Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1586/2006-2
Relator: FRANCISCO MAGUEIJO
Descritores: TÍTULO DE CRÉDITO
DOCUMENTO PARTICULAR
FOTOCÓPIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/30/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: DECISÃO REVOGADA
Sumário: 1- A fotocópia autenticada de um título de crédito não pode, em princípio, servir de base à execução, por só o original implicar o reconhecimento da obrigação incorporada.
2- A fotocópia certificada de documentos particulares que não revistam a natureza de cartulares podem, em casos justificados de não acesso ao original, servir de base à execução, já que não comungam dos princípios da literalidade, da abstracção, da incorporação e da autonomia (art 17 da LULL).
3- Não deve indeferir-se liminarmente a petição executiva quando a apresentação de fotocópia certificada de declaração de dívida como título executivo é justificada pela exequente com a alegação de que o original está na posse do executado, seu filho, que se nega a disponibilizar-lho.
4- A realização nomeadamente dos princípios da boa fé, da cooperação, da economia processual e até da adequação processual, apontam para que se deixe prosseguir a execução com o título apresentado pela exequente, decidindo-se a questão da exequibilidade do título em sede de embargos se deduzidos pelo executado.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa
A exequente foi, nos termos do art 812 nº 4 do CPC, convidada a juntar o original do documento que foi apresentado como titulando a execução (cópia certificada), sob pena de ser indeferido o requerimento executivo.
A exequente não juntou o aludido original, justificando-se com o facto de ele estar na posse do executado, seu filho, que lho não disponibiliza.
Perante a não junção do exigido original do invocado título executivo, o sr juiz «a quo», tendo em conta o disposto no art 812 nº 2 a) do CPC, indeferiu liminarmente a execução.
Não se conformando, a exequente recorreu desta decisão, tendo alegado e concluído, assim:
A. Vem o presente AGRAVO interposto da douta sentença de fls. que indeferiu liminarmente a execução, por falta de título, nos termos do disposto no artigo 812° n.° 2 al. a) do Código de Processo Civil.
B. A Agravante considerou como título executivo uma fotocópia certificada de uma declaração de dívida subscrita pelo Executado, reconhecida por uma senhora Advogada, nos termos do n.° 3 do artigo 1.° do DL 28/2000, de 13 de Março.
C. A declaração de dívida cuja certificação foi junta aos autos preenche os requisitos legalmente exigidos para poder servir de base a execução, na medida em que os documentos particulares assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético constituem uma das espécies de títulos executivos – al. c) do n.° 1 do artigo 46° do Código de Processo Civil.
D. Depois de ter notificado a Agravante para proceder à junção do original da declaração de dívida, e de a mesma ter explanado que o original se encontrava na posse do próprio Executado, seu filho, razão pela qual não poderia proceder à junção do mesmo, o Tribunal a quo veio a indeferir liminarmente a execução, por falta de título – cfr. artigo 812 n. 2 al. a) do CPC.
E. A Agravante discorda, respeitosamente, do Tribunal a que, na medida em que entende que com a junção de fotocópia certificada da declaração de dívida, que tem o mesmo valor probatório do original de onde aquela foi extraída e certificada, nos termos do n.° 5 do artigo 1° do DL 28/2000, de 13 de Março, jamais o Tribunal a quo poderia ter decidido a falta de título,
F. A decisão cujo juízo rescisório se reclama violou o disposto no n.° 5 do artigo 1° do DL 28/2000, de 13 de Março e artigo 812° n.° 2 al. a) do Código de Processo Civil
G. O Tribunal a quo teceu, ainda outra considerações, reportando-se ao facto de o executado ter colocado em causa a veracidade do documento dado à execução – fotocópia certificada de declaração de dívida assinada pelo mesmo – e solicitado a peritagem do documento, mediante a exibição do original, sendo certo que considerou, então, a falta do original como falta de título.
H. Salvo o devido respeito, considera-se que o Tribunal a quo apenas poderia concluir pela veracidade ou falsidade do alegado pelo Executado, não em sede de despacho liminar, mas sim em sede de oposição à execução, onde poderia ser requerida a prova pericial da letra e conhecida a veracidade ou falsidade do alegado pelo Executado, nos termos do disposto nos artigos 813 e seguintes do Código de Processo Civil.
I. Ainda assim, a Agravante justificou junto do Tribunal a quo que a impossibilidade de junção do original se devia ao facto de o Executado, seu filho, lho ter solicitado para efeitos de financiamento bancário, com vista à obtenção de um crédito para fazer face à dívida assumida perante a Agravante.
J. Ou seja, a Agravante não juntou o original por facto imputável ao Executado que, através de uma manobra ardilosa e maliciosa, logrou obtê-lo, atento o facto de a Agravante ser sua mãe e ter acreditado na bondade da sua intenção, pelo que seguindo a jurisprudência recente do STJ, in Acórdão de 28.2.2001, in CJSTJ, 2001,1,100, por raciocínio análogo, a fotocópia certifica deveria ter sido aceite, também por este motivo.
L. O documento oferecido como título executivo não é falso, nem inexistente. A comprova-lo está a cópia certificada pelos CTT Correios e por uma Advogada.
M. Em suma, a matéria referente à alegada falsidade do título executivo deveria ser aferida em sede de oposição à execução e não em sede de indeferimento liminar.
N. Face ao exposto, deverão V. Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores decidir que a fotocópia certificada da declaração de divida apresentada nos autos pela ora Agravante, com a certificação feita nos termos do referido diploma legal, tem o valor probatório do documento original, e a sua junção deu cabal cumprimento ao despacho que a determinara.
O. E desta sorte, deverá ser revogada a sentença recorrida que indeferiu liminarmente o requerimento executivo nos termos do artigo 812° n.° 2 al: a) do Código de Processo Civil, por falta de título executivo, ordenando V. Exas. o prosseguimento dos autos para execução.
O sr juiz «a quo» sustentou o despacho agravado.

Questões
Tendo em conta que o objecto do recurso é balizado pelas conclusões do recurso, importa apreciar e decidir se uma cópia certificada de documento particular pode servir de título executivo.

Factos pertinentes à decisão do recurso:
1- A exequente foi convidada, nos termos do art 812 nº 4 do CPC, a esclarecer que documento apresentou como título executivo e a juntar o respectivo original, sob pena de, não o fazendo, ser indeferido o requerimento executivo. Art 812 nº 5 do CPC (fls 78).
2- Em resposta, a exequente apresentou o articulado de fls 83 a 88, no qual terminou por requerer que a cópia certificada do documento que indicou como título executivo fosse admitido com esta qualidade.
3- Tal cópia consta a fls 116 apresentando-se certificada a fls 115 com data de 15.12.2004 pelos CTT, aí se afirmando que a fotocópia em questão está conforme com o original uma declaração de reconhecimento de dívida, que foi extraída nesta Estação de Correios, de um documento que me foi apresentado e vai conforme o Original que restituí.
4- Considerando não cumprido o despacho de aperfeiçoamento referido em 1) o sr juiz «a quo» entendendo ainda que a não junção do original do documento dado à execução corresponde a falta de título executivo, indeferiu liminarmente a execução, por falta de título, como antes já apontara como cominação.

O Direito
Na decisão recorrida, com o suporte de doutrina e jurisprudência que aí se invocou, considerou-se que a fotocópia autenticada de um título de crédito não pode servir de base à execução, por só o original implicar o reconhecimento da obrigação incorporada.
A recorrente pensa, obviamente, de outra maneira. Invoca o disposto no art 1 nº 5 do DL 28.00 de 13.3 e conclui que à fotocópia certificada da dívida deve ser atribuído o mesmo valor probatório do original de onde aquela foi extraída e certificada.
O art 46 c) do CPC prescreve que podem servir de base às execuções os documentos particulares, assinados pelo devedor
O art 1 nº 5 do DL 28/00 de 13.3. diz que as fotocópias conferidas nos termos dos números anteriores (1) têm o valor probatório dos originais.
O original que terá servido de suporte à cópia certificada apresentada como título executivo é um documento particular. Se assinado ou não pela pessoa que aí aparece como devedora é questão que já se mostra conflituada na execução, pois que o executado o nega.
A jurisprudência dos Tribunais superiores tem tendido quase unanimemente a decidir que as fotocópias de títulos de crédito, mesmo certificadas, não são suporte válido de execuções (2). Só os originais, para evitar que ao devedor pudesse ser exigido repetidamente o cumprimento. Também a doutrina (3).
Como se refere no Ac do STJ 30.9.99 (4) admitir como título executivo uma fotocópia de documento cartular, mesmo autenticada, é escancarar a porta ao perigo, já que fica incontrolado que, no futuro, através de um simples endosso para um terceiro de boa fé, possa vir a ser apresentado a pagamento o original do documento.
A situação é diversa no caso dos documentos particulares que não revistam a natureza de cartulares como é o caso dos autos, já que não comungam dos princípios que enformam estes, faltando-lhes as características da literalidade, da abstracção, da incorporação e da autonomia (art 17 da LULL).
A jurisprudência e a doutrina, no concernente aos títulos de crédito têm vindo a atenuar o rigor de recusa das cópias de documentos cartulares (5). O Ac do STJ de 27.9.94 (6) salienta que se for impossível a um exequente, utilizar o original de um título executivo, sem quebra do princípio da boa fé e da segurança do devedor, não deixará de ser considerável a utilização de documento de igual valor substantivo.
Como já se referiu, a exequente alega como causa impeditiva da apresentação do documento original a recusa do devedor, que o detém, em lho disponibilizar. Alegadamente, o executado, seu filho, te-lo-á usado, com autorização dela, em operação de financiamento bancário, em benefício próprio. Este, como se deu notícia no despacho recorrido, pôs em causa a veracidade de tal documento, alegando que a sua assinatura foi falsificada e pretende que a exequente junte o original desse documento, a fim de ser efectuada peritagem. Acrescenta-se no mesmo despacho que a exequente alega não poder fazê-lo por o original estar na posse do executado.
Temos assim, manifestamente, uma situação de impasse a que o Tribunal tem de dar saída (art 2 do CPC). A versão dos factos apresentada pela exequente é verosímil, a exigência já formulada pelo executado pode ser satisfeita, não na execução é certo, como se refere no despacho recorrido, mas em outra sede e momento próprio, concretamente na eventual oposição por embargos movidos pelo executado à execução.
A opção do Tribunal «a quo» de indeferir liminarmente o requerimento executivo depois de conhecidas as versões das partes quanto à existência e genuinidade do título que a exequente pretende dar a execução, poderá, salvo o devido respeito, ter sido resultado induzido por insuficiente ponderação dos interesses em jogo e melhor modo de os dirimir. O conflito em discussão, atento os contornos conhecidos, as pessoas envolvidas, a justificação apresentada para a não junção do documento original, parece aconselhar a que se dê tempo a oportuna prova das versões desencontradas e que já chegaram ao conhecimento do processo.
Tudo isso parece-nos que aponta para que não deva ter-se como verificada a previsão do art 812 nº 2 a) ou seja que é manifesta a falta ou insuficiência do título.
Dizer-se, no circunstancialismo conhecido, que a não junção do original do documento dado à execução corresponde a falta de título parece excessivo. O título (original) existirá se for exacto o que a exequente alega. Não existe se for verdade o que responde o executado.
A solução, a via adequada a que se evite o incumprimento do disposto no art 812 nº 2 a) e se dê realização nomeadamente aos princípios da boa fé, da cooperação, da economia processual e até da adequação processual, será fazer prosseguir a execução com o título definido pela exequente. Se o executado embargar com algum ou alguns dos fundamentos dos arts 813 e 815 do CPC, nomeadamente ser falsa a assinatura aposta no documento de fls 116 (de alegado reconhecimento de dívida pelo executado) que lhe é imputada, aí será lugar e tempo para resolver, como o uso dos meios de prova pertinentes, a divergência factual das partes e especialmente dar cumprimento ao disposto nos arts 528 a 530 e 266 nº 4 do CPC.
Conclui-se, assim, que, atento o circunstancialismo fáctico alegado, situação que é de haver como de excepção, deve aceitar-se a cópia certificada de fls 116 como título executivo. A efectivação do direito de crédito invocado pela exequente dependerá da não oposição do executado ou, no caso de oposição por embargos, da improcedência destes que, entre o mais, passará pela junção do original do documento de dívida ou da prova de que a cópia da assinatura constante da cópia do original do documento é do executado (7).

Tendo em conta todo o exposto acorda-se em, dando provimento ao recurso da exequente, revogar o despacho de fls 98 que indeferiu liminarmente o requerimento executivo, devendo dar-se prosseguimento à execução.
Custas nos termos do art 455 do CPC.

Lisboa, 30 de Março de 2006
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(1).-Como foi o caso.

(2).-Nestes sentido vide Ac do STJ de 30.9.99 in sítio da dgsi, proc 99B570 (livrança); Em sentido contrário, mas tratando-se de livrança certificada judicialmente o Ac do mesmo Tribunal de 19.3.96, proc 96A085 in sítio da dgsi. O Ac da RL de 25.6.92 in BMJ, 418, 865 esse diz simplesmente que a fotocópia de letra de câmbio, notarialmente autenticada, pode servir de título executivo.
Menos recente, também no sentido de as cópias não poderem considerar-se títulos executivos, os Acs da RC de 7.5.85 in BMJ, 347, 466; do STJ de 1.3.88 in BMJ, 375, 352; do STJ de 23.43.93 in CJS, 1993, 2, 27;

(3).-Vide Ferrer Correia in Lições de Direito Comercial vol 3, pg 142: contrariamente ao que sucede na pluralidade das vias, o portador de uma cópia não pode reclamar o pagamento do aceitante, exibindo simplesmente a cópia; a não ser assim poderia o aceitante ter que pagar segunda vez a quem lhe apresentasse o original. A cópia, como a própria expressão o diz, não é uma letra, mas uma reprodução dela (reprodução manual, mecânica, fotográfica).

(4).-Proc 99B570 in sítio da dgsi.

(5).-vide Acs e doutrina citada no Proc 99B570 in sítio da dgsi.

(6).-in BMJ 439, 605.

(7).-Vide Ac do STJ de 8.2.2001, CJS, 1, 100 em que se sumaria: excepcionalmente é justificado o uso de cópia autenticada da letra como título executivo…desde que não haja quebra do princípio da boa fé e da segurança devida ao devedor, quando se verifique a impossibilidade do exequente dispor do original por razões que lhe não sejam imputáveis.