Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10461/24.7T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: FALTA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RP2025112410461/24.7T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 11/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A não realização da audiência prévia nos casos em que ela tem que ter lugar (cada um dos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do nº1 do art. 591º) constitui omissão de ato prescrito por lei e, conforme previsão do art. 195º nº1 do CPC, produz nulidade se se considerar que tal irregularidade possa influir no exame ou na decisão da causa.
II – Decidindo-se que essa irregularidade integra nulidade, resultante de omissão de ato que devia ter tido lugar antes do proferimento da decisão recorrida e que pode influir no exame ou na decisão da causa, tal nulidade torna a subsequente decisão de mérito que veio a ser proferida ilegal, determinando a anulação desta e a observância do procedimento omitido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 10461/24.7T8PRT-A.P1

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo

2º Adjunto: Jorge Martins Ribeiro

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

Por apenso aos autos de execução ordinária que AA move a “A..., Unipessoal, Lda.”, veio a executada deduzir oposição à mesma por embargos.

Alegou para tal, em síntese, o seguinte:

- que a exequente alega que lhe emprestou o valor a que se refere o título executivo dado à execução, ou seja, o valor de 25.000,00€, sem que para tal tenha comprovado, documentalmente, a transferência para si de tal valor;

- que aquele valor já foi pago à exequente, como referido em 25/1/2024 ao sócio-gerente da executada pela sua funcionária BB, por mensagem de telemóvel;

- a compensação do crédito da exequente com um seu crédito sobre ela no montante de 63.000,00 €, proveniente de contrato de cessão de créditos que celebrou no dia 23/4/2024 com CC e pelo qual esta lhe cedeu um crédito naquele montante que tem sobre a exequente;

- que não é devido o valor dos honorários peticionados na execução, de 3.600€, uma vez que tal valor só será, eventualmente, devido a título de custas de parte.

Por fim, requereu a condenação da exequente como litigante de má-fé.

A exequente contestou, impugnando a factualidade alegada pela embargante como fundamento dos embargos e, especificamente, impugnando que tenha ocorrido o pagamento por aquela invocado e que seja devedora de qualquer crédito a CC. Referiu ainda que o valor dos honorários reclamados encontra-se expressamente previsto no contrato de mútuo (conforme nº4 da sua cláusula 4ª).

Por despacho proferido a 18/10/2024, foi convidada a embargante a concretizar por que forma e em que data foi realizado o pagamento invocado.

Por requerimento de 31/10/2024, a embargante, respondendo a tal despacho, referiu que apenas a testemunha BB (por si arrolada na petição de embargos), que, à data, exercia as funções de direção operacional da executada, poderá indicar quanto e por que forma pagou o montante peticionado.

A 25/11/2024 foi proferido o seguinte despacho:

O estado dos autos permite o conhecimento imediato do mérito da causa, sendo intenção do tribunal dispensar a audiência prévia para o efeito, caso nada tenham a opor, situação em que deverão manifestar-se, pelo que determino as partes para, querendo, alegar por escrito ou dizer o que tiverem por conveniente.”

A embargada, notificada daquele despacho, veio, por requerimento de 19/12/2024, dizer que nada tinha a opor à dispensa de audiência prévia e a que se conhecesse de imediato do mérito da causa. Nesse seguimento, apresentou alegações nas quais, a final, defende a improcedência dos embargos.

A embargante, notificada daquele despacho, nada veio dizer aos autos.

De seguida, a 30/1/2025, foi proferido saneador-sentença, no qual, a final, se proferiu decisão nos seguintes termos:

Pelo exposto, julgo totalmente improcedentes, por não provados, os presentes embargos de executado, em consequência do que determino a prossecução da execução de que estes autos constituem um apenso.


*

Custas a cargo da embargante/executada (vide art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil).

De tal sentença veio a embargante interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.

O presente recurso é interposto da sentença que julgou improcedentes os embargos de executado, prosseguindo a execução, decisão essa que a Recorrente considera violadora do princípio do contraditório e do direito à prova.

2.

A Recorrente não teve oportunidade de produzir prova essencial para demonstrar a inexistência da obrigação exequenda, uma vez que o Tribunal a quo decidiu o mérito da causa sem audiência prévia, ao abrigo dos artigos 591.º, n.º 1, al. d), 593.º, n.º 1, e 595.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil (CPC), impedindo a adequada instrução probatória.

3.

A Recorrente junta, nos termos do artigo 651.º do CPC, documentos que apenas foram obtidos após a prolação da sentença recorrida e que demonstram inequivocamente a inexistência da dívida exequenda:

a) Extrato bancário de dezembro de 2018, comprovando a ausência de qualquer transferência do montante de EUR 25.000,00 para a conta da Executada;

b) Informação Empresarial Simplificada (IES) de 2018, que demonstra a inexistência de registo contabilístico da dívida alegada;

c) Certidão do Registo Comercial, evidenciando a composição da gerência à data da celebração do título executivo, essencial para a análise da validade do contrato de mútuo.

4.

O contrato de mútuo apresentado como título executivo não preenche os requisitos do artigo 703.º do CPC, pois não comprova inequivocamente a entrega da quantia mutuada, tornando-se, assim, um título inidóneo para efeitos executivos.

5.

A ausência de prova da efetiva entrega da quantia alegada e a existência de contratos de mútuo idênticos, em processos distintos, envolvendo as mesmas partes e montantes, configuram fortes indícios de fraude, carecendo de investigação criminal.

6.

A decisão recorrida violou o direito da Recorrente à produção de prova, essencial para demonstrar a inexistência da obrigação exequenda, pelo que se impõe a sua revogação e a realização de audiência prévia para a devida instrução da causa.

7.

A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 591.º, n.º 1, al. d), 593.º, n.º 1; 595.º, n.º 1, al. b) e 703.º do CPC.

Terminou assim as suas alegações:

Nestes termos, e nos melhores de direito que contam com o suprimento de V. Exas deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e determinando-se:

a) A admissão e consideração dos documentos agora juntos aos autos, nos termos do artigo 651.º do CPC;

b) A extinção da execução, por falta de título executivo válido, nos termos do artigo 703.º do CPC, ou caso assim não se entenda

c) A anulação da decisão que conheceu do mérito da causa sem audiência prévia;

d) A realização de audiência prévia e subsequente instrução probatória para apuramento dos factos alegados pela Recorrente;”.

A recorrida/embargada apresentou contra-alegações, defendendo que deve ser julgado improcedente o recurso e mantida a sentença recorrida.

Nelas defende também a inadmissibilidade processual da junção dos documentos referidos pela recorrente.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes, por ordem lógica, as questões a tratar:

a) – dos três documentos que a recorrente disse juntar com as alegações de recurso;

b) – da anulação da decisão, por nela se ter conhecido do mérito da causa sem audiência prévia;

c) – da falta de título executivo.


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II – Fundamentação

Vamos à primeira questão enunciada.

Nas suas alegações, e respetivas conclusões, a recorrente referiu que com elas ia juntar três documentos: extrato de conta bancária sua de dezembro de 2018, “Informação Empresarial Simplificada” (IES) de 2018 e certidão do seu registo comercial.

Porém, compulsados os autos, verifica-se que tais documentos não foram juntos.

Em fase de recurso, como expressamente decorre do art. 651º nº1 do CPC, só são admissíveis a junção de documentos que preencham a previsão do art. 425º (documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão) e a junção de documentos que se tenha “tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”, sendo que em qualquer dos casos tais documentos têm que ser juntos com as alegações (como ali se diz “As partes apenas podem juntar documentos às alegações…”).

Os únicos documentos que podem ser apresentados sem ser junto com as alegações são os pareceres de jurisconsultos, que, como previsto no nº2 daquele mesmo art. 651º, podem ser juntos até ao início do prazo para elaboração do projeto de acórdão.

Não tendo sido juntos com as alegações, e independentemente ainda de qualquer raciocínio sobre a sua admissibilidade caso o tivessem, não há nada a ponderar quanto àqueles alegados documentos.

Passemos à segunda questão enunciada.

Como se vê da tramitação dos autos, após os articulados a Sra. Juíza proferiu a 25/11/2024 despacho com o seguinte teor:

O estado dos autos permite o conhecimento imediato do mérito da causa, sendo intenção do tribunal dispensar a audiência prévia para o efeito, caso nada tenham a opor, situação em que deverão manifestar-se, pelo que determino as partes para, querendo, alegar por escrito ou dizer o que tiverem por conveniente.”

As partes foram notificadas de tal despacho e, na sequência de tal notificação, a embargada veio dizer que não se opunha à dispensa da audiência prévia e ao conhecimento imediato do mérito da causa e, nessa sequência, apresentou alegações, mas a embargante nada veio dizer aos autos.

Nos termos daquele próprio despacho, cada uma das partes que nada tivesse a opor à dispensa da audiência prévia deveria, nesse caso, manifestar-se.

Não se tendo a embargante manifestado – pois nada disse – é de concluir, face aos termos do que lhe foi exigido no despacho, que se terá oposto à dispensa da audiência prévia.

Por outro lado, note-se, ainda que no despacho se tenha anunciado a “intenção do tribunal” em dispensar a audiência prévia, o que é certo é que essa anunciada intenção não se materializou num qualquer despacho subsequente em que efetivamente se tenha dispensado a audiência prévia.

Assim, não obstante a embargante se ter oposto à sua dispensa e tal dispensa não ter sido efetivamente decidida, não teve lugar nos autos a audiência prévia, pois de seguida àquele despacho e ao decurso do prazo de resposta a ele das partes é logo proferido o despacho saneador-sentença sob recurso.

Será que a audiência prévia teria que ter tido lugar?

A resposta não pode deixar de ser afirmativa.

A audiência prévia não se realiza nas situações previstas no art. 592º nº1 do CPC e pode ser dispensada nas situações previstas no art. 593º (embora em tais situações se ressalve, sob o seu nº3, a possibilidade da sua ulterior realização a requerimento da parte reclamante).

O caso dos autos não se reconduz a nenhuma de tais situações. Não se reconduz às situações previstas nas alíneas a) e b) do nº1 do art. 592º, porque ocorreu contestação [(alínea a)] e porque não está em causa o fim do processo por procedência de exceção dilatória [alínea b)], e não se reconduz às situações previstas no nº1 do art. 593º, pois estas pressupõem o prosseguimento da ação após o despacho saneador e que a audiência prévia se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do nº1 do art. 591º.

Tratando-se de um processo cujo valor é superior a metade da alçada da Relação (pois nos de valor inferior a este, como se prevê no art. 597º, ela poderá ou não ser convocada “consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo”) e pretendendo-se nele, como se anunciou no despacho referido supra, proferir decisão sobre o mérito da causa após os articulados, o art. 591º nº1 do CPC impõe, nesse caso, conforme previsão da sua alínea b), a sua realização.

A não realização da audiência prévia nos casos em que ela tem que ter lugar (cada um dos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do nº1 do art. 591º) constitui omissão de ato prescrito por lei e, conforme previsão do art. 195º nº1 do CPC, produz nulidade se se considerar que tal irregularidade possa influir no exame ou na decisão da causa.

Aliás, refira-se, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no seu “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1º, Almedina, 4ª edição, 2018, pág. 403, na anotação 4 ao art. 195º – atinente, como se sabe, à regras gerais sobre nulidades dos atos processuais –, ao darem exemplos de omissão de ato prescrito por lei referem, logo como o primeiro deles, “a falta de audiência prévia, fora dos casos do art. 592, que não possa ser dispensada (arts. 591-1 e 593)”.

A nosso ver, tal irregularidade pode influir no exame ou na decisão da causa.
Não tendo lugar aquela audiência, as partes não exercem ali o contraditório que tenham por bem, em sede de discussão de facto e de direito, em relação ao conhecimento imediato do mérito da causa – que é o que a alínea b) do nº1 do art. 591º pretende assegurar, como emanação ou concretização do cumprimento do contraditório previsto no art. 3º nº3 do CPC –, nomeadamente podendo levantar objeções a tal e/ou chamar a atenção para aspetos da lide que, no seu entender, careçam de melhor análise e podendo inclusivamente querer infirmar a conclusão a que o juiz chegou de que lhe era possível decidir (no sentido do acautelamento desta possível atuação que se referiu por último, vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 22/6/2021, proferido no proc. nº 9796/19.5T8LRS.L1-7, disponível em www.dgsi.pt).
Por outro lado, dado que o requerimento probatório de cada uma das partes pode ser alterado na audiência prévia (art. 598º nº1 do CPC), não tendo lugar tal diligência e não prosseguindo o processo, como anunciado, tal requerimento probatório não pode ser alterado, por qualquer das partes que eventualmente o pretendesse, em vista de acautelar qualquer deficiência de elementos probatórios que, dada a anunciada pronúncia sobre o mérito da causa, possa considerar ter e que ainda possam ser requeridos ou juntos aos autos (veja-se, por exemplo, o disposto no art. 423º nº2 do CPC, quanto a documentos não juntos com o articulado respetivo e cuja junção se admite nos termos ali previstos).
Assim, conclui-se, a referida irregularidade integra nulidade processual.

Tal nulidade processual suscita-se por via de recurso, como sucede no caso presente, já que só com o conhecimento da sentença recorrida se perceciona a violação da lei processual[1], e a mesma, ainda que não nominada enquanto tal pela recorrente, não deixa de se mostrar invocada por esta sob as conclusões 2 e 7 do recurso (sendo também por estes aludida sob a alínea c) das pretensões que nele deduzem a final).

A procedência de tal nulidade, resultante, como se viu, de omissão de ato que devia ter tido lugar antes do proferimento da decisão recorrida e que pode influir no exame ou na decisão da causa, torna a subsequente decisão de mérito que veio a ser proferida ilegal, determinando a anulação desta e a observância do procedimento omitido[2].
Assim, há que anular a decisão recorrida, que conheceu de mérito no despacho saneador sem efetivação de audiência prévia, e determinar que o processo siga os seus termos com a realização da audiência prévia e, após esta, os ulteriores termos do mesmo que se tenham por adequados.

Face ao que se veio de decidir, fica prejudicado o conhecimento da terceira questão enunciada (arts. 663º nº2 e 608º nº2 do CPC).

As custas do recurso ficam a cargo da recorrida, que nele decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC).


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Por tudo o exposto, acordando-se em julgar procedente o recurso, anula-se a decisão recorrida e determina-se que o processo siga os seus termos com a realização da audiência prévia, seguindo-se depois os ulteriores termos que se tenham por adequados.

Custas do recurso pela recorrida.


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Porto, 24/11/2025.

Mendes Coelho

Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo

Jorge Martins Ribeiro





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[1] Como já ensinava Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 183, “Mas se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (…), que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se”.
No mesmo sentido, referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, no seu “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª edição, página 393, que “Se entretanto, o acto afetado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão.
[2] Cf. neste sentido Ac. desta Relação de 24/03/2025, Proc. nº 2329/20.2T8MTS-A.P1, relatado pelo Sr. Desembargador José Eusébio Almeida, e o Ac. do STJ de 30/04/2025 Proc. nº 31078/22.5T8LSB.L1.S1, relatado pelo Sr. Conselheiro Rui Machado e Moura, ambos consultáveis em www.dgsi.pt..