente nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso. Note-se que «as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa». Por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação [cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022 – 7.ª ed., págs. 134 a 142; Ac. STJ de 7/7/2016, proc. 156/12, disponível em http://www.dgsi.pt].
Nessa conformidade, são as seguintes as questões que cumpre apreciar:
- a admissibilidade da junção de documento em 8/7/2025;
- nulidade da sentença recorrida;
- mérito da decisão recorrida, quanto ao respectivo ponto dois[2].
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A decisão sob recurso considerou provados os seguintes factos:
«1. A autora C... e o réu D... celebraram casamento civil, com convenção antenupcial, a 30.03.2008.
2. A Autora e o Réu declararam ser da sua vontade que o divórcio seja decretado.
3. Autora e Réu acordam em atribuir à Autora o uso da casa de morada de família, sita na Rua …, em Corroios, até à partilha, mediante o pagamento mensal de € 637,50.
4. Do casamento existem dois filhos menores: E..., nascido em ---.---.2011, e F..., nascido em ---.---.2020, sendo que as responsabilidades parentais em relação aos mesmos encontram-se provisoriamente reguladas no apenso B.
5. Autora e Réu declaram prescindir mutuamente de receber alimentos um do outro.
6. Autora e Réu não têm animais de companhia em comum que cumpra fixar o destino.
7. Existem bens comuns: a casa de morada de família, o seu recheio e dois veículos automóveis.
8. Desde 22.07.2023 que autora e réu deixaram de pernoitar juntos, manter trato sexual, tomar refeições ou fazer vida em conjunto».
Por outro lado, a decisão recorrida relativamente aos factos não provados, consignou o seguinte:
«Nada ficou por provar de relevante para a boa decisão da causa e descoberta da verdade material».
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Da junção de documento em 8/7/2025
Veio a recorrente apresentar um documento em 8/7/2025, invocando que só por lapso não o juntou com as alegações. Tal documento corresponde a um contrato de compra e venda que terá sido celebrado em 9/1/2025 e no qual intervieram A. e R..
Nos termos do art. 651.º n.º1 do Código de Processo Civil, as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art. 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Por seu turno, o mencionado art. 425.º prevê que «depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento». Ou seja, só são admissíveis os documentos que, até à data do encerramento da discussão, ainda não tinham sido produzidos, ou de que a parte ainda não tinha tomado conhecimento, ou a que ainda não tinha tido acesso, não sendo «admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado[3]».
Além disso, «a junção do documento ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum[4]».
A par dos requisitos de admissibilidade temporal a que aludem as citadas normas, terá de ser levado em conta o disposto nos arts. 423.º e 424.º, também do Código de Processo Civil, de onde resulta que os documentos apresentados têm de ser relevantes, ou seja, têm de destinar-se a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa, aliás, em consonância com o art. 410.º, do mesmo diploma, de acordo com o qual a instrução tem por objecto os factos necessitados de prova.
É que, nos termos do art. 341.º do Código Civil, «as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos» e, conforme resulta do art. 342.º, também do Código Civil, os factos objecto da prova – cuja realidade se pretende demonstrar ou refutar – são os constitutivos do direito do autor / requerente ou excepcionais em relação ao direito deste, entendendo-se como tal aqueles que, não sendo notórios, nem do conhecimento geral, nem do conhecimento do tribunal pelo exercício das suas funções, não se encontrem assentes e relevem para a decisão, de acordo com as plausíveis soluções de direito (sejam essenciais ou instrumentais em relação à causa de pedir e às excepções invocadas – cfr. arts. 5.º e 607.º n.º4, também do Código de Processo Civil)[5].
No caso dos autos, a recorrente apresentou um contrato de compra e venda, tendo o documento sido produzido em 9/1/2025, portanto,  muito antes do encerramento da discussão em 1.ª instância. Por outro lado, a A. tinha necessariamente conhecimento da sua existência, dado que nele teve intervenção, sendo certo que também não alega que a ele não tenha podido aceder em data anterior. Assim, o documento foi apresentado extemporaneamente. Acresce que, atento o acordo celebrado na tentativa de conciliação - e mesmo face aos despachos proferidos nessa audiência e ainda em 27/12/2024 (contra os quais a A. não reagiu) -, não constitui qualquer surpresa que a decisão tenha fixado o uso da casa de morada de família, pelo que igualmente por essa via não é admissível a apresentação do documento com as alegações de recurso (nem posteriormente).
Pelo exposto, não se admite a junção do contrato de compra e venda apresentado em 8/7/2025, determinando-se o desentranhamento do mesmo e a sua restituição à apresentante.
Da invocada nulidade da sentença recorrida:
Pretende o recorrente que a decisão do tribunal a quo é nula, porque não se encontra devidamente fundamentada, não tendo indicado os fundamentos de facto e de direito que subjazem à atribuição da casa de morada de família à A., nem ao valor de renda fixado, nem à duração daquela atribuição.
O tribunal recorrido, no despacho que admitiu o recurso, não se pronunciou, como lhe incumbia, sobre as nulidades arguidas (cfr. arts. 617.º n.º1 e 641.º n.º1 do Código de Processo Civil).
No entanto, considerando que os elementos constantes dos autos permitem o conhecimento daquelas nulidades, entende-se ser dispensável a baixa dos autos à 1.ª instância (cfr. n.º5, daquele art. 617.º)[6] e passar-se-á, de imediato, à sua apreciação.
As nulidades da sentença encontram-se previstas no art. 615.º n.º1 do Código de Processo Civil, de acordo com o qual:
«É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido».
O recorrente reporta-se à falta de fundamentação, que entende integrar-se na supra transcrita alínea b).
Vejamos.
A referida alínea b) constitui emanação do disposto no art. 607.º n.º3 do Código de Processo Civil, segundo o qual, na fundamentação da sentença, deve «o juiz discriminar quais os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final».
Como refere o Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1984, págs. 139 a 141), «as partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão. Sobretudo a parte vencida tem o direito de saber por que razão lhe foi desfavorável a sentença; e tem mesmo necessidade de o saber, quando a sentença admita recurso, para poder impugnar o fundamento ou fundamentos perante o tribunal superior. Este carece também de conhecer as razões determinantes da decisão, para as poder apreciar no julgamento do recurso. Não basta, pois, que o juiz decida a questão posta; é indispensável que produza as razões em que se apoia o seu veredicto». No entanto, «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto»[7].
Ora, o tribunal recorrido indicou os factos provados e não provados, tendo explanado os motivos da decisão sobre a matéria de facto (documentos autênticos juntos, análise do apenso B, acta de tentativa de conciliação e depoimentos prestados em audiência, com análise da credibilidade destes). Por outro lado, com fundamento nos factos provados e indicando as disposições legais aplicáveis (arts. 1779.º, 1778.º-A n.º3 a 6 e 1789.º n.º2 do Código Civil), entendeu que deveria seguir os termos do processo de divórcio por mútuo consentimento, decretando o divórcio, fixando a data a partir da qual se produzem os respectivos efeitos e fixando as suas consequências nas questões sobre as quais os cônjuges deviam acordar, tendo em conta o acordo manifestado pelos cônjuges quanto a essas questões e dado como provado.
Fundamentou, pois, o tribunal recorrido convenientemente a sua decisão, quer de facto, quer de direito, pelo que não ocorre a invocada nulidade, nessa medida improcedendo o recurso [coisa diversa é concordar-se, ou não, com a interpretação das normas aplicáveis efectuada e com a solução adoptada, o que será apreciado infra].
Do mérito da decisão recorrida:
Cumpre, agora, apreciar o mérito da sentença recorrida, na parte em que determinou que o uso da casa de morada de família, até à partilha, era atribuído à A., mediante o pagamento mensal de € 637,50, ou seja, quanto ao ponto 2 do segmento decisório.
Não há dúvidas de que se provou - e, aliás, tal não foi posto em causa pela recorrente - que A. e R. acordaram (em sede de tentativa de conciliação) que o uso da casa de morada de família seria atribuído, até à partilha, à A., mediante o pagamento  mensal de € 637,50.
Por outro lado, exceptuando naquilo que diz respeito à fixação da data a partir da qual se produziriam os efeitos do divórcio, a acção foi, por despachos proferidos em sede de tentativa de conciliação realizada em 26/6/2024 (com o esclarecimento prestado em 27/12/2024), convertida em divórcio por mútuo consentimento, passando o processo a seguir (repete-se, com excepção da fixação da data de produção dos efeitos do divórcio) a tramitação prevista nos arts. 994.º e ss. do Código de Processo Civil, com as necessárias adaptações. Todos aqueles despachos transitaram em julgado, já que deles não foi interposto recurso.
Ora, prevê o art. 1778.º-A n.º2 e 4 do Código Civil que o juiz aprecia os acordos que os cônjuges apresentarem, convidando-os a alterá-los se esses acordos não acautelarem os interesses de algum deles ou dos filhos, podendo determinar a prática de actos e a produção da prova eventualmente necessária.
Por sua vez, referem os n.º5 e 6, da mesma norma, que o divórcio é decretado em seguida, sendo que, na determinação das suas consequências, «o juiz deve não só promover, mas também tomar em conta o acordo dos cônjuges».
No caso dos autos, A. e R. acordaram no destino da casa de morada de família até à partilha. Não foram alegados, antes ou na ocasião da celebração desse acordo, quaisquer factos de onde se pudesse inferir que o mesmo poderia deixar de garantir os interesses de algum dos cônjuges ou os dos filhos. Pelo contrário, da regulação provisória das responsabilidades parentais resultava precisamente que a residência dos filhos com a mãe seria na casa de morada de família, pelo que tudo aconselhava a que o uso desta fosse atribuído (tal como acordado) à A.. Portanto, nada no acordo celebrado quanto à atribuição daquela casa até à partilha, ou nos factos alegados no processo, ou na tramitação processual, permitia ao juiz, no momento da apresentação e análise desse acordo em sede de tentativa de conciliação, concluir que poderiam não estar suficientemente acautelados os interesses de um dos cônjuges (maxime, da A.), ou dos filhos. Designadamente, nenhuns factos tinham sido alegados, até esse momento, que permitissem concluir que não era do interesse da A. ou dos filhos que o uso da casa lhe fosse atribuído até à partilha, que o valor fixado poderia ser exagerado / desequilibrado do ponto de vista da A. e dos filhos, ou que a duração da permanência na casa fosse insuficiente ou excessiva.  Pela mesma razão, também nada permitia concluir que se tornasse necessária a produção de prova a esse respeito, pelo que o processo seguiu apenas para produção de prova relativa à data da separação dos cônjuges.
É que, se é verdade que nos processos de jurisdição voluntária vigora o princípio do inquisitório (art. 986.º n.º2 do Código de Processo Civil), não é menos verdade que «o poder de conhecimento dos factos está dependente da sua alegação pelas partes ou de que os mesmos cheguem ao (…) conhecimento [do tribunal] no decurso da instrução do processo, ainda que por indagação oficiosa[8]». Ora, a recorrente não indica quais os factos concretos que tenham sido alegados, ou que tenham chegado ao conhecimento do tribunal por via da instrução, que indiquem que o acordo não respeita os interesses de um ou de ambos os cônjuges e dos filhos.
Assim sendo, também não existe qualquer razão para - como pretendia a recorrente - anular a decisão nos termos do art. 662.º n.º2 c) e d) do Código de Processo Civil.
Efectivamente, aquela anulação apenas se justifica quando do processo não constem todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto e tal decisão seja obscura ou contraditória, ou quando seja indispensável a ampliação daquela  matéria, ou ainda quando não esteja devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto fundamental.
Ora, não só (como já vimos) a decisão de facto se encontra devidamente fundamentada (com alusão aos meios probatórios relevantes), como não existe qualquer obscuridade ou contradição nos factos provados, como não se vê que concreta ampliação da matéria de facto poderia ser gizada - dado que não foram alegados quaisquer factos que permitam concluir pelo eventual desequilíbrio do acordo das partes e inexistem no processo elementos que permitam sequer conjecturar que tal desequilíbrio possa ocorrer.
Note-se, aliás, que, no despacho de 27/12/2024, o tribunal recorrido afirmou que a fase do julgamento visava unicamente apurar a data da separação do casal e que enunciou os temas da prova em conformidade, não tendo a A., de forma nenhuma, impugnado tais decisões - com as quais se conformou. Na sequência daquele despacho, a A. veio mesmo requerer, em 30/1/2025, que se considerasse não escrita toda a matéria alegada pelo R. que não dissesse respeito à data da separação do casal, o que significa que manteve a sua concordância com os acordos celebrados.
Deste modo, não se configurando a existência de quaisquer factos a apurar no sentido de o acordo não acautelar os interesses de um dos cônjuges ou dos filhos, restava ao tribunal - tal como consta da sentença proferida e como resulta dos n.º5 e 6 daquele art. 1778.º-A do Código Civil - dar cobertura ao acordo livremente celebrado por recorrente e recorrido, não cabendo averiguar das razões subjectivas de cada um para tal celebração.
Nada existe, pois, a censurar à decisão proferida em 1.ª instância, que deve manter-se.
Uma última palavra para referir que, de todo o modo, nunca poderia proceder a pretensão da recorrente de que fosse declarado que «a partilha da casa de morada de família já foi efectuada através da venda da mesma e partilha do produto desta venda com a consequência de Réu Recorrido e Autora Recorrente nada terem a pagar ou a exigir um ao outro em nada que esteja relacionado directa ou indirectamente com a casa de morada de família».
Com efeito, a efectivação da partilha, os pagamentos devidos em consequência da mesma ou outros pagamentos relacionados com a casa de morada de família (exceptuados aqueles relativos à sua utilização até à partilha) não integram sequer o objecto do processo, já que não dizem respeito nem à dissolução do casamento, nem a nenhum dos acordos a que aludem os arts. 1775.º do Código Civil e 994.º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, a circunstância de a partilha já ter, ou não, ocorrido, em nada interfere com a decisão relativa ao uso da casa, uma vez que tal decisão diz respeito a tal uso apenas até à data da partilha.
Pelo exposto, improcede, na totalidade, o recurso.
DECISÃO
Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente - art. 527.º do Código de Processo Civil.

Lisboa, 02 de dezembro de 2025
Alexandra de Castro Rocha
Edgar Taborda Lopes
Ana Mónica Mendonça Pavão
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[1] Cfr. acta com a ref.ª CITIUS 436685516, de 26/6/2024, constante do apenso B.
[2] Embora, nas alegações e nas conclusões, a recorrente mencione o ponto 3, é evidente que se reporta à atribuição do uso da casa de morada de família e, portanto, ao ponto assinalado como o número 2 do segmento decisório da sentença.
[3] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág. 848.
[4] Ibidem, onde é citada jurisprudência pertinente.
[5] A este propósito pode ver-se, entre outros, o Ac. RE de 13/7/2017, proc. 1860/15, disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] Conforme refere António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., pág. 215, «a omissão de despacho do juiz a quo sobre as arguidas nulidades ou sobre a reforma da sentença não determina invariavelmente a remessa dos autos para tal efeito, cumprindo agora ao relator apreciar se aquela intervenção se mostra ou não indispensável”.
[7] No mesmo sentido, podem ver-se, a título de exemplo, os Ac. STJ de 20/11/2019 (proc. 62/09) e de 2/6/2016 (proc. 781/11), disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Ac. RC de 14/1/2025, proc. 5642/18, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/fc24a688a1cf19e580258c260037fa87?OpenDocument