Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1959/24.8T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: CONTRATO DE FORNECIMENTO DE SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS
CLÁUSULA DE FIDELIZAÇÃO
INCUMPRIMENTO
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP202504081959/24.8T8VFR.P1
Data do Acordão: 04/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O prazo curto de prescrição previsto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, é aplicável ao direito à indemnização pelo incumprimento da cláusula de fidelização estipulada em contratos de fornecimento de serviços públicos essenciais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. N.º 1959/24.8T8VFR.P1





Acordam no Tribunal da Relação do Porto



I. Relatório


A..., S.A., com sede na Avenida ..., ..., Lisboa, intentou a presente acção declarativa comum contra B..., Unipessoal, Lda., com sede no Largo ..., ... – Santa Maria da Feira, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 19.601,01 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que em 13.10.2022, no exercício da sua actividade, celebrou com a ré um contrato de fornecimento de energia eléctrica, para vigorar entre 07.10.2022 e 06.10.2027, e que a ré fez cessar esse contrato em 17.06.2023, tendo a autora emitido a factura corresponde à indemnização devida pela cessação antecipada do contrato, em conformidade com as cláusulas 4.2, 8.1 e 8.2 das condições particulares do contrato.
A ré apresentou contestação, onde arguiu a prescrição do direito da autora, com fundamento no artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, alegando que o prazo de prescrição aí estabelecido abrange não apenas o pagamento do serviço, mas também os restantes créditos relativos ao contrato e seu incumprimento, entre eles a indemnização por incumprimento da cláusula de fidelização.
Notificada para se pronunciar sobre a matéria de excepção invocada pela ré, a autora veio pugnar pela improcedência da invocada prescrição, alegando que a cláusula penal não é acessória da obrigação de pagamento do preço, mas antes da obrigação de manutenção do vínculo contratual, não lhe sendo por isso aplicável o prazo de prescrição de 6 meses estabelecido na norma acima citada, mas antes o prazo geral de 20 anos previsto no artigo 309.º do Código Civil (CC).
Foi proferido saneador sentença, que julgou procedente a excepção peremptória de prescrição e absolveu a ré do pedido.
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Inconformada, a ré apelou desta decisão, concluindo assim a sua alegação:
«1. O presente recurso tem por objeto a decisão prolatada pelo tribunal a quo em 13.11.2024, no âmbito do processo n.º 1959/24.8T8VFR, a qual veio julgar improcedente o pedido formulado pela Autora, por considerar que o direito de crédito invocado se encontrava prescrito.
2. O montante peticionado reporta-se a indemnização por incumprimento contratual.
3. Sendo que entende o Tribunal a quo que, ainda que estejamos perante uma cláusula penal no âmbito de um contrato de fornecimento de energia elétrica, é aplicável o prazo prescricional estatuído no n.º 1 do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de julho.
4. A Recorrente entende que a sentença da qual se recorre, ao ter aplicado a mencionada norma legal e, consequentemente, ter julgado procedente a exceção perentória de prescrição, enferma de error in iudicando, devendo, pois, este Tribunal da Relação, em sede de Apelação, reapreciar e alterar o conteúdo da mesma em conformidade.
5. A cláusula penal não é acessória da obrigação de pagamento do preço, mas antes da obrigação de manutenção do vínculo contratual, em função do qual foram disponibilizados, em condições especiais e vantajosas para o cliente,
6. Não lhe sendo, por isso, aplicável o prazo de prescrição previsto no n.º 1, do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, mas o prazo geral de prescrição de vinte anos previsto no artigo 309.º, do Código Civil, uma vez que estamos perante uma indemnização por responsabilidade contratual.
7. Efetivamente, haverá que distinguir entre o crédito do preço pelo serviço de eletricidade prestado, e o crédito de indemnização pela quebra do vínculo de fidelização contratualmente estabelecido.
8. Nesse contexto, perfilhamos a posição de que a cláusula penal, que tem em vista o estabelecimento de uma pena pelo incumprimento, se refere a indemnização pela quebra do vínculo de fidelização contratualmente assumido, e não ao crédito do pagamento do preço dos serviços prestados.
9. Assim sendo, a acessoriedade, que é característica da cláusula penal, é estabelecida em relação ao crédito de indemnização pela quebra do vínculo de fidelização.
10. Em suma, advogamos que é aplicável ao caso sub judice o prazo prescrional ordinário de 20 anos, pelo que deveria ter sido a exceção perentória de prescrição julgada improcedente».
A ré respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela improcedência da apelação e pela manutenção da decisão recorrida.
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II. Fundamentação

A. Objecto do recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, a única questão a decidir traduz-se em saber se o prazo de prescrição de seis meses estabelecido no artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, abrange apenas o crédito relativo ao preço da electricidade fornecida ou se também abrange o crédito relativo à indemnização por incumprimento da cláusula de fidelização.
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B. Os Factos

O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1. A “A..., S.A.” dedica-se à compra e venda de energia, sob a forma de eletricidade e outras, bem como ao exercício de actividades e prestações de serviços afins e complementares daquelas.
2. Em 13.10.2022, no exercício da sua actividade, a sociedade Autora celebrou com a sociedade Ré um contrato de fornecimento de energia eléctrica, para o local de consumo sito na Avenida ..., ..., ... – ... – Código Ponto de Entrega ...76... com um consumo previsto de energia de 535551Wh.
3. O contrato de fornecimento foi celebrado para o período de fornecimento de 07.10.2022 a 06.10.2027.
4. Ao abrigo de tal contrato, a sociedade Autora colocou à disposição e forneceu à sociedade Ré energia eléctrica, designadamente entre o período considerado de 07.10.2022 até 17.06.2023, data esta em que a sociedade Ré cessou o contrato.
5. O fornecimento de energia eléctrica prestado pela sociedade Autora, para o local de consumo, foi efectuado a inteiro contento da sociedade Ré.
6. Todas as facturas emitidas foram baseadas em leituras reais, uma vez que, o local de consumo possuía um sistema de leitura de telecontagem, que comunicava mensalmente as leituras reais ao Operador de Rede de Distribuição (ORD).
7. A sociedade Autora emitiu a factura n.º ND 23BSML16/0000061017, no valor de 19.601,01 €, emitida em 21/10/2023, com vencimento em 20/11/2023.
8. A factura corresponde à indemnização prevista no contrato pela cessação antecipada do mesmo.
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C. O Direito

1. O tempo é um facto jurídico não negocial, susceptível de influir nas mais diversas relações jurídicas e em diferentes domínios do direito civil. Entre os mais relevantes efeitos jurídicos do decurso do tempo destacam-se a prescrição e a caducidade.
No que concerne à prescrição extintiva (assim denominada por oposição à prescrição aquisitiva), desde logo porque, quando invocada (ela não opera ipso jure – cfr. artigo 303.º do CC), pode legitimar a recusa do cumprimento da obrigação, se o correspondente direito não tiver sido exercido durante certo lapso de tempo estabelecido na lei (cfr. artigo 298.º, n.º 1, do CC), deste modo o transformando numa obrigação natural, nos termos do artigo 304.º, n.º 2, do CC.
Embora não lhe sejam totalmente estranhas razões de justiça, a prescrição extintiva é um instituto endereçado, fundamentalmente, à realização de objectivos de conveniência ou oportunidade, partindo a sua fundamentação legal da ponderação da inércia do titular do direito, que faz presumir a renúncia ao mesmo ou, pelo menos, o torna indigno de tutela jurídica, em harmonia com o velho aforismo dormientibus non succurrit jus (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 446).
Visando a prescrição satisfazer a necessidade social de segurança jurídica, de certeza dos direitos, e assim proteger o interesse do sujeito passivo, tem como efeito dispensar a protecção do sujeito activo, atendendo ao seu desinteresse ou inércia em exercitar o seu direito. Compreende-se que razões de certeza e de segurança nas relações jurídicas imponham que a inércia prolongada do credor envolva consequências desfavoráveis para o exercício tardio do direito, em defesa da expectativa do devedor de se considerar dispensado de cumprir, tendo inclusivamente em conta a dificuldade que este poderia ter de, passado muito tempo, fazer prova do cumprimento que, porventura, tivesse feito (Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, p. 554). O instituto em causa tem, assim, subjacente a inércia do titular do direito, conjugada com o interesse objectivo numa adaptação da situação de direito à situação de facto (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 637). Parece, assim, dever situar-se o fundamento último da prescrição na negligência do credor em não exercer o seu direito durante um período de tempo razoável, em que seria legítimo esperar que ele o exercesse, se nisso estivesse interessado.
Assim, decorrido o prazo da prescrição, o devedor pode, se quiser, opor-se à pretensão do titular do direito e recusar-se a cumprir, sem ter de usar de outro meio de defesa para além da simples invocação do decurso do tempo.
2. O prazo ordinário da prescrição é de 20 anos, conforme preceitua o artigo 309.º do CC. Na falta de estipulação de um prazo distinto, é este o prazo de prescrição dos direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição (cfr. artigo 298.º, n.º 1, do CC).
Porém, a lei consagra prazos mais curtos de prescrição para determinados direitos, com intuitos protectivos da parte considerada tipicamente frágil, como sucede no artigo 310.º do CC, que visa proteger os devedores contra a acumulação da sua dívida e estimular a cobrança pontual dos montantes fraccionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito (cfr. Júlio Gomes, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª ed., UCP Editora, 2013, pp. 920-921, que cita o AUJ de 30.06.2022).
Também o artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, consagra um prazo curto de prescrição no âmbito da prestação dos serviços públicos essenciais elencados no seu artigo 1.º – entre os quais se inclui o serviço de fornecimento de energia eléctrica – preceituando que o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação. Também aqui, como se escreve no ac. do TRP, de 11.10.2018 (proc. n.º 99372/17.8YIPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte), o legislador teve em vista proteger o utilizador destes serviços essenciais «contra a acumulação de dívidas de fácil contração, evitando que se vissem confrontados com a exigência de débitos acumulados que dificilmente poderiam pagar, obrigando consequentemente os prestadores de serviços a manter uma organização que permita a cobrança em momento próximo do correspondente consumo».
E embora o aresto acabado de citar aluda à protecção do consumidor final, o «sujeito a quem é disponibilizada a tutela, de feição imperativa, não é (…) o consumidor final enquanto tal, i.e. de acordo com o direito nacional e europeu, aquele que adquire a fornecedores profissionais bens ou serviços para uso e fruição própria (ou alheia) e não para uso profissional (art.° 2.°, n.° 1, da Lei n.° 24/96, de 31 de Julho): essa tutela é disponibilizada ao utente, definido como a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo (art.° 1.°, n.° 3, da Lei n.° 23/96, de 26 de Julho). Utente é, portanto, tanto o pequeno consumidor, como a pequena ou média empresa, a empresa multinacional, etc. A todos é garantido um elevado nível de defesa, destinada a compensar a vulnerabilidade do utilizador do serviço em face do maior poder contratual do prestador dele» (ac. do TRC, de 28.03.2023, proc. n.º 93/22.0T8PCV.C1).
No caso concreto, sendo pacífico e indiscutível que o contrato celebrado entre as partes diz respeito à prestação de um serviço público essencial – o fornecimento de energia eléctrica, previsto na al. b), do n.º 2, do referido artigo 1.º –, a única questão que importa apreciar é, como vimos, saber se aquele prazo prescricional se aplica apenas ao direito a receber o preço devido pelo fornecimento de energia eléctrica, não se aplicando ao direito a receber a indemnização prevista no contrato para o incumprimento da cláusula de fidelização, como defende a recorrente, ou se aquele prazo também abrange este direito contratual, como defende a recorrida e foi preconizado na decisão recorrida. No primeiro caso, o direito que a autora pretende exercer por via neste acção não estará prescrito, sucedendo o contrário na segunda hipótese.
Conforme se refere na decisão recorrida, os tribunais superiores já foram chamados por diversas vezes a apreciar esta questão, mantendo-se a jurisprudência dividida.
Os defensores da tese de que o prazo curto de prescrição não é aplicável ao direito à indemnização pelo incumprimento da cláusula de fidelização argumentam o seguinte: importa distinguir entre o crédito respeitante ao preço do serviço prestado e o crédito relativo à indemnização pelo incumprimento do vínculo de fidelização, expresso na cláusula penal contratualmente estipulada ao abrigo do artigo 810.º do CC; esta cláusula penal não é acessória da obrigação de pagar o preço, mas sim da obrigação de manutenção do vínculo contratual por determinado período temporal, em função da qual o serviço foi prestado em condições especiais e vantajosas para o cliente; por isso, não lhe é aplicável o prazo de prescrição de seis meses previsto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, mas antes o prazo geral de prescrição de 20 anos previsto no artigo 309.º do CC, visto estar em causa a responsabilidade contratual.
Mais argumentam que, dada a sua natureza de sanção pelo incumprimento contratual, o crédito relativo à quebra do vínculo de fidelização extravasa a previsão do artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, onde se refere apenas a contraprestação pelo fornecimento do serviço, de âmbito sinalagmático e não sancionatório ou indemnizatório. No mesmo sentido, acrescentam que a natureza do crédito indemnizatório não comporta a justificação que motiva a previsão do prazo curto de prescrição para o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado.
Argumentam ainda que, sendo a acessoriedade característica da cláusula penal estabelecida em relação ao crédito indemnizatório pela quebra do vínculo de fidelização, não pode invocar-se o vínculo da acessoriedade à obrigação principal para extrair da prescrição do direito ao preço a caducidade da cláusula penal, procurando assim refutar o entendimento (defendido, por exemplo, no ac. do TRL, de 29.22.2011, proferido no processo n.º 370/06.7YXLSB.L1-7) de que o prazo de prescrição do crédito por violação da cláusula de fidelização não é de seis meses mas que essa obrigação, como obrigação acessória, caduca com a prescrição da obrigação principal.
No sentido de que o prazo curto de prescrição previsto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, não é aplicável ao direito à indemnização pelo incumprimento da cláusula de fidelização vide, a título de exemplo, o ac. do TRP, de 11.10.2018 (proc. n.º 99372/17.8YIPRT.P1), os acórdãos do TRL, de 07.06.2011 (proc. n.º 2360/06.0YXLSB.L1-7) e de 21.06.2011 (proc. n.º 264/06.6YXLSB.L1-7), e o ac. do TRC, de 26.09.2023 (proc. n.º 6922/21.8T8BRG-A.C1).
Os defensores da tese de que este prazo curto de prescrição abrange todos os créditos relativos aos contratos de fornecimento de serviços públicos essenciais, entre eles a indemnização por incumprimento da cláusula de fidelização, embora aceitando que a obrigação a que se encontra associada a cláusula penal é a prevista nesta cláusula de fidelização, argumentam que a mesma é, por sua vez, acessória da obrigação de pagamento do preço durante o período de vigência do contrato.
Na verdade, acrescentam, o núcleo dos contratos de prestação de serviços púbicos essenciais é integrado pela prestação do serviço em causa e pela entrega do preço correspondente, constituindo a denominada cláusula de fidelização, cujo incumprimento é sancionado por uma indemnização fixada por cláusula penal, uma cláusula acessória daquele núcleo do contrato, «podendo reconduzir-se a um preço indireto do serviço ou, pelo menos, configurar-se como um “auxiliar” do bom cumprimento da obrigação de pagamento do preço do serviço, mas sempre como obrigação acessória, lateral, da obrigação principal, porque fora do núcleo do contrato. Na economia do contrato, a “cláusula de fidelização” só existe em função da prestação do serviço e da entrega do respetivo preço, não tendo existência própria e autónoma, e só fazendo sentido enquanto fazendo parte do sinalagma serviço-preço. Essa cláusula não tem autonomia por si própria, não lhe correspondendo uma contraprestação direta a ela dirigida» (ac. do TRL, de 29.04.2021, proc. n.º 46188/20.5YIPRT-A.L1-2).
Por conseguinte, acrescentam ainda, ao reportar-se a serviço prestado, a norma do artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96 abrange todas as dívidas no âmbito do contrato de prestação de serviço em causa, quer sejam o preço direto do serviço, quer sejam o preço indireto que, em substância, constitui a cláusula de fidelização. Os valores da certeza e da segurança do direito são os mesmos, tanto valendo para o preço dos serviços como para a cláusula de fidelização (cfr. acórdão antes citado).
Nestes termos, por força da sua acessoriedade, a cláusula penal não sobrevive à obrigação principal, pelo que a prescrição desta não pode deixar de abranger a indemnização fundada naquela cláusula penal.
Como já está implícito na exposição antecedente, alguma jurisprudência – valendo-se da doutrina exposta por A. Pinto Monteiro (Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 86 e ss.) e por Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª ed., Coimbra, 1986, pp. 743 e 75, nota 3) – prefere afirmar que, uma vez prescrita a obrigação principal de pagamento dos serviços prestados, a cláusula penal caduca em função da sua acessoriedade em relação àquela obrigação.
No sentido desta segunda corrente vide, a título de exemplo, a seguinte jurisprudência: ac. do TRP, de 21.10.2014 (proc. n.º 83857/13.8YIPRT.P1); acórdãos do TRG, de 18.05.2023 (proc. n.º 640/22.7T8EPS.G1) e de 16.01.2025 (proc. n.º 258/24.0T8PRG.G1); acórdãos do TRL, de 25.02.2010 (proc. n.º 1591/08.3TVLSB.L1-6), de 16.06.2011 (proc. n.º 28934/03.3YXLSB.L1-6), de 04.06.2015 (proc. n.º 143342/14.6YIPRT.L1-8), de 29.04.2021 (proc. n.º 46188/20.5YIPRT-A.L1-2) e de 07.04.2022 (proc. n.º 9996/21.8YIPRT.L1-6).
Como se assinala neste último acórdão, perante os argumentos esgrimidos pelos defensores de cada uma das teses em confronto, «o cerne da questão é saber se, afinal, a cláusula penal, porquanto se destinando a indemnizar a “quebra do vínculo de fidelização” reveste autonomia em relação ao “crédito do preço pelo serviço de telecomunicações prestado”.
E aqui, com respeito pela opinião contrária, se julga que tal construção é artificiosa, não merecendo acolhimento».
Este entendimento merece a nossa inteira concordância.
Note-se que ao vínculo de fidelização não corresponde qualquer contraprestação directa para além da prestação do serviço em condições mais vantajosas, designadamente de preço.
De resto, não é possível celebrar um contrato com um prestador de serviços que estabeleça um vínculo autónomo de fidelização se não for concomitantemente acordada a prestação e o pagamento do serviço em causa.
Tudo isto evidencia a falta de autonomia, ou seja, a acessoriedade da cláusula de fidelização relativamente à obrigação principal de pagamento do serviço fornecido.
Ora, como afirma Ana Filipa Morais Antunes em anotação ao artigo 810.º do CC (Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, UCP Editora, 2024, 2.ª reimpressão, p. 1163), «as vicissitudes que afetem a obrigação principal projetam-se, de igual modo, no âmbito de eficácia da cláusula penal». Assim, porque o incumprimento da obrigação acessória não pode ser separado do incumprimento desta obrigação principal, o prazo de prescrição estabelecido para esta não pode deixar de abranger também aquela.
De resto, nenhuma razão válida justifica que o direito de crédito decorrente do incumprimento da obrigação principal (de pagamento do preço) prescreva no prazo curto de seis meses e o direito de crédito decorrente do incumprimento da obrigação acessória (de manutenção do vínculo contratual durante determinado período de tempo) prescreva no prazo geral de 20 anos, pelo que tal interpretação é afastada pelo disposto no artigo 9.º, n.º 3, do CC, nos termos do qual o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas.
No sentido aqui preconizado, na doutrina, a sentença recorrida cita Jorge Morais Carvalho, Manual do Direito do Consumo, 6ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pp. 378 e ss.
Pelas razões expostas, concordamos com a decisão recorrida que, por conseguinte, importa manter.
Na total improcedência da apelação, as respectivas custas serão suportadas pela recorrente, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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III. Decisão

Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e, consequentemente, mantêm a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.



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Porto, 8 de Abril de 2025

Relator: Artur Dionísio Oliveira
Adjuntos: Alberto Taveira
Anabela Andrade Miranda