Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | FERREIRA LOPES | ||
Descritores: | LETRA DATIO PRO SOLVENDO RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE CREDOR CONSENTIMENTO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/15/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – Para que a emissão de letras de câmbio pelo devedor extinga a relação subjacente ou fundamental, substituindo-a pela obrigação cambiária, é necessário o consentimento do credor; II – A emissão de letras de câmbio, em circunstâncias que revelam ter sido intenção das partes apenas facilitar ao credor a realização do seu crédito, constitui datio pro solvendo; III – Numa tal situação, o credor, com vista à satisfação do seu crédito, pode optar pala acção cambiária ou pelo recurso à acção declarativa. (F.L) | ||
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Decisão Texto Integral: | 5 Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa “P…Lda”, intentou na comarca de Ponta Delgada a presente acção declarativa com processo ordinário contra o “Jornal… Lda”, com sede (…) Ponta Delgada, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 38.076,49 acrescida de juros de mora, estando já vencidos € 4.761,19 e ainda nos vincendos, à taxa legal. Como fundamento do pedido alegou ter no exercício da sua actividade de comercialização de papéis e outros artigos para artes gráficas, fornecido material a Ré que esta não pagou na totalidade, encontrando-se em dívida a quantia supra referida. Na contestação a Ré veio dizer ter acertado com a Autora o pagamento da facturação cujo pagamento é pedido, emitindo para o efeito quatro letras de câmbio a favor da Autora, ainda não vencidas à data da propositura da acção, que remeteu àquela. Ademais não são devidos juros de mora, pois a Autora nunca lhos exigiu. Deve a acção ser julgada improcedente e o Réu absolvido do pedido. Respondeu a Autora dizendo que a emissão das letras significou apenas uma datio pro solvendo, não tendo sido extinta a obrigação, o que só acontecerá quando o crédito da Autora for satisfeito. Foi proferido despacho saneador sentença que, conhecendo do mérito da causa, julgou a acção procedente, condenando a Ré no pedido. Inconformada, a Ré apelou tendo formulado as seguintes conclusões: 1ª. Se após a propositura da acção em que a Apelada demanda a Apelante no pagamento de determinada dívida, esta emitiu e aquela aceitou letras de câmbio, para satisfação daquele pagamento ainda que a emissão não implique uma novação de dívida, mas datio pro solvendo, sempre do interesse do credor, que se torna mais segura a satisfação de tal interesse, é de julgar improcedente a acção por inutilidade superveniente da lide; 2ª. A relação cartular nascente na pendência de acção condenatória e em que o credor vê facilitada a satisfação do seu crédito se bem que não extinga imediatamente a obrigação de pagamento pré existente, dá lugar a uma obrigação abstracta que permite aos sujeitos a libertação da relação jurídica subjacente; 3ª. Ao não decidir assim, a douta sentença viola o disposto nos art.s 287º alínea e) do CPC e 840º do Cód. Civil. Não foram apresentadas contra alegações. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. /// Fundamentação.Remete-se para a matéria de facto dada como provada na 1ª instância - art. 713º, nº 6 do Cód. Processo Civil. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (art.s 684º/3 e 690º/1 do CPCivil), as questões a apreciar são as seguintes: - Se a acção deveria ser julgada improcedente, por inutilidade superveniente da lide, em face da emissão pela Ré das letras de câmbio em datio pro solvendo; - A emissão das letras e a relação jurídica subjacente. Como flui da petição inicial, a Autora demanda a Ré com vista a obter sentença que a condene a pagar-lhe o preço de bens (papel e artigos para artes gráficas) que lhe forneceu e que Ré não pagou integralmente. A Ré não contestou a dívida, defendendo-se com a emissão de quatro letras de câmbio que aceitou e entregou à Autora que se destinam a liquidar a quantia peticionada. A sentença deu como provado os fornecimentos do material à Ré, qualificando como um contrato de compra e venda a relação estabelecida entre as partes, do qual emerge para a Ré a obrigação de pagar o preço, e não tendo esta provado que o fez, como impõem os art.s 874º e 879º, e também 798º e 799º do Cód. Civil, condenou-a a pagar o valor das facturas com juros de mora a partir do vencimento de cada uma delas. No recurso, a Apelante sustenta que as letras que emitiu e entregou à Autora, constitui uma datio pro solvendo, no interesse do credor, para tornar mais segura a satisfação do interesse daquele, o que deveria levar à improcedência da acção. Que dizer? Do negócio jurídico celebrado pelas partes emergiu para a Ré a obrigação de pagar o preço dos bens que recebeu. É isso que resulta do disposto nos artigos 879º e 406º do Cód. Civil, que prescreve, aquele, ser a obrigação de pagar o preço um dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda, e o último o princípio segundo o qual “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei”. No caso dos autos, a Ré não provou ter efectuado o pagamento das facturas, como lhe competia, mas provou-se ter emitido a favor da Autora quatro letras de câmbio para pagamento da importância em dívida (nº6 da matéria de facto da sentença). Vejamos o que a propósito diz a lei. Assim, o art. 837º do Cód. Civil, preceitua que “a prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu consentimento.” E o art. 840º, sob a epígrafe dação pro solvendo dispõe no nº1: “Se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito e na medida respectiva.” Importa ainda atentar na figura da novação (art. 857º do Cód. Civil) que se dá quando “o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga”, devendo a vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga ser expressamente manifestada – art. 859º do Cód. Civil. No caso da emissão de letras, criando-se uma (nova) relação cambiária entre as partes, o que acontece com a relação subjacente de onde emergiu a dívida? Ensina o Prof. Antunes Varela, in RLJ, ano 118º, pag. 30: “Para que a emissão da letra, constitutiva da relação cambiária entre as partes, sacador por um lado e sacado-aceitante por outro, tivesse o condão de extinguir a relação (comum) de dívida do preço (ou da parte do preço em dívida) era necessário, de acordo com um dos princípios fundamentais válidos no capítulo da novação, que as partes houvessem manifestado de modo expresso, no sentido rigoroso da expressão, semelhante intenção. Haveria, nesse caso, uma novação da dívida anterior – não uma dação pro solvendo, nem sequer uma datio in solutum ou uma datio pro soluto. A novação e a datio pro solvendo têm de comum, como se sabe, a circunstância de se constituir, por força de qualquer delas, uma nova obrigação. Com uma diferença: enquanto a novação envolve a extinção imediata da obrigação antiga, a dação pro solvendo pressupõe a manutenção desta obrigação, cuja satisfação ela visa apenas auxiliar ou facilitar.” No mesmo sentido vai a jurisprudência, de que é exemplo o Ac. do STJ de 26.03.98, BMJ 475, pag. 725, onde se escreveu: “A datio pro solvendo tem como característica a circunstância de não se pretender extinguir imediatamente a obrigação. A obrigação subsiste e só se vem a extinguir com a satisfação do direito do credor e na medida em que for satisfeito.” E acrescenta este douto acórdão: “Com a emissão das letras estão abertas ao credor duas vias de satisfação do seu crédito: o recurso à acção cambiária ou o recurso à acção declarativa de condenação, tendo por base a relação subjacente ou fundamental, solução por que optou.” É altura de reverter ao caso dos autos. A emissão das quatro letras de câmbio não constituiu, manifestamente, novação da obrigação resultante do contrato pela obrigação cambiária. Para tanto era necessário, como vimos, que expressamente as partes assim tivessem convencionado, o que não aconteceu. Fica-se, portanto, com uma dação pro solvendo, caso em que a obrigação fundamental subsiste enquanto não for satisfeito o direito do credor. A pretensão da Recorrente – que reconhece que estamos perante um caso de datio pro solvendo – no sentido de que a acção deveria ser julgada improcedente, por inutilidade superveniente, é inaceitável, pois o direito da Autora a receber integralmente o preço do material que vendeu, continua por satisfazer. Seria, aliás, incompreensível que a emissão das letras de câmbio, que visou apenas facilitar à Autora a satisfação do seu crédito, como a própria Apelante reconhece, viesse a ter o efeito de impossibilitar aquela, de optar pela exigência de cumprimento da obrigação fundamental. Nesta situação, ensina Antunes Varela, in Das Obrigações, II, 7ª edição, pag. 176): “Quando assim suceda, o devedor que subscreveu a letra pro solvendo não será, em princípio, obrigado a cumprir a obrigação fundamental ou originária, senão contra a restituição do título cambiário. Se não resulta directamente do disposto no art. 788º, é doutrina que pode abonar-se no princípio geral da boa fé.” Mas não é esta como vimos uma questão suscitada no recurso. Aqui o que importa afirmar é que a Autora pode intentar acção declarativa de condenação exigindo da Ré o cumprimento do contrato entre elas celebrado, apesar de ter em seu poder letras de câmbio emitidas pro solvendo pela Ré. Com o que improcedem os fundamentos da alegação da Apelante. Decisão. Em face do exposto, nega-se provimento à apelação e confirma-se a sentença recorrida. Custas pela Apelante. Lisboa, 15 de Março de 2007 Ferreira Lopes Manuel Gonçalves Aguiar Pereira |