Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
806/23.2PBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO PARTICULAR
FALTA DO ELEMENTO SUBJETIVO
Nº do Documento: RP20250326806/23.2PBMTS.P1
Data do Acordão: 03/26/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NÃO PROVIDO O RECURSO DO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: A acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, nomeadamente o elemento volitivo, necessário a verificação do crime imputado à arguida, por outro lado, tal elemento em falta não poderá vir a ser aditados em julgamento, pelo que não restava outra solução à Exma. Juiz a quo senão considerá-la como manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, e, como tal, rejeitá-la ao abrigo do disposto nos art.ºs 283.º, n.º 3, al. b), e 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. d).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n º 806/23.2.PBMTS.P1

Relator: Paulo Costa

Adjuntos: Amélia Carolina Teixeira

Pedro Vaz Pato



Acórdão, julgado em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório.

A assistente AA não se conformando com o despacho de rejeição proferido no Tribunal Judicial da Comarca de Porto - Juízo Local Criminal de ..., que nos autos à margem referenciados decidiu rejeitar a acusação particular:

“Na medida em que a citada omissão acarreta a nulidade da acusação, de harmonia com o disposto no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi o artigo 285º nº 3 do mesmo diploma legal, a qual não é susceptível de sanação/correcção à luz do nosso ordenamento jurídico, a consequência a extrair de tal omissão não pode deixar de ser a rejeição da acusação particular, o que se determina, por a mesma ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º nºs 2 al. a) e 3 al. b) do Código de Processo Penal.

Custas a cargo da assistente, cuja taxa de justiça se fixa no mínimo legal (cfr. o artigo 515º nº1 al. f) do Código de Processo Penal).”, veio recorrer nos termos que constam, que ora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte (partes relevantes): (transcrição):

“CONCLUSÕES:

1. Vem o presente recurso interposto do despacho de arquivamento proferido nos presentes autos, datado de 7 de Julho de 2024, no qual o tribunal a quo rejeitou a acusação particular constante de fls …., referindo que: “a mesma está ferida de uma narração factual insuficiente no que se refere ao elemento subjetivo do crime em apreço – a prática do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal. (sublinhado nosso) Por conseguinte, o Indeferimento do Pedido de Indemnização Civil na esteira da rejeição da Acusação Particular, deduzido pela demandante/assistente, por impossibilidade legal”.

2. Mais foi alegado que a referida acusação, “na medida em que a citada omissão acarreta a nulidade da acusação, de harmonia com o disposto no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi o artigo 285º nº 3 do mesmo diploma legal, a qual não é susceptível de sanação/correcção à luz do nosso ordenamento jurídico, a consequência a extrair de tal omissão não pode deixar de ser a rejeição da acusação particular, o que se determina, por a mesma ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º nºs 2 al. a) e 3 al. b) do Código de Processo Penal”.

3. A ora Recorrente não consegue conceber os motivos pelos quais o douto Tribunal a quo afirma que, por um lado se refere que a Arguida não se encontra identificada, já que na acusação particular foi indicado o seu nome completo, sendo que a mesma se encontra devidamente identificada nos autos de processo, os quais contém a morada completa, “Rua ..., ..., ... ...” e NIF “...40”, elementos que a Assistente veio a ter conhecimento posteriormente à dedução de acusação particular.

4. Por outro lado, não pode a Recorrente concordar com o referido no douto despacho de que se recorre que na acusação particular não se encontra preenchida a totalidade dos factos referentes ao elemento subjectivo, quando, na referida acusação, se encontra inequivocamente descrito que seguintes expressões a esta, por diversas vezes: “o que é que tu queres sua puta?” e “és uma filha da puta”, em 12/06/23, pelas 14h30, no pátio da ilha, depois da assistente ter pedido para o filho da arguida parar de chutar a bola a arguida se lhe dirigiu proferindo as seguintes expressões: “tu não mandas nada aqui”…”quem manda aqui sou eu…ó filho continua, esta filha da puta não manda aqui dentro”, e no dia 22/06/2023, pelas 14h0, encontrando-se o filho da arguida a jogar à bola no pátio, e após este ter chutado a bola contra vasos e mesa da assistente, e depois desta ter pedido ao mesmo para parar de jogar à bola naquele local, a arguida voltou a insultar a assistente de “Filha da puta”, ameaçando de que a ia “foder”, referindo novamente “tu não mandas nada aqui, quem manda aqui sou eu”.

5. Fazendo-se ainda constar da aludida peça processual que “com o referido comportamento a arguida ofendeu a assistente dirigindo-lhe palavras que atentam contra a sua honra e consideração, em circunstâncias que não só facilitaram como efetivaram a sua divulgação”.

6. Concluindo nessa peça que “A arguida agiu livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei”.

7. Salvo o devido respeito, encontra-se perfeitamente descrito na acusação que a conduta da ora Arguida se consubstanciou em ofender a assistente dirigindo-lhe palavras que atentam contra a sua honra e consideração, em circunstâncias que não só facilitaram como efetivaram a sua divulgação.

8. Bem como ainda que a mesma foi intencionada, livre e deliberada, com o único propósito de causar danos na assistente.

9. Encontrando-se a conduta que consubstancia o crime de injuria perfeitamente identificada na acusação particular e, por isso, preenchida a totalidade dos pressupostos referentes ao elemento subjectivo do tipo de crime, traduzidos na actuação de forma voluntária e consciente, tendo a arguida querido a realização do facto típico.

10. Por seu turno, no que respeita ao conceito de facto punível, como bem refere o despacho de que ora se recorre, o mesmo decompõe-se nas seguintes categorias tipo de ilícito, tipo de culpa e punibilidade.

11. Assim, no que respeita ao tipo de ilícito, a qualificação da conduta concreta como penalmente ilícita, dever-se-á considerar que a aqui Arguida agiu inequivocamente com dolo e que esse dolo se encontra descrito na douta acusação particular, quando insultou a assistente de “Filha da puta”, ameaçando de que a ia “foder”, referindo novamente “tu não mandas nada aqui, quem manda aqui sou eu”.

12. Diga-se que a aqui Arguida teve como objectivo único de causar prejuízo a terceiro, sendo conhecedora e consciente de que a sua conduta consubstanciava um ilícito penalmente relevante.

13. Veja-se que na acusação é afirmado peremptoriamente que: “a arguida agiu livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

14. Face ao exposto, dever-se-á, em todo o caso, considerar que se encontra presente e perfeitamente identificada a qualificação de uma conduta dolosa, pois prevista e querida pela Arguida, capaz de consubstanciar um ilícito penalmente relevante, preenchendo, nesses termos, a definição de elemento subjectivo do tipo de ilícito.

15. Com relevo nesta matéria o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 2015.01.28, no âmbito do processo n.º 511/13.8TACVL.C1, nos termos do qual se afirma que “o dolo, enquanto facto interno, deduz-se de factos externos, objectivos, revelados pela conduta do agente.”.

16. Continuando a apreciação do despacho que rejeitou a acusação particular, refere-se que “a assistente não descreve factos atinentes ao elemento volitivo do dolo, pois nada refere quanto à vontade da arguida de praticar os factos, não constando da acusação particular qualquer segmento do qual decorra que a arguida quis, através do uso das expressões descritas, ofender a assistente na sua honra e consideração”.

17. Reitere-se que o fim específico da conduta da ora Arguida foi ofender a Assistente na sua honra e consideração

18. Efectivamente, a Arguida tinha perfeito conhecimento de que a acção que estava a levar a cabo não só era socialmente inaceitável, como certamente o terá feito por um sentimento externo, motivado por uma conduta que se desconhece e que só a mesma poderá relevar, mas com a perfeita noção de que, ao agir como agiu, estaria a levar a cabo uma “atitude interna juridicamente desaprovada.

19. Não se concebe e por isso se rejeita a tese que a ora Arguida, ao agir como agiu, não tinha conhecimento de que a sua conduta quis, ofender a assistente na sua honra e consideração seria censurável.

20. Fazendo aqui alusão ao critério do homem médio, certamente que qualquer ser humano, colocado na posição da Arguida, terá a noção que, ao proferir as expressões descritas e assim dirigir a alguém ofensas verbais, consubstancia uma conduta dolosa e penalmente relevante.

21. Note-se também que é o próprio Tribunal a quo a reconhecer a existência de um tipo de crime imputável à Arguida e a identificá-lo, quando afirma que “o ilícito-típico em análise é um crime doloso, traduzindo-se o dolo no conhecimento e na vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.” – pag. 2 do despacho recorrido - e “No tipo de crime em análise, é necessário que resulte da acusação factualidade referente à consciência e vontade de imputar a outra pessoa” – pag. 3 do despacho recorrido.

22. Ora, certamente que tal afirmação terá por detrás um juízo efectuado com base num tipo de crime em concreto, no caso, como bem saberá o douto Tribunal a quo, no crime de injuria.

23. Assim, reportando-nos à alegada insuficiência dos elementos subjectivos do tipo, mormente o dolo, mais uma vez não se pode concordar com o vertido no despacho de rejeição da acusação.

24. Veja-se que segundo o Código Penal, designadamente nos termos do seu artigo 14.º n.º 1, “Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”.

25. Subsumindo o direito ao caso concreto, certamente que a Arguida representou em si mesma que a conduta que iria levar a cabo consubstanciava um tipo de ilícito penalmente relevante, com um resultado desaprovado pela ordem jurídica e, mesmo assim, teve intenção livre, clara e deliberada de a realizar.

26. Ora, com o devido respeito, a ora Recorrente, com a descrição fáctica supra exposta, não consegue descortinar em que parte do despacho de acusação é que existe uma omissão dos factos referentes à totalidade do elemento subjectivo do tipo de crime e que se traduzem na actuação de forma voluntária e consciente, querendo a realização do facto típico.

27. Em todo o caso, quanto à rejeição da acusação, dever-se-á ter em conta o vertido no douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido pela Ilustre Relatora Ana Teixeira e Silva, em 2015.03.23, no âmbito do processo n.º 258/12.2PCBRG.G1, mormente quando nele se afirma que “E, como já se decidiu no acórdão de 30.05.2007, deste Tribunal da Relação, proferido no recurso n.º 9563/2006-3 (in www.dgsi.pt): “Não deverá ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida pelo MP contra a Arguida … ainda que contendo uma enunciação fáctica deficiente, se aquela comporta factos bastantes minimamente susceptíveis de justificarem a aplicação de uma pena.”

28. De referir que no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido pela Ilustre Relatora MARIA DO ROSÁRIO MARTINS, em 19/06/2024, no âmbito do processo 316/23.8T9VNG.P1, (in www.dgsi.pt) “II - A consciência da ilicitude não é elemento constitutivo do tipo legal nos chamados crimes de direito penal clássico. III - Nos crimes de direito penal clássico não se mostra necessário fazer constar da acusação a expressão tabelar “o arguido sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei”.

29. Por último, veja-se ainda que, mesmo que se admita que não se encontra descrita a factualidade que corresponda à totalidade do elemento subjectivo, o que por mera hipótese académica se concebe, atenda-se aqui ao douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido pelo Ilustre Relator Neto de Moura, em 2014.05.07, no âmbito do processo n.º 18/13.3GAAMT.P1, nos termos do qual se afirma que “A rejeição liminar da acusação apenas se justifica se esta for totalmente omissa quanto à descrição dos factos que permitam integrar os elementos típicos (sejam os elementos objectivos, sejam os elementos subjectivos) do(s) ilícito(s) em causa.”.

30. Face a todo o supra exposto, deverá considerar-se que se encontram preenchidos os requisitos constantes do artigo n.º 283.º, n.º 3, alínea a) e b) do Código de Processo Penal, bem como os restantes, devendo, por isso, ser afastada a questão da nulidade da acusação, ainda que a mesma, como supra ficou demonstrado, deva ser considerada como sanável.

31. Pelo exposto, deve ser concedido provimento ao recurso interposto pela Assistente ora Recorrente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e ordenar ao tribunal recorrido que substitua o despacho recorrido por outro que receba a acusação particular.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA E ORDENAR AO TRIBUNAL RECORRIDO QUE SUBSTITUA O DESPACHO RECORRIDO POR OUTRO QUE RECEBA A ACUSAÇÃO PARTICULAR.

FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA.”

O M. P. respondeu concluindo pela improcedência do recurso argumentando nos seguintes termos:

“Conclusões

1.ª - Na Acusação Particular deduzida nada é afirmado relativamente ao elemento volitivo do dolo - a circunstância de a arguida ter vontade de praticar o crime de injúria que lhe é imputado.

2.ª – Para se lograr a condenação da arguida por tal ilícito sempre seria necessário que tal omissão fosse colmatada em fase ulterior dos autos, designadamente em julgamento.

3.ª - O Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 1/2015 expressamente determinou que; “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP”.

4.ª – Não tendo sido descritos na acusação particular factos passíveis de integrar o elemento volitivo do dolo, tal acarreta a rejeição da acusação particular por força do disposto no art. 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do C.P.P., como aconteceu.

Pelo exposto, consideramos que o despacho posto em crise não violou qualquer princípio ou disposição de Direito Penal ou Processual Penal, pelo que deverá negar-se provimento ao recurso ora apresentado, mantendo-se inteiramente aquela decisão do Tribunal a quo, assim se fazendo a habitual,

JUSTIÇA!”

A arguida respondeu concluindo:

CONCLUINDO:

1.A acusação particular formulada pela assistente não contém a descrição dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor.

2. A assistente não descreve factos atinentes ao elemento volitivo do dolo, pois nada refere quanto à vontade da arguida de praticar os factos, não constando da acusação particular qualquer segmento do qual decorra que a arguida quis, através do uso das expressões descritas, ofender a assistente na sua honra e consideração.

3. Ficando-se apenas por considerações vagas e genéricas e nada referindo ou concretizando relativamente ao elemento volitivo e intelectual do dolo da aqui arguida:a vontade de praticar o crime de injuria que a mesma lhe imputa.

4. Dispõe o nº 3, do artigo 285º, do CPP, que à acusação particular se aplica o disposto nos nºs 3, 7 e 8 do artigo 283º, do mesmo Código, pelo que, na acusação particular se tem de fazer “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e bem assim “a indicação das disposições legais aplicáveis.”,contendo assim os factos concretos suscetíveis de integrar todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo (ou tipos) criminal que o assistente considera terem sido preenchidos.

5. Tal omissão acarreta a rejeição da acusação particular, “…o que se determina, por a mesma ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º nºs 2 al. a) e 3 al. b) do Código de Processo Penal.

6. O Ac do STJ nº 1/2015 de 18/01/2018 que em fixação de jurisprudência criminal estatui«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.

7. O despacho em apreço não merece qualquer reparo devendo manter-se nos seus exatos termos.(…)”

Neste tribunal de recurso o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da manutenção da decisão a quo pugnando pela improcedência do recurso.

Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. Objeto do recurso e sua apreciação.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

Presença do elemento volitivo do dolo na acusação particular.

Matéria relevante a considerar.

Do enquadramento dos factos.
1. Decisão de rejeição da acusação particular.

“Compulsados os autos, observa-se que cumpre proceder ao saneamento do processo a que alude o artigo 311º do Código de Processo Penal.

Este artigo estabelece o seguinte:

1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.

3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

d) Se os factos não constituírem crime”.

Por seu turno, o artigo 283º nº 3 do Código de Processo Penal preceitua que “A acusação contém, sob pena de nulidade:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;

d) A indicação das disposições legais aplicáveis;

(…)”.

Note-se que, no artigo 285º nº 3 do Código de Processo Penal, o legislador foi claro ao prever que “é correspondentemente aplicável à acusação particular o disposto nos nºs 3, 7 e 8 do artigo 283.º”.

In casu, verifica-se que da acusação particular formulada pela assistente AA – em que é imputada à arguida BB a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal – consta uma narração factual insuficiente no que se refere ao elemento subjectivo do crime em apreço.

O ilícito-típico em análise é um crime doloso, traduzindo-se o dolo no conhecimento e na vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.

O dolo desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo ou emocional, sendo que o primeiro implica “o conhecimento (previsão ou representação), por parte do agente, das circunstâncias do facto, ou, por outras palavras, o conhecimento dos elementos materiais constitutivos do tipo objectivo do ilícito, incluindo as circunstâncias modificativas agravantes nos tipos qualificados ou agravados” e que o segundo consiste “na vontade, por parte do agente, de realizar o facto típico, depois de ter representado (ou previsto) as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito” – cfr. o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2015, do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 20 de Novembro de 2014 (acessível em www.dgsi.pt).

Neste mesmo aresto se sublinhou que “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).

A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina de FIGUEIREDO DIAS”.

No tipo de crime em análise, é necessário que resulte da acusação factualidade referente à consciência e vontade de imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, e ao conhecimento de que tais factos imputados ou juízos formulados são ofensivos da honra ou consideração dessa pessoa, além da consciência da ilicitude, que também deve resultar do libelo acusatório.

Ora, no que tange ao elemento subjectivo do ilícito, apenas é dito na acusação deduzida pela assistente que “A arguida agiu livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei”.

A assistente também invoca, mais acima na peça processual em apreço, que “Com o referido comportamento a arguida ofendeu a assistente dirigindo-lhe palavras que atentam contra a sua honra e consideração, em circunstâncias que não só facilitaram como efetivaram a sua divulgação”. Todavia, estão aqui em causa considerações tecidas pela própria assistente, ao qualificar a actuação da arguida.

Assim, a assistente não descreve factos atinentes ao elemento volitivo do dolo, pois nada refere quanto à vontade da arguida de praticar os factos, não constando da acusação particular qualquer segmento do qual decorra que a arguida quis, através do uso das expressões descritas, ofender a assistente na sua honra e consideração.

Com particular pertinência para o caso em análise, salienta-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de Novembro de 2018, no processo nº 132/17.6GAPNL.C1 (acessível em www.dgsi.pt), que a acusação particular do assistente, contendo apenas, por reporte ao tipo subjectivo do crime de injúria, o seguinte semento textual ‘o arguido actuou livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei’, omitiu o elemento volitivo ou emocional do dolo, traduzido na vontade do agente de, não obstante o conhecimento material dos elementos do tipo e bem assim da antijuridicidade (consciência da ilicitude) do comportamento descrito, produzir o facto típico criminal. (…) Ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.ºs 2, al. a), e n.º 3, al. d), tal omissão conduz à rejeição, porque manifestamente infundada, da dita peça processual” (sombreado nosso).

Também no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Fevereiro de 2022, no processo nº 148/19.8GDLRS.L1-9 (igualmente disponível em www.dgsi.pt) se deixa claro que “Relativamente aos elementos subjectivos do crime, terá de ser expresso na acusação, uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude)”.

Com efeito, a acusação tem que conter a descrição de todos os elementos objectivos e subjectivos do crime imputado ao arguido. Só dessa forma poderá vir a ser aplicada a este, por força da factualidade nela descrita, uma pena ou uma medida de segurança – cfr. os artigos 1º al. a) e 283º nº 3 al. b) do Código de Processo Penal.

Nestes termos, in casu, uma eventual sentença condenatória teria sempre de ir além do texto da acusação, dando um salto interpretativo e de integração que, salvo o devido respeito, o nosso direito processual penal não consente (ou seja, teria de se fazer constar expressamente da factualidade provada da sentença factos essenciais que não constam da acusação).

Com efeito, há que chamar novamente à colação o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2015, que fixou a seguinte jurisprudência: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal”.

Deixou-se igualmente claro neste Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que “se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais”.

Frise-se que a vinculação temática do Tribunal aos factos constantes da acusação e do requerimento de abertura de instrução apresenta-se como uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constitui uma garantia de defesa consagrada na lei fundamental (cfr. o artigo 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa).

Importa ainda explicitar que, tal como já foi reiteradamente afirmado na jurisprudência, a acusação particular não é susceptível de ser aperfeiçoada na sequência de convite para o efeito (veja-se a este propósito, entre muitos outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Dezembro de 2008, processo nº 10476/2008-9, disponível em www.dgsi.pt, em que se referiu que “não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correcção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente”).

Na medida em que a citada omissão acarreta a nulidade da acusação, de harmonia com o disposto no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi o artigo 285º nº 3 do mesmo diploma legal, a qual não é susceptível de sanação/correcção à luz do nosso ordenamento jurídico, a consequência a extrair de tal omissão não pode deixar de ser a rejeição da acusação particular, o que se determina, por a mesma ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º nºs 2 al. a) e 3 al. b) do Código de Processo Penal.

Custas a cargo da assistente, cuja taxa de justiça se fixa no mínimo legal (cfr. o artigo 515º nº1 al. f) do Código de Processo Penal).

Notifique.”


2. Teor da acusação particular.

Processo. n.º 806/23.2PBMTS

AA, Assistente nos autos à margem referenciados, vem nos termos de disposto no art. 285 n.º 1 e 77.9 ambos do C.P.P. deduzir

ACUSAÇÃO PARTTICULAR COM PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL

Contra:

BB, Arguida nos presentes autos,

Nos termos e com os seguintes fundamentos:

1- Da Acusação Particular

1.
A assistente e arguida têm as suas habitações num espaço usualmente designado por ilha, no qual se encontra uma zona comum composta por um pátio e casa de banho exterior.

2.
Sucede que, entre 12/06/2023 e 22/06/2023, junto à casa da Assistente, agressivamente, proferiu as seguintes expressões a esta, por diversas vezes: "o que é que tu queres sua puta?" e "és uma filha da puta”.

3.
Assim, em 12/06/23, pelas 14h30, no pátio da ilha, depois da assistente ter pedido para o filho da arguida parar de chutar a bola a arguida se lhe dirigiu proferindo as seguintes expressões: "tu não mandas nada aqui"..."quem manda aqui sou eu...ó filho continua, esta filha da puta não manda aqui dentro".


4.
No dia 22/06/2023, pelas 14h0, encontrando-se o filho da arguida a jogar à bola no pátio, e após este ter chutado a bola contra vasos e mesa da assistente, e depois desta ter pedido ao mesmo para parar de jogar à bola naquele local, a arguida voltou a insultar a assistente de "Filha da puta", ameaçando de que a ia "foder", referindo novamente "tu não mandas nada aqui, quem manda aqui sou eu".

5
Esta situação foi presenciada pelo companheiro da Assistente CC.

6.
Com o referido comportamento a arguida ofendeu a assistente dirigindo-lhe palavras que atentam contra a sua honra e consideração, em circunstâncias que não só facilitaram como efetivaram a sua divulgação.

7.
A arguida agiu livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei,

8
Pelo exposto, cometeu, em autoria material e na forma consumada, um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181. do CPP.

II- Do pedido de Indemnização Civil
(…)

3. Acompanhamento da acusação do M.P. a quo.

(…)

“Nos termos e para os efeitos do art. 285º nºs 3 e 4 do C.P.P., o magistrado do Ministério Público declara que acompanha a acusação particular de fls. 80-81 formulada pela assistente AA e requer, para o efeito o julgamento em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular de:

BB, filha de DD e de EE, natural da freguesia ..., concelho ..., nascida em ../../1959, divorciada, residente na Rua ..., ..., ... (TIR fls. 68),

pelos factos constantes da acusação particular,

Os quais consubstanciam a prática, em autoria material e em concurso efetivo de dois crimes de injúria, previsto e punível pelo artigos 181.°, n.º 1, do Código Penal.
(…)

Conhecendo.


Vendo-se a acusação particular constata-se que, em termos de descrição de factos, dela consta que, nas circunstâncias de tempo e lugar mais aí descritas, a arguida dirigindo-se à Assistente entre 12/06/2023 e 22/06/2023, junto à casa da mesma, agressivamente, proferiu as seguintes expressões a esta, por diversas vezes: "o que é que tu queres sua puta?" e "és uma filha da puta”. Em 12/06/23, pelas 14h30, no pátio da ilha, depois da assistente ter pedido para o filho da arguida parar de chutar a bola a arguida se lhe dirigiu proferindo as seguintes expressões: "tu não mandas nada aqui"..."quem manda aqui sou eu...ó filho continua, esta filha da puta não manda aqui dentro".

No dia 22/06/2023, pelas 14h0, encontrando-se o filho da arguida a jogar à bola no pátio, e após este ter chutado a bola contra vasos e mesa da assistente, e depois desta ter pedido ao mesmo para parar de jogar à bola naquele local, a arguida voltou a insultar a assistente de "Filha da puta", ameaçando de que a ia "foder", referindo novamente "tu não mandas nada aqui, quem manda aqui sou eu".

Com o referido comportamento a arguida ofendeu a assistente dirigindo-lhe palavras que atentam contra a sua honra e consideração, em circunstâncias que não só facilitaram como efetivaram a sua divulgação sendo que a arguida agiu livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

Ora, é sabido que nos elementos do tipo subjetivo de ilícito incluem-se os que se prendem com o dolo ou a negligência, dispondo o art.º 13.º do Código Penal que “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.

O dolo, única modalidade de culpa de que pode revestir o crime em questão, é composto por vários elementos, habitualmente designados de forma sintética como “o conhecimento e a vontade de realização do tipo objectivo de ilícito” (cfr. art.º 14.º do Código Penal).

Segundo a doutrina tradicional do crime, por Eduardo Correia, o dolo desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo ou emocional, ao passo que para uma nova corrente, defendida por outro distinto Mestre Figueiredo Dias, este elemento emocional constitui um terceiro e autónomo elemento.

O elemento intelectual traduz-se no conhecimento (enquanto previsão ou representação), pelo agente, das circunstâncias do facto, ou seja, dos elementos materiais constitutivos do tipo objetivo do ilícito, incluindo eventuais circunstâncias modificativas agravantes.

Relativamente a elementos normativos do tipo [caso, nomeadamente, do carácter “alheio” da coisa nos crimes contra o património; a qualidade de “funcionário” nos crimes cometidos no exercício de funções públicas e, das noções de “documento”, “documento autêntico” e “vale do correio”, “letra de câmbio” e “cheque” nos crimes de falsificação], o conhecimento que se exige é apenas que a representação do agente, ao nível próprio das suas representações, corresponda, no essencial, ao conteúdo da valoração jurídica, cumprindo assim a função de orientar o agente para a ilicitude do facto [apud Figueiredo Dias, in Direito Penal - Parte Geral, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Tomo 1.º, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2007, págs. 352/3].

Há, no entanto, casos em que o uso de expressões jurídicas mais elaboradas impõe uma maior exigência de conhecimento, como sucede por exemplo no direito penal secundário, e outros em que, ao contrário, apenas se exige ao agente um conhecimento dos pressupostos materiais da valoração, como sucede em relação a noções como “ascendente”, “descendente”, “bons costumes”, “ilegitimidade”, “dever de garante”, etc. [Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 354].

Ou seja, o que o elemento intelectual exige é o conhecimento do sentido ou significado correspondente ao tipo de ilícito dos diversos elementos materiais e normativos que o compõem.

Por seu lado, o elemento volitivo do dolo consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto típico, depois de ter representado (ou previsto) as circunstâncias ou elementos do tipo objetivo do ilícito. Em função da diversidade dessa atitude, são diversas as espécies de dolo previstas nos vários números do art.º 13.º do Código Penal: dolo direto (em que o agente tem a intenção de realizar o facto criminoso), o dolo necessário (quando o agente não quer o facto, mas prevê-o como consequência necessária da sua conduta) e o dolo eventual (quando o agente prevê o facto como consequência possível, conformando-se com o resultado).

Para a posição tradicional defendida por Eduardo Correia, o elemento volitivo não se confunde com o aspeto psicológico, traduzido num simples ato de volição, em que o agente quer praticar o facto (naturalístico), tendo representado todos os seus elementos. O que caracteriza o dolo é a vontade do agente revelar a sua personalidade contrária ao direito, ou seja, a sua determinação em sobrepor os seus próprios sentimentos e interesses aos valores tutelados pelo direito criminal. Daí que, para esta posição, o dolo do tipo legal de crime contivesse já o chamado elemento emocional, traduzido na consciência, por parte do agente, de que realizava um tipo objetivo de ilícito e que tal supunha a sobreposição dos seus interesses egoístas aos valores tutelados pela lei.

Já a posição defendida por Figueiredo Dias distingue entre dolo do tipo (de ilícito) e o dolo enquanto pertencente ao tipo de culpa. Segundo esta conceção, «o dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito (por consequência, não é igual ao dolo do tipo), mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona ao elemento intelectual e volitivo contidos no “conhecimento e vontade de realização”. (…); antes se torna indispensável um elemento que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa. Com esse elemento se depara quando se atente em que a punição por facto doloso só se justifica quando o agente revele no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal» [ob. cit., pág. 350], ou seja, uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas, revelada pelo agente no facto e que justifica a punição a título de dolo.

Assim, em resumo, de acordo com os ensinamentos de Figueiredo Dias [ob. cit., pág. 529 e ss.], a culpa jurídico-penal revela-se através do tipo de culpa doloso e do tipo de culpa negligente, verificando-se o primeiro quando, perante um ilícito típico doloso, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas.

Esta atitude íntima, de sobreposição dos interesses do agente do facto ao desvalor do ilícito pressupõe que este, para além de representar e querer a realização do tipo objetivo (dolo do tipo), atue também com consciência do ilícito isto é, representando que o facto era proibido pelo Direito.

A consciência da ilicitude é também momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), acrescendo, como seu momento emocional, ao conhecimento de todas as circunstâncias do facto (elemento intelectual) e à vontade de realizar o facto típico (elemento volitivo), que são elementos do dolo do tipo, traduzindo-se na indiferença ou oposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma (tipo de culpa doloso).

O que está em causa nestes autos é a eventual falta do elemento volitivo, ou seja a vontade de realizar o facto típico, que faz parte do dolo na vertente tipo de ilícito.

A acusação particular faz expressa menção “Com o referido comportamento a arguida ofendeu a assistente dirigindo-lhe palavras que atentam contra a sua honra e consideração, em circunstâncias que não só facilitaram como efetivaram a sua divulgação sendo que a arguida agiu livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

Omitiu a expressão voluntária ou qualquer outra que a pudesse substituir como v.g quis, pretendeu, deliberou, intencionalmente, propositadamente, uma vez que são sinónimos, ou outra similar, ou seja, que quis agir da forma como foi descrita na acusação, o que traduz o termo voluntário e consequentemente a presença do elemento volitivo.

Ora, a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objetivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo direto, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).

A esses elementos acresce o referido elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso.

Este elemento emocional é dado através da consciência da ilicitude e integra a forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso. Daí que só possa afirmar-se que o agente atuou dolosamente quando, nomeadamente, esteja assente que o mesmo atuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta e quis tal conduta.

Todos esses elementos, que constituem os elementos subjetivos do crime, são habitualmente expressos na acusação através da utilização de uma fórmula pela qual se imputa ao agente ter agido de forma livre (isto é, podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).

Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido referido, englobando a consciência ética ou a consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito.

Pergunta-se, perante a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito, nomeadamente do dolo, o tribunal do julgamento pode, por recurso ao art.º 358.º do Código de Processo Penal, integrar os elementos em falta?

A jurisprudência no passado dividiu-se, tendo o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão n.º 1/2015 [in Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015], acabado por fixar a seguinte jurisprudência uniformizadora: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.”

A oposição de julgados verificou-se entre dois acórdãos que versaram precisamente sobre a falta de descrição na acusação particular dos elementos subjetivos do crime de injúria, incluindo a consciência da ilicitude.

A acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido referido, englobando a consciência ética ou a consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito.

Também no ponto 11 da fundamentação do acórdão se fez constar o seguinte, sendo igualmente nossos os sublinhados:

«Conexionado com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou de alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjetivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrado no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.

Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.

11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP).

Por conseguinte, tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respetivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos.

Claro que uma tal visão implica que os factos em falta na descrição constante da acusação (pressuposto que ela contém uma descrição relativa a outros factos) são essenciais, imprescindíveis, e o que falta corresponde à falta de narração a que se refere o normativo referido. Ou seja: a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos, a propósito, nomeadamente, das teorias do objeto do processo, e a valoração especifica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.»

Da leitura dos transcritos segmentos da fundamentação do acórdão uniformizador, mormente daqueles que foram sublinhados, parece claro que, contrariamente ao defendido pela recorrente, os factos integrantes da vontade de realizar o tipo legal de crime, enquanto dolo do tipo, têm necessariamente de ser alegados na acusação.

Neste sentido se pronunciaram, nomeadamente, os acórdãos desta Relação de Coimbra de 02-03-2016 [proferido no processo n.º 2572/10.2TALRA-C2, disponível em http://www.dgsi.pt.] e da Relação de Guimarães de 21-11-2016 [proferido no processo n.º 2644/09.6TABRG-G1], que vale também para o elemento volitivo.

Assim, diferentemente do sustentado pela recorrente, a alegação de que a arguida quis praticar o facto não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Contrariamente, a alegação da vontade de praticar o ato, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo do tipo.

Na acusação particular deduzida nos autos, a assistente omitiu o agir voluntariamente.

Tal articulação apenas contém factos que integram o elemento intelectual e elemento consciência da ilicitude faltando o elemento volitivo do dolo (direto) de injúria, traduzido na vontade do agente de praticar o facto.

Em relação ao elemento intelectual do dolo, sobressai o mesmo da alegação segundo a qual o arguido agiu de forma livre e consciente, ou seja, sabendo o que estava a fazer, com conhecimento das circunstâncias da factualidade típica (elementos integrantes do tipo).

Em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), enquanto tipo de culpa que supra ficou caracterizado, habitualmente traduzida pela expressão de que “o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal”, ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação cumpre alegando tal.

Quanto ao elemento volitivo contido na alegação de que pretendeu atingir a Assistente na sua honra e consideração, isto é, no pressuposto lógico e necessário de que tinha conhecimento do potencial ofensivo das palavras que proferiu, pois quem pretende deliberadamente ofender outrem na sua honra com determinadas palavras, conhece e pressupõe necessariamente o potencial ofensivo das mesmas já não cumpre, o que não pode suceder.

Como é sabido, o dolo é um conceito jurídico que tem de ser preenchido por factos.

Embora, a nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, se possa deduzir dos factos externos, objetivos, tal não dispensa que tenha de constar da acusação, sob pena de nunca estar preenchido o tipo de crime pelo qual se pretende levar o arguido a julgamento.

Com efeito, há que destrinçar entre a alegação de factos pertinentes (neste caso relativos ao elemento subjetivo) e a respetiva prova, ou seja, distinguir, por um lado, o que é facto concreto a provar (sendo imprescindível a sua alegação) e, por outro, quais são as provas desse facto concreto (o que interessa para a fundamentação da decisão da matéria de facto).

O facto de o dolo poder ser provado (e, portanto, inferir-se) com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da vida não significa que fica prescindida a alegação dos factos respetivos. Uma coisa é a presunção do dolo, absolutamente inadmissível, e outra coisa completamente diferente e aceitável, é a necessidade de o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência.

A este propósito, consta também da fundamentação do referido acórdão uniformizador n.º 1/2015 que «De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com «recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» (Acórdão recorrido).

Tal equivaleria a conceptualizar o dolo como emanação da própria factualidade objetiva, ou como inerente a essa factualidade, um dolus in re ipsa, que o mesmo Autor que se vem citando repudia vivamente como ultrapassado, nos moldes das antigas “presunções do dolo”. Isto, porém, não é impeditivo de «o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência» (FIGUEIREDO DIAS, «Ónus de Alegar e de Provar em Processo Penal?», Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3474. P. 142).»

De acordo a mencionada jurisprudência fixada por esse aresto, a omissão na acusação da descrição de algum elemento do tipo subjetivo de ilícito, onde se inclui o elemento volitivo, com a consequente absolvição, não pode ser integrada em julgamento com recurso ao mecanismo do art.º 358.º, n.º 1.

Refira-se que essa jurisprudência não tem exclusivamente por objeto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjetivo do crime imputado, abrangendo a omissão de qualquer elemento dele constitutivo, conclusão que resulta da leitura dos segmentos da fundamentação supra transcritos, bem como da utilização, no texto da jurisprudência fixada, da expressão “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem (…)”.

Como mais ainda se exarou no Acórdão que vimos citando, «Embora a solução assim encontrada seja radical e de consequências relevantes em termos de prevenção geral e especial, conforme refere o voto de vencido lavrado nesse aresto, que defende a aplicação do art.º 358.º nos casos em que há uma mera deficiência (e já não uma absoluta omissão) na alegação dos elementos subjetivos, o certo é que os argumentos relativos a esse alargamento da impunidade e à manifesta desproporção entre o vício detetado e a sua consequência não são novos em relação à ponderação então feita, não existindo razões nos levem a divergir dela nos termos do art.º 445.º, n.º 3.»

Concluindo-se, assim, que a acusação particular deduzida nos autos não contém a descrição dos factos integrantes da totalidade dos elementos subjetivos do tipo, necessária a verificação do crime imputado à arguida, e que, por outro lado, tais elementos em falta não poderão vir a ser aditados em julgamento, não restava outra solução à Exma. Juiz a quo senão considerá-la como manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, e, como tal, rejeitá-la ao abrigo do disposto nos art.ºs 283.º, n.º 3, al. b), e 311º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. d).

Em conclusão, nenhuma censura merece o despacho recorrido, devendo ser confirmado, por não ter violado qualquer dos preceitos legais invocados pela recorrente.

III – Dispositivo.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Porto em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente AA, confirmando o despacho recorrido.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a três unidades de conta (art.ºs 515.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).


Notifique.




Sumário:
(Da exclusiva responsabilidade do relator)
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Porto, 26 de março de 2025.

(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)

Paulo Costa

Amélia Carolina Teixeira

Pedro Vaz Pato