Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ALEXANDRA PELAYO | ||
Descritores: | AÇÃO DE DIVISÃO DA COISA COMUM INDIVISIBILIDADE DA COISA CASO JULGADO | ||
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Nº do Documento: | RP202507101371/24.9T8PVZ.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA | ||
Indicações Eventuais: | 2. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A ação de divisão de coisa comum prevista nos artigos 925º e ss do CPC, comporta duas fases: a fase declarativa e a fase executiva. II - Na fase declarativa determina-se a natureza comum da coisa ou do direito, fixa-se as quotas de cada comproprietário na coisa ou no direito comum, e determina-se a divisibilidade ou a indivisibilidade em substância e jurídica da coisa. III - Na fase executiva procede-se ao preenchimento dos quinhões de cada um dos comproprietários em espécie ou equivalente, ou procede-se à venda da coisa. IV - Verifica-se a exceção dilatória do caso julgado, relativamente à questão da divisibilidade da coisa, que impede o tribunal de voltar a apreciar tal questão em nova ação de divisão de coisa comum, se na anterior ação de divisão de coisa comum, relativa ao mesmo imóvel, que opôs as mesmas partes o tribunal proferiu sentença transitada em julgado, reconhecendo a indivisibilidade do prédio cuja divisão é requerida. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo: 1371/24.9T8PVZ.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Matosinhos - Juiz 2
Juíza Desembargadora Relatora: Alexandra Pelayo Juízes Desembargadores Adjuntos: Maria Eiró Alberto Paiva Teixeira
SUMÁRIO: …………………………….. …………………………….. …………………………….
Acordam os Juízes que compõe este Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO: AA, com o NIF ...20, com residência na Rua ..., ... ..., intentou a presente ação especial de divisão de coisa comum contra BB, residente na Rua .... ...., hab. 1.4, ... ..., Porto, peticionando decretamento da divisão do prédio urbano, sito na Rua ..., ... ..., Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos com o n.º ...50/20090529 e sob o artigo matricial ...92 da mesma freguesia, fixando-se as quotas dos consortes na proporção de 2/3 para o autor e 1/3 para a ré. Alegou, em síntese, que as partes são comproprietários, em comum e na referida proporção, do prédio a dividir, que não pretende permanecer na indivisão do referido imóvel e que o mesmo, devido à sua natureza e caraterísticas, pode ser divido em substância em conformidade com o relatório pericial já realizado em anterior ação de divisão de coisa comum que correu termos entre as partes. Regularmente citada, apenas a ré contestou, apresentando defesa por exceção e por impugnação. Em síntese, invocou a ré a exceção dilatória do caso julgado, face à decisão proferida, a 28/06/2022, no proc. n.º ..., que visava a divisão do mesmo imóvel e que correu termos entre as partes, sentença essa que veio a ser proferida no termo da fase declarativa do processo e pese embora a ulterior desistência do pedido ali apresentada pela aqui ré e oportunamente homologada em conferência de interessados realizada a 12/01/2023. Impugnou, por outro lado, por falsidade toda a alegação consubstanciadora do invocado acordo de divisão do prédio, bem assim do exercício possessório do autor sobre o prédio. Concluiu, pugnando pela procedência da exceção dilatória do caso julgado invocado, pelo reconhecimento dos efeitos decisórios da sentença proferida na fase declarativa do processo n.º ..., com a prossecução do processo para a fase executiva, com a realização da conferência de interessados, nos termos e para os efeitos do artigo 929.º n.º 2 do Código de Processo Civil. Pugnou, ainda, pelo reconhecimento da situação de compropriedade das partes sobre o prédio, na proporção de metade cada um e com reconhecimento da situação de indivisibilidade do mesmo. Garantido o contraditório, o autor pugnou pela improcedência da exceção invocada. O Tribunal proferiu despacho saneador, tendo apreciado a exceção dilatória do caso julgado, proferindo sentença com o seguinte dispositivo: “Em face do exposto, julga-se procedente a exceção dilatória do caso julgado e, em consequência, reafirmando-se o decidido na sentença proferida a 28/06/2022, no processo n.º ...: - Declara-se o autor e a ré a titularidade do direito de propriedade do prédio urbano sito na Rua ..., ..., Matosinhos, com o artigo matricial ...92.º, na proporção de 50% para cada um; - Declara-se a indivisibilidade em substância do prédio a dividir; - Determina-se a prossecução dos autos para a fase executiva do processo de divisão de coisa comum; - Atenta a procedência da exceção dilatória invocada pela ré, atenta a posição processual do autor quanto à mesma e nos termos do artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, condena-se o autor no pagamento das custas processuais.” Inconformado, o Autor AA veio interpor o presente recurso de APELAÇÃO, tendo apresentado as seguintes conclusões. “A – O Tribunal a quo julgou procedente a exceção dilatória do caso julgado, reafirmando o decidido na sentença proferida no âmbito do processo nº ..., correu os seus termos no Juízo Local Cível – Juiz 4, do Tribunal da Comarca do Porto; B – Sustentou, para tanto, que, quer no âmbito daqueles autos, quer nos presentes, as partes são as mesmas, o pedido é idêntico e a causa de pedir é a mesma; C – Assenta ainda a decisão recorrida que, sendo pretensão das partes/consortes pôr fim à indivisibilidade da coisa, também num e noutro processo, foi invocada a celebração de um acordo extrajudicial com vista a pôr termo a um processo executivo que corria entre as partes; D – Reconhece, todavia, o Tribunal a quo que que nestes autos o recorrente carreou o documento a que aludia e faltou no processo anterior, no qual as partes declararam que pelo pagamento da quantia exequenda, em que era executada a aqui recorrida, o recorrido passaria a ficar com mais 1/3, como se uma dação em cumprimento se tratasse; E – Por força do ali redigido, anuíram as partes, à data da celebração de tal acordo, expressar o acordo a que chegaram através da constituição da propriedade horizontal, de forma a expressar a diferença de quotas-partes sobre o imóvel; G – Ainda que tal documento não observasse a forma exigida por lei, quer para a escritura de dação em pagamento, quer para a acordada constituição da propriedade horizontal, é inegável atender às declarações negociais vertidas no documento em questão, cuja inobservância legal se supriria através de uma decisão judicial que o determinasse; H – Não podia o Tribunal a quo ignorar a vontade negocial ali vertida; I – Não devia o Tribunal a quo, liminarmente, considerar tal documento nulo por inobservância de forma e desconsiderar a sua existência para decidir procedente a exceção do caso julgado; J – Pois, se, no processo anterior o recorrente não logrou fazer prova pela impossibilidade de o juntar aos autos, agora, o cenário probatório é outro e é com base nele que o recorrente volta a chamar à presente lide tal questão; K – O Tribunal a quo cometeu erro grave na apreciação do direito em face dos factos carreados aos autos e da prova que daquela o recorrente pretendia fazer valer, desvalorando-os, conduzindo, por via disso, a uma decisão que merece censura; L – O documento/acordo extrajudicial, pese embora a falta de assinatura do recorrente, expressa a vontade negocial das partes, designadamente do aqui recorrente, tal como dispõe o artigo 234º do Código Civil; M – O documento em questão traz à discussão destes autos a questão da composição das quotas-partes, independentemente, de não ter sido cumprido o plano aí estabelecido; N – Não é a questão da forma que dá nova vida à alegação anteriormente feita, no âmbito dos autos nº ..., correu os seus termos no Juízo Local Cível – Juiz 4, do Tribunal da Comarca do Porto, mas antes a substância que dele exalta agora, nos presentes autos, em que se assume como uma nova questão em discussão, que, imperativamente, deveria ser alvo de debate probatório em sede própria, sem prejuízo, naturalmente, na livre apreciação que o tribunal fizesse a final, após tal discussão; O – Inexiste, pois, caso julgado, devendo, por isso, a decisão em crise ser revogada e ser proferido acórdão que determine a produção de prova relativamente aos termos vertido no acordo extrajudicial judicial junto a estes autos. TERMOS EM QUE, SE REQUER QUE O PRESENTE RECURSO SEJA JULGADO PROCEDENTE POR PROVADO E, EM CONSEQUÊNCIA, SEJA A SENTENÇA RECORRIDA REVOGADA, ALTERANDO-SE A MESMA NO SENTIDO DA INEXISTÊNCIA DE CASO JULGADO E, SUBSEQUENTEMNTE SER ADMITIDO O ACORDO EXTRAJUDICIAL CELEBRADOS ENTRE RECORRIDA E RECORRIDO E LEVAR À DISCUSSÃO, EM SEDE DE PROVA, QUANTO AO SEU CONTEÚDO E EFEITOS, TAL COMO SE CONTEMPLA NAS CONCLUSÕES ADUZIDAS”.
Não foram apresentadas contra-alegações. Foi proferido despacho que admitiu o recurso, como apelação (artigo 926.º n.º 2 do CPC), subindo nos próprios autos (artigo 926.º n.º 2 do CPC), de imediato (artigo 926.º n.º 2 do CPC) e com efeito suspensivo (artigo 926.º n.º 2 do CPC). Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - OBJETO DO RECURSO: Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. A questão decidenda consiste em saber se o ocorre erro de julgamento, ao não ter o tribunal recorrido dado relevância ao acordo das partes que foi junto a este autos, permitindo que o mesmo fosse alvo de discussão nesta ação.
III - FUNDAMENTAÇÃO: Na decisão proferida foi considerada assente a seguinte factualidade por acordo das partes, confissão ou por documento: 1. No dia 13 de Junho de 1980, no Sexto Cartório Notarial do Porto e perante a notária, CC e DD declararam doar a BB e a AA, que declararam aceitar, em comum e em partes iguais, um prédio urbano de dois pavimentos e quintal, sito na Rua ..., ..., Matosinhos. 2. Através da ap. ...1, de 28/07/1980, encontra-se registado a favor de BB e de AA a aquisição, por “doação”, do prédio urbano, sito na Rua ..., ..., Matosinhos, com o artigo matricial n.º ...92. 3. O referido prédio encontra-se identificado no Serviço de Finanças de Matosinhos-2, sob o artigo ...47.º, sendo aí descrito como “prédio de dois pavimentos, destinando-se o r/ch a comércio e indústria e o 1.º andar a habitação. Tem no r/ch duas divisões e wc e no 1.º andar três divisões, cozinha, quarto de banho, copa e vestíbulo”, constando como titulares da propriedade plena, na proporção de ½, o autor e a ré. 4. A 07/03/2013, a ré subscreveu um documento, denominado de “Acordo”, onde, além do mais, se fez constar:
5.A 28/06/2022, no âmbito do processo n.º ..., que correu termos no Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo[1]:
6. No âmbito do referido processo n.º ..., a 12/01/2023, realizou-se a conferência de interessados, constando da respetiva ata, além do mais, o seguinte: «(…) Atenta a não aceitação por parte do Réu da desistência da instância pela Autora, foi pedida a palavra e, no uso da mesma, disse querer desistir do pedido.-- Face à desistência do pedido, pela Mma Juiz foi proferido a seguinte: SENTENÇA "Na presente acção que BB move contra AA atenta a qualidade da interveniente e a disponibilidade do respetivo objeto, considera-se válida e relevante a desistência que antecede, que se homologa, por sentença, desta forma se extinguindo o direito que aqui se pretendia fazer valer e declarando-se a consequente extinção da instância (artigos 283º/1, 285º/1, 286º/2, 289º a contrario sensu e 277/d), todos do CPC ). Custas pela desistente (art. 537.º/1, do Código de Processo Civil), fixando-se o valor da acção em €370.000,00. Registe e notifique."— (…)».
IV - APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS: Discorda o Apelante da sentença proferida na fase declarativa desta ação de divisão de coisa comum, que julgou verificada a exceção do caso julgado, tendo em consideração a sentença proferida na ação de divisão de coisa comum que correu termo sob o nº ..., no Juízo Local de Matosinhos – Juiz 4, por entender que nesta segunda ação de divisão de coisa comum, o tribunal deveria permitir que fosse feita prova dum acordo negocial entre as partes, ora alegado, que visava a constituição do prédio a dividir no regime de propriedade horizontal, por não ter sido aquele acordo objeto de apreciação na anterior ação. É manifesta a falta de razão do Apelante, pelas razões que passaremos a expor. A ação de divisão de coisa comum comporta duas fases: a fase declarativa e a fase executiva. Na fase declarativa determina-se a natureza comum da coisa ou do direito, fixa-se as quotas de cada comproprietário na coisa ou no direito comum, e determina-se a divisibilidade ou a indivisibilidade em substância e jurídica da coisa. Na fase executiva procede-se ao preenchimento dos quinhões de cada um dos comproprietários em espécie ou equivalente. Se na decisão que pôs termo à fase declarativa se julgou que a coisa é divisível, uma vez fixados os quinhões, isto é, uma vez feita a divisão material da coisa (divisível) pelos peritos, realiza-se a conferência de interessados, a qual tem por objetivo adjudicar, por acordo dos interessados presentes na conferência, os quinhões aos comproprietários daquela; na ausência de acordo dos interessados presentes na conferência como os quinhões devem ser adjudicados entre os comproprietários daquela, a adjudicação dos quinhões é feita por sorteio (n.º1, do art. 929º do CPC). Se na decisão que pôs termo à fase declarativa se julgou que a coisa é indivisível, segue-se a conferência de interessados, a qual se destina a alcançar o acordo de todos os interessados presentes na conferência no sentido de que a coisa seja adjudicada a algum ou alguns deles, tendo os interessados presentes de acordar não só sobre a identidade do comproprietário ou comproprietários a quem essa coisa (indivisível) é adjudicada como no preço pelo qual é feita a adjudicação, recebendo os restantes comproprietários a sua quota parte nessa coisa em dinheiro, imediatamente ou dentro do prazo que aí for acordado. Não se chegando a acordo entre os comproprietários presentes na conferência quanto à adjudicação da coisa, impõe-se a venda judicial desta, segundo as regras da venda no processo de execução, sendo o produto dessa venda repartido pelos comproprietários em função das respetivas quotas e podendo todos os comproprietários concorrer à venda (n.º 2, do art. 929º). A aqui Requerida/apelada moveu contra o ora Requerente/apelante uma ação de divisão de coisa comum que correu termo sob o nº ... no Juízo Local de Matosinhos. Nesse processo judicial, foram proferidas duas sentenças: Uma que pôs termo à fase declarativa, fase essa que se destina a determinar a natureza comum da coisa ou do direito, a fixar as quotas de cada comproprietário na coisa ou no direito comum, e a determinar a divisibilidade ou a indivisibilidade em substância e jurídica da coisa, com o seguinte dispositivo:
Tendo o imóvel objeto dos autos sido declarado indivisível, por sentença transitada em julgado, seguiu-se a fase da conferência de interessados, a qual, como vimos é destinada a alcançar o acordo de todos os interessados presentes na conferência no sentido de que a coisa seja adjudicada a algum ou alguns dele e, na falta de acordo à sua venda. Nesta fase daquele processo que correu termo sob o nº ..., houve desistência do pedido pela ora apelada, tendo sido proferida a seguinte sentença: Na presente acção que BB move contra AA atenta a qualidade da interveniente e a disponibilidade do respetivo objeto, considera-se válida e relevante a desistência que antecede, que se homologa, por sentença, desta forma se extinguindo o direito que aqui se pretendia fazer valer e declarando-se a consequente extinção da instância (artigos 283º/1, 285º/1, 286º/2, 289º a contrario sensu e 277/d), todos do CPC ). Daí que, nos presentes autos em que a apelada arguiu a exceção dilatória do caso julgado, o tribunal recorrido, não deixou de conhecer os efeitos do caso julgado relativamente àquelas duas decisões judiciais. Nos termos do artº 619º, nº 1 do C.P.C. “Transitada em julgado a sentença, ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a matéria de facto controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 480 e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º.” Por sua vez, dispõe o artº 621º do mesmo diploma que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).” As decisões judiciais, em especial as sentenças, conduzem à pacificação das relações jurídicas controvertidas, contribuindo para a indispensável segurança jurídica e social (cf. art.º 619.º, n.º 1 e 621.º, ambos do CP Civil). Por inerência, razões de verdade, harmonia, certeza e segurança jurídica e sociais impõem que não se possa verificar uma contradição de decisões sobre a mesma questão fáctico-jurídica concreta, quer por via da exceção do caso julgado, quer por via da exceção da autoridade de caso julgado ou efeito positivo externo do caso julgado. Para o Professor Manuel de Andrade,[2] o instituto do caso julgado assenta em dois fundamentos: – o prestígio dos tribunais, que ficaria altamente comprometido “se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente”; – e, mais importante, uma razão de certeza ou segurança jurídica, já que sem a força do caso julgado se cairia “numa situação de instabilidade jurídica (…) fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas”. E esclarecedoramente aduz: “O caso julgado material não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade (…), por força da qual (…) a sentença (…) transforme o falso em verdadeiro. Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculativa infrangível ao ato de vontade do juiz, que definiu em dados termos certa relação jurídica, e portanto os bens (materiais ou morais) nela coenvolvidos. Este caso fica para sempre julgado. Fica assente qual seja, quanto a ele, a vontade concreta da lei (Chiovenda). O bem reconhecido ou negado pela pronuntiatio judicis torna-se incontestável.” O efeito negativo do caso julgado implica que, transitada em julgado uma decisão judicial, o mesmo tribunal (caso julgado formal, do artigo 620.º do CPC) ou todos os tribunais (caso julgado material, do artigo 619.º do CPC) ficarão sujeitos tanto a uma “proibição de contradição da decisão transitada”, como a “uma proibição de repetição daquela decisão”.[3] Tal proibição constrói um sistema de estabilização das decisões judiciais que se resume ao enunciado seguinte: um tribunal não pode afastar ou confirmar uma anterior decisão já proferida (cf. artigo 580.º, n.º 2, do CPC) independentemente de ser alheia ou ser sua (cf. artigo 613.º, n.º 1, do CPC), o que apenas poderá ter lugar em sede de recurso. Os aludidos preceitos legais referem-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão transitada em julgado (artº 628º do C.P.C.) que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial. Na situação em apreço a sentença que foi proferida no processo anterior de divisão de coisa comum (nº ...), que decidiu a indivisibilidade do prédio, ao ter transitado em julgado, tornou definitiva entre as partes (os ali réu, aqui autor e ali autora aqui ré), a decisão de mérito proferida quanto à questão da indivisibilidade do imóvel, de forma a não mais poder ser discutida entre as mesmas partes. Com efeito, tal como entendeu na sentença recorrida, relativamente à fase declarativa da ação de divisão de coisa comum, verifica-se uma repetição da causa, sendo as causas idênticas quanto aos sujeitos, sendo estes idênticos sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, do pedido e da causa de pedir, tal como decorre dos artigos 580º e 581 do C.PC. Subscrevemos assim o que ficou a constar da sentença: “ Cumprindo decidir, a exceção do caso julgado constitui uma exceção, dilatória, nos termos do disposto na alínea i) do artigo 577.º do Código de Processo Comum, de conhecimento oficioso (artigo 578.º do Código de Processo Civil) e constitui obstáculo a que o Tribunal conheça do mérito da causa (artigos 278.º n.º 1 alínea e) e 576.º n.º 2 do Código de Processo Civil). Nos termos do artigo 580.º do Código de Processo Civil, a exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, que se verifica depois de, uma “... primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário...”. Por sua vez, segundo o artigo 581.º do mesmo diploma, “repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir” (n.º 1), sendo que “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” (n.º 2), “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeitos jurídico” (n.º 3) e “há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico...” (n.º 4).” Por força do disposto no artigo 576º nº 2 do CPC, por se verificar a exceção dilatória do caso julgado, tal impede o tribunal de conhecer do mérito da causa. Desta forma, relativamente à questão da “(in)divisibilidade do imóvel objeto desta ação, encontra-se o tribunal recorrido impedido de apreciar quaisquer questões relacionadas com o mérito da causa, onde se incluir naturalmente aquela que o apelante pretende ver discutida. E mesmo, considerando-se que o artigo 1412º do C.Civil estabelece um prazo máximo de cinco anos, para a indivisão, ao estabelecer que: 1. Nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa. 2. O prazo fixado para a indivisão da coisa não excederá cinco anos; mas é lícito renovar este prazo, uma ou mais vezes, por nova convenção Pondera-se que tal prazo, que tem subjacente o interesse público na cessação da compropriedade, é apenas aplicável à indivisão convencionada, não á indivisão declarada por sentença judicial. Nos termos do artº 619º, nº 1 do C.P.C. que dispõe que “Transitada em julgado a sentença, ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a matéria de facto controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 480º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º” e nos termos do artº 621º do mesmo diploma que dispõe que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).” a aludida sentença é obrigatória para as partes, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito. Temos assim que, tal como decidido em acórdão desta Relação, de 10/02/2020, proferido no proc. n.º 131/18.0T8VGS-A.P1, in www.dgsi.pt, “a decisão que, culminando a fase declarativa do processo de divisão de coisa comum, se pronuncia sobre a questão da (in)divisibilidade da coisa incide sobre a relação material controvertida e, uma vez transitada, faz caso julgado material sobre essa questão.” De referir que o “acordo negocial” referido pelo apelante, tem data anterior àquele processo, pois conforme documento junto aos autos, o mesmo foi subscrito (unicamente) pela ora apelada com data de 7.3.2017. A entender o ora apelante ter o mesmo relevância, e dele pretender tirar as devidas consequências jurídicas, sujeitando-a prova, deveria ter levado tal questão discussão na anterior ação de divisão de coisa comum que opôs as partes, uma vez que foi ali citado para exercer o contraditório. Se não o fez, sibi imputat… Com efeito, o processo civil não é mais do que um conjunto de regras ordenadoras da forma e dos prazos de arguição em Tribunal das pretensões jurídicas das partes. A obrigação de seguir este "figurino legal" conduz necessariamente à auto-responsabilização dos sujeitos processuais: caso pretendam praticar um qualquer ato processual terão de o fazer pela forma e no prazo previsto na lei, sob pena de preclusão. Refere, a este propósito, José Lebre de Freitas[4]., o seguinte: "Ónus, preclusões e cominações ligam-se entre si ao longo de todo o processo, com referência aos atos que as partes, considerada a tramitação aplicável, nele têm de praticar dentro de prazos perentórios. (...) As partes têm assim o ónus de praticar os atos que devam ter lugar em prazo perentório, sob pena de preclusão e, nos casos indicados na lei, de cominações. A autorresponsabilidade da parte exprime-se na consequência negativa (desvantagem ou perda de vantagem) decorrente da omissão do ato." Resta agora saber agora quais os efeitos do caso julgado, relativamente à sentença proferida no âmbito do anterior processo de divisão de coisa comum que opôs as partes no P nº ..., na fase executiva. Tratou-se duma sentença homologatória da desistência do pedido aí efetuado pela autora, mas onde o tribunal ao homologar o acordo, julgou extinto o direito da autora. Este direito só pode ser o direito de requer a divisão da coisa, na fase executiva, mediante a adjudicação da mesma a qualquer dos consortes ou à sua venda, repartindo-se entre todos o produto da venda. Não colide com a decisão de mérito proferida na fase declarativa que decidiu a indivisibilidade da coisa, na sua substancia. Tal como se apontou na sentença, a consequência desta situação é a que se mostra apreciada no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/04/1996, proc. n.º 0001141, in www.dgsi.pt, nos seguintes termos: “I - Estando em causa direitos disponíveis, nada impede a desistência do pedido, mesmo em acção de divisão de coisa comum. II - A desistência do pedido em acção de divisão de coisa comum, homologada por sentença, não impõe, quer ao desistente, quer aos demais comproprietários, a obrigação de permanecerem na indivisão sem limitação de tempo, pois, além da possibilidade de cessão por um ao outro, ou de venda extrajudicial por ambos a terceiro, pode ser renovado o pedido em nova acção uma vez decorrido o prazo de cinco anos previsto no artigo 1412, n. 2, do Código de Processo Civil.”. De qualquer forma, o facto que o Apelante pretende ver apreciado, mostra-se irrelevante no que respeita a fase executiva do processo de divisão de coisa comum. Resta pois julgar improcedente o presente recurso, por falta de fundamento e confirmar a sentença recorrida.
V - DECISÃO: Pelo exposto e em conclusão acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e em confirmar a sentença recorrida. Custas pelo apelante.
Porto, 10 de julho de 2025. Alexandra Pelayo Maria Eiró Alberto Teixeira ________________________________ |