Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6528/23.7T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: ARRENDAMENTO COMERCIAL
COMUNICABILIDADE AO CÔNJUGE DO ARRENDATÁRIO
ENCERRAMENTO POR MAIS DE UM ANO
CASO DE FORÇA MAIOR
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RP202507106528/23.7T8VNG.P1
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No domínio da legislação imediatamente anterior ao RAU e mesmo do RAU, entendia-se que, ao contrário do arrendamento para habitação, o arrendamento comercial comunicava-se ao cônjuge do arrendatário se tal resultasse do regime de bens do casamento.
II - Tendo o direito ao arrendamento sido adquirido, nessa altura, por sucessão hereditária, por cônjuge adquirente casado no regime de bens da comunhão de adquiridos, tal direito é um bem próprio do adquirente e não se comunicou à mulher.
III - O não uso do arrendado por mais de um ano é lícito por caso de força maior se for devido a um evento exterior ao arrendatário, imprevisível ou insusceptível de ser evitado ou de lhe resistir, cujos efeitos superam a vontade do arrendatário, tornando objectivamente impossível que ele se mantenha, provisoriamente, no uso do arrendado.
IV - Não há abuso de direito no pedido de resolução do arrendamento comercial por encerramento superior a um ano, quando, não obstante o senhorio não ter realizado todas as obras que lhe foram determinadas pela Câmara Municipal, pela sua vetustez e pelos materiais de que é feito o imóvel arrendado há quase 75 anos se encontra em estado de grande degradação e o inquilino decidiu passar a usá-lo como complemento da sua habitação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2025:6528.23.7T8VNG.P1
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SUMÁRIO:


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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:





I. Relatório:


AA, contribuinte nº ...10, residente ..., ..., instaurou contra BB, contribuinte fiscal nº ...81, residente em ..., ..., acção declarativa com processo comum pedindo o decretamento da resolução do contrato de arrendamento identificado nos autos e a condenação do réu a despejar o arrendado, entregando-o devoluto.


Para o efeito alegou que é senhoria do réu num contrato de arrendamento para o exercício do comércio e que o estabelecimento comercial aberto no arrendado foi encerrado definitivamente, estando assim há mais de um ano.


O réu foi citado e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção.


Para tanto excepcionou a ilegitimidade activa e passiva, por não estarem ao lado da autora e do réu outras pessoas, no caso do réu a respectiva mulher, e excepcionou o abuso do direito, sustentando que a pretensão da autora é abusiva porque no decorrer do contrato o senhorio não fez as obras no locado que lhe foram sendo reclamadas. Mais impugnou parte dos factos alegados, sustentando que continua a usar o locado, ainda que para um fim diferente, por causa única e exclusivamente imputável ao senhorio constituindo um caso de força maior.


No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade, activa e passiva


Realizado julgamento, foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada procedente e, em consequência, declarado resolvido o contrato de arrendamento e decretado o despejo do locado.


Do assim decidido, o réu interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:


I. O presente recurso incide sobre a matéria de facto, na medida em que se requererá, no mesmo, a reapreciação da prova gravada, e, bem assim, sobre a matéria de direito da Sentença proferida pelo Tribunal a quo.


II. O Recorrente não se pode conformar com a Sentença recorrida, por entender que a mesma contém matéria de facto incorrectamente julgada e incorreu numa incorrecta aplicação e interpretação do direito aplicável ao caso sub judice, devendo ter sido outra a decisão proferida.


III. No caso concreto, não só a prova gravada foi, salvo o devido respeito, incorrectamente apreciada e valorada, impondo-se a sua reapreciação, como se revela incorrecta a aplicação do Direito ao caso vertente.


IV. Por estar em tempo, o recurso ora interposto pelo réu visa, também, a impugnação do despacho do Tribunal a quo, de 29.03.2024, que julgou improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual (ref.ª CITIUS n.º 457566190), posto que tal impugnação ficou relegada para momento ulterior, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 644.º, n.º 3, do CPC.


V. Entendeu o Tribunal a quo que o réu é parte legítima na presente acção, pois foi a quem foi transmitido o direito ao arrendamento para comércio, não havendo a necessidade de a acção ser interposta também contra a sua mulher, pois estando o réu casado sob o regime de comunhão de adquiridos, não há comunicabilidade do direito ao arrendamento para comércio ao seu cônjuge.


VI. Lida e relida a fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28.10.2008, proferido no âmbito do processo n.º 4926/2008-7, disponível em www.dgsi.pt, torna-se forçoso concluir que a circunstância de estarem casados no regime de comunhão geral de bens ou no regime de comunhão de adquiridos (como é, nesta última situação, o caso do Recorrente) faz com que o arrendamento seja transmitido aos respectivos cônjuges.


VII. O Tribunal a quo olvidou os argumentos que foram apresentados pelo Recorrente no requerimento, de 15.01.2024 (ref.ª CITIUS n.º 47662259), porquanto não considerou a fundamentação do Acórdão acima referido segundo o qual há comunicabilidade do direito ao arrendamento para comércio ao cônjuge do arrendatário, desde que entre o casal vigore o regime da comunhão, geral ou de adquiridos.


VIII. Quanto ao recurso do despacho do Tribunal a quo, de 29.03.2024, o assunto nuclear a apreciar e a decidir por V. Exas. será o de saber se: há ou não comunicabilidade do direito ao arrendamento para comércio ao cônjuge do arrendatário, quando vigore entre eles o regime da comunhão de adquiridos; e se havendo, a acção de despejo em apreço em que se pede a resolução do arrendamento constitui um caso de litisconsórcio necessário, devendo a acção ser proposta contra ambos os cônjuges.


IX. O Tribunal a quo julgou improcedente a excepção invocada, olvidando, todavia, o facto de haver comunicabilidade do direito ao arrendamento para comércio ao cônjuge do arrendatário, aqui Recorrente, por vigorar entre eles o regime da comunhão de adquiridos; E, pelo facto de haver comunicabilidade do direito arrendamento para comércio, a acção de despejo em apreço, que foi intentada apenas contra o réu, aqui Recorrente, e em que se pede a resolução do arrendamento para comércio constitui um caso de litisconsórcio necessário, pelo que devia a acção ter sido proposta contra ambos os cônjuges.


X. Embora o Tribunal a quo aceite e esteja assente no despacho Saneador que 1) está em causa neste processo o arrendamento para fins não habitacionais (“…não está em causa a resolução contratual daquele arrendamento, mas o arrendamento para fins não habitacionais…”) e que 2) o réu está casado no regime de adquiridos (“…o casou está casado no regime de comunhão de adquiridos, regime supletivo – artigo 1717.º do C.C…”), acontece que o Tribunal a quo não procedeu a uma correcta aplicação do direito ao concluir, como concluiu, que o réu é parte processualmente legítima nesta acção.


XI. Pois, se – atendendo à relação material controvertida tal como definida pela Autora na petição inicial – está em causa nos presentes autos a resolução de um contrato de arrendamento para fins não habitacionais e o réu a quem foi transmitida a posição de arrendatário daquele contrato está casado no regime de adquiridos, então a acção de despejo não deveria tido proposta apenas contra o réu, como foi, mas também contra a sua mulher.


XII. Sendo o réu casado em regime de comunhão de adquiridos, em face do que dispõe o artigo 1724.º, b) do Código Civil, tem de concluir-se que o direito pessoal de gozo sobre o locado, adquirido pelo réu, comunicou-se à sua mulher.


XIII. Assim, relativamente a todos os arrendamentos que não se destinem à habitação, a solução é o da comunicabilidade da posição do locatário (artigo 83.º do RAU a contrario sensu e artigo 1724.º, b) do Código Civil, no caso da comunhão de adquiridos).


XIV. Assim sendo, por efeito da comunicabilidade, a mulher do arrendatário passa também a ser titular do arrendamento que integra o património comum do casal, estando-se perante um único direito com dois titulares.


XV. Caso se entenda que o contrato de arredamento nos presentes autos deve reger-se pelo NRAU, com as necessárias adaptações e com as especificidades daqueles artigos, a verdade é que, com a publicação da Lei n.º 6/2006, o actual artigo 1068.º do CC, instituiu a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos de prédios urbanos para fins habitacionais ou não habitacionais, mais concretamente: “O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente.”


XVI. Uma vez que o direito ao arrendamento em causa não se inclui na previsão de nenhuma das alíneas do n.º 2 do artigo 1678.º do CC – que atribui a administração exclusiva a cada um dos cônjuges de determinados bens comuns ou próprios do outro cônjuge –, é-lhe aplicável a referida regra geral da administração conjunta (2.ª parte do nº 3 do artigo 1678.º), visto não estar em causa, quanto a ele, qualquer acto de administração ordinária que, ao abrigo da regra excepcional da primeira parte do mesmo preceito, pudesse ser praticado por qualquer um dos cônjuges.


XVII. Assim sendo, torna-se assim forçoso concluir que o acto de alienação do direito ao arrendamento para comércio em causa carecia do consentimento de ambos os cônjuges, visto ser um bem (móvel) comum do casal, cuja administração cabia aos dois cônjuges, e não se tratar de acto de administração ordinária – cf. artigo 1682.º, n.º 1 do CC.


XVIII. O n.º 1 do artigo 33.º do CPC, sob a epígrafe “litisconsórcio necessário” dispõe que: «1 - Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.»


XIX. O artigo 34.º, n.º 2, do CPC impõe que sejam propostas contra marido e mulher as acções compreendidas no n.º 1 da mesma disposição legal, ou seja, entre outras, aquelas de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, entre os quais se inclui, nos termos vindos de referir, o direito pessoal de gozo dos cônjuges sobre o imóvel arrendado destinado ao comércio, por o contrato de arrendamento só poder ser resolvido, como acima se disse, com o consentimento de ambos os cônjuges.


XX. Assim, na senda da esmagadora maioria da jurisprudência, a acção em causa nos presentes autos de resolução do contrato de arrendamento devia ter sido proposta contra ambos os cônjuges, e não apenas contra o arrendatário comercial, como foi.


XXI. A ausência na acção da mulher do arrendatário comercial como Ré é, pois, um caso de litisconsórcio necessário passivo (cf. artigo 33.º, n.º 1 e 34.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), cuja preterição é geradora de uma excepção dilatória da ilegitimidade (cf. 577.º, alínea e) CPC), de conhecimento oficioso (cf. artigo 578.º CPC) que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição do réu da instância (cf. artigo 576.º, n.º 2. CPC)


XXII. O que conduzirá inevitavelmente à anulação do despacho do Tribunal a quo, de 29.03.2024, bem como de todo o processado subsequente à dedução dos articulados, nele se incluindo a audiência de julgamento, bem como a Sentença recorrida, devendo o processo regressar à fase dos articulados na primeira instância para o Tribunal a quo proferir despacho a convidar a Autora a sanar a preterição do litisconsórcio necessário passivo, prosseguindo o processo os seus ulteriores termos.


XXIII. Sendo que, a intervenção do cônjuge do arrendatário comercial é ainda imposta pelos n.ºs 2 e 3 do referido artigo 33.º do CPC já que, sem a sua presença, a decisão que foi proferida na presente acção jamais produzirá o seu efeito normal, por inexequível, por não regular definitivamente a relação jurídica controvertida, já que aquela se pode opor sempre à execução da sentença através de embargos de terceiro (cf. artigo 342.º, n.º 1 do CPC).


XXIV. Um revisitar atento e crítico da prova documental carreada para os presentes autos, bem como dos depoimentos que o Tribunal a quo invoca, em sede de motivação, como tendo servido de suporte para que se tenham dado como provados os factos sob os n.ºs 5 e 6, demonstram também, inequivocamente, que nunca poderiam os mesmos ter sido dados como provados, e muito menos com esta amplitude.


XXV. O Tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria de facto, ao considerar como provados os concretos pontos de facto que, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPP, se passam a concretizar infra: c) Facto dado como provado no ponto “5” da “fundamentação de facto”, a saber: «o réu manteve a actividade comercial no locado exercendo a venda de artigos de mercearia, sendo que nos últimos anos a actividade comercial consistia na venda de cada vez menos produtos;» d) facto dado como provado no ponto “6” da “fundamentação de facto”, a saber: «desde o mês de Março de 2022, que o réu deixou, em definitivo, de exercer qualquer actividade comercial no locado, colocando um dístico na porta do estabelecimento comercial, com as menções “este estabelecimento encontra-se encerrado definitivamente” .


XXVI. Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 e, bem assim, da alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPP, o Recorrente passa a designar as concretas provas que impõem a prolação de uma decisão diversa da recorrida:


(ii) Fotografia do dístico, na porta do estabelecimento, com as menções “este estabelecimento encontra-se encerrado definitivamente” (doc. 7 da p.i);


(iii) Prova testemunhal produzida pela testemunha CC, cujas declarações são mencionadas na Acta de audiência de discussão e julgamento, de 17.10.2024, e se encontram devidamente gravadas em suporte digital, com a duração de 00:09:46, com início às 14:54 e fim às 15:04


(iv) Prova testemunhal produzida pela testemunha DD, cujas declarações são mencionadas na Acta de audiência de discussão e julgamento, de 17.10.2024, e se encontram devidamente gravadas em suporte digital, com a duração de 00:11:28, com início às 15:05 e fim às 15:17.


(v) Prova testemunhal produzida pela testemunha EE cujas declarações são mencionadas na Acta de audiência de discussão e julgamento, de 17.10.2024, e se encontram devidamente gravadas em suporte digital, com a duração de 00:27:56, com início às 15:17 e fim às 15:45.


(vi) Prova testemunhal produzida pela testemunha FF cujas declarações são mencionadas na Acta de audiência de discussão e julgamento, de 17.10.2024, e se encontram devidamente gravadas em suporte digital, com a duração de 00:24:34, com início às 15:46 e fim às 16:11.


XXVII. O Recorrente impugna expressamente o ponto de facto dado como provado no n.º 5 na seguinte parte: “sendo que nos últimos anos a actividade comercial consistia na venda de cada vez menos produtos”


XXVIII. O documento n.º 7 da p.i – enquanto mera fotografia do dístico, na porta do estabelecimento, com as menções “este estabelecimento encontra-se encerrado definitivamente” – não é apto a atestar que, por referência à data da propositura da acção (30.08.2023), a actividade comercial consistira na venda de cada vez menos produtos nos “últimos anos” (isto é, anos anteriores a 2023 como seja, pelo plural, os anos de 2022, 2021, 2020, etc…).


XXIX. A testemunha CC apenas revela que passou pela rua onde se situa o estabelecimento, em dois momentos: na primeira vez, pela altura do Carnaval de 2022 e, na segunda vez, cerca de ano depois, ou seja, em 2023 (cf. minutos 00:01:00 a 00:01:19) (cf. minutos 00:01:40 a 00:02:11) (cf. minutos 00:02:33 a 00:02:46) (cf. minutos 00:03:49 a 00:04:12) (cf. minutos 00:04:55 a 00:05:19) (cf. minutos 00:06:22 a 00:06:28) (cf. minutos 00:06:45 a 00:06:57).


XXX. No mesmo sentido, a testemunha DD esclareceu ao Tribunal que passou pela rua onde se situa o estabelecimento, em dois momentos: na primeira vez, em Fevereiro/Março de 2022 e, na segunda vez, em Agosto/Setembro de 2022 (cf. minutos 00:01:26 a 00:02:23) (cf. minutos 00:03:51 a 00:04:47) (cf. minutos 00:05:44 a 00:07:04) (cf. minutos 00:07:08 a 00:08:34).


XXXI. Ora, se as testemunhas referem ter passado no local nos momentos acima referidos – isto é, a testemunha CC refere ter passado pela rua onde se situa o estabelecimento, em dois momentos: na primeira vez, em Fevereiro/Março de 2022 e, na segunda vez, em Agosto/Setembro de 2022; e a testemunha DD refere também que passou pela rua onde se situa o estabelecimento, em dois momentos: na primeira vez, em Fevereiro/Março de 2022 e, na segunda vez, em Agosto/Setembro de 2022 – como é que podia o Tribunal a quo ter concluído, como concluiu, que, por referência à data da propositura da acção (30.08.2023), a actividade comercial consistira na venda de cada vez menos produtos nos últimos anos (isto é, anos anteriores a 2023 como seja, pelo plural, 2022, 2021, 2020, etc…)?


XXXII. Como é que podia chegar a essa conclusão se as testemunhas que valorou não referem ter passado nos últimos anos (isto é, anos anteriores a 2023 como seja, pelo plural, 2022, 2021, 2020, etc…), mas, para o que releva, apenas no ano de 2022 (pois 2023 já é o ano da propositura da acção)?


XXXIII. Por não terem afirmado que passaram pelo imóvel nos “últimos anos” (isto é, anos anteriores a 2023 como seja, pelo plural, 2022, 2021, 2020, etc…), mas, para o que releva, apenas no ano de 2022, as testemunhas CC e DD não podiam levar o tribunal a concluir que nos últimos anos a actividade comercial consistia na venda de cada vez menos produtos, devendo, por isso, tal segmento factual ser removido dos factos provados.


XXXIV. O segmento factual em crise “sendo que nos últimos anos a actividade comercial consistira na venda de cada vez menos produtos” só poderia ser provado documentalmente ou por pessoas que frequentassem o estabelecimento em causa, o que não sucedia com as testemunhas CC e DD.


XXXV. As testemunhas referidas na conclusão anterior não eram clientes, tampouco vizinhos, nem residiam perto do estabelecimento, porquanto o estabelecimento situa-se em ..., ... e, pela morada dos autos, a testemunha GG reside na Rua ..., ..., ..., ... ... e a testemunha DD, residente na Rua ..., ... ....


XXXVI. Salvo melhor entendimento, não pode uma ou duas visitas, e de “passagem”, pela rua do estabelecimento, no ano de 2022 e no ano de 2023 – por pessoas familiares ou com ligações próximas às partes, porquanto a primeira testemunha acima referida é primo do filho da Ré e a segunda testemunha é namorada do filho da Ré – não é suficiente para o Tribunal a quo ter concluído, como concluiu, que que nos últimos anos a actividade comercial consistia na venda de cada vez menos produtos.


XXXVII. Considerando objectivamente os meios de prova valorados pela Sentença, nomeadamente as testemunhas CC e DD – na medida em que as mesmas, de forma objectiva, relatam que não passaram pela rua onde se situa o locado nos últimos anos, mas apenas em 2022 (isto é, no ano imediatamente anterior à propositura da acção) e que não eram clientes, vizinhos ou residentes perto do estabelecimento – é lógico que o segmento factual em crise “sendo que nos últimos anos a actividade comercial consistira na venda de cada vez menos produtos” deverá ser removido dos factos dados provados por erro na apreciação da prova na 1.ª instancia e, na sequência, o facto provado sob o n.º 5 ser corrigido em conformidade.


XXXVIII. Na senda desta jurisprudência, os elementos objectivos acima referidos, permitem concluir, com uma margem de segurança elevada, que o segmento factual em crise “sendo que nos últimos anos a actividade comercial consistira na venda de cada vez menos produtos” não podia ter sido dado como provado, devendo, por isso, tal segmento factual ser removido dos factos provados.


XXXIX. Quanto ao facto provado sob o n.º 6, não pode uma ou duas visitas, e de “passagem”, pela rua do estabelecimento, no ano de 2022 e no ano de 2023 – por pessoas familiares ou com ligações próximas às partes, porquanto a primeira testemunha acima referida é primo do filho da ré e a segunda testemunha é namorada do filho da ré – ser suficiente para o tribunal a quo ter concluído, como concluiu, que o estabelecimento estava fechado, e sem evidenciação de funcionamento.


XL. Na primeira passagem em 2022, o senhor CC, primo do filho da Autora, HH, lembrava-se de ter espreitado pela janela/montra, produtos como “garrafas e louças”, ou seja, produtos relacionados com a actividade de mercearia.


XLI. Embora CC refira que não conseguisse entrar no estabelecimento, mas já aí vamos a instâncias do mandatário do réu esclareceu, todavia, que a sua passagem pela rua do estabelecimento ocorreu por volta da hora do almoço, sendo assim natural que tivessem feito pausa para o almoço.


XLII. Como CC não era da vizinhança, e como prova de que não passava frequentemente pelo local nem era cliente habitual, não sabia que até podiam tocar à campainha, tal como mais adiante esclareceu a testemunha FF (cf. minutos 00:03:46 a 00:04:21) e EE (cf. minutos 00:03:14 a 00:05:19 e 00:14:04 a 00:14:35).


XLIII. A senhora II, namorada do filho da Autora, o Sr. HH, esclareceu ao Tribunal que passaram por lá em Fevereiro/Março de 2022 e num segundo momento em Agosto/Setembro de 2022, mas deixou bem claro ao Tribunal a quo que não espreitou nem sabe o que que poderia lá dentro, o que se bem compreende pois “passavam” e não paravam, nem para espreitar para o interior, tampouco para ver se havia movimento e qual seria o movimento típico da zona.


XLIV. Com base em dois depoimentos isolados, de duas pessoas que não são clientes, vizinhos ou residentes na localidade do estabelecimento, que foram em duas visitas, mas de “passagem”, pela rua do estabelecimento, no ano de 2022 e no ano de 2023 – uma que espreitou e até viu “garrafas e louças” e a outra nem sequer espreitou ou parou para perceber o movimento, mas apenas diz ter visto o dístico quando passou – não é logicamente suficiente para o tribunal a quo ter concluir com segurança que o estabelecimento estava fechado, e sem evidenciação de funcionamento.


XLV. Por sua vez, as testemunhas FF e EE referiram que os clientes vizinhos e habituais sabiam que podiam tocar à campainha, pois esta é que era movimento habitual do estabelecimento e o seu funcionamento, o que as testemunhas CC e II, pelas suas razões de ciência, não estavam naturalmente em condições de explicar.


XLVI. O senhor EE, esclareceu de forma serena e assertiva que os pais tomaram a decisão de encerrar o estabelecimento, aproximadamente em Abril/Maio de 2022, mas que o letreiro foi colocado por ele depois desse momento, cerca de 2 ou 3 meses após essa tomada de decisão (mais ou menos entre Agosto e Setembro de 2022) (cf. minutos 00:01:38 a 00:03:10).


XLVII. EE também esclareceu o tribunal que o estabelecimento não encerrou após a colocação do dístico, que o mesmo foi colocado com o sentido informativo de que iriam fechar definitivamente.


XLVIII. Pois, segundo EE, os seus pais foram vendendo até “até ao fim do ano, por volta do natal”, ou seja, Dezembro 2022, para esgotar o stock que tinham, pois a clientela eram essencialmente os vizinhos, pelo que só por volta dessa altura é o que estabelecimento ficou mesmo encerrado (cf. minutos 00:03:14 a 00:04:29).


XLIX. A mulher do réu FF corroborou o depoimento do filho, nos seus segmentos essenciais, nomeadamente confirmou que ela o seu marido, autor na presente acção, tomaram a decisão de encerrar em Abril/Maio 2022, mas que para os produtos não se “estragarem” foram vendendo desde então só aos vizinhos, mas já não ao público em geral, até “perto do fim do ano” (cf. minutos 00:01:49 a 00:04:00).


L. Não tendo sido, por um lado, o segundo testemunho da senhora DD suficiente para o tribunal a quo ter concluído com a necessária segurança que “pelo menos, no mês de Março de 2022, a mensagem que consta da dita fotografia estava no local.” e, tendo sido possível, por outro lado, retirar dos depoimentos de EE e FF que o estabelecimento esteve aberto, ao público habitual, os vizinhos, pelo menos até ao final do ano de 2022.


LI. É perfeitamente verosímil o facto do mercado local – como aquele que está em causa nos presentes autos – ter como público habitual os vizinhos, bem como o réu e a sua mulher terem tomado a decisão de encerrar em Abril/Maio de 2022, mas ter estado o estabelecimento em funcionamento para os clientes habituais até ao final desse ano económico para escoar o stock.


LII. Os depoimentos de EE e FF não demonstraram sinal de viés, porquanto tal nem sequer é referido pelo Tribunal a quo, mas apenas a alegada “fragilidade da prova produzida” pelo facto de terem dito a verdade: que decidiram encerrar em Abril/Maio de 2022, mas só encerraram definitivamente no final do ano de 2022, quando esgotaram o stock, tendo colocado o dístico com teor meramente informativo para o público em geral.


LIII. E o certo é que não há razões para duvidar desta tese, pois as testemunhas arroladas pela Autora também não conseguem pôr em crise tal realidade, porquanto não residem na localidade onde se situa o estabelecimento, não são vizinhos, não eram clientes habituais, não visitaram o estabelecimento nesse período após Agosto/Setembro de 2022 e só uma das testemunhas é que conseguiu “espreitar” para o interior e viu “garrafas e louças”.


LIV. O tribunal a quo não poderia logicamente ter concluído, como fez, que “Desde o mês de Março de 2022, que o réu deixou, em definitivo, de exercer qualquer actividade comercial no locado, colocando um dístico na porta do estabelecimento comercial, com as menções “este estabelecimento encontra-se encerrado definitivamente”, porquanto verifica-se apenas que: «Desde o mês de Dezembro o de 2022, que o réu deixou, em definitivo, de exercer qualquer actividade comercial no locado, após ter colocado, em data não concretamente apurada, mas entre Março e Abril de 2022, um dístico na porta do estabelecimento comercial, com as menções “este estabelecimento encontra-se encerrado definitivamente”;».


LV. Solicita-se a intervenção do Venerando Tribunal da Relação do Porto no sentido de proceder à alteração da matéria de facto, dando como não provado o ponto n.º 6 da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo.


LVI. O Tribunal a quo não poderia ter dado como provado que:


«I. Notificada para o efeito e com conhecimento do estado dos prédios no seu interior, apenas procedeu a pequenos arranjos no exterior do edifício, tapando alguns buracos com cimento, demoliu uma escadaria que dava acesso ao piso superior do imóvel, na parte não arrendada, e colocou placas de esferovite nas janelas deste piso não habitado»

«II. Nada fazendo, até à presente data, no interior dos imóveis que estão arrendados pelo réu»

«IV. Com paredes e tecto a cair, cheios de humidade, fissuras em vários sítios, piso instável, sem canalização e instalação eléctrica adequada em todas as divisões, tendo grandes infiltrações quando chove muito»

«VI. Razão pela qual, o réu, e a sua mulher, viram- se forçados a tomar a opção de viverem apenas das suas duas pensões, começando recentemente a utilizar também o espaço arrendado para mercearia como sua habitação, como prolongamento da sua casa, fazendo lá as suas refeições e passando lá mais tempo.»

LVII. Pelas alegações acima expostas, o acervo documental consubstanciado no processo administrativo junto aos autos, bem como o processo de contra-ordenação e a respectiva decisão final condenatória pela ausência de realização de obras, que não foi correctamente ponderado pelo Tribunal a quo, devidamente conjugado com as fotografias juntas com a contestação e, bem assim, o depoimento das testemunhas FF e EE, obrigam que os factos referidos na conclusão sejam dados como provados:


«I. Notificada para o efeito e com conhecimento do estado dos prédios no seu interior, apenas procedeu a pequenos arranjos no exterior do edifício, tapando alguns buracos com cimento, demoliu uma escadaria que dava acesso ao piso superior do imóvel, na parte não arrendada, e colocou placas de esferovite nas janelas deste piso não habitado»

«II. Nada fazendo, até à presente data, no interior dos imóveis que estão arrendados pelo réu»

«IV. Com paredes e tecto a cair, cheios de humidade, fissuras em vários sítios, piso instável, sem canalização e instalação eléctrica adequada em todas as divisões, tendo grandes infiltrações quando chove muito»

«VI. Razão pela qual, o réu, e a sua mulher, viram- se forçados a tomar a opção de viverem apenas das suas duas pensões, começando recentemente a utilizar também o espaço arrendado para mercearia como sua habitação, como prolongamento da sua casa, fazendo lá as suas refeições e passando lá mais tempo»

LVIII. Numa situação como a do caso em apreço em que o inadimplemento apenas poderá ser considerado parcial, porque o arrendatário continua a usar o locado, não podemos deixar de concluir que exigir a resolução do contrato de arrendamento nestas condições, excede manifestamente os ditames da boa-fé e, bem assim, o fim social e económico do direito por ser manifesta a desproporção entre o exercício do direito da recorrida a ver resolvido o contrato de arrendamento e decretado o despejo e inadimplemento parcial e o facto de a própria recorrida ter contribuído para esse incumprimento.


LIX. Assim, e nesta perspectiva, haverá abuso do direito e, consequentemente, será ilegítimo deferir a pretensão da Recorrida de ver decretada a resolução do contrato de arrendamento.


LX. Ao não ter entendido desse modo, a sentença proferida pelo Tribunal a quo incorreu na violação do artigo 334.º do CC.


LXI. Tendo sido o estabelecimento encerrado definitivamente em Dezembro de 2022, e não em Março de 2022 como erradamente conclui o tribunal a quo, à data da instauração da presente acção, ainda não tinha decorrido um ano para que a recorrida possa invocar e exercer o direito à resolução com fundamento em não uso do locado por mais de um ano, nos termos e para os efeitos do artigo 1083.º, n.º 2, alínea d), do Código Civil.


LXII. Ao decretar o despejo com fundamento no não uso do locado por mais de um ano, a sentença proferida pelo tribunal a quo incorreu assim na violação do artigo 1083.º, n.º 2, alínea d), do Código Civil.


LXIII. Ao não considerar a situação em apreço como um evidente caso de força maior que obsta ao exercício do direito à resolução pela senhoria, aqui recorrida, a sentença proferida pelo tribunal a quo incorreu assim na violação da alínea a) do n.º 2 do artigo 1072.º do Código Civil.


Termos em que, deve o presente recurso do despacho de 29.03.2024 ora impugnado ser julgado procedente, e, em consequência – por violação do artigo 12.º, n.ºs 1 e 2, artigo 1724.º, b), artigo 1068.º, artigo 1678.º, 2.ª parte do n.º 3 e 1682.º, n.º 1, todos do CC, e artigo 30.º, n.º 3, artigo 33.º, n.ºs 1, 2 e 3, artigo 34.º, n.ºs 1 e 2, artigo 342.º, n.º 1, artigo 576.º, n.º 2, artigo 577.º alínea e) e artigo 578.º, do CPC todos do CPC – ser anulada a decisão recorrida, com todas as legais consequências, bem como todo o processado subsequente à dedução dos articulados, nele se incluindo a audiência de julgamento, bem como a sentença recorrida, devendo o processo regressar à fase dos articulados na primeira instância para o Tribunal a quo proferir despacho a convidar a autora a sanar a preterição do litisconsórcio necessário passivo, prosseguindo o processo os seus ulteriores termos.


Sem prescindir, caso assim não se entenda, o que apenas se concebe por mera cautela de patrocínio, se requer, a V. Exas., se dignem revogar a sentença recorrida, proferindo uma nova decisão, nos termos da qual se dê como não provados os concretos pontos de facto especificadamente impugnados no artigo XXV das conclusões do recurso, bem como se dê como provados os concretos pontos de facto referidos no artigo LVI das conclusões do recurso, nos termos e com a redacção constante dos artigos LVI das conclusões de recurso, absolvendo-se o réu em conformidade.


Sem prescindir, se requer, a V. Exas., se dignem revogar a sentença recorrida e a mesma ser reformada quanto ao erro de julgamento relativamente à matéria de direito.


A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.


Após os vistos legais, cumpre decidir.





II. Questões a decidir:


As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:

i. Se o direito ao arrendamento adquirido pelo réu se comunicou ao cônjuge e para assegurar a legitimidade passiva é necessário que a acção seja instaurada também contra a mulher do réu.

ii. Se deve ser alterada a fundamentação de facto da sentença.

iii. Se o encerramento dura há de mais de um ano.

iv. Se o encerramento se deveu a caso de força maior.

v. Se o exercício do direito à resolução do contrato consubstancia um abuso do direito.




III. Recurso da decisão que julgou improcedente a excepção da ilegitimidade passiva:


O recorrente começa por impugnar a decisão proferida sobre a excepção da ilegitimidade passiva no despacho saneador, na qual o tribunal a quo entendeu que na acção não é necessário que do lado passivo, além do réu, esteja o respectivo cônjuge.


A questão colocada consiste em saber se uma acção de despejo de prédio urbano objecto de um contrato de arrendamento para o exercício do comércio deve ser instaurada apenas contra o (adquirente da posição de) inquilino ou, sendo este casado no regime supletivo da comunhão de adquiridos, deve ser instaurada também contra o cônjuge do (adquirente da posição de) inquilino.


Nos termos do n.º 3 do artigo 34.º do Código de Processo Civil têm de ser propostas contra ambos os cônjuges as acções compreendidas no n.º 1 da mesma norma, isto é, entre outras, as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de direitos que só por ambos possam ser exercidos.


Refira-se, para deixar logo de lado essa questão, que a presente acção não pode ser confundida com as acções previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 1682.º-A do Código Civil respeitantes a actos que carecem do consentimento de ambos os cônjuges e que, portanto, sendo instauradas contra um réu casado, é necessário demandar igualmente o respectivo cônjuge para assegurar a legitimidade passiva.


A acção de despejo de imóvel arrendado para o exercício do comércio não se confunde com qualquer acção que tenha por objecto «a alienaçãode estabelecimento comercial, próprio ou comum». Mesmo que o arrendatário instale no arrendado um estabelecimento comercial para aí exercer o comércio, como normalmente sucederá, a acção de despejo do arrendado apenas contende com o direito ao local que será uma dos vários elementos que compõem o estabelecimento comercial, não contende com o próprio estabelecimento que, em regra, será susceptível de uma mudança de local de funcionamento, e, em qualquer caso, é um conjunto de elementos corpóreos e incorpóreos que incluem mas excedem o mero direito ao local (neste sentido cf. o Acórdão da Relação de Lisboa de 28-10-2008, proc. nº 4926/2008-7, in https://www.dgsi.pt).


Não é, pois, por efeito dessa disposição legal que a presente acção carecia de ser instaurada contra ambos os cônjuges. Todavia, essa exigência pode resultar da titularidade do contrato de arrendamento, ou seja, ser uma consequência da circunstância de o arrendamento integrar a comunhão conjugal e, por isso, a acção poder importar a perda ou disposição de um direito comum que só por ambos os cônjuges pode ser alienado.


É isso que importa apreciar e que não foi apreciado na decisão recorrida, a qual formulou a conclusão de a acção não ter de ser instaurada contra o cônjuge do réu apenas com base no facto de o réu ser casado no regime da comunhão de adquiridos.


Pois bem, o contrato de arrendamento que constitui a causa de pedir da acção foi celebrado por escritura pública outorgada em 11 de Março de 1952, pelo pai da autora, JJ, na qualidade de senhorio, e o pai do réu, KK, na qualidade de inquilino.


Trata-se, portanto, de um contrato de arrendamento celebrado ainda antes da aprovação do RAU pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, e, por isso, em princípio, subordinado ao regime jurídico do Código Civil na redacção anterior ao RAU.


Menciona-se na escritura pública que o arrendamento se destinava ao «exercício do comércio de mercearia, vinhos e batatas e não poderá ser usado para qualquer outro fim». Trata-se, portanto, de um arrendamento comercial, para o exercício do comércio, ou, na sistemática actual, não habitacional.


Após o falecimento do pai do réu, o arrendamento foi transmitido para a respectiva viúva e mãe do réu, LL. O réu casou em ../../1979 com MM, sem convenção antenupcial. Entretanto em 14/05/2006 faleceu a mãe do réu, altura em que o arrendamento se transmitiu para o réu.


A determinação da titularidade da posição de inquilino, rectius, se o titular dessa posição é apenas o réu, filho do anterior titular falecido, ou é também o respectivo cônjuge, tem de ser feita por aplicação do regime jurídico aplicável a essa questão na data em que por morte da mãe do réu o contrato de arrendamento se transmitiu para o réu, isto é, o regime jurídico aplicável no momento em que ocorreu o facto jurídico que produziu essa transmissão.


Com efeito, a transmissão da posição de arrendatário por morte do anterior titular tem de ser aferida em função da lei em vigor no momento em que ocorre o facto constitutivo desse direito, ou seja, o óbito do titular do arrendamento (nesse sentido, Maria Raquel Guimarães, Até que a morte nos separe? A transmissão da posição contratual por morte do arrendatário no contrato de arrendamento urbano para habitação. Reflexões à luz da jurisprudência recente dos tribunais superiores, in Revista Electrónica de Direito, Outubro 2017, n.º 3, afirmando «que em cada situação haverá que aplicar a lei vigente no momento em que ocorreu o facto juridicamente relevante, no caso a morte do arrendatário inicial ou dos arrendatários transmissários»).


Quando essa transmissão ocorreu, em 14/05/2006, o réu já era casado com a sua actual mulher, tendo o respectivo casamento sido celebrado sem convenção antenupcial, ou seja, na comunhão de adquiridos.


Cabe, pois, averiguar se, segundo o regime jurídico vigente nessa data, o arrendamento comercial se comunicou ao cônjuge do arrendatário ou não.


Se o arrendamento se comunicou ao cônjuge, passaram a ser ambos titulares da posição de arrendatário; se o arrendamento não se comunicou ao cônjuge o arrendatário passou a ser apenas o réu. Na primeira hipótese, a acção tem de ser instaurada contra ambos por estar em causa um bem (direito) comum que só por ambos pode ser alienado; na segunda hipótese a acção não tem de ser instaurada também contra a mulher do réu por se tratar de um bem (direito) próprio e não haver norma legal que afaste a regra de que cada um dos cônjuges tem a administração e o poder de disposição dos bens próprios.


Em 14/05/2006 ainda não estava em vigor o NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, porque esta entrou em vigor apenas em 28/06/2006. Logo o aspecto que ocupa tem de ser decidido com base no regime jurídico do RAU, em vigor na data da transmissão do arrendamento para o réu.


Na data que releva, estava em vigor o artigo 1110.º do Código Civil, cujo n.º 1 estabelecia que «seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge e caduca por sua morte, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte». Todavia, esta norma inseria-se na subsecção que continha as «disposições especiais dos arrendamentos para habitação».


O que sucedia, então, nos demais arrendamentos, mais especificamente nos arrendamentos comerciais?


No domínio do Código Civil, quer na versão imediatamente anterior ao RAU quer já no âmbito de aplicação do RAU, sempre foi entendido que, ao contrário do arrendamento para habitação, o arrendamento comercial comunicava-se ao cônjuge.


Pereira Coelho, in Anotação ao Acórdão do STJ de 2 de Abril de 1987, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 122, pág. 138, escrevia na nota 11 que: «No que se refere aos arrendamentos comerciais e equiparados, parece claro que o direito ao arrendamento se comunica ao cônjuge do arrendatário segundo as regras gerais dos regimes de bens, como decidiu o Ac. do S.T.J de 2l de Dezembro de 1982, publ. no Bol., n.º 322: pág. 338, e nesta Revista, ano 119.º, pág. 236, com anotação favorável de Antunes Varela. Não só o artigo 1110.º está inserido na subsecção em que se contêm as disposições especiais dos arrendamentos para habitação e não existe preceito idêntico nas duas subsecções seguintes, como o artigo 1113.º (cfr. o art. 1119.º), considerando o direito ao arrendamento transmissível por morte aos sucessores do arrendatário, nos termos gerais, mostra que a lei concebe o direito ao arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal como um puro direito patrimonial, que por isso nenhuma razão haveria para não se comunicar ao cônjuge do arrendatário, segundo as regras do direito comum.» (no mesmo sentido cf. Maria Olinda Garcia, in O Arrendamento Plural - Quadro Normativo e Natureza Jurídica, págs. 138 e 139).


Antunes Varela, na Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.12.1982, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 119, pág. 243 e segs., defendia que o direito ao arrendamento para habitação, embora de cariz patrimonial, é “constituído muitas vezes intuitus personae” e é “um direito que se adapta mal ao mecanismo de uma contitularidade entre marido e mulher”, mas «Quanto ao arrendamento comercial, porém, a situação é diferente. A solução que o texto do artigo 1110º do Código Civil (idêntico ao do art. 83º do RAU) inculca, relativamente a todos os arrendamentos que não se destinem à habitação, é, por argumento a contrario sensu, o da comunicabilidade da posição do locatário. Por outro lado, essa é a solução confirmada pela aplicação da regra geral que decorre, quanto aos bens adquiridos na constância do matrimónio, do disposto na alínea b) do artigo 1724º do Código Civil. Por fim, nada custa reconhecer que a tese da comunicabilidade da posição do locatário, nos arrendamentos comerciais, é realmente, apesar de tudo, a que melhor se ajusta à real fisionomia jurídica da situação. Não há, nos arrendamentos desta natureza, o mesmo intuitus personae que existe em regra nos arrendamentos para habitação


Aragão Seia, in Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 5ª edição, revista e actualizada, Janeiro 2000, pág. 487, na anotação ao artigo 83.º do RAU, integrado no capítulo respeitante aos arrendamentos para habitação, que estabelecia que fosse qual fosse o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunicava ao cônjuge e caducava por morte, anotava o seguinte: «1. Reproduz, praticamente, o n.º 1 do artigo 1110.º do C.C. 2. Trata-se de norma imperativa. O direito ao arrendamento para habitação é incomunicável ao cônjuge do arrendatário, seja qual for o regime de bens em que tenha sido celebrado o casamento. Por isso, o cônjuge do arrendatário não tem legitimidade para deduzir embargos de terceiro contra a decisão que mande executar o despejo, visto este afectar apenas um direito próprio do arrendatário e não um direito comum dos cônjuges. Já relativamente a todos os arrendamentos que não se destinem à habitação a solução que o preceito inculca é, por argumento a contrario senso, a da comunicabilidade da posição do arrendatário nos regimes da comunhão».


Em nota de rodapé o autor escrevia: «Ver o Prof. Antunes Varela, Rev Leg. Jur. 119, 247, comentando o Ac. do S.T.J. de 21/12/1982. Neste diz-se, a pág. 241: não são exceptuados expressamente da comunhão por qualquer disposição legal referente ao regime de comunhão de adquiridos o estabelecimento comercial e o direito ao arrendamento que dele faça parte, ou o simples direito ao arrendamento para comércio ou indústria, quando a sua aquisição, por qualquer dos cônjuges, tenha lugar durante a constância do casamento a título oneroso. Ver, ainda, os Acs. da Relação do Porto de 31/5/1990, Col. Jur. XV, 3,205, de 12/1/1993, Col. Jur. XVIII, 1, 200 e de 18/5/1993, Bol. 427, 576


Na anotação ao artigo 61.º, págs. 343, o mesmo autor, antes de citar o autor e os arestos já mencionados, a que acrescentava o Acórdão da Relação de Coimbra de 16/06/1992, Col. Jur. XVII, 3, 123, escrevia: «Os arrendamentos que não se destinem a habitação comunicam-se ao cônjuge que não interveio no contrato, se o casamento tiver sido celebrado no regime de comunhão geral de bens ou no de comunhão de adquiridos, conforme se vê dos arts. 1732.º e 1733.º e do artigo 1724.º. al. b), todos do C.C. A tutela possessória aproveita, assim, à contitularidade do direito de locação derivada da comunhão matrimonial de bens».


Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, Almedina, 1996, pág. 281, escrevia a propósito dos sujeitos do contrato de arrendamento que «no arrendamento vinculístico para habitação, se só um dos cônjuges assumiu a posição de arrendatário, não ganhará o outro tal qualidade – pois, como expressamente se declara actualmente no artigo 83 RAU, à imagem do direito anterior, seja qual for o regime matrimonial, “a posição de arrendatário não se comunica ao cônjuge”. Esta disposição relaciona-se com os preceitos dos arts. 1724, b), e 1732 referido ao art. 1733 Código Civil. Pelo primeiro deles, no regime de bens da comunhão de adquiridos, a aquisição em arrendamento por apenas um dos cônjuges faria comunicar o direito de arrendatário, e o mesmo se verificaria, no regime da comunhão geral, em face dos outros preceitos. A estatuição do aludido artigo 83 RAU destina-se, pois, a excluir, para esses dois regimes de bens do casamento, semelhante consequência». Na página seguinte, na nota 17, o autor menciona que «esta incomunicabilidade não é extensível aos arrendamentos para comércio ou indústria ou para exercício de profissão liberal


Januário da Costa Gomes, in Arrendamentos para Habitação, Almedina, 1994, pág. 43 e seguintes, depois de assinalar que de acordo com as regras gerais dos contratos, arrendatário é quem, por si ou através de representante, celebra o contrato, que no arrendamento para habitação a dúvida pode colocar-se em virtude da comunicabilidade entre os cônjuges de certas relações jurídicas, e que essa dúvida foi excluída pelo artigo 83.º do RAU no sentido da incomunicabilidade da posição de arrendatário habitacional, escrevia: «Diverso é o caso dos arrendamentos comerciais e equiparados, em que a posição de arrendatário se comunica ao conjugue nos regimes de comunhão de adquiridos e comunhão geral de bens; cfr. os nossos Arrendamentos comerciais, 2ª ed., pág. 40, Antunes Varela, R.L.J. 119, pág. 247 e o recente Acórdão da Relação do Porto de 12 de Janeiro de 1993 (Col. Jur., ano XVIII, 1993, t. 1, pág. 200; Almeida e Silva)


Esta posição é ainda aceite por Maria Olinda Garcia, in O arrendatário invisível - A comunicabilidade do direito ao cônjuge do arrendatário no arrendamento para habitação, Scientia Iuridica, tomo LXV, n.º 342, 2016, p. 410, por Rita Lobo Xavier, in O regime dos novos arrendamento urbanos e a perspectiva do direito da família, O Direito, 136, II-III, 2004, pág. 315 e seg., e foi acolhida, por exemplo, nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03.06.2003, proc. nº 03A1462, de 8.07.2003, proc. n.º 03A436, da Relação de Lisboa de 24.02.2005, de 28-10.2008, proc. n.º 4926/2008-7, e da Relação do Porto de 23.01.93, proc. n.º 9220334, de 15.05.2001, proc. n.º 0120522, e de 25.02.2003, proc. n.º 0220617, todos in www.dgsi.pt.


Não há, pois, como defender o contrário.


Questão diferente, consiste em saber se no caso concreto o arrendamento se comunicou efectivamente à mulher do réu.


Com efeito, sendo embora certo que quando adquiriu a posição de inquilino o réu já estava casado, rectius, o réu não levou para o casamento essa qualidade, adquiriu-a na pendência do casamento, a verdade é que a aquisição dessa posição não decorreu da celebração do contrato, decorreu sim da transmissão para o réu da posição no contrato de arrendamento celebrado pelo seu pai.


Esta circunstância é relevante porque é em função dela que cabe verificar se estando o réu casado no regime supletivo da comunhão de adquiridos, a posição de arrendatário adquirida assumiu a natureza de bem comum (houve comunicação dessa posição ao cônjuge) ou de bem próprio (não houve comunicação ao cônjuge).


Nos termos da alínea b) do artigo 1724.º do Código Civil, em regra, os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio integram a comunhão; só assim não ocorre se a lei os exceptuar da comunhão, isto é, os qualificar como bens próprios, sendo certo que nos termos do artigo 1725.º do mesmo diploma quando haja dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis, e os direitos integram a categoria jurídica de bens móveis, estes consideram-se comuns.


Entre as excepções à regra de que os bens adquiridos na pendência do casamento são bens comuns contam-se os que o artigo 1722.º enumera. Nos termos do n.º 1, são considerados próprios dos cônjuges os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação, ou seja, os bens adquiridos gratuitamente por sucessão mortis causa ou doação.


Logo, não basta afirmar que o réu era casado no regime de comunhão de adquiridos e que a posição de inquilino foi adquirida na pendência do casamento para concluir que o direito ao arrendamento passou a ser da contitularidade da respectiva mulher, que passou a integrar a comunhão.


Isso seria assim se se tratasse de um contrato de arrendamento celebrado pelo próprio réu na pendência do casamento. Mas no caso a aquisição da posição de inquilino não sobreveio da celebração do contrato pelo réu, decorreu sim da circunstância de por morte do pai e depois da mãe o réu lhes ter sucedido na posição de inquilino num contrato de arrendamento celebrado pelo pai.


Na data em que faleceu a mãe do réu e este adquiriu a posição de inquilino regia o disposto no artigo 1113.º do Código Civil, nos termos do qual «o arrendamento não caduca por morte do arrendatário, mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de trinta dias». A transmissão do arrendamento tinha assim lugar para os sucessores, sinal de que se tratava de uma transmissão por via e segundo as regras sucessórias, e não segundo regras específicas do regime jurídico do contrato de arrendamento que determinassem de forma específica para quem e em que circunstância a transmissão tinha lugar.


É com esse sentido que Maria Olinda Garcia, loc. cit., pág. 404, escreve que a comunicabilidade do direito ocorre quando «o direito do arrendatário (que celebrou o contrato de arrendamento ou que eventualmente sucedeu na posição contratual de um anterior arrendatário) se comunica ao seu cônjuge, tornando-se este co-arrendatário» o que tem lugar «de acordo com o regime de bens em que são casados, quando tal regime é o da comunhão geral ou o da comunhão de adquiridos (quando, nesta última hipótese, o arrendamento é celebrado na vigência do casamento)». E mais adiante, «a comunicabilidade do direito ao cônjuge do arrendatário pressupõe que este seja casado no regime da comunhão geral ou da comunhão de adquiridos, no momento da celebração do contrato, ou que na vigência da relação de arrendamento o arrendatário venha a casar em regime de comunhão geral. A comunicabilidade do direito pode, deste modo, ser contemporânea da formação do contrato (se, nesse momento, o arrendatário outorgante é casado num dos regimes de comunhão) ou superveniente (quando o arrendatário casa no regime de comunhão geral).»


Também Rute Teixeira Pedro, in Da comunicabilidade da posição de arrendatário por força do regime de bens - uma reflexão crítica sobre o artigo 1068.º do Código Civil Português, in RED - Revista Electrónica de Direito, n.º 3, Porto, CIJE/FDUP, Outubro, 2017, escreve, por referência ao regime jurídico dos regimes de bens do casamento que se mantém o mesmo, o seguinte: «à luz do regime de comunhão de adquiridos, a extensão da comunhão é-nos dada, numa fórmula sintética, pelo conjunto de bens adquiridos, onerosamente, durante a vigência do casamento, por se entender que eles constituem o resultado da comunhão de vida conjugal e do concurso dos esforços que caracterizam a relação matrimonial. Assim, para a definição dos perímetros das várias massas patrimoniais e, portanto, para a qualificação da posição de arrendatário será decisiva, por um lado, a identificação da data de celebração do contrato de arrendamento de que deriva a titularidade da posição de arrendatário e, por outro lado, a caracterização, como gratuito ou oneroso, do acto de aquisição da posição contratual de arrendatário. Na verdade, quanto ao regime de bens em referência, extraem-se do artigo 1722.º dois importante marcos para a operação de definição da composição das diversas massas patrimoniais: um de natureza temporal e outro associado ao carácter (gratuito ou não) do facto constitutivo do direito sobre o bem jurídico adquirido. Assim, se a celebração do contrato de arrendamento for anterior à celebração do contrato de casamento, a posição de arrendatário, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 1722.º, não se comunica ao consorte do arrendatário. Se, pelo contrário, a celebração do contrato de arrendamento for posterior à celebração do contrato de casamento, a posição de arrendatário vai, em princípio, comunicar-se ao seu cônjuge, segundo o disposto na al. b) do art. 1724.º. Só assim não será se se puder afirmar que a posição de arrendatário foi adquirida gratuitamente ou se a mesma tiver sido adquirida por virtude de um direito próprio anterior à constituição da relação matrimonial. Pense-se, por exemplo, no caso de um contrato de arrendamento celebrado já na constância da relação matrimonial, mas no exercício de um direito de preferência (relativo à celebração de um contrato de arrendamento) fundado numa situação já existente à data da celebração do casamento. Neste caso, pondo-se em destaque o nexo entre o efeito jurídico aquisitivo da posição jurídica de arrendatário (a celebração do contrato de arrendamento) e a fonte de onde ele promana (o direito de preferência exercido), dá-se, à luz do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 1722.º e na al. d) do n.º 2 do mesmo preceito, prevalência à data desta fonte, quando ela é cronologicamente anterior à data da constituição da relação matrimonial.»


Com efeito, na comunhão de adquiridos, são bens próprios não apenas os bens que cada um dos cônjuges já tinha ao tempo do casamento – alínea a) – e os bens que cada um deles adquiriu depois desse momento mas em virtude de direito próprio anterior – alínea b) –, mas também os bens adquiridos gratuitamente por um dos cônjuges na pendência do casamento, ou seja, aqueles que ele recebeu ou cuja titularidade passou a deter, por sucessão ou por doação.


É o caso da aquisição da titularidade de um direito ao arrendamento por sucessão hereditária, isto é, segundo as regras gerais da sucessão hereditária, e não apenas segundo regras próprias do regime jurídico do arrendamento nos termos das quais a transmissão tem lugar para um familiar que reúna especiais qualidades ou ligações ao arrendado, independentemente do que resulte da partilha dos bens deixados pelo arrendatário falecido.


Na data que releva para o caso a transmissão para o réu da posição de arrendatário ocorreu por via sucessória (cf. a citação que acima se fez do texto de Pereira Coelho onde este afirma que à data o direito ao arrendamento [era] transmissível por morte aos sucessores do arrendatário, nos termos gerais).


Em suma, no caso concreto, o direito ao arrendamento adquirido na pendência do casamento do réu é um bem próprio deste, não se comunicou à mulher. Por isso, não sendo a posição de inquilino comum à mulher do réu e não havendo norma que imponha que a acção de despejo de local arrendado para o exercício do comércio seja proposta contra ambos os cônjuges (e não sendo esta acção confundível com a acção de que possa resultar a perda de estabelecimento comercial que possa estar a funcionar no arrendado), a presente acção não tinha de ser demandada e a falta de demanda dela não importa um situação de ilegitimidade plural passiva.


Pelo exposto, embora pelos diferentes argumentos acabados de apresentar, a decisão recorrida que considerou o réu parte legítima, sem necessidade de a mulher ser demandada para assegurar a legitimidade daquele, é correcta e deve ser confirmada.





IV. Recurso da sentença:


A. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:


O recorrente impugnou a decisão sobre a matéria de facto, cumprindo com esmero os requisitos específicos desta impugnação, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, razão pela qual nada obsta à apreciação da impugnação.


O recorrente defende que devem ser julgados não provados os seguintes factos que o tribunal a quo julgou provados:


5) O réu manteve a actividade comercial no locado exercendo a venda de artigos de mercearia, sendo que nos últimos anos a actividade comercial consistia na venda de cada vez menos produtos.

6) Desde o mês de Março de 2022, que o réu deixou, em definitivo, de exercer qualquer actividade comercial no locado, colocando um dístico na porta do estabelecimento comercial, com as menções “este estabelecimento encontra-se encerrado definitivamente”.

É manifesto que a prova de natureza testemunhal produzida por ambas as partes é reduzida e de reduzido valor probatório.


As testemunhas da autora são apenas duas, possuem ligações à autora de natureza familiar ou afectiva, revelaram que não vivem nem passam regularmente em frente ao arrendado, mas somente que passaram no local algumas vezes, em situações esporádicas e datas cuja localização temporal é algo hesitante.


As testemunhas do réu são o seu filho e a sua mulher (!) e embora possuam naturalmente melhor razão de ciência que aquelas, possuem também um interesse claro e directo no desfecho da lide que as priva do mínimo de objectividade e faz recear enormemente pela sua sinceridade e credibilidade.


Se os meios de prova produzidos fossem apenas estes evidentemente que não poderia ser julgado provado qualquer facto com base neles.


Sucede que não é assim e que no caso existem elementos probatórios relevantes e suficientes para se julgar provado alguns dos factos em discussão.


Desde logo, assume natureza absolutamente decisiva a fotografia junta como doc. 7 com a petição inicial e na qual se observa um dístico colocado na porta do estabelecimento comercial onde se escreveu «este estabelecimento encontra-se encerrado definitivamente».


Na sua contestação, o réu afirma que impugna «o documento 7 da petição inicial pelo sentido que a Autora pretende dele retirar» (artigo 69.º), que «continua a usar o locado, ainda que para um fim diferente» (artigo 71.º) e que «o dístico a que se refere o artigo 15.º da petição inicial, foi colocado em data não concretamente apurada, mas não antes de 1 de Janeiro do presente ano» (artigo 72.º).


Daqui decorre que o réu aceita que o dístico que se observa na aludida fotografia existia e foi lá colocado por ele. Logo, com base nesse documento, na posição expressa pelo réu na contestação e nos depoimentos mencionados, na parte em que estes afirmam a existência do dístico, o tribunal pode concluir com inteira segurança que a dada altura o réu decidiu encerrar e encerrou definitivamente o estabelecimento que funcionava no arrendado (afinal de contas é o que o dístico diz).


Resta saber em que altura isso ocorreu e se o motivo que conduziu ao encerramento está relacionado com a quebra da actividade comercial.


Em relação à altura em que isso ocorreu convém ter presente que a acção foi instaurada em 30-08-2023 e o alegado na petição inicial é que o arrendado está encerrado «desde o início do ano passado». O «início» é uma expressão que anuncia uma data relativamente indefinida. A fotografia junta com a petição inicial não tem data (podia ter, porque os meios fotográficos actuais, em regra, registam a data em que a fotografia é tirada, sendo certo que o que está junto é apenas um print do ficheiro electrónico de imagem).


Todavia os depoimentos do filho e da mulher do réu permitem situar minimamente aquele evento. Ambos afirmaram que a decisão de encerrar o estabelecimento foi tomada «aproximadamente em Abril/Maio de 2022» e que o dísticos foi colocado apenas algum tempo depois. O filho EE afirmou mesmo que isso ocorreu «cerca de 2 a 3 meses» após a decisão, o que situa a colocação do dístico no máximo durante o mês de Agosto de 2022.


Se tiver sido assim, quando a acção foi instaurada, no último dia do mês de Agosto de 2023, estava realmente ultrapassada a duração que torna o encerramento juridicamente relevante (mais de um ano)!


Acresce que é manifesta a intenção destas pessoas de tentarem fugir a esse prazo, designadamente sustentando que apesar do encerramento das portas continuaram a vender mas só aos vizinhos para acabar com as existências. A venda dos restos do stock do estabelecimento apenas a vizinhos e com as portas do estabelecimento encerradas é um mero acto de liquidação do estabelecimento e não exclui que a actividade comercial no arrendado tivesse sido totalmente abandonada.


No que concerne aos motivos para esse encerramento basta ver as fotografias juntas aos autos, designadamente existentes no processo camarário, para concluir que se tratava de uma actividade comercial diminuta, escassa, num espaço sem condições, apresentação, organização higiene ou dignidade que levasse qualquer pessoa, para além de um ou outro vizinho ou amigo, numa situação pontual de absoluta necessidade ou emergência, a deslocar-se ao espaço para comprar o que quer que fosse.


Alguns dos bens (v.g. bonecos de cerâmica) que lá se observam encontravam-se ali seguramente há anos, sem terem sido vendidos, e não se vislumbra que alguém pudesse vir a manifestar interesse na sua compra. Logo é possível concluir com total segurança que a actividade comercial passou a ser reduzida e quase nula, o que objectivamente seria mais que razão para o encerramento do estabelecimento e a eliminação dos custos associados.


Logo, os pontos 5 e 6 da fundamentação de facto devem ser julgados provados com a seguinte redacção:


5) O réu manteve no arrendado a exploração de uma mercearia, actividade comercial que foi sendo progressivamente reduzida até ser praticamente nula.

6) A partir de data não concretamente apurada mas situada mais de um ano antes do dia 30 de Agosto de 2023, o réu deixou, em definitivo, de exercer qualquer actividade comercial no arrendado, tendo colocado na porta do arrendado um dístico anunciando «este estabelecimento encontra-se encerrado definitivamente».

O recorrente defende outrossim que devem ser julgados provados os seguintes factos que o tribunal a quo julgou não provados:


«I. Notificada para o efeito e com conhecimento do estado dos prédios no seu interior, apenas procedeu a pequenos arranjos no exterior do edifício, tapando alguns buracos com cimento, demoliu uma escadaria que dava acesso ao piso superior do imóvel, na parte não arrendada, e colocou placas de esferovite nas janelas deste piso não habitado.»

«II. Nada fazendo, até à presente data, no interior dos imóveis que estão arrendados pelo réu.»

«IV. Com paredes e tecto a cair, cheios de humidade, fissuras em vários sítios, piso instável, sem canalização e instalação eléctrica adequada em todas as divisões, tendo grandes infiltrações quando chove muito.»

«VI. Razão pela qual, o réu, e a sua mulher, viram-se forçados a tomar a opção de viverem apenas das suas duas pensões, começando recentemente a utilizar também o espaço arrendado para mercearia como sua habitação, como prolongamento da sua casa, fazendo lá as suas refeições e passando lá mais tempo.»

Os documentos juntos aos autos que correspondem à certidão do processo administrativo n.º ...2/VT/2014 da ... e do processo de contra-ordenação n.º ...19 da Câmara Municipal ... revelam com clareza as obras que aquela entidade considerou necessárias e ordenou que se fossem realizadas, em que consistiam e onde se localizavam, bem como a realização pela autora de parte delas e a não realização de muitas outras, razão pela qual ela foi mesmo sancionada pela prática de uma contra-ordenação, tendo efectuado o pagamento voluntário da coima.


O fundamento afirmado na motivação da decisão recorrida de não ser possível descortinar (o Mmo. Juiz a quo quereria dizer distinguir) as obras relativas a este arrendado e as obras relativas ao arrendado para habitação, não colhe de todo, porque os documentos são claros na distinção entre ambos os espaços, comercial e habitacional, e na indicação dos pontos carecidos de obras, num caso e no outro.


Também não colhe o argumento de ter havido divergências quanto à demolição de construções ilegais e ter havido, ainda que momentaneamente, oposição do réu, porque o que está em causa são as obras de reconstrução a realizar, não as obras de demolição dos anexos e outros espaços sem condições de salubridade.


Está, pois, documentalmente provado o seguinte:


9) Tais obras incluíam intervenções na fachada e na cobertura dos edifícios e ainda, no espaço comercial, a reparação do tecto e do reboco das paredes afectados pelas humidades, a pintura geral do espaço, a ligação da rede interna de abastecimento de água à rede pública e a ligação da rede interna de drenagem das águas residuais à rede pública de saneamento.

10) A ré não realizou a totalidade das obras que foram determinadas nesse processo pela entidade administrativa, designadamente quaisquer obras no interior do arrendado para comércio.

Está ainda provado, designadamente por estar admitido pelo réu e se tratar de um facto que, na economia dos autos, lhe é desfavorável, o seguinte facto:


11) Depois de terem encerrado a actividade comercial o réu e a mulher começaram a utilizar o espaço arrendado para mercearia como prolongamento da sua casa, realizando lá actos da sua vida diária.




B. Fundamentação de facto:


Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos:


1. A é comproprietária de um prédio urbano constituído por um edifício de habitação com dois pavimentos e quintal, sito na Rua ..., ..., na União de Freguesias ... e ..., no concelho ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...11 daquela União de Freguesias, com origem na matriz urbana sob o artigo ...69, correspondente à descrição n.º ...7/19890411 da 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia.


2. Na sequência do falecimento do marido da autora, NN, ocorrido no dia 17.10.2017, a autora assumiu o cargo de cabeça-de-casal.


3. Este prédio foi arrendado, em 11.03.1952, por escritura pública, pelo pai da autora, JJ, a KK, pai do réu, para fins de actividade de mercearia, pelo período inicial de um ano, renovável automaticamente por iguais e sucessivos períodos nos termos legais, com início em 1 de Abril desse ano, sendo fixada uma renda mensal que em 2006 era de 67,42€, a pagar ao senhorio até ao dia oito do mês anterior àquele a que respeitasse.


4. Após o falecimento do pai do réu, os arrendamentos foram transmitidos à viúva LL, mãe do réu, que, por sua vez, viria a falecer em 14.05.2006, sucedendo-lhe, nesse momento, o réu na posição de arrendatário.


5. O réu manteve no arrendado a exploração de uma mercearia, actividade comercial que foi sendo progressivamente reduzida até ser praticamente nula.


6. A partir de data não concretamente apurada mas situada mais de um ano antes do dia 30 de Agosto de 2023, o réu deixou, em definitivo, de exercer qualquer actividade comercial no arrendado, tendo colocado na porta do arrendado um dístico anunciando “este estabelecimento encontra-se encerrado definitivamente”.


7. A acção foi instaurada a 30.08.2023.


8. Corre termos o processo administrativo n.º ...2/VT/2014, na ... - Urbanismo e Habitação, EM, no âmbito do qual a autora foi notificada para proceder a obras necessárias de conservação e manutenção da segurança, salubridade e habitabilidade do imóvel.


9. Tais obras incluíam intervenções na fachada e na cobertura dos edifícios e ainda, no espaço comercial, a reparação do tecto e do reboco das paredes afectados pelas humidades, a pintura geral do espaço, a ligação da rede interna de abastecimento de água à rede pública e a ligação da rede interna de drenagem das águas residuais à rede pública de saneamento.


10. A ré não realizou a totalidade das obras que foram determinadas nesse processo pela entidade administrativa, designadamente quaisquer obras no interior do arrendado para comércio.


11. Depois de terem encerrado a actividade comercial o réu e a mulher começaram a utilizar o espaço arrendado para mercearia como prolongamento da sua casa, realizando lá actos da sua vida diária.





C. Matéria de Direito:


i. Do encerramento por mais de um ano:


Já foi referido que o contrato de arrendamento que constitui a causa de pedir da acção foi celebrado por escritura pública outorgada em 11 de Março de 1952, com destino ao «exercício do comércio de mercearia, vinhos e batatas e não poderá ser usado para qualquer outro fim». Trata-se, portanto, de um arrendamento comercial, para o exercício do comércio, ou, na sistemática actual, não habitacional.


Por que regime jurídico se rege a relação contratual no tocante à resolução do contrato por factos ocorridos no ano anterior a 30-08-2023?


Nessa data estava em vigor o NRAU aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que, com sucessivas actualização constitui o regime jurídico actual do contrato de arrendamento.


O artigo 59.º do NRAU estabelece no seu n.º 1 que este diploma se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias. As normas transitórias que se encontram previstas no artigo 27.º do NRAU não disciplinam o aspecto dos fundamentos de resolução do contrato pelo senhorio que ora nos prende, razão pela qual este é regulado pela disciplina do Código Civil na redacção reposta pelo NRAU.


A autora instaurou a acção pretendendo exercer o direito a resolver o contrato de arrendamento por incumprimento do inquilino, situando esse incumprimento no ano anterior a 30-08-2023. O incumprimento alegado é o não uso do arrendado para o fim contratado por mais de um ano.


O n.º 1 do artigo 1083.º do Código Civil estabelece que qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte. O n.º 2 especifica que é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio, [alínea d):] o não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º.


Esta norma surge na decorrência do artigo 1072.º do mesmo diploma que no n.º 1 fixa ao arrendatário o dever contratual de fazer uso efectivo do locado, dispondo que ele «deve usar efectivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de um ano».


O não uso do arrendado não é uma pura realidade naturalística, mas antes um facto que tem inerente um sentido e uma intenção normativa. Nessa medida, por se tratar de um conceito normativo, o facto que releva (a previsão) é sempre, necessariamente, dependência do objectivo (fim teleológico) da prescrição que a lei lhe associa (a estatuição).


O contrato de arrendamento tem uma configuração legal particularmente densa e na maior parte das situações o seu regime jurídico é influenciado pelo interesse social e colectivo do mercado do arrendamento para a comunidade . Por isso, existe nesse regime jurídico uma diversidade de aspectos – renda, obras, resolução, renovação, etc. – cuja regulação nada tenha a ver com o comum dos contratos, com a justa composição dos interesses particulares conflituantes, com o normal funcionamento da lógica do mercado e da vontade negocial das pessoas envolvidas.


Se o locatário não aproveita efectivamente o gozo da coisa que lhe é proporcionado pelo contrato de arrendamento, ele não incorre na violação de qualquer obrigação, em sentido técnico-jurídico, emergente do contrato. Simplesmente, ao deixar que a ausência de gozo da coisa ultrapasse uma determinada duração, faculta à parte contrária a possibilidade de derrogar o vínculismo do contrato e lhe pôr termo, pedindo a sua resolução, porque o legislador entendeu que perante esse desinteresse pelo gozo da coisa o senhorio deve ter o direito de resolver o contrato e recuperar o gozo e a disponibilidade do que lhe pertence.


No arrendamento para fins comerciais o arrendatário não incorre em não uso do arrendado quando encerra ao público fora do horário de abertura, nos dias de descanso semanal do estabelecimento comercial ou nos dias de férias do pessoal afecto à exploração do estabelecimento. No entanto, nesses dias o estabelecimento está fechado ao público, está encerrado, não funciona e, como tal, o arrendatário não faz uso efectivo do arrendado.


Para os fins da norma, o não uso do arrendado deverá então corresponder a abandono do arrendado, desperdício das suas faculdades, desaproveitamento dos incrementos proporcionados pelo seu gozo, uma vez que é essa atitude, e apenas quando a mesma se prolonga, pelo menos, por mais de um ano, que faz presumir que o arrendatário abandonou o arrendado e se desinteressou pela sua conservação, causando ao arrendado maior desvalorização da que adviria da normal utilização para os fins do contrato.


O não uso pelo arrendatário só é lícito, nos termos do n.º 2 da norma, em caso de força maior ou de doença; se a ausência, não perdurando há mais de dois anos, for devida ao cumprimento de deveres militares ou profissionais do próprio, do cônjuge ou de quem viva com o arrendatário em união de facto; se a utilização for mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano; se a ausência se dever à prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau de incapacidade igual ou superior a 60%, incluindo a familiares.


No caso, segundo se demonstrou, o arrendatário encerrou definitivamente o estabelecimento comercial que fazia funcionar no arrendado mais de um ano antes da instauração da acção. Estão, por isso, preenchidos os pressupostos legais objectivos do direito à resolução do contrato por parte do senhorio por incumprimento do dever contratual do arrendatário de fazer uso efectivo do arrendado.


Acresce que tratando-se de um encerramento definitivo, manifestando o réu na contestação que isso traduz uma mudança da sua vida (passar a viver apenas das pensões de reforma do casal) e tendo o arrendado a vetustez que tem (só o arrendamento já tem quase de 75 anos), esse incumprimento é grave e pode ter tais consequências sobre a conservação do imóvel que não é exigível ao senhorio a manutenção do contrato.





ii. Do encerramento por caso de força maior:


Uma dos casos em que o não uso do arrendado por mais de um ano é lícito, leia-se, não importa o incumprimento dos deveres do arrendatário em termos de constituir fundamento de resolução do contrato, é o de o não uso se dever a caso de força maior.


O recorrente defende que é o caso.


Porque se trata de um facto impeditivo do direito à resolução, a prova dos pressupostos do caso de força maior é ónus do réu, interessado em impedir a procedência da pretensão do autor que está associada à demonstração dos pressupostos do direito à resolução.


Não parece, contudo, que tenham resultado provados factos que possam traduzir uma situação de força maior.


Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. II, pág. 550, em anotação ao artigo 1093.º do Código Civil, na versão anterior ao RAU, recorda que o relevo da força maior como causa de afastamento do direito à resolução do contrato por falta de utilização do arrendado já vem do artigo 69.º da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948. Apesar dessa antiguidade certo é que o legislador em momento algum definiu o que deve entender-se por caso de força maior.


Na doutrina e na jurisprudência é possível surpreender a esse respeito duas posições distintas: um critério mais subjectivista que coloca o acento tónico na ideia de as circunstância serem tais que tornam compreensível ou aceitável a não utilização do arrendado e um critério mais objectivista que remete essencialmente para as situações em que se pode considerar que essa utilização foi impedida ou impossibilitada por forças estranhas ao arrendatário.


Para Antunes Varela, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 119º, pág. 275, “ao afastar o direito de resolução do arrendamento … sempre que o facto atribuído ao arrendatário resulte de caso de força maior ou de doença, a lei quer efectivamente abranger os casos em que a desabitação ou a falta de residência permanente se torne compreensível, aceitável, perfeitamente explicável, em consequência de tais factos exteriores à pessoa do locatário (...), normalmente imprevisíveis ou pelo menos imprevistos, cuja força é superior à vontade normal do homem, que estão na origem da situação”. E mais à frente acentua que o “essencial é que torne-se compreensível, justificável, perfeitamente razoável, aos olhos de um julgador compreensivo e avisado, seja o facto da não ocupação, seja o da não fixação de residência permanente no imóvel arrendado” – no mesmo sentido, cf. Januário Gomes, in Arrendamentos para habitação, 1994, pág. 234, Pais de Sousa, in Anotações ao RAU, 1994, pág. 189, nota 5, Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, 5.ª edição, pág. 393 –.


Para Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, 1996, pág. 676 e seg. e 699 e seg., a expressão caso de força maior, que provém já do artigo 5.º da Lei n.º 1662, de 4 de Setembro de 1924, representa uma “sobrevivência da lei antiga, obsoleta e desenquadrada da nova realidade legislativa criada pelo Código Civil”, pelo que deverá ser interpretada, actualizadamente, como concretização particular do princípio geral do artigo 790.º, n.º 1, do Código Civil, de que “a obrigação se extingue quando a prestação se torne impossível por causa não imputável ao devedor”. Para este autor, que afirma rejeitar “categoricamente” a posição de Antunes Varela, “o alcance da expressão força maior, usado neste preceito, deverá compreender assim, na nossa opinião, as hipóteses tradicionalmente apresentadas como ilustrações da força maior e do caso fortuito, mas enformadas segundo o molde do artigo 790-1 do Código Civil, isto é, modelando-se como uma impossibilidade de ocupação do prédio, que seja objectiva, e não imputável ao arrendatário”. Mais à frente acrescenta que “a facti species legal forma um conceito objectivamente delimitado como uma impossibilidade, não uma simples dificultas praestandi, e não como uma causa de justificação ou de não exigibilidade, analisável pela óptica da razoabilidade do não uso”.


Se tivermos em conta que estas duas teses foram enunciadas num momento em que de acordo com os dados legais os fundamentos de resolução do contrato eram taxativos e operavam automaticamente desde que estivessem reunidos os requisitos da previsão legal respectiva, independentemente do respectivo grau de gravidade, é fácil perceber que a tese de Antunes Varela representava afinal um corte profundo no funcionamento imperativo e automático das causas de resolução, ao permitir discutir, através da sua caracterização como caso de força maior, se determinadas circunstâncias tornavam ou não aceitável, compreensível, justificável o incumprimento do arrendatário e afastar o direito do senhorio à resolução.


A nosso ver, esta constatação obriga a recolocar a discussão em função da actual configuração legal do regime da resolução do contrato de arrendamento. A partir do momento em que a resolução passou a poder ser decretada com fundamento em qualquer incumprimento contratual do arrendatário mas, em simultâneo, passou a ser indispensável para o efeito que o incumprimento tenha um grau de gravidade ou consequências tais que torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, parece não fazer qualquer sentido que o mesmo instituto jurídico tenha afinal duas previsões relacionadas com a mesma questão.


Com efeito, saber se no caso o incumprimento (v.g. o não uso por mais de um ano) teve tal gravidade ou consequências que tornaram inexigível a manutenção do arrendado é ainda e sempre saber se esse incumprimento é razoável, tolerável, justificável pelas circunstâncias concretas em que ocorreu.


O que significa que a qualificação do não uso como fruto de um caso de força maior não deve mais reconduzir-se essencialmente a saber se, nas concretas circunstâncias, ele é “compreensível, justificável, perfeitamente razoável, aos olhos de um julgador compreensivo e avisado”, porque esse é afinal o objecto da outra parte da norma legal que se refere à qualificação do não uso como suficientemente grave para tornar inexigível a manutenção do contrato.


Presumindo-se, como se deve (presumir), que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e que a redacção da norma legal é coerente e acertada, cremos, portanto, que na actual conformação deste instituto jurídico, deve considerar-se acolhido na lei o conceito de caso de força maior defendido por Pinto Furtado.


Por outras palavras, para tornar lícito o não uso do arrendado por mais de um ano devem aceitar-se como casos de força maior apenas os eventos exteriores ao arrendatário, imprevisíveis ou insusceptíveis de serem evitados ou de lhes resistir, cujos efeitos superam a vontade do arrendatário, tornando objectivamente impossível que ele se mantenha, provisoriamente, no uso do arrendado.


Dito isto, cabe então perguntar se nos factos provados se encontra traduzido um caso de força maior para o não uso do arrendado. Com todo o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos que a resposta só pode ser negativa.


Desde logo porque não se retira da fundamentação de facto qualquer facto que evidencie uma situação objectiva que tenha impossibilitado a manutenção do uso do arrendado para o exercício do comércio. Sabe-se que o arrendado carece de obras e de obras de alguma dimensão, mas nem a Câmara Municipal concluiu ainda que o estado de conservação do imóvel obrigue à respectiva desocupação.


Aliás, é o próprio comportamento do réu que revela isso. Admitindo que continuou a usar o espaço mas agora para a sua própria habitação, em complemento do espaço arrendado para habitação, o réu está a admitir que, apesar de tudo, o arrendado continua a ter condições para ser usado pelo homem, não se vislumbrando que a utilização para habitação ou para complemento das necessidades de habitação represente uma atenuação das necessidades que a exploração do comércio gerava no tocante à conservação do imóvel.


Acresce que não consta dos autos qualquer descrição do que era o estabelecimento comercial, do aviamento que tinha, da quantidade de pessoas ou clientes que acediam e/ou permaneciam no espaço. Por isso mesmo, é impossível atender a circunstâncias dessa natureza para incrementar as necessidades de conservação e salubridade do arrendado onde funcionava o estabelecimento.


Vendo as fotografias que acompanham o processo administrativo junto aos autos, onde o estabelecimento, a certa altura já é designado por “mercearia/comércio de vinhos”, não custa admitir que se tratava se um estabelecimento profundamente desorganizado, desleixado, feio, sem salubridade, sem asseio, com produtos velhos e envelhecidos, inapto para atrair clientes, que decerto funcionaria decerto praticamente apenas como local de venda e consumo de vinho (vulgo “tasca”) e, portanto, com um funcionamento reduzido, praticamente nulo.


Por tudo isso, sendo embora certo que as condições do imóvel não ajudavam, é manifesto que o encerramento do estabelecimento não se deu por esse motivo ou apenas por esse motivo, mas essencialmente pelo desleixo, desinteresse, incapacidade, impreparação e inabilidade do réu para a actividade comercial e pela absoluta ausência de rendibilidade da sua exploração.


Em suma, considerando que a força maior remete para eventos exteriores ao arrendatário, imprevisíveis ou insusceptíveis de serem evitados ou de lhes resistir, cujos efeitos superam a vontade do arrendatário, entendemos que não está demonstrado que o encerramento do estabelecimento tenha sido devido a um caso de força maior.





iii. Do abuso do direito:


O recorrente defende que a pretensão do senhorio de resolver o contrato com fundamento no encerramento do arrendado por mais de um ano constitui um abuso do direito, porque o senhorio apesar de repetidamente notificado para executar obras não as executou, fazendo com que o espaço deixasse de ter condições mínimas para vender ao público e dando causa ao encerramento.


O artigo 334.º do Código Civil define a figura do abuso do direito, estabelecendo que o exercício de um direito é ilegítimo «quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».


Segundo Castanheira Neves, in Lições de Introdução ao Estudo do Direito, edição copiografada, Coimbra, 1968/69, pág. 391, entende-se por exercício abusivo do direito «um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica - por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde - e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício». O mesmo autor, in Questão-de-facto - questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade, I, Coimbra 1967, pág. 513 e seguintes, sublinha que o abuso do direito é «um princípio geral de validade independente das específicas formulações que o concretizem».


O instituto do abuso do direito visa impedir situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante ou apresenta uma «contrariedade clamorosa ao sentimento jurídico dominante na comunidade» - cf. Manuel de Andrade, in Teoria Geral das Obrigações, 1, 2.ª ed., Coimbra, 1963, pág. 63 e seg. -. E isso é assim porque no exercício dos seus direitos toda a pessoa deve adoptar um comportamento honesto, correcto e leal, respeitando e correspondendo às legítimas expectativas que criou em outrem.


Este instituto afirma a supremacia dos limites impostos designadamente pelos bons costumes sobre as actuações humanas. A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.


Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 5.ª edição, pág. 260, afirma que «o direito subjectivo é substancialmente funcional, tem um sentido de utilidade que se perde se não tiver em atenção qual o fim do titular que deve realizar – ou contribuir para realizar – com êxito, e o bem que vai ser afectado à realização desse fim. Nesta perspectiva, a substância do direito subjectivo resulta do nexo funcional existente entre uma tríade de realidades: a pessoa, o seu fim e o meio utilizado para o realizar».


“O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito, casos em que se excede os limites impostos pela boa fé” – apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in Colectânea de Jurisprudência - AcSTJ, 1996, tomo III, pág. 117. Para o efeito, não é necessário que a parte tenha a consciência de com a sua actuação exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, basta que objectivamente esse excesso ocorra – cf. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 7ª edição, pág. 536 –.


Existem diversas figuras típicas que encerram uma violação desse dever de actuação conforme às expectativas criadas e que reconhecidamente constituem exercícios abusivos do direito. Conta-se entre elas o chamado venire contra factum proprium que se reconduz à situação em que o titular do direito adopta um comportamento capaz de criar no outro pólo da relação jurídica a expectativa de que o direito é concebido e será exercido pelo seu titular em consonância com o significado desse comportamento, mas depois vem a actuar em contradição ou desconformidade com o comportamento anterior, frustrando aquela confiança.


Subjacente ao conceito do venire contra factum proprium está a ideia de que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devem ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida da relação, acreditou na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta do mesmo agente.


Para Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil, pág. 745, «o venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro - o factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo». Para este autor, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, pág. 964, os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium” são quatro; «1.º Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2.º Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3.º Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4.º Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.»


Para Paulo Mota Pinto, Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil, in Boletim da Faculdade de Direito, Volume comemorativo do 75º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito, 2003, pág. 302 e seguintes, o venire contra factum proprium possui pressupostos imprescindíveis. Assim, «… deverá, antes de mais, existir um comportamento anterior do agente - o “factum proprium” a que se refere a expressão -, que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. ... Depois, há que apurar a imputação ao agente, quer desse comportamento anterior, quer do actual comportamento. … em regra, não poderá prescindir-se da culpa (apenas poderá abrir-se uma excepção, a nosso ver, quando o factum proprium fundou, embora sem culpa, determinadas expectativas na outra parte, por exemplo, por lhe terem sido prestadas informações jurídicas erradas, por o agente dispor de uma posição de superioridade ou ser, de outra forma, responsável pela ineficácia de uma vinculação na qual a outra parte confiou). … Em terceiro lugar, há que verificar a necessidade e o merecimento de protecção do atingido com a conduta contraditória. Assim, este tem de estar de boa fé, isto é, há-de ter confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando não culposamente eventuais intenções contrárias do agente. … Por outro lado, importa apurar a existência e o tipo de “disposição” levada a cabo, ou seja, o “investimento de confiança”, ou baseado na confiança, realizado, sendo que este pode traduzir-se, por exemplo, da realização de uma contraprestação. A sua irreversibilidade ou a eventual afectação da situação existencial daquele que confiou, por virtude da frustração desse “investimento”, … serão elementos cuja presença reforça a conclusão de proibição da conduta contraditória. Terá também de existir causalidade, quer entre a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, quer entre esta e a “disposição” (causadora do dano) levada a cabo. Para que o agente seja responsável - rectius, para que seja impedido de venire contra factum proprium - o investimento de confiança tem, pois, de ser causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada».


Todavia, como logo adverte este autor, «deve rejeitar-se a aplicação automática dos pressupostos mencionados, após a sua enumeração e verificação no caso concreto. Antes todos deverão ser globalmente ponderados, in concreto, pata se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta-com os ditames da boa fé em sentido objectivo».


Façamos agora a aplicação desta doutrina ao caso concreto.


O arrendamento teve início há quase …75 anos atrás!


O imóvel arrendado foi, por certo, construído com os materiais normalmente usados nessa época (como se observa nas fotografias juntas o imóvel é de argamassa de areia e cal, denominada adobe).


Esses materiais degradam-se de forma acentuada com o tempo e a erosão, razão pela qual, face ao tempo decorrido sobre o início do arrendamento (desconhece-se quanta antiguidade mais o imóvel tem, mas a primeira aquisição lavrada no registo predial é de …1913), o estado de degradação intensa que o imóvel apresente (apresenta) é inevitável, excepto se tivesse sido objecto de obras profundas que tivessem modificado quase por completo os materiais dos quais é feito.


Não consta dos autos qualquer descrição mínima do que era ou foi ao longo do tempo o estabelecimento a funcionar no arrendado. Vendo as fotografias juntas percebe-se que pelo menos nos últimos anos, independentemente das características do espaço que ocupava, era um estabelecimento sem as mínimas condições para funcionar, uma tasca sem condições de higiene, salubridade ou organização, que mais não atenderia que um ou outro cliente habitual que o frequentava para nele consumir vinho. Não resulta da fundamentação de facto que esse estado do estabelecimento tivesse sido alcançado por causa das características do imóvel e do respectivo estado de conservação.


O imóvel não possuí sequer ligação a serviços essenciais como a «ligação da rede interna de abastecimento de água à rede pública» e a «ligação da rede interna de drenagem das águas residuais à rede pública de saneamento» (informação da Câmara Municipal). Porém, o imóvel nunca possuiu essas ligações, foi arrendado sem elas, não sendo imputável ao senhorio a realização de obras para melhorar o arrendado e dotá-lo de características que ele nunca teve, ainda que, entretanto, elas se tenham tornado indispensáveis para o funcionamento de um estabelecimento comercial.


Por fim, o réu admite que passou a ocupar o espaço para outra finalidade que não aquela para a qual foi celebrado o arrendamento. Conforme já foi referido, essa utilização do arrendado revela que este continua a ter condições para ser usado pelo homem. Por esse motivo, para se poder falar em abuso do direito, era indispensável que tivesse sido demonstrada a relação de causalidade entre a ausência de obras de conservação e a perda de condições para o espaço poder continuar a ser usado para o comércio, o que, de todo não resulta da fundamentação de facto.


Por tudo isso, afigura-se-nos não ser possível concluir que a pretensão da autora constitua um abuso do direito à resolução.





V. Dispositivo:


Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar os recursos improcedentes e, em consequência, confirmam a decisão que julgou o réu parte legítima e bem assim a sentença recorrida.


Custas do recurso pelo recorrente, sendo que por beneficiar da dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos não as paga, cabendo ao IGFEJ a responsabilidade pelo pagamento à recorrida, a título de custas de parte, do valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.









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Porto, 10 de Julho de 2025.



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Os Juízes Desembargadores

Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 897)

1.º Adjunto: Paulo Duarte Mesquita Teixeira

2.º Adjunto: José Manuel Monteiro Correia













[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]