Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PIMENTEL MARCOS | ||
Descritores: | LITISCONSÓRCIO ILEGITIMAÇÃO NEGOCIAL COMPRA E VENDA NULIDADE DO CONTRATO HIPOTECA VOLUNTÁRIA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/22/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
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Sumário: | O litisconsórcio é necessário (além dos casos previstos expressamente por lei ou em convenção) sempre que pela natureza da relação material controvertida a intervenção de todos os interessados seja necessária para regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado. Numa acção de condenação em que se pretende a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda de um imóvel entretanto registado a favor do comprador, sobre o qual também foi inscrita hipoteca voluntária a favor de terceiro, a falta de demanda do credor hipotecário importa preterição de litisconsórcio necessário passivo. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa. F. e mulher J.F. propuseram acção com processo ordinário contra J. e A. Pedindo: que fosse declarado nulo o acto notarial translativo da propriedade para o 1º réu relativamente ao prédio sito no P.... que fosse ordenado o cancelamento de todas as inscrições resultantes e posteriores à inscrição a favor dos AA, designadamente, a inscrição G-1, em relação à aquisição da propriedade a favor do R. J. e a inscrição C-1 em relação à hipoteca voluntária registada a favor do Banco Nacional Ultramarino, hoje incorporado na CGD, para garantia de um empréstimo contraída pelo 1º réu. Para tanto alegam, em síntese, e na parte que agora interessa considerar: 1. o R A, na qualidade de procurador dos AA, celebrou, em 29.12.94, um contrato de compra e venda com o R J. relativamente ao referido prédio e, simultaneamente, um contrato promessa de compra e venda através do qual o J. prometia vender de novo ao R A. esse mesmo prédio; 2. Este R (A), na qualidade de procurador dos AA, vendeu ao R J. o dito prédio pelo preço global de 7.000.000$00; 3. Tal negócio é simulado, pois não se procedeu à entrega pelo J. de qualquer quantia relativa a esse negócio; 4. A escritura pública referente ao aludido contrato promessa nunca foi celebrada; 5. O R J é, assim, proprietário ilegítimo e de má fé desse prédio. Os RR foram devidamente citados e não contestaram. Por sentença de 11.01.02 foi a acção julgada procedente, tendo os RR sido condenados nos pedidos formulados pelos autores, precisamente (e apenas) pelos fundamentos de facto e de direito por estes alegados. Nesta sentença, depois de se descreverem os factos articulados pelos AA apenas foi dito e decidido o seguinte: «O tribunal é competente em razão da matéria, da hierarquia e da nacionalidade. Não existem nulidades principais que enfermem todo o processado. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas. Não existem questões prévias, excepções ou nulidades secundárias. Não tendo a R. contestado a presente acção, importa haver por reconhecidos os factos alegados pelo autor, nos termos do artigo 484º, nº 1 do CPC. Considerando os documentos juntos aos autos e dando aqui por reproduzidos os fundamentos jurídicos do autor, deve a acção ser julgada procedente por provada, nos termos dos artigo 484º, nº 3 do CPC. Decisão Pelo exposto, julgo a acção procedente por provada e, em consequência: Declara-se nulo o acto notarial translativo da propriedade para o 1º R. referente ao prédio identificado nos autos; Ordena-se o cancelamento de todas as inscrições resultantes e posteriores à inscrição a favor de F. e mulher, designadamente: a) inscrição G-1, em relação à aquisição a favor de J.; b) Inscrição C-1, em relação à hipoteca voluntária realizada pelo BNU, S.A., por empréstimo contraído pelo 1º R.; Declara-se nulo o negócio de mútuo celebrado entre os RR. J e A, por falta de forma legal. Comunique à conservatório do registo predial competente». Dela recorreu a CGD ao abrigo do disposto nos artigos 680º, nº 2 e 685º, nº 3 do CPC, formulando as seguintes conclusões, em síntese: a) A recorrente não foi demandada nesta acção e, no entanto, foi expressamente pedido o cancelamento da hipoteca registada a seu favor sobre o aludido prédio. b) A recorrente é assim parte interessada em contradizer, pois foi cancelado o registo da hipoteca constituída a seu favor. c) Trata-se de um caso de litisconsórcio necessário passivo (artº 28º, nº 2 do CPC) e o tribunal deveria ter conhecido oficiosamente da excepção de ilegitimidade. d) A falta de conhecimento da excepção da legitimidade constitui nulidade da sentença proferida. e) A sentença recorrida não se encontra minimamente fundamentada, pelo que é nula, tendo-se o M.º juiz limitado a considerar provados os factos alegados pelos AA e proferido decisão nos termos pedidos, sem fazer a concreta subsunção dos factos ao direito. f) Em 1995, data em que foi levada ao registo a hipoteca constituída a favor da requerente, não existia registo de qualquer acção tendo por objecto a nulidade da aquisição pelo 1º R, e a presente acção foi proposta no ano de 2000. g) A recorrente sempre actuou de boa fé no que diz respeito à hipoteca. h) Consequentemente, mesmo perante a matéria de facto provada na sentença, não poderia a acção ser julgada procedente, por violação do disposto nos artigos 291º, nº 1 do CC e 17º, nº 2 do CRP. E termina a apelante pedindo que seja a sentença revogada e substituída por outra em que se conheça da excepção da ilegitimidade dos RR, devendo, em qualquer caso, ser reconhecida a manutenção da hipoteca registada a seu favor. Os apelados apenas alegaram no sentido de que o recurso havia sido proposto fora do prazo legal e que, por isso, não deveria ter sido recebido. Esta questão foi definitivamente decidida por despacho de fls. 172 e 173 na sequência do despacho de fls. 150 e 151 proferido nesta Relação na 2ª secção. ** Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.Em relação aos factos alegados na petição e que se consideraram provados na douta sentença, dão-se aqui por reproduzidos os que acima foram referidos, ou seja: 1. o R A, na qualidade de procurador dos AA, celebrou, em 29.12.94, um contrato de compra e venda com o R J, relativamente ao referido prédio e, simultaneamente um contrato promessa de compra e venda através do qual o J prometia vender de novo ao R A o mesmo imóvel; 2. O R A, na qualidade de procurador dos AA, declarou vender ao R J o dito prédio pelo preço global de 7.000.000$00; 2. Pelo J não foi feita a entrega de qualquer quantia relativamente a esse negócio; 3. A escritura pública referente ao aludido contrato promessa nunca foi celebrada; Mas para o conhecimento das questões postas pela apelante há que referir ainda o seguinte: 1. Na sentença recorrida foi declarada a nulidade da referida venda, com fundamento em simulação, e, em consequência, foi ordenado o cancelamento do registo da hipoteca a favor do BNU (agora incorporado na CGD) 2. A CGD não teve qualquer intervenção na acção, tal como o BNU. 3. A favor do BNU encontrava-se então registada desde 08.05.95 uma hipoteca voluntária pela inscrição C-1 para garantia de todas as obrigações assumidas pelo R J ... 4. O imóvel encontra-se registado a favor do R J. O Direito. Questões a decidir: a) da eventual nulidade da sentença; b) Se estamos perante um caso de litisconsórcio necessário. I Como vimos, a CGD interpôs o presente recurso ao abrigo do disposto no artigo 680º, nº 2 do CPC.E na verdade tem todo o interesse em agir, uma vez que sobre o prédio em causa se encontra registada a seu favor uma hipoteca. E esta confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores.... (artº 686º, nº 1 do CC) Parece-nos não haver qualquer dúvida de que a acção não poderia proceder em relação à CGD, pois não teve ela qualquer intervenção no processo. E para o efeito não há que chamar à colação o preceituado nos artigos 291º, nº 1 do CC e 17º, nº 2 do CRP, pois se trataria de factos a alegar pela recorrente em sede de contestação. A questão está em saber se estamos perante uma situação de preterição de litisconsórcio necessário, caso em que os RR seriam absolvidos da instância, ou se, pelo contrário, tal não sucede, e então a acção não poderia proceder contra a ora recorrente em relação ao pedido de cancelamento do registo da hipoteca, mantendo-se a restante parte da condenação. E para os autores a questão não é de somenos importância, pois, neste ultimo caso, os RR seriam pura e simplesmente absolvidos da instância em relação a todos os pedidos. II Mas vejamos para já se se verifica a arguida nulidade.Parece-nos que a resposta não poderá deixar de ser afirmativa. Já vimos (transcrevemos) o teor da sentença, a qual foi proferida nos termos do nº 3 do artigo 484º do CPC. Estabelece este: Se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado. Este número 3 foi introduzido pela reforma de 1985 no sentido de se simplificar a elaboração da sentença. Mas para que tal aconteça torna-se necessário: a) que a resolução da causa revista manifesta simplicidade; b) que se proceda a uma fundamentação sumária da decisão. Sucede que, in casu, por um lado, a decisão a tomar não reveste manifesta simplicidade. Na verdade, estando em causa, como está, a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda de um imóvel por simulação, dificilmente se poderia concluir que a sentença a proferir revestiria manifesta simplicidade. E de facto não tem. Atente-se, por exemplo, na circunstância de um dos pretensos simuladores ter actuado na qualidade de procurador dos autores. Por outro lado, a sentença não foi minimamente fundamentada, limitando-se o M.º juiz a remeter para os fundamentos invocados na petição inicial (de resto bastante insuficientes). Ora, salvo o devido respeito, aquela disposição legal não permite que se remeta pura e simplesmente para os fundamentos constantes da petição. E tal nunca poderia suceder no caso concreto, dada a fragilidade da argumentação aduzida, sobretudo na parte relativa à eventual simulação. Nesta conformidade, se a sentença não foi minimamente fundamentada e se se exige para a aplicação do nº 3 do artigo 484º que a simplicidade seja manifesta, não podemos deixar de considerar que a mesma é nula nos termos dos artigos 659º e 668, nº 1, b) do CPC. No entanto, tendo em consideração o preceituado no artigo 715º do mesmo diploma legal, há que conhecer aqui do objecto da apelação. III Como estabelece o nº 1 do artigo 26º, o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.Por sua vez determina o nº 1 do artigo 28º do CPC que, se a lei ou o negócio jurídico exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade. Mas, nos termos do seu nº 2: é igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado. Portanto, o litisconsórcio é necessário (além dos casos impostos expressamente por lei ou por convenção) sempre que, pela natureza da relação material controvertida, a intervenção de todos os interessados seja necessária para que a decisão a proferir possa produzir o seu efeito útil normal. Então a questão é a seguinte: Se se pretende a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda de um imóvel já registado a favor do comprador (por exemplo, com a invocação de que a venda é nula, por simulada), sobre o qual se encontra inscrita uma hipoteca voluntária constituída por este a favor de um terceiro, é necessário que seja demandado não só o comprador e o vendedor, mas também o credor hipotecário? Parece-nos que tudo depende da interpretação a dar à 2ª parte do nº 2 do citado artigo: saber se a intervenção da CGD (credora hipotecária) é necessária, pela natureza da relação jurídica controvertida, para que a decisão a proferir possa regular definitivamente a situação das partes relativamente ao pedido. Em princípio, mesmo que a relação material controvertida respeite a várias pessoas, não é obrigatório que todas elas demandem ou sejam demandadas. Mas tal sucede nos casos referidos no citado artigo 28º. Miguel Teixeira de Sousa, in “As Partes...” escreve: “pode entender-se que o litisconsórcio natural só existe quando a repartição dos vários interessados por acções distintas impediria uma composição definitiva entre as partes da causa...” (pag. 69). Todavia acrescenta: mas também pode defender-se que o litisconsórcio é natural não só quando a repartição dos interessados por acções diferentes impediria a composição definitiva entre as partes, mas também quando a repartição dos interessados por acções distintas poderia obstar a uma solução uniforme entre todos os interessados. Nos termos da 2ª parte daquele nº 2, como vimos, o efeito útil normal é atingido quando se consegue uma regulação definitiva da situação concreta das partes (e só delas) quanto ao objecto do processo. “Porém, de acordo com a mesma definição, o efeito útil normal pode ser conseguido ainda que não estejam presentes todos os interessados ou, dito de outra forma, a ausência de um desses interessados nem sempre constitui um obstáculo a que esse efeito possa ser atingido: é o que resulta do facto de nessa definição se admitir expressamente a não vinculação de todos os interessados[1]” Assim, “o efeito normal da decisão, quando transitada em julgado, consiste na ordenação definitiva da situação concreta debatida entre as partes[2]” Por isso escreve Lebre de Freitas[3]: a pedra de toque do litisconsórcio necessário é, pois, a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o ... Portanto, o que está em causa é saber se a decisão resolve ou não definitivamente a situação jurídica das partes ou se, pelo contrário, essa situação pode ser afectada por outra acção proposta ou a propor entre outras partes. Dito doutro modo: essencial é que a decisão a proferir sem a intervenção de todos os eventuais interessados possa regular de forma definitiva as pretensões formuladas pelas partes intervenientes na acção. Por exemplo numa acção de divisão de coisa comum, é evidente que se torna necessária a intervenção de todos os interessados, pois só assim a decisão a obter produzirá o seu efeito útil normal. A divisão só é possível se intervierem todos os interessados, pois, caso contrário, a decisão a proferir não resolveria a questão entre todos eles, nem sequer entre os intervenientes. Em casos como estes trata-se de relações jurídicas indivisíveis por natureza e, por isso, não se suscitam dúvidas quanto à verificação do litisconsórcio necessário pela natureza da relação jurídica controvertida. Todavia, existem situações em que a solução não é tão clara. A decisão pode produzir alguns efeitos entre as partes, mas sem a intervenção de todos os interessados não produz de forma definitiva o seu efeito útil normal. Também nestes casos se verifica uma situação de litisconsórcio necessário. No caso sub judice a questão apenas se coloca em relação ao pedido de cancelamento da hipoteca. Só nesta parte a apelante é interessada e daí a sua legitimidade para o presente recurso (artº 26º). É que o prédio pode ser transmitido a terceiros sem autorização da credor hipotecário, embora com as legais consequências (artº 721º do CC) Parece-nos, pois estarmos perante uma situação de litisconsórcio necessário. Com efeito, em relação ao pedido de cancelamento do registo da hipoteca, a acção não poderia ser julgada procedente sem a intervenção da CGD. Mas poderia dizer-se que a solução a adoptar seria a de a acção ser julgada improcedente nesta parte e procedente quanto aos outros pedidos. Só que neste caso, aquele pedido seria julgado improcedente precisamente por a credora hipotecaria não ter intervindo na causa. Quer isto dizer que esta deveria ter sido demandada. E a ser assim é porque estamos perante uma situação de litisconsórcio necessário. Na verdade, sem a intervenção da CGD não é possível a composição definitiva de todos os interessados. Como vimos, a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado. Ora, relativamente a este pedido, parece-nos não se poder dizer que a decisão proferida e ora recorrida produz o efeito útil normal em relação às partes na acção. E a prova disso é que a questão só poderia ser definitivamente resolvida com a intervenção da ora recorrente. Sendo a decisão ineficaz em relação a esta, numa outra acção a hipoteca poderia, obviamente, manter-se. Então teríamos uma decisão a declarar o cancelamento do registo da hipoteca e outra a declarar a sua manutenção. Portanto, a questão posta não poderia ser decidida sem a intervenção da credora, mesmo para que a decisão produzisse efeito apenas entre AA e RR na acção. É que esse efeito não surtiria. Em conclusão: numa acção de condenação em que se pretende a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda de um imóvel já registado a favor do comprador (por exemplo, com a invocação de que a venda é nula, por simulada), sobre o qual se encontra inscrita uma hipoteca voluntária constituída depois por este a favor de um terceiro, é necessária a intervenção não só do comprador e do vendedor, mas também do credor hipotecário, sob pena de ilegitimidade. ** Por todo o exposto acorda-se em julgar procedente a apelação e revoga-se a sentença recorrida, absolvendo-se os RR da instância, por preterição de litisconsórcio necessário (artº 494º, e) do CPC).Custas pelos apelados. Lisboa, 22.06.2004. Pimentel Marcos Jorge Santos Vaz das Neves __________________________________________________________________ [1] Ob cit. pag. 70. [2] Antunes varela e outros in Manual de Processo Civil, pag. 167. [3] CPC Anotado, vol. I, pag. 58. |