Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
313/24.6T8ETR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ NUNO DUARTE
Descritores: INVENTÁRIO
PRAZO PARA RECLAMAR DA RELAÇÃO DE BENS
APROVEITAMENTO DO PRAZO DE OUTRO INTERESSADO
Nº do Documento: RP20251013313/24.6T8ETR-B.P1
Data do Acordão: 10/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Em virtude de o princípio subjacente ao disposto no artigo 549.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, não ser o da subsidiariedade, mas o da auto-suficiência, não existe fundamento legal para se aplicar a norma do artigo 569.º, n.º 2, do CPC quando, num processo de inventário, se procede à contagem do prazo estabelecido no artigo 1104.º, n.º 1, al. d), para cada um dos interessados apresentar reclamação à relação de bens.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 313/24.6T8ETR-B.P1

Relator: José Nuno Duarte; 1.ª Adjunta: Teresa Fonseca; 2.ª Adjunta: Fátima Andrade.

Acordam os juízes signatários no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
Nos autos de inventário por óbito de AA, falecida em 17 de Setembro de 2012, os interessados BB e CC apresentaram reclamação contra a relação de bens que a cabeça-de-casal, DD, havia junto aos autos em 16-05-2024, juntamente com o requerimento de início do processo.
Depois de ter sido invocada pela cabeça-de-casal a intempestividade da referida reclamação, a sra. Juíza titular do processo proferiu o despacho com a ref.ª citius 137562918, de 6/03/2025, em que, após referir ser aplicável ao processo de inventário o regime legal previsto nos artigos 1082.º a 1135.º do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, e expressar que a disposição do art.º 1104.º do Código de Processo Civil, “[é] especial em relação à norma do processo declarativo comum constante do art.º 569.º n.º 2 do Código de Processo Civil”, concluiu com a seguinte decisão:
- «(…) rejeito, por extemporânea, a reclamação apresentada por BB e CC, apresentada para além do prazo de trinta dias do qual dispunham a partir da sua citação.»
Os interessados BB e mulher CC vieram recorrer desta decisão, apresentado alegações, motivadas nos termos legais, com as seguintes conclusões:
1.ª) O douto despacho de fls. - ref.ª 137562918 - datado de 06-03-2025, que rejeitou, por extemporânea, a reclamação apresentada, em 26-09-2024, pelos Recorrentes, procede a uma incorreta aplicação do regime constante dos art.s 1104.º, 569.º, n.º 2 e 549.º, n.º 1, todos do CPC, por desconsiderar, para além do mais, o elemento literal das respetivas normas;
2.ª) E bem assim, procede a uma incorreta aplicação das regras de interpretação, máxime de integração sistemática e de coerência, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, violando assim o disposto no art. 9.º do CC.
3.ª) Não contendo o normativo do art. 1104.º do CPC específica previsão, seja no sentido de afastar, seja no sentido de considerar aplicável, a regra contida no art. 549.º, n.º 1 do CPC impõe, necessariamente, a aplicação do regime constante do art. 569.º, n.º 2 do CPC;
4.ª) A Lei é, neste particular, sobremaneira clara: “(…) em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum.” (ut art. 549.º, n.º 1 do CPC);
5.ª) Do elemento literal do preceito (art. 1104.º do CPC) não resulta expresso que o legislador pretendeu afastar o regime constante do art. 569.º, n.º 2 do CPC, ou mesmo sequer, tal resulta indiretamente de tal preceito;
6.ª) As regras de interpretação, máxime de integração sistemática e de coerência, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, impõem, mercê do que foi acolhido pelo legislador no art. 728.º, n.º 3 do CPC, entendimento diverso daquele que foi defendido no douto despacho recorrido;
7.ª) Não obstante o processo de inventário ser um processo especial, regulado nos art.s 1082.º e seguintes do CPC, é-lhe aplicável as disposições de processo comum, tal como resulta do art. 549.º, n.º 1 do CPC;
8.ª) Na sequência do referido, à tramitação do inventário é aplicável as regras e disposições do processo comum declarativo que se mostrem compatíveis com o processo de inventário judicial;
9.ª) A regra do processo comum declarativo ínsita no art. 569.º, n.º 2 do CPC, é compatível com o processo de inventário judicial;
10.ª) Ora, tendo os Recorrentes apresentado a sua reclamação à relação de bens em 26-09-2024, deveria esta ter sido admitida, por tempestiva, pois encontrava-se ainda a correr prazo para o último dos interessados citado, prazo de que os Recorrentes se podiam socorrer;
11.ª) O Tribunal “a quo”, ao decidir como decidiu no douto despacho recorrido, violou o disposto nos art.s 1104.º, 569.º, n.º 2 e 549.º, n.º 1, todos do CPC e o disposto no art. 9.º do CC.
-
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho, que o classificou como sendo de apelação e, com apelo ao disposto no artigo 1123.º, n.º 3, do Código do Processo Civil, lhe atribuiu efeito suspensivo, ordenando a sua subida imediata a este Tribunal da Relação, em separado dos autos principais.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, sem prejuízo da apreciação por parte do tribunal ad quem de eventuais questões que se coloquem de conhecimento oficioso, bem como da não sujeição do tribunal à alegação das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), a questão a tratar é apenas uma:
→ Se os interessados que, num processo de inventário, apresentam reclamação contra a relação de bens beneficiam do disposto no artigo 569.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, ou se o prazo de que dispõem para a prática desse acto é apenas aquele que consta do artigo 1104.º do Código de Processo Civil.

III – FUNDAMENTAÇÃO

A) Dos factos
Para a decisão a proferir, há que atender à factualidade relativa à tramitação processual havida que já foi referida no Relatório deste acórdão, bem como aos seguintes factos que foram mencionados no despacho recorrido e que, para além de não terem sido impugnados, se encontram documentados nos autos:
i) Em 26.09.2024 o interessado BB e mulher CC apresentaram reclamação contra a relação de bens através de requerimento com a ref.ª Citius 16679845;
ii) Os identificados interessados haviam sido citados para os termos do inventário em 11.06.2024 – ref.ªs Citius 16280430 e 16280439.

B) Do direito
A questão de que depende o desfecho do presente recurso é debatida com alguma frequência nos nossos tribunais.
De um lado, estão aqueles – como é o caso dos ora recorrentes – que defendem que, num processo de inventário com vários interessados, quando termina em dias diferentes o prazo de 30 dias subsequente à citação estabelecido no artigo 1104.º, n.º 1, al. d), do Código do Processo Civil para cada interessado apresentar reclamação à relação de bens, deve aplicar-se o disposto no artigo 569.º, n.º 2, do Código do Processo Civil e, por isso, a reclamação pode ser apresentada, por qualquer deles, até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar. Em prol desta posição, argumenta-se, fundamentalmente, que, em virtude de o artigo 1104.º, n.º 1, al. d) do Código do Processo Civil não excluir a aplicação da norma do processo comum de declaração que prevê o aproveitamento do último prazo em curso para a apresentação de contestação (como acontece, por exemplo, no artigo 728.º, n.º 3, do Código do Processo Civil), esta norma, face ao disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 549.º do Código do Processo Civil [1], deve ser aplicada em sede de inventário.
Do outro lado, estão aqueles que defendem que o prazo de 30 dias previsto no n.º 1, do artigo 1104º, do Código do Processo Civil para a apresentação de reclamação à relação de bens corre autonomamente para cada um dos interessados, sem que qualquer destes se possa socorrer do prazo que eventualmente se encontre ainda a correr para algum dos demais. Argumenta-se, essencialmente, que o artigo 1104.º do Código do Processo Civil é uma norma própria do processo especial de inventário que regula de forma completa a matéria do prazo para a apresentação da relação de bens e, por isso, inexiste qualquer falta de previsão que deva conduzir à aplicação, nesta sede, do disposto no artigo 569.º, n.º 2, do Código do Processo Civil, antes se devendo respeitar o princípio, estatuído na primeira parte do n.º 1 do artigo 549.º do Código do Processo Civil, de que “[o]s processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns”.
O tribunal a quo adoptou esta última posição, a qual, para além de recolher o apoio doutrinário autorizado que foi mencionado na decisão recorrida [2], tem vindo também a ser adoptada em diversos arestos dos nossos tribunais superiores, dos quais, a título meramente ilustrativo, aqui se podem referir os acórdãos da Relação de Coimbra de 10-01-2023 (proc. 1001/21.0T8PBL.C1, rel. Maria João Areias) da Relação do Porto de 09-02-2023 (proc. 2670/20.4T8MAI-D.P1, rel. Isoleta de Almeida e Costa) e da Relação de Guimarães de 3-10-2024 (proc. 391/21.0T8FAF-A.G1, rel. Conceição Sampaio) [3].
Desde já se diga que esta é também a nossa posição. Tal acontece porque se entende que o artigo 1104.º do Código do Processo Civil, ainda que nada diga quanto à aplicabilidade ou não do disposto no artigo 569.º, n.º 2 do mesmo código, é uma norma que disciplina de forma completa a matéria relativa ao prazo de que os interessados dispõem quer para reclamar da relação de bens, quer para praticar qualquer dos outros actos que ali se encontram previstos (deduzir oposição ao inventário, impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros, impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações e impugnar os créditos e as dívidas da herança). Subjacente à mesma como se refere no despacho recorrido, está a ideia de concentrar o exercício pelas partes dos respectivos direitos processuais em três fases bem definidas do processo de inventário (os articulados, o saneamento e a partilha) e reforçar a sua auto-responsabilidade mediante o estabelecimento de preclusões tendentes a assegurar uma maior eficácia e celeridade processuais. Por isso, a lei confere aos diversos interessados na partilha um prazo único de 30 dias para o exercício de todas as faculdades previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 1104º do Código do Processo Civil, nada permitindo afirmar que, no descrito contexto, esta disposição padece de incompletude reguladora que deva levar a que, por falta de previsão específica, se deva aplicar uma norma própria do processo comum. Pelo contrário, sendo o artigo 569.º, n.º 2 do Código do Processo Civil uma disposição geral do processo de declaração comum, a sua eventual aplicação no âmbito de um processo especial, como o de inventário, a partir do momento em que este já contém uma norma reguladora do prazo para as partes praticarem um acto como o da reclamação à relação de bens, só seria possível se tal estivesse expressamente previsto.
Aquilo que se acaba de afirmar, por outro lado, não é minimamente contrariado pelo facto de, na regulação do processo de execução, existir uma norma – o artigo 728.º, n.º 3, do Código do Processo Civil – que, relativamente ao prazo de que os executados dispõem para deduzir oposição por embargos, afasta expressamente a aplicação do artigo 569.º, n.º 2 do Código do Processo Civil. Com efeito, ao nível das disposições reguladoras do processo de execução, vigoram princípios, definidos no artigo 551.º do Código do Processo Civil, substancialmente diferentes daqueles que regem ao nível da regulação dos processos especiais de declaração. Assim, em virtude de se estabelecer no artigo 551.º do Código do Processo Civil, mormente no seu n.º 1, que “[s]ão subsidiariamente aplicáveis ao processo de execução, com as necessárias adaptações, as disposições reguladoras do processo de declaração que se mostrem compatíveis com a natureza da acção executiva”, mostra-se necessário arredar especificamente a aplicação do artigo 569.º, n.º 2 do Código do Processo Civil, já que esta norma não é incompatível com a natureza da acção executiva e, logo, caso nada fosse previsto, a mesma poderia ser aplicada nos processos de execução. Diferentemente, nos processos especiais de declaração, o princípio subjacente ao disposto no artigo 549.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, não é o da subsidiariedade, mas o da auto-suficiência: os processos regulam-se, antes de tudo o mais, pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; por isso, só se houver elementos que permitam afirmar que há alguma omissão ou lacuna ao nível daquilo que se encontra previsto nessas disposições é que se poderá lançar mão, nos termos da segunda parte do preceito, de normas estabelecidas para o processo comum. Não é o caso do disposto no artigo 1104.º do Código do Processo Civil, pois, como já se disse supra, este preceito contém uma regulação própria que define qual o prazo de que os interessados num processo de inventário dispõem para, entre o mais, reclamar da relação de bens e nenhum elemento há que indicie que esta regulação não seja completa e, por isso, careça de ser complementada com normas próprias do processo comum de declaração.
Considera-se, portanto, que o tribunal a quo andou bem quando considerou inaplicável ao caso sub judice o disposto no artigo 569.º, n.º 2, do Código do Processo Civil. Consequentemente, e porque também não merece reparo o mais afirmado na sentença recorrida para justificar a extemporaneidade da apresentação pelos ora recorrentes da reclamação contra a relação de bens, deve haver lugar à confirmação da respectiva decisão.
Os recorrentes, atento o seu decaimento, devem suportar as custas da apelação (cf. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Processo Civil).

IV – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
a) negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida;
b) condenar os recorrentes no pagamento das custas da apelação.

Notifique.
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SUMÁRIO
(Elaborado pelo relator nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)
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Acórdão datado e assinado electronicamente
(redigido pelo primeiro signatário segundo as normas ortográficas anteriores ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990)

Porto, 13/10/2025
José Nuno Duarte
Teresa Fonseca
Fátima Andrade
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[1] Estabelece-se aqui que, nos processos especiais, em tudo o quanto não estiver prevenido nas disposições que lhes são próprias e nas disposições gerais e comuns, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum.
[2] O despacho recorrido citou, nomeadamente, A. Abrantes Geraldes, no seu estudo intitulado O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil (Almedina, 2021, p. 80) e também o Código de Processo Civil Anotado de António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, mais concretamente a anotação ao artigo 1104.º do Código do Processo Civil que consta do Vol. II (Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventário Judicial) desta obra colectiva (Almedina, 2020, p. 568).
[3] <URL: https://www.dgsi.pt/>.