Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3082/22.0T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
NOTIFICAÇÃO PARA PREFERIR
DECLARAÇÃO DE PREFERÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Nº do Documento: RP202509293082/22.0T8AVR.P1
Data do Acordão: 09/29/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A comunicação do obrigado à preferência, contendo todos os elementos necessários à decisão do preferente, configura uma proposta contratual que, uma vez aceite, se torna vinculativa para ambos.
II - Nesse contexto, pode o contrato ficar desde logo concluído, se as partes manifestarem a vontade de uma vinculação definitiva, com observância da forma legalmente imposta. Quando assim não aconteça, a notificação para preferir e a declaração da preferência formam, pelo seu encontro, um contrato-promessa.
III - A execução específica do contrato promessa pode ter lugar não só em caso de mora, mas também em situações de incumprimento definitivo, desde que o credor não tenha objetivamente perdido o interesse na prestação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3082/22.0T8AVR.P1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro - Juízo Central Cível, Juiz …

Relator: Miguel Baldaia Morais

1ª Adjunta Desª. Teresa Pinto da Silva

2º Adjunto Des. Nuno Freitas Araújo


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SUMÁRIO

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:



I- RELATÓRIO

AA intentou a presente ação declarativa sob a forma comum contra BB e CC, alegando, para tanto, e em resumo, que:

. É arrendatária dos réus, tendo o contrato de arrendamento por objeto mediato a fração autónoma designada pelas letras “AS”, correspondente ao ... andar direito frente, do prédio urbano sito na Av. ..., ..., ... Aveiro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...4 da união de freguesias ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o número ...99 da freguesia ...;

. Os réus, em maio de 2022, enviaram-lhe uma carta comunicando-lhe que pretendiam vender a indicada fração autónoma, interpelando-a para, caso assim pretendesse, exercer o direito de preferência, encontrando-se a escritura agendada para o dia 09 de junho desse mesmo ano;

. Em resposta, a autora comunicou-lhes a intenção de exercer esse direito;

. Após essa resposta a autora diligenciou pela obtenção de crédito bancário;

. No dia 31 de maio de 2022 recebeu uma missiva dos réus informando-a que estes já não iam proceder à venda do imóvel.

Conclui pedindo que:

(a) seja declarada – em virtude do exercício do direito legal de preferência, por parte da autora, no seguimento da proposta contratual irrevogável adveniente da notificação para preferência – a existência de um contrato-promessa, com eficácia real, tendo por objeto a referida fração autónoma;

(b) seja – face à não emissão, pelos réus, da declaração de venda prometida – proferida sentença que produza os efeitos jurídicos da declaração negocial da parte faltosa;

Sem conceder, e apenas subsidiariamente, serem os réus condenados a pagar à Autora a quantia de € 155.768,54, acrescida de juros de mora a contar desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

Os réus contestaram alegando, em resumo, que:

. A autora sempre encarou a troca de correspondência realizada entre si e os réus, como negociações pré-contratuais e nunca como um contrato promessa de compra e venda;

. Os réus desistiram da venda do imóvel porque perceberam que seria um mau negócio;

. A autora age em abuso de direito, não sendo suposto o titular do direito de preferência aproveitar-se dele para enriquecer como parece ser intenção da demandante ao invocar o preço de revenda;

. A considerar-se existir contrato promessa, ocorreu incumprimento definitivo, razão pela qual não há lugar à impetrada execução específica.

Dispensou-se a realização de audiência prévia, sendo proferido despacho saneador em termos tabelares, definindo-se o objeto do litígio e os temas da prova.

Foi realizada a audiência final, vindo a ser proferida sentença na qual se decidiu «declarar transmitida para a autora o direito de propriedade da fração autónoma designada pelas letras “AS”, correspondente ao ... andar direito frente, do prédio urbano sito na Av. ..., ..., ... Aveiro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...4 da união de freguesias ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o número ...99 da freguesia ....

Mais se determina que a autora proceda ao depósito da quantia de 240.646,86 €, à ordem deste processo, no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão, ficando os efeitos da sentença suspensos até que se concretize esse depósito».

Não se conformando com o assim decidido vieram os réus interpor o presente recurso de apelação, admitido a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentaram alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

(…)

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A autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.


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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.

Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes:

. da natureza da declaração/comunicação que os réus dirigiram à autora em 3 de maio de 2022;

. na hipótese de se considerar que o relacionamento negocial estabelecido entre as partes é passível de consubstanciar um contrato promessa, apurar se o mesmo goza de eficácia real e bem assim se é passível de execução específica;

. da (in)existência de abuso de direito no comportamento assumido pela autora no seu relacionamento com os demandados.


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III. FUNDAMENTOS DE FACTO

O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte factualidade:

1 - Os Réus são donos da fração autónoma designada pelas letras “AS”, correspondente ao ... andar direito frente, do prédio urbano sito na Av. ..., ..., ... Aveiro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...4 da união de freguesias ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o número ...99 da freguesia ....

2 - O Réu marido adquiriu, no estado de casado sob o regime da comunhão de adquiridos, a fração autónoma id. em 1.º a «A..., Lda.», por compra e venda registada em 21/10/2014.

3 - Ainda antes da aquisição de tal bem pelos Réus, em 25/11/2013 a “A..., Lda.” e a Autora haviam acordaram na cedência, por parte da primeira à segunda, da fração id. em 1.º para gozo e fruição desta última, mediante o pagamento de um preço mensal de € 650,00.

4 - Na sequência da mencionada compra do imóvel por parte do Réu, o contrato de arrendamento que existia entre a anterior proprietária A... - e a aqui Autora, prevaleceu em vigor, intacto e com os mesmos termos anteriormente acordados.

5 – Nos termos da cláusula 1 do contrato referido em 3.º o prazo de duração do arrendamento é de cinco anos com início em 01/01/2014 e termo em 31/12/2019, entretanto renovado.

6 - Os Réus, em 10/04/2014, constituíram seu procurador o Dr. DD.

7 - Em 26/11/2020 os Réus, por intermédio de Advogado, comunicaram à Autora a sua intenção de transmitir a fração autónoma id. em 1.º pelo preço de € 300.000,00, questionando-a se a pretendia adquirir, atenta a sua posição de arrendatária.

8 – Essa venda acabou por não se concretizar.

9 - Em 23/03/2021 os Réus, novamente por intermédio de Advogado e para os mesmos efeitos, comunicaram à Autora a sua intenção de transmitir a terceiro a mesma fração, agora pelo preço de € 247.500,00.

10 –A venda do imóvel, também desta vez, acabou por não se realizar.

11 - No dia 03/05/2022 os Réus, por intermédio do seu procurador, enviaram uma carta à Autora com o seguinte teor:

«Exma. Senhora,

Na qualidade de procurador de BB, proprietário da fração autónoma designada pelas letras “AS” correspondente ao ... andar direito frente do prédio sito na Avenida ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artº ...4 da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro no nº ...99 da freguesia ..., venho cumprir o dever de comunicar, para efeitos do exercício do direito de preferência a intenção de proceder à venda da mesma a B..., Ltda, nas seguintes condições:

Preço; euros 240.646,86

Pagamento no ato da escritura através de cheque bancário ou cheque visado à ordem do vendedor.

Data da escritura; 09 de junho de 2022 pelas 14,30 horas no cartório da notária EE, Rua ... ... ....

Deverá assim V. Exa no prazo de 30 dias, após a receção desta carta, comunicar se pretende exercer o direito de preferência, como arrendatária e em caso afirmativo depositar no referido cartório notarial todos os documentos que competem ao comprador para outorgar a escritura de compra.”

12 - No dia 09 de Maio de 2022 o mandatário da Autora remeteu um email ao então mandatária dos Réus, apenas rececionado no dia 10 de maio de 2022, por lapso de escrita do endereço de e-mail com o seguinte teor:

Bom dia, Exmo. Sr. Dr. FF, M.I. Advogado

(…)

Na qualidade de mandatário da Srª. AA – e após ter contactado o Dr. DD, que me forneceu o contacto do Exmo. Colega – venho por este meio transmitir e solicitar o seguinte:

A minha cliente (arrendatária da fração autónoma designada pelas letras AS (…) recebeu comunicação para exercer esse direito de preferência, indo recorrer a financiamento bancário (já pré-aprovado), para o efeito e necessita para tal:

a) Plantas do edifício e da fração;

b) Certidão de registo predial da fração e do prédio;

c) (…)

f) Licença de utilização.

Para escritura/DPA será, ainda, necessária a comunicação para efeitos de direito legal de preferência, declaração da administração do condomínio de inexistência de dívidas e os dados completos do proprietário de que não disponho.

Mais sugiro – por me parecer conveniente para ambas as partes – a assinatura de um contrato promessa de compra e venda, tendo por objeto o negócio referido.

13 - No dia 10/05/2022, a Autora enviou uma carta ao procurador dos Réus, com o seguinte teor:

«Assunto: Exercício do Direito de Preferência

Exmo. Sr. Dr. DD,

Acuso a receção da sua missiva datada de 03/05/2022, que mereceu a minha melhor atenção.

Em resposta à mesma venho informar que pretendo exercer o direito de preferência que, enquanto arrendatária, me assiste relativamente à compra e venda da fração autónoma designada pelas letras “AS”, correspondente ao ... andar direito frente do prédio sito na Avenida ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...4 da união de freguesias ... e ..., concelho ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o número ...99 da freguesia ..., propriedade de BB, do qual V. Exa. é procurador.

O direito de preferência é exercido pelo preço indicado (€240.646,86), sendo pago no ato da celebração do contrato definitivo, a 09/06/2022, por cheque bancário ou visado à ordem do vendedor.

Mais informo que, para o ato da compra, irei recorrer a financiamento bancário (já pré-aprovado), para o que necessito que V. Exa. me faça chegar, por correio ou por e-mail, os seguintes elementos:

a) Plantas do edifício e da fração;

b) Certidão de registo predial da fração e do prédio;

c) Caderneta predial urbana;

d) Certificado energético;

e) Ficha técnica da habitação; e

f) Licença de utilização.

Solicito os melhores ofícios de V. Exa. no sentido da célere disponibilização dos elementos referidos, uma vez que de tal depende a conclusão do processo de avaliação para o financiamento bancário, a fim de ser possível a celebração do negócio no dia 09/06/2022.

Para a celebração do contrato definitivo será, ainda, necessária a comunicação para efeitos de direito legal de preferência, declaração da administração do condomínio de inexistência de dívidas e os dados completos do proprietário de que não disponho.

O contrato prometido deverá ser realizado no local que vier a ser indicado pela instituição bancária junto da qual irei contratar o crédito à habitação (sem prejuízo de, sendo possível, se realizar no Cartório Notarial indicado por V. Exa.)”.

14 – Em resposta ao mail referido em 12, o então advogado dos réus enviou, no dia 17 de maio de 2022, um email ao mandatário da Autora com o seguinte teor:

«Exmo. Colega.

Acuso a receção do seu e-mail de 10 de maio, o qual mereceu a minha melhor atenção.

Quanto aos elementos que me solicita (…)

Por último, não vejo necessidade de celebrar um CPV, dada a proximidade da data a fazer escritura.

Fico ao dispor para qualquer outra questão”.

15 - No dia 18/05/2022 os Réus, por intermédio do seu procurador, remeteram à Autora uma carta com o seguinte teor:

“Exma. Senhora,

Em resposta à v/ carta datada de 09/05/2022, envio cópia do e-mail do n/ advogado dirigida ao v/ advogado e que dou aqui por reproduzida.

(…)

Quanto aos elementos que me solicita, os mesmos serão disponibilizados para a outorga da escritura sem os quais a mesma não pode ser realizada.

Salvo o devido respeito por opinião em contrário não estão os vendedores obrigados a satisfazer as exigências que a entidade bancária resolve fazer à S/ cliente nomeadamente submetermo-nos ao local designado pelo Banco para a realização da escritura; Esta questão é para os vendedores relevante porque a escritura foi preparada com o notário que teve de emitir opinião sob os documentos apresentados e até sobre as minutas de procurações, não existindo a garantia que a entidade que o banco escolher para formalizar a escritura aceite os documentos já obtidos. Esta é a razão pela qual na notificação para a preferência à S/ cliente foi dito para depositar no cartório onde a escritura foi agendada todos os documentos que lhe competia apresentar.

Dito isto, nada obsta a fornecer ao Exmo. Colega os elementos que me solicita, a saber:

- certidão do registo predial com o código de acesso ...99;

- caderneta predial urbana;

- certificado energético;

- ficha técnica de habitação; e

- licença de utilização.

Não lhe envio a planta do edifício e da fração por não a possuir nem ser exigível.

Por último, não vejo necessidade de celebrar um CPV, dada a proximidade da data a fazer a escritura.»

16 - Os Réus, por intermédio dos seus procurador e mandatário, fizeram chegar à Autora a caderneta predial urbana, a descrição predial da Conservatória, a licença de utilização, o certificado energético e a ficha técnica da habitação

17 - No dia 31/05/2022 a Autora recebeu uma missiva dos Réus, por intermédio do seu procurador, com o seguinte teor:

«Exma. Senhora,

Na qualidade de procurador do Senhor BB, proprietário da fração autónoma designada pelas letras “AS” correspondente ao ... andar direito do prédio sito na Avenida ..., Inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...4 da união de freguesias ... e ..., concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o nº ...99-... (doravante o “Imóvel”), e relativamente à notificação efetuada a V. Exa. por carta registada com AR de 03 de maio de 2022 para o exercício do direito de preferência na compra do Imóvel, cumpre-me informar que o Senhor BB já não vai proceder à respetiva venda, pelo que aquela notificação efetuada a V. Exa. se deve considerar sem efeito, em virtude de dificuldades burocráticas e fiscais que impedem a realização dessa venda, pelo que desistiu de a concretizar».

18 - A fração autónoma em causa foi avaliada no relatório da avaliação da «C..., S.A.», quer segundo o método comparativo, quer segundo o método do custo pelo valor de 390.600,00€, sendo que pelas suas características e pela atual conjuntura de mercado, é vendável por esse preço.

19 - A Autora pagou, em 19/05/2022, ao «Banco 1..., S.A.», €239,20 a título de comissão de avaliação do imóvel e € 291,20 a título de comissão de dossier pela abertura do processo de financiamento.

20 - Pagou, em 09/05/2022 e 23/05/2022, € 123,00 ao seu mandatário, a título de honorários pré-judiciais.

21 - Despendeu um número não inferior a 10 horas em reuniões e contactos com o seu mandatário, com o «Banco 1..., S.A.» e com a «A..., Lda.» para exercer o seu direito de preferência e diligenciar pela obtenção de financiamento bancário que lhe permitisse estar em condições de celebrar o negócio a 09/06/2022.

22 - A Autora exerce, como trabalhadora independente, as atividades de profissional de seguros e consultora.

23 - Fatura/aufere, em média, €2.500,00 por mês.

24 – Pagou € 12,00 ao Cartório Notarial para obter uma cópia da procuração conferida pelos Réus ao Dr. DD.

25 - O súbito e inesperado cancelamento unilateral do negócio por parte dos Réus abalou, profundamente, a Autora, que se sentiu defraudada e revoltada com o sucedido.

26 - A Autora reside no apartamento desde 01/01/2014 e nele sente-se em casa e era (e é) nele que gostaria de continuar a viver.

27 – Os Réus desistiram da venda do negócio devido à melhoria das suas condições financeiras e porque entenderam que seria um mau negócio.


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O tribunal de 1ª instância considerou não provado que contrariamente ao referido pelos Réus nas suas missivas, a escritura de compra e venda para 09/06/2022, às 14h30m, nunca chegasse a estar agendada e não fosse preparada com a Senhora Notária.

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IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

IV.1. Da natureza da declaração/comunicação que os réus dirigiram à autora em 3 de maio de 2022

Resulta do quadro factual apurado (que não foi alvo de impugnação em sede recursiva) que entre a autora (como inquilina) e os réus (como senhorios) vigora um contrato de arrendamento para fins habitacionais, que se iniciou em 25 de novembro de 2013, tendo por objeto mediato a fração autónoma designada pelas letras “AS”, correspondente ao ... andar direito frente, do prédio urbano sito na Avª. ..., ..., ... Aveiro, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...4 da união de freguesias ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o número ...99 da freguesia ....

Em virtude de os réus pretenderem proceder à venda da indicada fração, por carta datada de 3 de maio de 2022, comunicaram à autora essa intenção, interpelando-a para, caso assim pretendesse, exercer o direito de preferência que legalmente lhe é conferido pelo artigo 1091º do Cód. Civil[1] (por ser arrendatária há mais de dois anos), informando-a ainda que a escritura destinada a formalizar esse contrato alienatório estava agendada para o dia 9 de junho desse mesmo ano.

Em resposta a essa interpelação a autora/inquilina manifestou-se no sentido de pretender exercer esse direito, aceitando adquirir o imóvel pelo indicado valor de €240.646,86, transmitindo inclusive aos senhorios que para efeito de pagamento desse montante iria recorrer a crédito bancário.

Sucede, todavia, que, após a receção dessa comunicação, os réus, em 31 de maio, enviaram à autora uma missiva informando-a que, afinal, já não pretendiam proceder à projetada venda.

Na presença dessa materialidade, o decisor de 1ª instância considerou que, em resultado das comunicações estabelecidas entre as partes, foi celebrado um verdadeiro contrato promessa de compra e venda, em razão do que estariam os réus/senhorios obrigados a celebrar o contrato prometido, reconhecendo ainda que, pelo facto de não o terem feito voluntariamente, estaria legitimado o recurso à execução específica, o que decretou no dispositivo da sentença recorrida.

Os apelantes rebelam-se contra esse segmento decisório argumentando, fundamentalmente, que a notificação que, em 3 de maio de 2022, efetuaram à autora/inquilina constituiu um mero convite a preferir, sendo que isso mesmo resulta das comunicações que trocaram, nomeadamente do e-mail que aquela lhes dirigiu em 9 de maio de 2022, onde, para além do mais, se refere que “mais sugiro – por me parecer conveniente para ambas as partes – a assinatura de um contrato promessa de compra e venda, tendo por objeto o negócio referido”, o que, na sua perspetiva, evidencia que as partes se encontravam ainda numa fase pré-contratual, tanto mais que ainda não tinham sequer acertado o local da celebração da escritura.

Que dizer?

Como emerge do art. 416º do Cód. Civil, efetuada que seja a comunicação para preferência, o preferente, sob pena de caducidade, tem que exercer o seu direito (potestativo) no prazo legalmente previsto (no caso 30 dias[2]), salvo se o obrigado lhe assinalar um prazo mais longo.

Questão que tem sido colocada é a de saber se partes perderão a liberdade de decidir celebrar ou não o contrato se – como foi o caso - o preferente exercer o direito de preempção dentro do prazo, aceitando as condições propostas pelo sujeito passivo da relação de preferência.

Em conformidade com a referida normatividade, a prestação básica a que o obrigado à preferência se encontra vinculado consiste em apresentar ao beneficiário do direito de preferência uma proposta de contrato com indicação dos elementos essenciais da projetada venda que relevem para a formação da vontade de preferir ou não preferir.

Paralelamente, a declaração de preferência assume o significado de uma aceitação, declaração essa que, como sublinha HENRIQUE MESQUITA[3], “é quanto basta para que o sujeito passivo da preferência fique obrigado a vender a coisa objeto da preferência”, acrescentando, mais adiante, que “o que existia até esse momento, como efeito da notificação, era um direito de natureza potestativa, de cujo exercício, traduzido numa declaração de vontade do respetivo titular, dirigida ao sujeito vinculado à preferência, nasce uma nova obrigação a cargo deste – a obrigação de realizar o contrato de alienação com o preferente”.

Nesse contexto, pode o contrato ficar desde logo concluído, se as partes manifestam a vontade de uma vinculação definitiva, com observância da forma legal para aquele necessária. Quando assim não aconteça, na doutrina pátria vem-se considerando, praticamente una voce[4], que, nessa hipótese, a notificação para preferir e a declaração da preferência formam, pelo seu encontro, um contrato-promessa, desde que satisfeita a forma exigida.

Acolhendo esse posicionamento afigura-se-nos, pois, acertada a conclusão vertida no ato decisório sob censura de que, no caso vertente, “a correspondência trocada entre os réus e a autora, configurando uma proposta e uma aceitação, e não podendo o negócio considerar-se, desde logo, como concluído (porque a sua realização obedece a determinado formalismo legal), deverá ser considerada como equiparada à celebração de um contrato promessa (…)”, sendo que “a correspondência trocada entre as partes, tratando-se de documentos assinados pelas partes”, preenche o requisito de forma exigido pelo nº 2 do art. 410º do Cód. Civil.

Os apelantes pretendem afastar esse juízo decisório invocando um duplo fundamento. Desde logo porque, na sua perspetiva, a notificação para preferir que endereçaram à autora “é, no fundo, um convite a contratar cuja dimensão é a autora ficar com a possibilidade de aceitar ou não a proposta”, sendo que “apesar de a autora ter aceite a referida preferência, pelo teor e conteúdo da troca de correspondência efetuada entre as partes, verifica-se que a mesma mais não consubstancia do que uma mera negociação pré-contratual (…), tanto assim que a autora, no e-mail que lhes remeteu no dia 9 de maio de 2022 [que constitui o documento nº 2 junto com a contestação] refere mais sugiro – por me parecer conveniente para ambas as partes – a assinatura de um contrato promessa de compra e venda, tendo por objeto o negócio referido”. Como segundo argumento advogam que o contrato não poderia sequer considerar-se concluído já que as partes ainda não haviam acordado em todas as cláusulas contratuais, concretamente quanto ao local da celebração da escritura e bem assim “nada ter sido estipulado relativamente à aprovação do crédito da autora”, razão pela qual, de acordo com o disposto no art. 232º do Cód. Civil, não se poderia considerar completa a proposta que lhe dirigiram.

No que tange ao primeiro motivo de discordância, contrariamente ao que sustentam os recorrentes, a declaração de preferência que direcionaram à demandante não é, quanto a nós, um mero convite para preferir, mas antes, e verdadeiramente, um convite a contratar.

Isso mesmo tem sido maioritariamente defendido na casuística[5], sublinhando-se que desde que contenha todos os elementos necessários à decisão do preferente, a notificação para preferência valerá como proposta contratual.

De facto, a exigência do nº 1 do citado art. 416º quanto a serem comunicadas as cláusulas do respetivo contrato ilustra, no texto e no sentido, precisamente que não se está a dar conhecimento de uma simples vontade hipotética de se vir a contratar, mas sim de um verdadeiro contrato, construído e completo em todos os seus elementos e que será realizado com outrem, já definido, caso o preferente não esteja interessado. Isto é, o contrato em si mesmo já existe, faltando apenas saber, consoante seja a resposta do preferente, quem e não já o que figurará nele.

Como bem assinala ANTUNES VARELA[6], a comunicação a que alude o referido normativo é diferente daquela outra situação em que seja realizada pelo obrigado à preferência uma comunicação dirigida ao preferente antes de ter qualquer projeto ajustado de venda com terceiro. Como simples prospeção de vontade é de todo admissível que o obrigado à preferência possa indagar junto do preferente se este estará interessado em adquirir caso fosse considerada a venda uma vez que pode, inclusivamente, perante a resposta que for dada (caso seja dada), avançar ou desistir da ideia de vir a realizar a venda elaborando então a proposta com os seus elementos. Não é censurável que um proprietário, seja porque razão seja, não queira que o confinante venha a ficar com o seu prédio em caso de venda e que a disponibilidade para preferir possa determinar decisivamente a resolução de venda. O que não pode é, depois de ter firmado a resolução de vender a outrem que não o preferente e estando o contrato completo nas suas cláusulas, perante a disponibilidade para preferir do confinante, arrepender-se e dizer, “então assim, penso melhor, e já não vendo”.

Em resumo, desde que os requisitos enunciados no nº 1 do art. 416º do Cód. Civil estejam preenchidos, ou seja, desde que a comunicação para preferência contenha os elementos necessários à decisão do preferente, aquela deve ser qualificada como uma proposta de contrato.

Ora, a comunicação que os apelantes dirigiram à autora (cfr. ponto nº 11 dos factos provados) contém todos os elementos que se consideram nucleares ou essenciais para o mencionado efeito, concretamente a existência de um projeto de venda, as cláusulas do contrato projetado, com a identificação concreta do bem a alienar, o tipo de alienação que se pretende levar a cabo, indicação do preço e condições de pagamento e identificação do terceiro interessado[7].

E a essa conclusão não obsta o facto de, no caso sub judicio, no mencionado e-mail (da autoria do mandatário da autora) constar que «mais sugiro – por me parecer conveniente para ambas as partes – a assinatura de um contrato promessa de compra e venda, tendo por objeto o negócio referido».

Com efeito, como deflui do substrato factual apurado (cfr. v.g. pontos nºs 12 e 13 dos factos provados), em todo o processo negocial a demandante sempre transmitiu aos apelantes o firme propósito de querer adquirir o ajuizado imóvel, tendo-os inclusive informado, após ter “aceitado a preferência”, das diligências que estava a desenvolver junto de instituição de crédito para custear o preço da compra. É nesse contexto que deve ser compreendida a afirmação contida no mencionado e-mail de “parecer conveniente para ambas as partes a assinatura de um contrato promessa de compra e venda”, sugestão esta que, como salienta o julgador de 1ª instância, “configura apenas uma tentativa de reforçar a posição da autora [mormente junto da instituição de crédito que a iria financiar], de tornar explícito aquilo que já estava implícito, configurará, porventura, um excesso de zelo. Nunca poderá ser entendido, como pretendem os réus, que, com essa sugestão, a autora demonstrasse que ainda pretendia prosseguir no caminho da negociação. Essa, nitidamente, estava terminada”. Isso mesmo é, aliás, revelado pelo posicionamento assumido pelos demandados em resposta a esse e-mail, não aceitando essa sugestão “dada a proximidade da data marcada para a realização da escritura” (cfr. facto provado nº 14), o que é demonstrativo de que, para os réus, o processo negocial estava findo, faltando apenas formalizar o contrato alienatório.

Portanto, não se antolha em que medida as regras da hermenêutica negocial plasmadas nos arts. 236º e 237º do Cód. Civil possam, no caso, justificar a afirmação tecida pelos apelantes de que, afinal, nessa ocasião as partes ainda estariam em plena fase de negociação pré-negocial, posto que o comportamento de ambas é claramente revelador de que, depois de a autora ter aceitado a proposta contratual que lhe foi dirigida por aqueles, restaria celebrar a escritura pública destinada a documentar a compra e venda da fração autónoma de que é arrendatária.

Também carece de fundamento o segundo argumento invocado pelos apelantes, porquanto o facto de não estar acertado “o local da celebração da escritura” e bem assim “nada ter sido estipulado relativamente à aprovação do crédito da autora” não é impeditivo de que se considere perfectibilizada a proposta contratual e respetiva aceitação, porquanto, na economia do art. 232º do Cód. Civil, não se está em presença de elementos essenciais do contrato que obstem à sua conclusão[8].

Improcedem, assim, as conclusões C) a Q).


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IV.2. Da alegada eficácia real do contrato promessa

Os recorrentes sustentam ainda que, mesmo na hipótese de se considerar estarmos em presença de um contrato promessa de compra e venda, “nunca poderia o mesmo ter eficácia real na medida em que as partes não declararam expressamente atribuir eficácia real ao alegado contrato promessa”.

Trata-se de uma “não questão”, já que em parte alguma da decisão recorrida se afirma ou reconhece que o contrato promessa tenha eficácia real, constituindo, assim, matéria que extravasa os poderes de cognição deste tribunal ad quem, sabido como é que o presente recurso de apelação assume natureza de recurso de reponderação.

Improcedem, pois, as conclusões R) a T).


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IV.3. Da execução específica do contrato

Os apelantes esgrimem ainda o argumento de que, admitindo que entre as partes foi estabelecido um contrato promessa de compra e venda, o mesmo, contrariamente ao que se sentenciou, não é passível de execução específica, em virtude de terem manifestado, de modo inequívoco e absoluto, a vontade de não quererem cumprir o contrato definitivo, o que corresponderá a uma situação de incumprimento definitivo que afastará a aplicabilidade dessa figura.

Já se deu nota que o vinculado à preferência e o preferente, depois de este declarar que quer preferir, ficam reciprocamente constituídos nos direitos e deveres típicos dos contraentes de um contrato promessa, competindo-lhes celebrar o contrato prometido através da formalização das respetivas declarações negociais, sendo certo que em caso de incumprimento de qualquer das partes não está afastada a possibilidade, se necessário, de recorrer ao mecanismo da execução específica contemplado no art. 830º do Cód. Civil[9], mediante sentença que produza os efeitos da declaração do faltoso.

Questão que, neste conspecto, os apelantes colocam é a de saber se essa forma de realização coativa da prestação pode ter lugar numa situação em que expressamente declararam não pretender celebrar o contrato alienatório.

Como a este propósito vem sendo defendido, a possibilidade de execução específica depende da concorrência de várias circunstâncias, quais sejam: (i) Que se verifique o não cumprimento (em sentido lato, bastando a situação de mora do devedor ou, em situações que seriam típicas de incumprimento definitivo, em que o interesse do credor no cumprimento do contrato se mantenha) de um contrato-promessa por parte do demandado; (ii) Que não exista convenção em contrário ou se trate das promessas a que alude o n.º 3 do artigo 410.º do Código Civil; e (iii) Que a natureza da obrigação assumida não seja incompatível com essa forma de execução.

Portanto, no âmbito dos pressupostos substantivos da execução específica encontra-se, desde logo, a existência de uma situação de não cumprimento das obrigações emergentes do contrato-promessa, bastando a ocorrência de uma situação de mora.
De facto, a situação de mora – imputável a um dos promitentes – permite ao contraente não faltoso o recurso à execução específica, discutindo-se, na doutrina e na jurisprudência, se a execução específica é passível de ter lugar no caso de inadimplemento definitivo.

Malgrado não se registe um posicionamento unívoco, a posição que vem sendo maioritariamente sustentada (que igualmente acolhemos) aponta no sentido de que embora a execução específica se baste com a mora no cumprimento de obrigação pelo promitente faltoso, a mesma poderá ainda ter lugar em típicas situações que seriam de incumprimento definitivo, desde que o promitente não incumpridor mantenha o interesse na realização da prestação[10].

É facto que, in casu, os réus, na missiva que remeteram à autora, datada de 31 de maio de 2022, declararam que já não iriam proceder à venda do imóvel por haverem desistido desse propósito, declaração essa que, pelo seu caráter firme e categórico, configura uma situação de incumprimento definitivo[11].

No entanto, considerando que a autora mantém interesse na realização do negócio (interesse esse desde logo revelado pela propositura da presente demanda em que diretamente impetra a execução específica), não se antolham interesses juridicamente relevantes que possam obstaculizar o recurso a essa forma de realização coativa da prestação apesar da afirmada recusa dos apelantes em formalizar o contrato alienatório da fração objeto do direito de preferência legal que àquela assiste. Trata-se, aliás, de entendimento que vem sendo sustentado em análogas situações em diversos arestos dos nossos tribunais[12], enfatizando-se que criada uma situação de incumprimento definitivo pelo promitente faltoso, sendo o contrato prometido possível, e conservando o promitente fiel interesse na outorga da escritura, a execução específica mantém-se viável como forma de proteger a estabilidade da situação jurídica em que assentou o investimento da confiança do promitente não faltoso interessado na concretização do negócio e não na sua resolução.

Impõe-se, por isso, a improcedência da conclusão U).


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IV.4. Do abuso de direito da autora

Os apelantes rematam as suas alegações recursivas advogando que a conduta da demandante configurará abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, argumentando, para tanto, que a mesma atua contraditoriamente “ao invocar na ação que a comunicação de preferência efetuada pelos réus consubstancia em si mesmo um contrato promessa de compra e venda, quando no decorrer das negociações com os aqui recorrentes e, portanto, após ter recebido e aceite a preferência, veio solicitar a celebração entre as partes de um contrato promessa de compra e venda”. Acrescentam ainda que o propósito da autora “é enriquecer à sua (deles, recorrentes) custa, adquirindo o imóvel, não para fazer dele a sua própria habitação, mas para o revender encaixando uma mais-valia de €149.953,14”.

De acordo com a regra que no nosso ordenamento jurídico consagra a aludida figura (cfr. art. 334º do Cód. Civil) “[É] ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Como escreve MENEZES CORDEIRO[13], o abuso do direito constitui uma forma tradicional para exprimir a ideia do exercício disfuncional de posições jurídicas, isto é, do exercício concreto de posições jurídicas que, embora correto em si, acabe por contundir com o sistema jurídico na sua globalidade, ou seja, como um princípio que entende deter uma atuação que, em primeira linha, se apresentaria legítima.

Tanto a nível doutrinário como jurisprudencial o abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, tem vindo a ser encarado à luz da tutela das doutrinas da confiança ou das doutrinas negociais, consoante a situação em apreço, surgindo o princípio da confiança - como ressalta o mencionado autor[14] - “como uma mediação entre a boa-fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas.”

No entanto, como não podia deixar de ser, a tutela da confiança, apoiada na boa-fé, somente pode ser tutelada desde que se verifiquem determinadas condições que o referido autor, em outra obra[15], considera serem as seguintes:

1.ª Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;

2.ª Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível;

3.ª Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;

4.ª A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante; tal pessoa por acto ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.

Em idêntico sentido se expressou BATISTA MACHADO[16], sustentando que a proibição do “venire” se caracteriza pela conformidade à ideia de justiça distributiva que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devam ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida de relação acreditou na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta do mesmo agente e que, por outro lado, seja possível alcançar esse resultado sem sujeitar tal agente a uma obrigação, sem lhe impor a constituição de um vínculo, mas pelo simples de desencadear um efeito inibitório ou inabilitante, que carece de fundamento bem mais ténue que aquele que exigiria a constituição de uma obrigação.

De igual forma, entende o referido Autor que se deve verificar uma situação objectiva de confiança, no sentido de que a confiança digna de tutela tem de radicar numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura e que, directa ou indirectamente, revele a intenção do agente de se considerar vinculado a uma determinada atitude no futuro.

Em segundo lugar, que o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica apenas surjam quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada e que tal dano não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma situação satisfatória, no sentido de que o recurso a esta proibição é sempre um último recurso e, por último, que exista boa-fé da contraparte que confiou e tenha agido com o cuidado e as precauções usuais no tráfico jurídico.

Ainda em idêntico sentido milita ALMEIDA COSTA[17], que considera que a proibição do venire exige, para além da situação objectiva de confiança e a boa-fé do sujeito que confiou, o investimento na confiança que corresponde às mudanças na vida do destinatário do factum proprium que evidenciam tanto a expectativa nele criada como revelam os danos que resultarão da falta de tutela eficaz para aquele, bem como que, subjectivamente, se encontre numa posição de boa-fé, no sentido de que tenha agido na suposição de que o autor do factum proprium estava vinculado a adoptar a conduta prevista e que, ao formar tal convicção tenha tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico, os quais deverão ser tanto maiores quanto mais vultuosos forem os investimentos inspirados na confiança.

Analisados os pressupostos de que se deve fazer depender a aplicação de tal princípio vejamos, agora, por cotejo com a realidade que pode ser colhida nos autos, se os mesmos se verificam, isto é, se é de imputar à autora, uma conduta enformadora de abuso do direito, sendo que este, de acordo com a formulação que do mesmo se colhe no citado art. 334.º, tem de ser manifesto.

Ora, perante o tecido fáctico que logrou demonstração (cfr. v.g. pontos nºs 12 e 13 dos factos provados), não se vislumbra de que forma a atuação da autora em toda a situação que esteve na base da propositura da presente ação declaratória permita afirmar estar a exercer o seu direito em contradição com a sua conduta anterior. Pelo contrário, já que em todo o processo negocial sempre transmitiu aos apelantes o firme propósito de querer adquirir o ajuizado imóvel, tendo-os informado, após ter “aceitado a preferência”, das diligências que estava a desenvolver junto de instituição de crédito para custear o preço da compra. Como anteriormente se referiu, é nesse contexto que deve ser compreendida a afirmação contida no e-mail que o seu mandatário remeteu, em 9 de maio de 2002, à então mandatária dos demandados sugerindo “parecer conveniente para ambas as partes a assinatura de um contrato promessa de compra e venda”, sugestão esta que, como bem nota o juiz a quo, “configura apenas uma tentativa de reforçar a posição da autora [mormente junto da instituição de crédito que a iria financiar], de tornar explícito aquilo que já estava implícito, configurará, porventura, um excesso de zelo. Nunca poderá ser entendido, como pretendem os réus, que, com essa sugestão, a autora demonstrasse que ainda pretendia prosseguir no caminho da negociação. Essa, nitidamente, estava terminada”. Tal é, aliás, revelado pelo posicionamento assumido pelos próprios réus em resposta a esse e-mail, não aceitando essa sugestão “dada a proximidade da data marcada para a realização da escritura” (cfr. facto provado nº 14), o que é demonstrativo de que, para estes, o processo negocial estava findo, faltando apenas formalizar o contrato alienatório.

Inexistem, assim, elementos que, sob um ponto de vista objetivo, permitam suportar conclusão no sentido de que o comportamento da autora havia criado nos réus a fundada expetativa de que as negociações tendentes à aquisição da fração de que aquela é arrendatária ainda haveriam de prosseguir, surgindo a propositura da presente ação de execução específica como “inesperada e contraditória” com a sua atuação anterior.

De igual modo, ao invés do que os apelantes alegam, nada nos autos justifica a afirmação que fazem de que, afinal, a intenção da autora com a propositura “do presente processo é adquirir o imóvel, não para fazer dele a sua própria habitação, mas para a celebração de um negócio promissor, encaixando a quantia de €149.953,14, correspondente à diferença existente entre o preço da compra e o alegado preço de revenda”, sendo que, neste particular, se provou até que “a autora reside no imóvel desde 1 de janeiro de 2014 e nele sente-se em casa e era e é nele que gostaria de continuar a viver” (cfr. ponto nº 26 dos factos provados).

Como assim, por inverificação dos enunciados pressupostos para operância do venire, improcedem, pois, as conclusões V) a AA).


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III. DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas do recurso a cargo dos apelantes (art. 527º, nºs 1 e 2).

Porto, 29.09.2025

Miguel Baldaia de Morais

Teresa Pinto da Silva

Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo


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[1] Que na alínea a) do seu nº 1 dispõe que «O arrendatário tem direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos».
[2] Cfr. art. 1091º, nº 4, do Cód. Civil.
[3] In Obrigações Reais e Ónus Reais, Almedina, 1990, págs. 212 e seguinte.
[4] Cfr., por todos, GALVÃO TELLES, in Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, 2002, págs. 237 e seguinte, ALMEIDA COSTA, in Direito das Obrigações, 5ª edição, Almedina, pág. 355, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 4ª edição revista e atualizada, pág. 391, PINTO OLIVEIRA, in Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, pág. 271, PINTO FURTADO, in Manual do Arrendamento Urbano, vol. II, 5ª edição, Almedina, pág. 829 e LACERDA BARATA, in Da obrigação de preferência, Coimbra Editora, 1990, pág. 144.
[5] Cfr., entre outros, acórdãos do STJ de 23.03.2021 (processo nº 609/19.9T8FND.C1.S1), de 27.11.2018 (processo nº 14589/17.1T8PRT.P1.S1), de 9.03.2021 (processo nº 3218/19.9T8LSB.L1.S1) e de 19.10.2010 (processo nº 155/2002.L1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] In Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 121º, pág. 363.
[7] Os referidos elementos, presentes na aludida notificação para preferência, são aqueles que tanto a jurisprudência como a doutrina vêm entendendo que devem ser comunicados ao titular do direito de preferência – cfr., sobre a questão e por todos, na doutrina, AGOSTINHO GUEDES, in Comentário ao Código Civil – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, págs. 96 e seguintes e LACERDA BARATA, ob. citada, págs. 119 e seguintes; na jurisprudência, acórdãos do STJ de 11.01.2011 (processo nº 4363/07.9TVLSB.L1.S1) e de 23.03.2021 (processo nº 609/19.9T8FND.C1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[8] Sobre a questão vide, por todos, HEIRINCH HÖRSTER, Sobre a formação do contrato segundo os artigos 217º e 218º, 224º e 228º a 235º do Código Civil, in Revista de Direito e Economia, ano IX, págs. 121 e seguintes e JOSÉ ALBERTO VIEIRA, in Do Negócio Jurídico, Coimbra Editora, 2006, pág. 40, onde sublinha que “não obsta à formação do contrato um acordo que deixe alguns aspetos por regular, contanto que a validade do contrato não seja afetada pela omissão”.
[9] Assim, na doutrina, entre outros, MENEZES CORDEIRO, in Direito das Obrigações, vol. I, págs. 257 e seguinte, HENRIQUE MESQUITA, ob. citada, pág. 213 e seguinte, MENEZES LEITÃO, in Direito das Obrigações, vol. I, 4ª edição, Almedina, pág. 240 e PINTO OLIVEIRA, ob. citada, pág. 278; na jurisprudência, acórdão do STJ de 21.02.2006, CJ, Acórdãos do STJ, ano XIV, tomo 1º, pág. 78-80.
[10] Cfr., neste sentido e por todos, na doutrina, CALVÃO DA SILVA, in Sinal e Contrato-Promessa, 12.ª edição, Almedina, pág. 154, JANUÁRIO GOMES, in Em tema de contrato-promessa, AAFDL, 1990, pág. 17, ANTUNES VARELA, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128.º, pág. 119, MENEZES CORDEIRO, in Código Civil Comentado – Das Obrigações em Geral, 2021, Almedina, pág. 1111 e seguinte e ANA AFONSO, in Comentário ao Código Civil – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, pág.1241; na jurisprudência, acórdão do STJ de 7.05.2009 (processo nº 09A0350) e acórdãos da Relação de Lisboa de 16.05.2023 (processo nº 1071/21.7T8BRR-E.L1-1) e de 11.01.2024 (processo nº 5278/21.3T8ALM.L1-2), acessíveis em www.dgsi.pt.
[11] Com efeito, a doutrina pátria vem considerando que, para além das situações contempladas no art. 808º do Cód. Civil, o incumprimento definitivo pode resultar ainda de uma recusa antecipada, categórica e ilegítima de cumprimento por parte do devedor, isto é, de uma declaração deste anunciadora, de modo firme, da sua recusa em vir cumprir o acordo - sobre a questão, e por todos, BRANDÃO PROENÇA, in Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra Editora, 2011, págs. 256 e seguintes.
[12] Cfr., inter alia, acórdãos do STJ de 25.02.2014 (processo nº 1987/1996.E1.S1), de 7.05.2009 (processo nº 09A0350) e de 26.01.2006 (processo nº 05B3996), acessíveis em www.dgsi.pt.
[13]  In Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in agendo, Almedina, 2006, págs. 33 e seguintes.
[14] Ob. citada, pág. 51.
[15] Tratado de Direito Civil Português, Tomo IV, Almedina, págs. 299 e seguintes.
[16] Tutela da confiança e venire contra factum proprium, in Obra Dispersa, vol. I, Scientia Iuridica, 1991, págs. 407 e seguintes.
[17] In Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 129, pág. 62.