Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2035/21.0T8PDL.L1-8
Relator: CARLA CRISTINA FIGUEIRA MATOS
Descritores: TESTAMENTO
VÍCIO DE VONTADE
NULIDADE
INCAPACIDADE DE TESTAR
DOENÇA CONTÍNUA PROGRESSIVA E IRREVERSÍVEL
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Quando esteja em causa uma doença continua, progressiva, e irreversível  que afete as faculdades mentais do testador para entender o alcance de um ato jurídico, cabe ao interessado na anulação do testamento provar que no período temporal que abranja a data da feitura do testamento o testador padecia dessa doença, demonstrando, designadamente, que tal doença impeditiva da plena compreensão do sentido e alcance de um ato jurídico já provinha de período anterior à outorga do testamento, daí resultando, atentas as referidas caraterísticas da doença, que na data do ato se verificava o estado de incapacidade.
II. Por sua vez, caberá ao eventual interessado na manutenção do testamento provar que aquando da concreta outorga do testamento o testador se encontrava num eventual excecional momento de lucidez.
III. Nos termos do art 4 nº1 do Estatuto do Notariado, compete, em geral, ao notário redigir o instrumento público conforme a vontade dos interessados, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-os do seu valor e alcance.
IV. Este dever de indagação da vontade dos interessados não impede, contudo, a ocorrência de um qualquer vício da vontade. Conclusão diferente levaria a que não se pudesse arguir um vício da vontade no âmbito de qualquer negócio jurídico celebrado por escritura pública.
V. A força probatória plena dos documentos autênticos não abrange o livre exercício da vontade dos declarantes.  Nos termos do art 371 nº1 do CPC, os documentos autênticos apenas fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I- RELATÓRIO

1.1 AA, (…), intentou a presente acção sob a forma de processo comum, contra BB, (…), pugnando pela procedência da acção, e, consequentemente ser declarado nulo, com todos os efeitos legais, o testamento outorgado por CC, no dia 12/10/2016, lavrado a fls. (…), do livro de testamentos n.º (…), no Cartório Notarial de (…), a cargo do licenciado (…), sito na Rua (…), em (…), ou caso assim não se entenda, sempre deve ser declarado anulado, com todos os efeitos legais o testamento outorgado por CC, no dia 1210/2016, lavrado a fls. (…), do livro de testamentos n.º (…) no Cartório Notarial de (…), a cargo do licenciado (…), sito na Rua (…), em (…).
Para tanto, e em síntese, alegou que, juntamente com o Réu, é herdeira da sua falecida mãe, a qual, em vida, outorgou testamento a 12/10/2016, de fls. (…) do Livro de Testamentos n.º (…), do Cartório Notarial a cargo do Notário (…), através do qual deixou a sua quota disponível ao Réu, correndo inventário para partilha dos bens deixados por aquela.
Mais invoca que, por sentença proferida a 06/02/2019, transitada em julgado em 13/03/2019, foi decretada a interdição definitiva de CC por anomalia psíquica, em virtude de se mostrar totalmente incapaz de governar a sua pessoa e bens, com declaração de data de início de incapacidade a 17 de dezembro de 2016.
Mais alega que, anteriormente à data da declaração de interdição da testadora, e nomeadamente à data da outorga do testamento, aquela padecia de demência, concretizando vários factos que sustentam a invocada incapacidade para testar.
Aduz, que o Réu vivia com a falecida, testadora, desde julho de 2016, que a sujeitava a maus tratos e abandono. Assim, invoca que, a patologia de demência apresentada pela testadora, devido ao estado avançado então manifestado, já pré-existia, pelo menos desde janeiro de 2015, o que impedia a falecida, testadora, de formar livremente a sua vontade e de ter consciência plena do sentido e das consequências das declarações de vontade que fizesse naquele lapso de tempo, tornando-se incapaz e inapta para a sua outorga, pois que não tinha verdadeira noção do que ali estava a declarar.
Juntou prova documental (11 documentos), arrolou testemunhas e juntou procuração forense e comprovativo da liquidação da taxa de justiça devida.
1.2. Foi realizada a citação do Réu que veio contestar, em primeira linha, por exceção, alegando a caducidade da ação, e impugnando os factos alegados pela Autora, sua irmã, reputando-os, como falsos e relatando a sua versão, em concreto que foi quem cuidou da sua mãe e que aquela testou de modo consciente e em conformidade com a respetiva vontade, nos termos do articulado junto e que se dá por reproduzido, pugnando a final pela procedência da exceção de caducidade ou, caso assim não se entenda, pela improcedência da ação.
Arrolou testemunhas, juntou procuração forense e comprovativo da liquidação da taxa de justiça devida.
1.3 Foi designada e realizada audiência prévia e proferido despacho saneador, afirmando-se a validade e regularidade da instância, fixando-se o objecto do litígio e os temas da prova, nos termos que constam do despacho junto aos autos a fls. 47-48.
1.4. Foi realizada audiência final, finda a qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, e nos termos das disposições legais invocadas, decide-se:
1. Absolver o Réu do pedido de declaração de nulidade, com todos os efeitos legais, o testamento outorgado por CC, no dia 12/10/2016, lavrado a fls. (…), do livro de testamentos n.º (…), no Cartório Notarial de (…), a cargo do licenciado (…), sito na Rua (…), em (…);
2. Julgar procedente o pedido subsidiário deduzido pela Autora e, consequentemente declarar anulado, com todos os efeitos legais o testamento outorgado por CC, no dia 12/10/2016, lavrado a fls. (…),  do livro de testamentos n.º(…), no Cartório Notarial de (…), a cargo do licenciado (…), sito na Rua (…), em (…);
3. Condenar as partes nas custas da ação, na proporção do decaimento, na proporção de 50% para cada uma, nos termos do art.º 527, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Registe e notifique.
Após trânsito em julgado remeta certidão da sentença ao processo n.º (…), que corre termos neste mesmo Juízo Local Cível.”
***
Inconformado com tal sentença, veio o Réu interpor recurso da mesma, apresentando alegação onde formula as seguintes conclusões:
1. Não pode o aqui Recorrente conformar-se com a Decisão proferida pelo Tribunal "a quo" que declarou anulado o testamento outorgado por CC, no dia 12/10/2016.
2. Isto porque, a Demência da qual a testadora padecia, como o próprio nome indica era degenerativa e, como tal, era uma doença que se ia desenvolvendo progressivamente ao longo do tempo, não sendo uma patologia estática e constante.
3. Os portadores da patologia em causa - a Demência – têm momentos de lucidez e a testadora, in casu, teve um desses momentos no momento da outorga do testamento.
4. Tal realidade é comprovada pelo facto de a escritura ter sido exarada por um Notário, que se certificou de que, pelo menos naquele momento, a testadora estava nas suas plenas faculdades mentais, compreendendo o conteúdo, sentido e alcance do ato, bem como de que a mesma disponha a quota disponível dos seus bens ao aqui Recorrente de forma livre e consciente.
5. A Sentença aqui recorrida pecou, porquanto retirou a conclusão de que, por padecer de demência degenerativa do tipo misto desde pelo menos 17.12.2016, a testadora, no momento da outorga do testamento - o que ocorreu dois meses antes da data em que foi fixada a sua incapacidade - não estava em condições psíquicas que lhe permitissem entender o ato que praticou e que lhe permitissem exercer livremente a sua vontade,
6. não olhando à presunção que existe pelo facto de aquele ato ter sido exarado por Notário e assistido por duas testemunhas que corroboram que a testadora, no momento da outorga, compreendida o sentido e conteúdo do testamento e manifestava estar no ato de livre vontade.
7. A verdade é que, salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal recorrido, uma vez que não só não atendeu às características da patologia da Demência Degenerativa como sendo uma doença abstrata e com intervalos de lucidez, como também não atendeu ao facto de o testamento ter sido efetuado por um Notário, que é pessoa idónea e especializada, que assegurou que todo o conteúdo do ato foi compreendido e pretendido pela testadora, e presenciado por duas testemunhas que também asseguram que a testadora se encontrava no pleno uso das suas faculdades mentais no momento do ato.
8. Também não poderá merecer acolhimento a sustentação da Meritíssima Juiz do Tribunal aqui recorrido, para a sua douta Decisão de anulação do testamento em questão, de que " (...) CC, no momento em que fez as declarações negociais em apreço, encontrava-se efetivamente, num estado psíquico que não só não lhe permitia entender o ato que praticou como também tal estado lhe retirava o livre exercício da sua vontade, o que era perfeitamente percetível para o réu que com ela lidava e que por sua exclusiva vontade a conduziu ao cartório notarial para lavrar o testamento objeto do litígio." (sublinhado nosso)
9. Isto porque, o facto de o aqui Recorrente ter cuidado da testadora sua mãe, e ter sido vontade daquela favorecê-lo em relação à Autora, tendo sido aquele quem a levou ao cartório notarial para outorgar o testamento que foi vontade livre, expressa e inequívoca da testadora, não constituiu fundamento que permita concluir pela falta de livre exercício da vontade da testadora, como pretende fazer valer o Tribunal a "a quo", cfr. Sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 19-11-2020, processo n.°214/18.7T8RMZ.E1.
10. Assim, e face a tudo o acima exposto, deverá a Sentença aqui recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o aqui Recorrente do pedido de declaração de anulação do testamento objeto dos presentes autos, por da Decisão não resultarem factos suficientemente fortes e capazes de ilidir a presunção que existe sobre o ato de celebração do testamento exarado pelo Notário e assistido por duas testemunhas, de que a testadora, no momento da outorga do testamento detinha capacidade para entender o ato que praticou e bem assim o livre exercício da sua vontade quanto à outorga do mesmo.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve o presente recurso ser julgado procedente, por assim ser de direito e JUSTIÇA!”
A Autora contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
“1. Veio o Réu interpor recurso da douta sentença que veio declarar anulado, com todos os efeitos legais o testamento outorgado por CC, no dia 12/10/2016, lavrado a fls. (…), do livro de testamentos n.º (…), no Cartório Notarial de (…), a cargo do licenciado (…), sito na Rua (…), em (…).
2. Provando-se, como se provou nos presentes autos, que a testadora padecia de demência degenerativa do tipo misto, com anterioridade ao período que abrange o testamento e que a doença tem um agravamento continuado, é de concluir na senda da douta sentença recorrida que, no momento da feitura do testamento, a testadora se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária;
3. Nesta circunstância, cabia ao Réu fazer prova de que, no momento da feitura do testamento, apesar da demência de que padecia a testadora, esta não foi influenciada pelo concreto estado demencial em que se encontrava, o que não fez.
4. Nem se diga, como alega o Réu, que o testamento foi lido, explicado e confirmado pelo Notário, que assegurou que o mesmo era compreendido pela testadora e que correspondia à manifestação da vontade daquela, vontade que resultou da sua decisão livre e consciente.
5. Conforme vem sendo entendimento dos Tribunais Superiores, “a afirmação feita pelo Notário no instrumento (escritura de testamento) de que este foi lido e explicado em voz alta à testadora, na presença simultânea de todos os intervenientes, não fornece qualquer prova de que a testadora se encontrava em condições de testar.” Ac. STJ, de 13.01.2004, disponível in www.dgsi.pt.
6. Acompanhando aquele que foi o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão proferido em 11.04.2013, disponível in www.dgsi.pt: “ Ao invés do que acontece nas situações de anulação da declaração negocial conformadora de um acto ou negócio jurídico, em geral, por incapacidade acidental, em que a lei exige que “o facto seja notório ou do conhecimento do declaratário” (art. 257.º, n.º 1, do CC), no caso previsto no art. 2199.º do CC, a anulação do testamento por idêntica razão – incapacidade acidental – não é exigida essa notoriedade, bastando-se com a prova da existência de um estado de incapacidade natural que seja coeva ou contemporânea do momento em que o declarante emite a declaração relativa à disposição dos seus bens post mortis.”
7. Prova que foi feita à saciedade nos presentes autos.
8. A douta sentença recorrida não merece, por isso, nenhuma censura.
9. Pelo que deve improcede o recurso interposto pelo Réu da douta decisão recorrida por ser de JUSTIÇA!
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II- OBJETO DO RECURSO
Segundo as conclusões apresentadas - as quais, conforme resulta do art. 639º nº1 do CPC, delimitam o âmbito do recurso -, a questão que importa apreciar é:
Aferir se a sentença enferma de erro de direito por dela não resultarem factos suficientemente fortes e capazes de ilidir a presunção que existe sobre o ato de celebração do testamento exarado pelo Notário e assistido por duas testemunhas, de que a testadora, no momento da outorga do testamento detinha capacidade para entender o ato que praticou e bem assim o livre exercício da sua vontade quanto à outorga do mesmo.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
FACTOS PROVADOS
O tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. A Autora, AA, e, Réu, BB, são legítimos herdeiros de DD e CC, conforme assentos de nascimento.
2. Por testamento outorgado a 12/10/2016, de fls. (…) do Livro de Testamentos n.º(…), do Cartório Notarial a cargo do Notário (…), CC deixou a sua quota disponível a BB, ora Réu.
3. A 08/12/1996 ocorreu o óbito de DD e a 08/04/2020 faleceu CC.
4. Na sequência do óbito de CC foi instaurado, em 09/11/2020, processo de inventário, que corre seus termos com o n.º (…), no Juízo Local (…).
5. Tendo a Autora já sido citada no âmbito do referido inventário.
6. Sucede que, por sentença proferida a 06/02/2019, transitada em julgado em 13/03/2019, foi decretada a interdição definitiva de CC por anomalia psíquica, em virtude de se mostrar totalmente incapaz de governar a sua pessoa e bens, com declaração de data de início de incapacidade a 17 de dezembro de 2016.
7. Quanto aos factos dados como provados na referida sentença, para o que aqui releva, pode ler-se:
“3. A Requerida não sabe dizer o seu nome, nem a sua data de nascimento ou idade.
4. A Requerida encontra-se desorientada no tempo, no espaço e na situação.
5. A Requerida tem um discurso desconexo e não é capaz de responder de forma adequada a nada que lhe é questionado.
6. A Requerida é incapaz de nomear o seu património, reconhecer o dinheiro e fazer transacções.
7. A Requerida padece de Demência degenerativa do tipo misto (F02 da CID-10), pelo menos desde 17.12.2016.
8. A Requerida está dependente de terceiros, de forma permanente, para a satisfação da maioria das suas necessidades básicas de sobrevivência.”
8. Desde pelo menos dezembro de 2014, a falecida mostrava sinais de desorientação.
9. A falecida vagueava à noite pela Rua, mostrando-se confusa.
10. Tendo sido acolhida por uma vizinha, (…).
11. A Autora foi contactada pela Polícia de Segurança Pública a dar conta da situação da mãe.
12. Motivo pelo qual a Autora, em janeiro de 2015, vem a (…) e leva a mãe a uma consulta de psiquiatria com a Dra. (…).
13. Que faz um relatório confirmando delírio e alterações mentais.
14. Em 16 de março de 2015, a falecida, testadora, é internada na Casa de Saúde (…).
15. De onde sai três dias depois.
16. Em 26 de novembro de 2016, a falecida CC, que vivia com o Réu, foi internada no Hospital (…) em (…), constando no diagnóstico demência com agitação psicomotora.
17. A falecida permaneceu internada no Hospital (…) de (…) de 26/11/2016 a 2/12/2016.
18. Do resumo do internamento, constante do relatório de alta, datado de 2.12.2016, e cujo teor se dá aqui por reproduzido, consta que o motivo da admissão foi demência, que a doente foi trazida pelo filho, ora Réu, por alterações do comportamento desde há três semanas, referindo alucinações visuais e auditivas, inquietação psicomotora, insónia e estado confusional no período noturno. Com a informação de já ter estado institucionalizada na Casa de Saúde.
19. A falecida CC foi diagnosticada com “Demência com agitação motora” e, concretamente, elaborada pela psiquiatra (…), que acompanhava a falecida, com “Síndrome de Demência de etiologia provável mista, em estado avançado e declínio cognitivo, ou seja, “demência degenerativa do tipo misto (F02 da CID-10).”
20. Do documento identificado em 18, consta que o Réu recusou-se a levar a falecida para o domicílio, alegando não ter capacidade para cuidar dela, motivo pelo qual a falecida teve de permanecer internada no Hospital (…) em (…) até à sua transferência e internamento no “Lar (…)”, em 17/12/2016.
21. pelo menos de julho de 2016 até à data do internamento referido em no facto 16 a falecida, testadora, vivia com o Réu.
22. Foi feita participação pelo (…) ao Ministério Público, dando origem ao processo de inquérito n.º (…), que correu seus termos no Departamento de Investigação e Acção Penal (…) de (…), onde se concluiu que a testadora sofria de demência e estava incapaz de prestar depoimento.
23. O processo veio a ser arquivado, por despacho datado de 01/03/2018, por falta de indícios suficientes de prova da prática do crime denunciado.
24. Em seguida, o Ministério Público, em 20/03/2018, instaura o processo de interdição, que veio a culminar com a declaração judicial de interdição da falecida, testadora.
25. A patologia de demência apresentada pela testadora logo aquando do seu internamento no H(..), em 26 de novembro de 2016, devido ao estado avançado então manifestado, já pré-existia, pelo menos desde janeiro de 2015, data em que a falecida foi avaliada pela psiquiatra Dra. (…).
26. A testadora não tinha capacidade para tomar a iniciativa de ir até ao Cartório em (…).
27. Foi o ora réu quem conduziu a testadora a deslocar-se ao cartório notarial e a declarar aquilo que ficou a constar do testamento.
28. A presente ação deu entrada em juízo em 30 de setembro de 2021.
29. A Autora há muito que se encontra a residir e a trabalhar no estrangeiro.
30. A 17 de junho de 2021, aquando da citação para o processo de inventário n.º (…), a correr termos neste Juízo Local (…), a Autora tomou conhecimento do testamento feito pela sua mãe a favor do seu irmão, ora Réu, tendo-lhe sido remetida a respetiva missiva de citação no dia 04 de junho de 2021. ”
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IV-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
Está em causa no presente recurso aferir se a sentença enferma de erro de direito por dela não resultarem factos suficientemente fortes e capazes de ilidir a presunção que existe sobre o ato de celebração do testamento exarado pelo Notário e assistido por duas testemunhas, de que a testadora, no momento da outorga do testamento detinha capacidade para entender o ato que praticou e bem assim o livre exercício da sua vontade quanto à outorga do mesmo.
Considera o recorrente que a demência de que a testadora padecia era degenerativa, ou seja, era progressiva, não sendo estática e constante, pelo que os portadores dessa doença têm momentos de lucidez, e a testadora teve um desses momentos no momento da outorga do testamento; e que a sentença  retirou a conclusão de que por padecer de demência degenerativa do tipo misto desde 17.12.2016, a testadora no momento da outorga do testamento, não estava em condições psíquicas para entender o ato que praticou  e que lhe permitissem exercer livremente a sua vontade, não olhando à presunção resultante do ato ter sido exarado por Notário e assistido por duas testemunhas que corroboram que a testadora  no momento da outorga  compreendia o sentido e conteúdo do testamento e  manifestava estar no ato de livre vontade. Por último considera também o recorrente que o facto de ter levado a testadora ao cartório notarial para outorgar o testamento que foi de vontade, livre, expressa e inequívoca da testadora não constitui fundamento que permita concluir pela falta de livre exercício da vontade da testadora.
Vejamos:
O art. 2179 nº1 do CCivil define testamento como “O ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles”.
O art 2188 do CC refere que: “Podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer”.
E o acrescenta o art. 2189 do CC que “São incapazes de testar: a) os menores não emancipados; b) os maiores acompanhados, apenas nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine”.
Por último dispõe o art 2199 do CC, com a epigrafe “Incapacidade acidental” , que: “É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.”
Conforme se refere no Ac do STJ de 20.06.2023 proferido no Proc. 5142/21.6T8CBR.C1.S1 (em que foi relator MANUEL CAPELO), “Tratando-se de um ato de disposição patrimonial gratuito, importa sobremaneira, que a vontade e o livre arbítrio do testador não sejam afetados por qualquer circunstância temporária ou permanente que tolha as suas faculdades intelectuais, volitivas, pois, de outro modo, não pode falar-se em ato de vontade livre e esclarecido”.
No caso dos autos, está em causa a verificação dos requisitos previstos no art. 2199º do CC, norma em que o Tribunal a quo enquadrou o pedido (subsidiário) de anulação do testamento.
Trata-se de norma especifica para a situação de incapacidade do testador, uma vez que o art. 257º do CC não se pode aplicar a tal situação já que visa regular a situação de incapacidade acidental de uma das partes no âmbito de um negocio jurídico bilateral (tanto que exige que essa situação de incapacidade seja conhecida da parte contraria ou notória), sendo que o testamento é um ato jurídico unilateral e não recipiendo.
O ónus da prova da incapacidade acidental do testador nos termos e para os efeitos do art. 2199 deve ser feita por quem a invoca, no caso pela autora – artº 342º nº 1 CCiv.
Essa incapacidade acidental terá que se verificar no momento da outorga do testamento.
E, portanto, se se tratar de uma incapacidade resultante de uma situação esporádica, pontual, ou intermitente que ocorreu no momento da feitura do testamento, é inequívoco que o interessado na anulação do testamento terá que provar que nesse especifico momento o testador, por virtude dessa situação esporádica/pontual/intermitente, se encontrava sem as faculdades necessárias para testar.
E no caso de incapacidade resultante de uma situação de doença do foro mental contínua e irreversível que impeça o sujeito de perceber e entender o alcance de um ato jurídico? Terá também que se fazer a prova da incapacidade por referência àquele específico momento da outorga do testamento, ou seja, que a incapacidade era verificável naquele momento? Ou basta provar-se o referido estado de doença contínua e irreversível do/a testador/a em período que abrange a outorga do testamento?
Entendemos que em caso de doença contínua e irreversível do foro mental que impeça o sujeito de perceber e entender o alcance de um ato jurídico, basta provar-se esse estado de doença do/a testador/a, impeditivo da sua plena compreensão do alcance de um ato jurídico como o testamento, em período que abranja a outorga do testamento.
Sobre esta questão veja-se o Ac. do S.T.J. 11/4/2013 proferido no Proc. 1565/10.4TJVNF.P1.S1 , em que foi Relator o Sr. Conselheiro Gabriel Catarino, cujo Sumário, na parte em aqui interessa, se passa a reproduzir:
 “(…)X - Ao invés do que acontece nas situações de anulação da declaração negocial conformadora de um acto ou negocio jurídico, em geral, por incapacidade acidental, em que a lei exige que “o facto seja notório ou do conhecimento do declaratário” (art. 257.º, n.º 1, do CC), no caso previsto no art. 2199.º do CC, a anulação do testamento por idêntica razão – incapacidade acidental – não é exigida essa notoriedade, bastando-se com a prova da existência de um estado de incapacidade natural que seja coeva ou contemporânea do momento em que o declarante emite a declaração relativa à disposição dos seus bens post mortis.
XI - Compete ao peticionante da anulabilidade do acto jurídico de disposição post mortem, a prova dos factos conducentes à verificação do estado de incapacidade que obnubilaria a sã capacidade de dispor dos seus bens e o discernimento quanto às consequências decorrentes do acto ditado.
XII - Ao peticionante da anulabilidade do acto jurídico testamentário, por incapacidade acidental, compete provar que o testador sofria de doença que, no plano clínico, é comprovada e cientificamente susceptível de afectar a sua capacidade de percepção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer acto de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente.
XIII - Tratando-se de uma doença que, no plano clínico e cientifico, está comprovada a degenerescência evolutiva e paulatina das condições de percepção, compreensão, raciocínio, gestão dos actos quotidianos e da sua vivência existencial, aptidões de pensamento abstracto e concreto, discernimento das opções comportamentais básicas e factores de funcionamento das relações interpessoais e sociais, o peticionante da anulabilidade de um acto jurídico praticado por uma pessoa portadora deste quadro patológico apenas estará compelido a provar o estado de morbidez de que o declarante é padecente, por ser previsível, à luz da ciência e da experiência comum, que este tipo de situações não se compatibilizam com períodos de lucidez ou compreensão (normal) das situações vivenciais.”
É inequívoca a transcrição feita nesse Acórdão de uma citação atribuída ao Prof. Galvão Teles (R.T., ano 72, página 268), nos seguintes termos:
 “Provado o estado de demência em período que abrange o acto anulando, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquele estado se mantinha sem interrupção. Corresponde ao id quod plerum accidit; está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o acto recaiu num momento excepcional e intermitente de lucidez”.
Veja-se também o Ac do STJ de 20.06.2023 proferido no Proc. 5142/21.6T8CBR.C1.S1, em que foi relator o Sr. Conselheiro MANUEL CAPELO, cujo sumário se passa a reproduzir:
“I - A anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no art. 2199.º do CC, assenta na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.
II - Estando em causa uma situação de doença com afetação das faculdades mentais - demência, Alzheimer - compete ao interessado na anulação do testamento provar que o testador sofria de doença, que no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente.
III - Estando provado o estado de demência em período que abrange o ato anulando, caberá à outra parte provar que não obstante a incapacidade do testador o ato que se pretende anular foi praticado num momento excecional e intermitente de lucidez.”
Em suma, quando esteja em causa uma doença continua, progressiva, e irreversível  que afete as faculdades mentais do testador para entender o alcance de um ato jurídico, cabe ao interessado na anulação do testamento provar que no período temporal que abranja a data da feitura do testamento o testador padecia dessa doença, demonstrando, designadamente, que tal doença impeditiva da plena compreensão do sentido e alcance de um ato jurídico já provinha de período anterior à outorga do testamento, daí resultando, atentas as referidas caraterísticas da doença, que na data do ato se verificava o estado de incapacidade.
Por sua vez, caberá ao eventual interessado na manutenção do testamento provar que aquando da concreta outorga do testamento o testador se encontrava num eventual excecional momento de lucidez.
No caso dos autos, o testamento em foco foi outorgado em 12.10.2016.
Por sentença  proferida a 06.02.2019, transitada em julgado, foi decretada a interdição definitiva da testadora, por anomalia psíquica,  em virtude de se mostrar totalmente incapaz de governar a sua pessoa e bens, com declaração de data de inicio de incapacidade a 17 de dezembro de 2016, sendo que nos respetivos factos provados consta, como facto 7,  que “A Requerida padece de Demência degenerativa do tipo misto (F02 da CID-10), pelo menos desde 17.12.2016.”.
Provou-se também que pelo menos dezembro de 2014, a falecida mostrava sinais de desorientação, vagueando à noite pela Rua, mostrando-se confusa, tendo sido acolhida por uma vizinha; em janeiro de 2015, foi levada a uma consulta de psiquiatria com a Dra.(…), que faz um relatório confirmando delírio e alterações mentais, e em Março de 2015 é internada por três dias na Casa de Saúde (…), de onde; em 26 de novembro de 2016, a falecida ICC foi internada no Hospital (…) em (…), constando no diagnóstico demência com agitação psicomotora, permanecendo internada no Hospital (…) de (…) de 26/11/2016 a 2/12/2016; do resumo do internamento, constante do relatório de alta, datado de 2.12.2016, e cujo teor se dá aqui por reproduzido, consta que o motivo da admissão foi demência, que a doente foi trazida pelo filho, ora Réu, por alterações do comportamento desde há três semanas, referindo alucinações visuais e auditivas, inquietação psicomotora, insónia e estado confusional no período noturno. Com a informação de já ter estado institucionalizada na Casa de Saúde; a falecida CC foi diagnosticada com “Demência com agitação motora” e, concretamente, elaborada pela psiquiatra (…), que acompanhava a falecida, com “Síndrome de Demência de etiologia provável mista, em estado avançado e declínio cognitivo, ou seja, “demência degenerativa do tipo misto (F02 da CID-10).” ; a patologia de demência apresentada pela testadora logo aquando do seu internamento no H(…), em 26 de novembro de 2016, devido ao estado avançado então manifestado, já pré-existia, pelo menos desde janeiro de 2015, data em que a falecida foi avaliada pela psiquiatra Dra. (…).
Ou seja, conforme resulta evidente do facto provado nº 25, a patologia de demência apresentada pela testadora em 26.11.2016 aquando do seu internamento devido ao estado avançado então manifestado, já pré-existia, pelo menos desde janeiro de 2015.
Note-se que o diagnóstico clínico feito aquando do internamento foi o de “Síndrome de Demência de etiologia provável mista, em estado avançado e declínio cognitivo, ou seja, “demência degenerativa do tipo misto (F02 da CID-10).”
Sendo a patologia de que sofria a testadora desde  pelo menos Janeiro de 2015, (quando já foi clinicamente confirmada situação de delírio e alterações mentais), uma demência degenerativa, que em Novembro de 2016 - mês seguinte ao que ocorreu a outorga do testamento - se encontrava “em estado avançado e declínio cognitivo”, levando à sua hospitalização, seguida de transferência e internamento para um Lar, em 17/12/2016 (data judicialmente fixada como início de incapacidade, por anomalia psíquica, para governar a sua pessoa e bens), encontra-se demonstrada a situação de incapacidade da testadora para, em Outubro de 2016, testar.
Tanto mais que se provou expressamente que a testadora não tinha capacidade para tomar a iniciativa de ir até ao Cartório em (…), tendo sido o Réu quem a conduziu a deslocar-se ao cartório notarial e a declarar aquilo que ficou a constar do testamento.
Não colhe, pois, o alegado pelo Reu /recorrente no recurso (cf. conclusões 9 a 10), ou seja, que, por vontade livre, expressa, e inequívoca da falecida em favorece-lo relativamente à autora, o Réu a levou ao cartório para outorgar o testamento, pois provou-se situação substancialmente diferente e o Réu não apresentou recurso sobre a decisão da matéria de facto. O que se provou, repete-se, foi que, a testadora não tinha  capacidade para tomar a iniciativa de ir ao Cartório, e foi o Reu quem a conduziu a isso, bem como a a declarar o que ficou a constar desse testamento, factualidade que, reforçando a  demonstração da situação de incapacidade da autora, afasta completamente o alegado pelo Reu  relativamente à livre iniciativa e vontade da testadora em outorgar o testamento.
Considera ainda o recorrente que os portadores de doença têm momentos de lucidez, e  atestadora , in casu, teve um desses momentos no momento da outorga do testamento, o que é comprovado pelo facto de a escritura ter sido celebrado por Notário, que se certificou de que pelo menos naquele momento, a testadora estava nas suas plenas faculdades mentais, compreendendo o conteúdo, sentido e alcance do ato, bem como de que a mesma disponha a quota disponível dos seus bens ao aqui Recorrente de forma livre e consciente. E que o Tribunal a quo não atendeu à presunção que existe pelo facto de aquele ato ter sido exarado por Notário e assistido por duas testemunhas que corroboram que a testadora, no momento da outorga, compreendida o sentido e conteúdo do testamento e manifestava estar no ato de livre vontade.
Cumpre apreciar.
Conforme resulta do art 1º nº1 do Estatuto do Notariado, notário é o jurista a cujos documentos escritos, elaborados no exercício da sua função, é conferida fé pública. E, nos termos do nº2 do preceito, é, simultaneamente, um oficial público que confere autenticidade aos documentos e assegura o seu arquivamento e um profissional liberal que atua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados.
Nos termos do art 4 nº1 do mesmo Estatuto compete, em geral, ao notário redigir o instrumento público conforme a vontade dos interessados, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-os do seu valor e alcance.
Este dever de indagação da vontade dos interessados não impede, contudo, a ocorrência de um vício da vontade. Conclusão diferente levaria a que não se pudesse arguir um vício da vontade no âmbito de qualquer negócio jurídico celebrado por escritura pública.
Tanto assim que a força probatória plena dos documentos autênticos não abrange o livre exercício da vontade dos declarantes.  Nos termos do art 371 nº1 do CPC, os documentos autênticos apenas fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.
Aderimos, quanto a esta matéria, ao entendimento consignado no Ac do TRG de 04.10.2018 proferido no Proc. 4142/15.0T8GMR.G1, na parte que passamos a reproduzir:
“Um documento autêntico, como é o testamento, só tem força probatória plena quanto às acções ou percepções do oficial público no mesmo mencionadas, únicas que, por isso, só podem ser ilididas com base na sua falsidade que, in casu, não se alega, nem se prova.
Em relação aos restantes factos, não cobertos pela força probatória plena do documento – como são os relativos à liberdade da declaração e ao entendimento do seu sentido -, a sua impugnação pode fazer-se, independentemente da arguição de falsidade, pelos meios gerais, visto a lei não estabelecer qualquer norma especial para a sua prova.
Assim, ainda que o testamento alguma coisa referisse sobre a capacidade da testadora, ou que essa capacidade pudesse inferir-se do facto de ter sido admitida a testar, isso não obstaria à prova, pelos meios comuns, da sua incapacidade acidental (39).
Essa foi também a conclusão que o Supremo Tribunal de Justiça apresentou no Acórdão de 13.1.2004 (relator: Reis Figueira), onde se refere que:
“1- Se nas instâncias se provou que a testadora, já com 97 anos à data do testamento, tinha um défice muito acentuado de visão e de audição, se sentia desorientada no tempo, indiferente de si e das outras pessoas e coisas, estava demenciada (com deterioração das faculdades mentais), com ecolalia (repetindo o que lhe diziam ou o que ouvia), estado este que não lhe permitia compreender o acto do testamento, nem compreender o seu significado; e, mais concretamente ainda: que não teve consciência do que declarou (na outorga do testamento) nem o significado do acto e não compreendia o sentido e alcance das palavras utilizadas no referido acto (testamento) - a situação corresponde a incapacidade acidental para testar, a gerar nulidade do testamento, no quadro do artº. 2199º do CC, não havendo que falar, concreta ou directamente, em arteriosclerose ou senilidade.
2) O testamento outorgado em escritura pública é um documento autêntico, que faz prova plena quanto aos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como quanto aos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.
3) A afirmação feita pelo Notário no instrumento (escritura de testamento) de que este foi lido e explicado em voz alta à testadora, na presença simultânea de todos os intervenientes, não fornece qualquer prova de que a testadora se encontrava em condições de testar.
4) E se o Notário tivesse feito constar que a testadora parecia em condições de testar, isso constituiria simples juízo pessoal do documentador, como tal de livre apreciação do julgador.”
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Também nesse sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão datado de 8.3.2018 (40) onde se concluiu que:
“Relativamente à questão da alegada força probatória plena do testamento quanto à capacidade da testadora no momento da sua outorga por ter sido lavrado por notária, dispõe o nº 1 do art. 371º do CC: “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.
Interpretando esta regra, é entendimento pacífico que “Não é sempre a mesma a força material de um documento autêntico: depende da razão de ciência invocada. Assim, ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora, autora do documento (que conferiu a identidade das partes, ou que lhes leu o documento…), ou que nele são atestados com base nas suas percepções (por ex., as declarações que ouviu ou os actos que viu serem praticados); mas os meros juízos pessoais do documentador (que a parte se encontrava no pleno uso das faculdades mentais ou semelhante) ficam sujeitos à regra da livre apreciação pelo julgador.” (Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, anotação ao artigo 371º, da autoria de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).”
E, como tal, consideramos que o facto de o testamento ter sido exarado por Notário, na presença de duas testemunhas, não demonstra, ainda que por presunção, a ocorrência de um momento de lucidez da testadora, facto cujo ónus de prova, conforme suprarreferido, incumbiria ao Réu/ora recorrente.
Em conclusão, não detetamos erro de direito na sentença, pelo que improcede o recurso.
As custas são a cargo do apelante, por ter ficado vencido (art. 527 nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
***
V. DECISÃO:
Pelo exposto acordam os Juízes desta 8ª seção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
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LISBOA,8/2/2024
Carla Matos
Carla Figueiredo
Marília Leal Fontes