Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9043/10.5TBMAI-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS PELO CABEÇA-DE-CASAL
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RP202510139043/10.5TBMAI-B.P1
Data do Acordão: 10/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A ação especial de prestação de contas, fundada na obrigação de as prestar, decorrente da obrigação, mais geral, de informação, prevista no art. 573º, do Código Civil, justifica-se sempre que o titular do direito tenha dúvida fundada acerca do seu conteúdo e outrem esteja em condições de informar.
II - A ação de prestação de contas tem como objeto a apresentação da conta corrente descritiva, em modo contabilístico, das receitas obtidas e das despesas realizadas pelo administrador, no exercício da gestão dos bens administrados, instruída com os documentos justificativos (nº1 e 3, do art. 944º, do CPC), impondo a lei sejam estes apresentados por quem presta as contas.
III - A sua finalidade é estabelecer o montante das receitas recebidas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar, com rigor, a situação credora ou devedora.
IV - É titular do dever de prestar contas o cabeça de casal (cfr. art. 2093º, do CC), tendo os demais herdeiros o direito de exigir judicialmente a sua prestação.
V - Tendo havido, prévia, prestação extrajudicial de contas do cabeçalato, as mesmas só se têm por efetiva, válida e eficazmente prestadas se tiverem sido aprovadas e aceites pelos demais interessados, não podendo ao mero silêncio destes ser atribuído o valor de aceitação.
VI - Esta causa extintiva da obrigação - prestação extrajudicial de contas aprovadas e aceites pelos demais interessados -, como qualquer outra causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, tem de se alegada e provada pelo Réu (cfr. nº2, do art. 342º, do CC), sendo que, na inobservância destes ónus (de alegação e da prova), sobre o mesmo continua a impender a obrigação de as apresentar judicialmente (não configurando a prestação extrajudicial de contas sem aceitação das mesmas por todos os interessados cumprimento da obrigação de prestação de contas, a desonerar do dever de serem judicialmente prestadas).
VII - A pretensão formulada por interessado, findo o inventário, de prestação de contas do cabeçalato pelo cabeça de casal não integra o exercício abusivo do direito a que lhe sejam prestadas as contas, antes o, normal e legítimo, exercício do direito à informação que lhe é atribuído por lei.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 9043/10.5TBMAI-B.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível da Maia - Juiz 1


Relatora: Des. Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Des. Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais
2º Adjunto: Des. António Mendes Coelho

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

………………………………

………………………………

………………………………


*
I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrido: BB


BB intentou a presente ação especial de prestação de contas contra AA pedindo que a mesma proceda à prestação de contas referentes ao exercício do seu cabeçalato alegando, para tanto, em síntese, que a Ré ao longo do exercício do seu cabeçalato prestou contas sem, contudo, apresentar os documentos justificativos e sem que as mesmas tenham merecido a aprovação da Autora bem como da interessada CC. Requereu a intervenção principal provocada dos demais herdeiros, CC, DD e EE e mulher FF.
A Ré contestou a sua obrigação de prestar contas, invocando ter prestado as contas extrajudicialmente, enviando aos herdeiros carta registada com aviso de receção, com o elenco das receitas e das despesas e se disponibilizou a exibir documentos que entendessem pertinentes e invocou, ainda, a exceção de abuso de direito por parte da Autora, porquanto a mesma nunca questionou as contas apresentadas ou manifestou dúvida quanto às mesmas, concluindo pela sua absolvição do pedido.
Respondeu a Autora alegando que as contas prestadas pela Ré não obedecem ao prescrito na lei, porquanto o não foram em forma de conta corrente nem foram acompanhadas dos documentos comprovativos das receitas e despesas, concluindo pela condenação da Ré na prestação de contas.
Por despacho de 5.11.2022, retificado em 21.11.2022, após pronuncia sobre a inadmissibilidade da coligação, foi decidido prosseguir com os autos para prestação de contas pela Ré, bem como admitida a intervenção principal provocada de CC, DD e EE e mulher FF.
Por despacho de 10.05.2023 foi declarada a suspensão da instância por óbito de CC e em 16.01.2025 habilitados os seus sucessores.

Realizada a audiência final, com observância das formalidades legais, foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:

Julgo a presente acção procedente e em consequência condeno a Ré, AA, a prestar contas do cabeçalato exercido nas heranças abertas por óbito de GG e HH”.


*
Apresentou a Ré recurso de apelação, pugnando por que seja revogada a decisão e julgada improcedente a ação, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

(…)


*

Apresentou a Autora contra-alegações pugnando por que seja negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida, devendo a recorrente prestar contas do cabeçalato por ela exercido, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

(…)


*

Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

*

II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, são as seguintes as questões a decidir:
1. Quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, se cabe proceder ao aditamento da seguinte matéria aos factos provados:

. Entre 2012 e 2021, as contas prestadas pela cabeça de casal assumiram a forma de conta corrente anual, com discriminação sistemática de receitas e despesas por imóvel e por rubrica, bem como apuramento de saldos parciais e finais;

. A autora e a herdeira CC, ao manterem-se inativas e em silêncio durante quase uma década, geraram na ré a legítima confiança de que as contas apresentadas haviam sido aceites.
2. Quanto à decisão de mérito, da extinção do direito da Autora, por verificação:
2.1. - de cumprimento da obrigação de prestação de contas (prestação extrajudicial, com desoneração de prestação judicial);
2.2. - de exercício abusivo do direito, impeditivo do seu exercício.


*

II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Foram os seguintes os factos considerados provados com relevância para a decisão pelo Tribunal de 1ª instância (transcrição):
1. Por despacho proferido nos autos que correram os seus termos neste Juízo sob o nº 9043/10.5TBMAI, foi a Ré nomeada cabeça de casal em 05.12.2011.
2. A Ré prestou compromisso de honra em 15.02.2012 tendo o Tribunal entregado certidão atestando a sua qualidade de cabeça de casal, em 28.05.2012.
3. As suas funções cessaram em 08.11.2021, data do trânsito em julgado da sentença proferida em 04.10.2021.
4. No final de cada ano, e em todos os anos desde 2012 até 2021, a Ré, na qualidade de cabeça de casal, enviou cartas registadas com aviso de receção, dirigidas a todos os interessados, com informação das receitas e despesas efetuadas relativas às heranças.
5. A Ré elaborou os recebimentos e pagamentos globais totais discriminados por rúbricas e por imóvel e concluiu por um saldo, no final de cada um dos anos desde 2012 até 2021 e comunicou-os a todos os interessados.
6. A Ré enviou a todos os interessados em todos os referidos anos a relação de todas as rendas recebidas pelas referidas heranças, ou seja, de todos os rendimentos, e de todas as despesas, designadamente com IMI’s e despesas diversas com os imóveis, discriminando todas as receitas e todas as despesas da herança bem como o saldo da gestão das heranças.
7. As referidas comunicações não foram acompanhadas dos documentos comprovativos das receitas e despesas.
8. A partir de 2015, os recibos das rendas foram emitidos diretamente no site das finanças, passando a estar disponíveis para consulta por todos os herdeiros ou interessados.
9. Durante o tempo do seu cabecelato, nunca nenhum dos herdeiros refutou as contas apresentadas pela cabeça de casal AA em qualquer dos referidos anos, nem questionou os valores reportados todos os anos nas contas, nunca revelaram quaisquer dúvidas sobre as mesmas.
10. Após a conclusão do seu cabecelato, em 22.12.2021, a Ré enviou uma carta a todos os herdeiros apresentando as contas finais, e requereu o envio ao seu cuidado dos NIB’s ou IBAN`s para que a cabeça de casal pudesse entregar a cada um dos herdeiros, por transferência bancária, a sua quota parte do saldo da conta associada à herança.
11. Nem a Autora nem a interessada CC responderam a tal interpelação indicando o IBAN ou NIB.
12. A Ré mostrou sempre disponibilidade para exibir quaisquer documentos que os interessados tivessem interesse em conhecer.
13. Sempre que qualquer interessado solicitou qualquer documento comprovativo das despesas realizadas pela Ré, como cabeça de casal, o mesmo foi disponibilizado.
14. A Autora e os demais interessados nunca manifestaram qualquer dúvida acerca das contas prestadas, do seu conteúdo, nem do quantum das receitas nem das despesas.
15. Os interessados DD e EE aprovaram as referidas contas expressamente.

2. Factos não provados:

Nenhuns factos foram indicados como não provados, considerando o Tribunal a quo encontrarem-se provados todos os factos com relevo para a decisão da causa.


*

II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Da impugnação da decisão da matéria de facto

Insurge-se a Ré contra a decisão da matéria de facto pretendendo se aditem aos factos provados os seguintes factos:
i)-Entre 2012 e 2021, as contas prestadas pela cabeça de casal assumiram a forma de conta corrente anual, com discriminação sistemática de receitas e despesas por imóvel e por rubrica, bem como apuramento de saldos parciais e finais", concluindo que tal aditamento é imposto pela prova documental, não impugnada, junta aos autos em 18.05.2022, designadamente os documentos n.ºs 1 a 93, sendo este aditamento importante para a correta qualificação jurídica da prestação extrajudicial de contas e para a aferição da existência de dúvida fundada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 573.º do Código Civil, encontrando-se extinta a obrigação de prestação de contas, inexistindo qualquer interesse processual legítimo ou necessidade objetiva que fundamente a presente ação;
ii)- “A autora e a herdeira CC, ao manterem-se inativas e em silêncio durante quase uma década, geraram na ré a legítima confiança de que as contas apresentadas haviam sido aceites”, concluindo que tal aditamento resulta dos factos provados, da prova documental, do depoimento de parte e das declarações de parte constantes dos autos e da ausência de qualquer oposição ao longo de anos às contas prestadas, descaracterizando a existência de dúvida fundada para efeitos do artigo 573.º do Código Civil e que tal aditamento assume relevância direta para a boa decisão da causa, pois a aceitação tácita e continuada das contas prestadas pela cabeça de casal elimina a existência de qualquer dúvida fundada quanto à sua prestação, o que, nos termos do artigo 573.º, do Código Civil, conduz à improcedência da ação e à absolvição do pedido.
A recorrida sustenta não dever ser atendido o requerido aditamento, pois que de qualificações jurídicas se trata, sendo falso ter havido uma verdadeira prestação de contas.
Apreciando o pretendido aditamento fáctico ao elenco dos factos provados, cumpre deixar claro que, na verdade o mesmo abarca qualificações jurídicas e juízos conclusivos (“conta corrente”, “manterem-se inativas”, “legítima confiança de que as contas apresentadas haviam sido aceites”) não sendo, por isso, de incluir o pretendido no elenco fáctico, por se não tratar de factos, mas de meras conclusões. De qualquer modo, nenhuma relevância tem o referido para a decisão da causa, nada cabendo aditar, por inútil, pois que a outra qualificação jurídica não pode este tribunal chegar, face aos factos que resultam provados, senão à conferida ao caso pelo Tribunal a quo, como veremos, dada a não apresentação dos documentos aos interessados para que os pudessem analisar e aferir da adequação das “contas” prestadas e por não resultar provada aprovação e aceitação das contas por todos os interessados.
Com efeito, resulta dos factos provados, que “As referidas comunicações não foram acompanhadas dos documentos comprovativos das receitas e despesas”(negrito nosso) e que a “Autora e os demais interessados nunca manifestaram qualquer dúvida acerca das contas prestadas, do seu conteúdo, nem do quantum das receitas nem das despesas” resultando, contudo apenas que “Os interessados DD e EE aprovaram as referidas contas expressamente”.
Assim, provado estando que as comunicações não foram acompanhadas dos documentos comprovativos das receitas e despesas e não resultando provada a aprovação e aceitação das contas por todos os interessados, nunca a obrigação da Ré se pode considerar cumprida, estando a Autora a exercer, normal e legitimamente, direito que lhe é conferido por lei, como veremos de seguida.
Improcede, pois, na totalidade, a impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo de aditar a referida matéria, conclusiva e irrelevante para a decisão.


*

2. Da decisão de mérito:

2.1. Do cumprimento da obrigação de prestar contas, por prestação extrajudicial.
Insurge-se a apelante contra a sentença por, tendo a ação por objeto apurar as receitas obtidas e as despesas realizadas pela cabeça de casal, no exercício do cabeçalato, ter já prestado extrajudicialmente as contas que são da obrigação da cabeça de casal, mostrando-se cumprida a sua obrigação de informação.
As questões que se suscitam são as de saber:
i) - se as contas podem ser consideradas validamente prestadas, extrajudicialmente, extinguindo-se a obrigação;
ii) - se o silêncio da recorrida, que nada disse, por anos, pode ser interpretado como aceitação tácita de contas, atuando a mesma em abuso de direito ao vir agora exigi-las;
ou se, ao invés, a obrigação se não extinguiu, mantendo-se o direito à informação, e encontrando-se a Autora a exercer normal e legitimamente um direito seu, a merecer tutela efetiva, findo o cabeçalato.
Decidiu o Tribunal a quo estar a Ré obrigada a prestar contas à Autora dado ter exercido o cargo de cabeça de casal, bem concluindo pela obrigação da mesma de prestar contas considerando:
i) - as contas prestadas não foram aprovadas, fundamentando: “Pronuncia-se a propósito, LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, em “Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas”, 2016, Pag. 129 “a obrigação de prestação de contas pelo cabeça de casal só se extingue, mesmo que apresentadas sem documentos, justificativos, se as contas tiverem sido aprovadas e aceites pelos demais interessados ou se se demonstrar a existência de qualquer outra causa extintiva daquela obrigação. Se tais contas não forem aprovadas extrajudicialmente, não fica o cabeça de casal desonerado de as apresentar judicialmente” e acrescenta na pag. 158 “persiste a obrigação de prestar contas em juízo se as contas prestadas extrajudicialmente não forem aprovadas por quem tem direito de as exigir”. No mesmo sentido se pronunciaram o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 9.06.2009, o Tribunal da Relação de Guimarães, no acórdão de 17.10.2019, o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 22.10.2024 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5.12.2024, todos publicados em www.dgsi.pt. Resulta dos citados arestos jurisprudenciais de a disponibilização dos documentos justificativos das receitas e despesas não é suficiente para se terem por apresentadas as contas quando as mesmas não sejam aprovadas”.
ii)- o silêncio da Autora não a faz incorrer em abuso de direito, pois do silêncio“não se pode extrair que renunciou ao direito de exigi-las ou que as deu como prestadas e aprovadas. (…), cessado o cabeçalato em 8.11.2021 e prestadas as contas finais em 22.12.2021 a Autora intentou a presente acção em 21.03.2022 por entender que as contas não foram prestadas nos termos legalmente exigidos. Não se nos afigura que o anterior silêncio a faça incorrer em abuso de direito tanto mais que a disponibilidade do saldo só se concretizou em 2021 pois que nos anos anteriores a Ré limitou-se a comunicar o saldo, mas não se predispôs a distribui-lo”.
Na verdade, como bem considerou o Tribunal a quo, estava a cabeça de casal, findo o cabeçalato, obrigada a prestar contas aos interessados, tendo estes o direito de as exigir judicialmente, e a serem devida, adequada e integralmente informados, não podendo ao silêncio dos interessados ser atribuído o valor de aceitação das contas que lhes foram sendo remetidas (sem documentos justificativos). E não pode a atuação da requerente a demandar ser considerada abusiva, por, anteriormente, nada ter a mesma dito ou feito que pudesse exprimir aprovação/aceitação de contas, nenhum saldo resultando recebido.
Vejamos.
O artigo 941º, do Código de Processo Civil, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência, que define o “Objeto da ação” de prestação de contas, consagra que “A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.
Assim, este processo tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administre bens alheios e, também, a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se. O direito de exigir a prestação de contas, e o dever de as prestar, está diretamente relacionado com a qualidade de administrador em que alguém se encontra investido quanto a bens que não lhe pertencem, decorrendo a obrigação de as prestar da própria lei ou de negócio jurídico, bem podendo resultar tal obrigação, até, do princípio geral da boa fé[1] [2].
Sendo o objeto das ações especiais de prestação de contas, uma vez decidido que o réu tem obrigação de as prestar, a apresentação da conta corrente descritiva, em modo contabilístico, das receitas e despesas nela compreendidas, apenas com a especificação da proveniência daquelas a da aplicação destas[3], nelas apenas se discute se existe ou não a obrigação de prestar contas e o valor e, ainda, efetivas inscrições.
De acordo com o nº1, do art. 944º, as contas “devem assumir a forma de conta-corrente, decomposta em receitas, despesas e saldo. Há que indicar separadamente como se obteve a totalidade da receita, quais as quantias que foram recebidas e donde provieram; assim como é forçoso declarar quais as diferentes despesas e a que fim se destinaram. Ou seja, uma prestação de contas em conta-corrente é uma forma simples de escrituração de transações, em rubricas de deve e haver, que revela a situação patrimonial de uma conta em cada momento, ou num determinado período de tempo, através do saldo resultante das entradas/receitas/créditos e das saídas/despesas/débitos” [4] [5] [6].
Destina-se tal processo especial “a apurar o montante das receitas e despesas que efetivamente foram cobradas ou efetuadas”[7], enfatizando a jurisprudência que a ação especial de prestação de contas é uma das formas de exercício do direito de informação, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas a das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito, decorrendo, em termos de direito substantivo, a obrigação de prestação de contas da obrigação, mais geral, de informação, consagrada no art. 573º, do Código Civil[8].
O dever de prestar contas pela forma legal - em forma de conta corrente, com deve e haver e concluindo-se por um saldo -, emerge quando alguém administra bens alheios – artº 941º do CPC – e conexiona-se com o dever de informação do artº 573º do CC[9]. Tal processo especial relaciona-se com a obrigação a que alguém está sujeito de prestar a outrem contas dos seus atos, ou seja o dever de prestação de contas funda-se num facto constitutivo gerador da obrigação de alguém prestar contas dos seus atos próprios atos[10] praticados no exercício da administração de bens alheios. E visando a prestação de contas a definição de um quantitativo como saldo, só o processo de prestação de contas será adequado a tal finalidade quando quem as requer não esteja inteirado, por ausência de informação por parte de quem as deve prestar, do montante das receitas percebidas ou do das despesas efetuadas ou mesmo de ambas[11].
Neste conspecto, com o regime adjetivo consagrado, garante-se o cumprimento judicial da obrigação de prestação de contas que é uma obrigação de informação e que existe sempre que o titular de um direito tenha fundadas dúvidas acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as necessárias informações, sendo o objetivo, em termos práticos, estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar uma situação de crédito ou de débito[12]. O fim da ação de prestação de contas é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito[13].
Ora, esta situação é a que resulta do encontro de contas entre o que foi recebido e o que foi gasto por quem administra bens alheios. Em causa está, por um lado, o que foi recebido – frutos, rendas, juros,… - e por outro, o que foi gasto, despesas, por quem administra bens de outrem, para se chegar a um saldo.
Como se referiu, entendeu, e bem, o Tribunal a quo, verificar-se obrigação da cabeça de casal de prestar contas aos interessados.
E decidiu, já, este Tribunal da Relação do Porto, com a concordância manifestada pelo referido Autor, Manuel da Câmara Machado, que a falta de documentação em relação a algumas das despesas indicadas na conta corrente e a indicação do mesmo valor das despesas ao longo de décadas, não constituem fundamento para rejeitar as contas apresentadas da forma de conta corrente[14]. Contudo, a falta total de documentação em relação a todas as receitas e a todas as despesas na prestação extrajudicial de contas nunca pode permitir concluir pelo cumprimento do dever de informação e pela extinção da obrigação de prestar contas, pelo seu cumprimento, sendo evidente o direito da interessada de as exigir judicialmente, pois que nenhuns elementos lhe foram fornecidos para se poder considerar informada. E nunca ao silêncio pode ser atribuído o valor de aceitação de contas satisfeitas extrajudicialmente e sem suporte documental justificativo, não podendo considerar-se cumprida a obrigação de informação do cabeça de casal.
Na verdade, para que a obrigação de informação se possa considerar cumprida, as contas não podem deixar de ser instruídas com os documentos justificativos, só assim podendo, evidentemente, ser tomada uma posição, que, mesmo, a Autora não tomou.
O objeto da ação especial de prestação de contas, uma vez decidido que o réu tem obrigação de as prestar, limita-se à apresentação da conta corrente descritiva, em modo contabilístico, das receitas e despesas nela compreendidas, apenas com a especificação da proveniência daquelas e da aplicação destas[15] que instruídas se têm de mostrar com os documentos justificativos, nos termos do nº 1 e 3, do art. 944º.
Da conjugação do disposto no n.º 3 do art. 944.º e no n.º 5 do art. 945.º emerge a relevância probatória da apresentação dos documentos justificativos das despesas apresentadas, sendo a prova documental essencial para a justificação das despesas apresentadas[16] e para se poder considerar cumprida a obrigação de informação. O juiz não deve prescindir de documentos de suporte das contas (das receitas ou das despesas) quando o normal é que eles existam e nenhuma justificação válida é apresentada para a sua não apresentação[17]. E quem gere bens alheios (ou parcialmente alheios), deve ser escrupuloso e rigoroso na sua administração, não podendo deixar de ter e prestar elementos e informações para que as contas se considerem devidamente prestadas, pelo que quaisquer dúvidas, situadas no espectro dos elementos e informações que é suposto não poder deixar de ter, devem ser decididas/julgadas contra si[18].
Assim sucedendo, não pode ser considerada cumprida a obrigação de prestação de contas, por prestação extrajudicial (sem documentos), pois que se não encontra demonstrada a sua aprovação e aceitação por todos os interessados, certo sendo que não resultou a aceitação expressa por todos e para que pudesse existir aceitação tácita tinha a mesma de ser totalmente inequívoca e não permitir qualquer outra interpretação que não a da aceitação.
Não resultando a aprovação e aceitação, seja expressa seja tácita, de todos os interessados, não resulta verificado o cumprimento da obrigação, imposta por lei, à cabeça de casal.

*

2.2. Do abuso de direito.

Suscita, ainda, a recorrente, também com vista a afastar, a impedir, o direito que se reconheça existir, a questão do abuso de direito da Autora.

Conclui consubstanciar a atuação da autora abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, “ao exigir judicialmente a prestação de contas que, durante quase uma década (2012–2021), recebeu regularmente sem qualquer impugnação, pedido de esclarecimento ou manifestação de dúvida, gerando na ré, cabeça de casal, uma legítima confiança de que tal obrigação se encontrava cumprida”.
Estatui o art. 334º, do Código Civil:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
O abuso de direito, cuja aplicação depende de terem sido alegados os factos e provados os referidos pressupostos, de conhecimento oficioso, é uma válvula de segurança do sistema.
“As regras jurídicas não se aplicam isoladamente. Em cada caso, é sempre a ordem jurídica, no seu todo, que é chamada a depor. Esta, através da boa-fé e dos princípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente, está sempre disponível para o controlo interno do exercício dos direitos. Quando atuadas em contradição com a boa fé (com o sistema, no seu essencial), há abuso, normalmente manifestado através de algum dos tipos abusivos. (…) O abuso é, hoje, um instituto objetivo. Não depende de culpa do agente ou de quaisquer intenções suas”[19].
Não se mostra abusivo o exercício do direito pela Autora, havendo ação associada a uma conduta justificada por um legítimo interesse: o de saber, com rigor, de modo completo e justificado, receitas e despesas. Tutela a lei tal direito, que, no caso, não pode deixar de ser salvaguardado, com o assegurar à Autora da possibilidade de o exercer, judicialmente.
Cessado o cabeçalato em 8.11.2021 e prestadas as contas finais em 22.12.2021 a Autora intentou a ação em 21.03.2022, por entender que as contas não foram prestadas nos termos legalmente exigidos, apresentando-se a exercer um direito que a lei lhe confere.
Não se nos afigura que o silêncio anterior, a faça incorrer em abuso de direito, não resultando qualquer ato revelador de a Autora assumir uma posição contrária a outra anteriormente assumida, nunca lhe tendo sido disponibilizado, pela cabeça de casal, e recebido, por si, qualquer saldo.

A pretensão da Autora não configura abuso de direito, antes traduz o normal exercício de um direito por quem dele é titular e pretende, legitimamente, ser, completa e adequadamente, informado.

A prestação extrajudicial de contas, que não obteve, inequívoca, aprovação e aceitação de todos os interessados, nenhuma eficácia tem, não podendo ser negado à Autora o Direito a exigir judicialmente a prestação de contas.


*
Destarte, só se têm por efetivamente prestadas contas pelo cabeça de casal, havendo prestação extrajudicial, se as mesmas tiverem sido aprovadas e aceites por todos os demais interessados ou se se demonstrar existir outra causa extintiva daquela obrigação. Se tais contas não forem aprovadas extrajudicialmente, não fica o cabeça de casal desonerado de as apresentar judicialmente, sendo o ónus da prova da efetiva prestação extrajudicial de contas nas referidas circunstâncias pertence ao obrigado cabeça de casal[20] (nº2, do art. 342º, do CC). A prestação extrajudicial (prévia) de contas pressupõe discriminação, pelo Réu, de recebimentos e pagamentos globais e totais, em forma de conta corrente e a aprovação das mesmas por quem tinha o direito de as exigir, determinando a absolvição do réu do pedido[21].

Ora, não logrando a Ré demonstrar que todos os interessados aceitaram, real e efetivamente as contas, sequer se verificando aceitação tácita, por não resultarem provados atos que inequivocamente a revelem, e tendo, mesmo, a prestação extrajudicial de contas sido defeituosa, subsiste a necessidade da sua prestação, não se verificando situação a integrar abuso de direito, este legitimamente exercido.

Na improcedência das exceções invocadas, resulta ter a Autora direito de exigir a prestação de contas, impendendo sobre a Ré, cabeça de casal, o dever de prestar, judicialmente, contas do cabeçalato.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.


*

As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).

*

III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


*

Custas pela apelante.


Porto, 13 de outubro de 2025

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Miguel Baldaia de Morais
Mendes Coelho
________________
[1] Acs da RE de 26/3/2015, proc. 353/13.0TBENT.E1, in dgsi.pt
[2] Ac. RL de 5/2/2019, proc. 16126/17.9T8SNT.L1-7, in dgsi.pt,, onde se refere “Inexistindo norma legal que genericamente determine quando é que alguém tem que prestar contas, a obrigação de as prestar decorre de uma obrigação de carácter mais geral que é a obrigação de informação prevista no art. 573º do C.C. (…) A obrigação de prestação de contas pode resultar de disposição especial da lei (v.g., mandatário, administrador de pessoas coletivas, tutor, curador, gestor de negócios, cabeça-de-casal, marido, depositário judicial, credor anticrético ou pignoratício com o direito de cobrar os rendimentos), do princípio da boa-fé ou de negócio jurídico”.
[3] Miguel da Câmara Machado, in Rui Pinto e Ana Alves Leal (Coordenação), Processos Especiais, vol. I, AAFDL Editora, pág. 228
[4] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 393
[5] Miguel da Câmara Machado, idem, pág. 226
[6] Ac. do STJ de 628/14.1TBBGC-C.G1.S1
[7] Ac. do STJ de 16/2/16, proc. 17099/98, citado em António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, em anotação ao artigo 942º, pág. 390.
[8] Ibidem, pág. 388.
[9] Ac. da RC de 23/6/2020, proc. 930/18.3T8CLD.C1, in dgsi.pt
[10] Ac. da RL de 20/2/2020, proc. 28886/16.0T8LSB.L1-2, in dgsi.pt
[11] Ac. da RE de 3/11/2016, proc. 969/14.8T8PTM.E1, in dgsi.pt
[12] Miguel da Câmara Machado, in Rui Pinto e Ana Alves Leal (Coordenação), Processos Especiais, vol. I, AAFDL Editora, pág. 225
[13] Ac. da RL de 5/2/2019, proc. 16126/17.9T8SNT.L1-7, in dgsi.pt
[14] Miguel da Câmara Machado, in ob. cit, pág. 226 e Ac. da RP proferido no proc. 1057/09.4TBVFR-A.P1, aí citado.
[15] Ibidem, pág. 228.
[16] Ac. TRP de 10/4/2025, proc. 8165/20.9T8VNG.P1, acessível in dgsi.pt
[17] Ac. TRP de 27/11/2023, proc. 8731/21.5T8VNG-A.P1, acessível in dgsi.pt
[18] Ac. TRC de 12/2/2019, proc. 309/15.9T8FND.C1, acessível in dgsi.pt
[19] António Menezes Cordeiro (Coord.), Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, pág. 941.
[20] Ac. TRP de 5/12/2024, proc. 15857/20.0T8PRT-A.P1, acessível in dgsi.pt
[21] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, O Código de Processo Civil, 2º vol. pág. 391.