Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2765/15.6T8STS-G.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: INSOLVENTE
DIREITO DE REGRESSO DE DEVEDOR SOLIDÁRIO
DÍVIDA DA INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP202504082765/15.6T8STS-G.P1
Data do Acordão: 04/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O crédito correspondente ao direito de regresso de um devedor solidário que satisfez parcialmente uma dívida do co-devedor que foi declarado insolvente, dívida esta reclamada por credor hipotecário na insolvência e que, nestas circunstâncias, se viu reduzida, constitui uma dívida da insolvência e não uma dívida da massa insolvente.
II - O benefício trazido à massa insolvente pela redução desse crédito, em função do pagamento feito pelo devedor solidário do insolvente, não se traduz num enriquecimento sem causa da massa insolvente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2765/15.6T8STS-G.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 7

REL. N.º 950
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juiz Desembargador João Diogo Rodrigues
2º Adjunto: Juiz Desembargador João Proença
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1 – RELATÓRIO
(Transcrição do relatório da sentença recorrido, que se mostra completo e esclarecedor)

“AA intentou ação declarativa de condenação contra a MASSA INSOLVENTE DE BB, formulando o seguinte pedido: condenação da ré Massa Insolvente a pagar ao Autor a quantia global de € 20.751,44, acrescida de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento, e sem prejuízo de o mesmo aumentar dado que o Autor irá continuar a efetuar o pagamento das prestações ao Banco 1..., S.A. que se venham a vencer no decurso dos presentes autos, e que aqui vão igualmente peticionadas, com as demais consequências legais.
Alega, em síntese, que é ex-cônjuge da insolvente e titular do direito à meação no prédio ...-H, tendo sido apreendida e liquidada no processo de insolvência a outra meação pertencente à insolvente; dado que o autor continuou a pagar o crédito hipotecário contraído pelo autor e insolvente para aquisição daquela fração, bem como procedeu ao pagamento do IMI e quotas de condomínio devidos por aquela fração, deve a Massa Insolvente ser condenada a pagar ao autor metade dos valores pagos a esse título, desde a declaração da insolvência até à data da venda da meação.
A Ré Massa Insolvente deduziu contestação, invocando a exceção perentória de prescrição e, subsidiariamente, de caducidade e extemporaneidade. Defende-se, ainda, por impugnação, pugnando pela improcedência da ação; e formulou o seguinte pedido reconvencional: condenação do Autor a pagar à Ré Massa Insolvente a quantia de €38.000,00, operando a compensação de créditos, nos termos do artigo 847.º do CC, deverá considerar-se pago o crédito invocado pelo A., sendo o mesmo condenado a pagar à R. a quantia remanescente que se vier a apurar, em função do crédito que (eventualmente) seja reconhecido ao A. Alega, em síntese, que o autor enriqueceu à custa da massa insolvente ao utilizar a totalidade do imóvel, pelo que sempre terá de pagar à massa insolvente metade da renda devida pelo arrendamento da fração.
O Autor apresentou réplica, pugnando pela improcedência das exceções invocadas, invoca ainda a interrupção e suspensão de eventual prazo de prescrição e abuso de direito da ré ao invocar a prescrição. Pugna, ainda, pela improcedência do pedido reconvencional e inexistência de enriquecimento sem causa, sendo que a existir tal crédito, parte já estaria prescrito, ocorrendo ainda abuso de direito da Ré.
Em sede de audiência prévia, fora admitido o pedido reconvencional, relegando-se para final o conhecimento das exceções deduzidas.”
Após julgamento, foi proferida sentença que, em suma, concluiu que o crédito reclamado pelo autor e correspondente a prestações por si entregues ao banco para satisfação do crédito hipotecário contraído por ele e pela insolvente para aquisição daquela fração constituía dívida da insolvência e não da ré, massa insolvente. Não assim, todavia, quanto às quantias pagas a título de IMI e despesas de condomínio, quanto às quais concluiu pela responsabilidade da massa insolvente, na proporção de metade. Por isso, condenou a ré a pagar ao autor o valor correspondente, de € 3.011,15, acrescido de juros de mora, absolvendo-a do demais peticionado.
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Desta decisão, vem o autor interpor o presente recurso, que terminou formulando as seguintes conclusões:
I - O presente recurso versa exclusivamente sobre matéria de Direito, nos termos infra melhor consignados, e incide parcialmente sobre a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, a 5 de Novembro de 2024, designadamente sobre a decisão que julgou improcedente o pedido de condenação da Ré no pagamento ao Autor do crédito referente a metade do valor das prestações por si pagas ao Banco 1..., nos termos melhor identificados na petição inicial.
II - Realiza a audiência de julgamento, deu o Tribunal, com interesse para esta questão, por provada a seguinte matéria de facto, a qual merece a nossa inteira adesão e concordância:
15. Apesar da declaração de insolvência da Sra. BB em abril de 2016 e da apreensão do direito da insolvente sobre aquela fração, correspondente a 1/2 da fração autónoma designada pela letra “H”, o Autor procedeu ao pagamento do valor das prestações do mútuo celebrado com o Banco 1..., S.A., do valor das quotas de condomínio e do Imposto Municipal sobre Imóveis referente àquela fração;
16. Desde a declaração de insolvência de BB até 19.03.2024, o aqui Autor efetuou o pagamento da quantia global de € 35.480,57, a título de prestações do contrato de mútuo com hipoteca celebrado com o Banco 1..., S.A. 17. O valor das prestações de crédito hipotecário fora liquidado pelo autor em março de 2020, após interpelação banco para o efeito. 18. E tanto assim é que, nos presentes autos principais, o Banco 1..., S.A. já veio reconhecer que o valor do seu crédito deve ser reduzido à quantia de € 27.350,53 (sendo a quantia de € 23.930,37 a título de capital e a quantia de € 3.420,16 a título de despesas).”
III - Ora, apesar de o Tribunal Recorrido ter assertivamente, face à prova produzida, dado por provado que o Autor efetivamente liquidou, após a insolvência, na integra, as prestações bancárias relativas ao crédito hipotecário reclamado pelo Banco 1... nos autos insolvenciais, a verdade é que, depois, sem qualquer fundamento legal, considerou, de direito, improcedente o respetivo pedido por entender que este crédito do Autor não era suscetível de ser qualificado como dívida da massa. Posição com a qual discordamos na integra, tratando-se a análise desta questão do objeto já enunciado do presente recurso.
IV – Salvo melhor opinião, era da responsabilidade da Sra. Administradora de Insolvência, em exercício das suas funções de administração do património apreendido para a Massa Insolvente, assegurar o pagamento de metade do valor das despesas da fração autónoma, despesas que foram integralmente pagas pelo Autor desde a data de declaração de insolvência da Sra. BB.
V - É que sendo o aqui Autor titular de apenas ½ da aludida fração autónoma, já que a outra metade foi apreendida para a Massa Insolvente e já vendida em 02-02-2024, então, o aqui Autor é apenas responsável pelo pagamento de metade das despesas da aludida fração autónoma, devendo a outra metade - referente à meação da Sra. BB – ser paga pela Massa Insolvente, uma vez que o Administrador de Insolvência deve assegurar o exercício dos poderes de administração da massa insolvente, o que não aconteceu, até por inércia da Sra. Administradora de Insolvência.
VI - Veja-se inclusivamente que a metade da aludida fração autónoma, que foi apreendida para a Massa Insolvente, já foi vendida em 02-02-2024, tendo a Massa Insolvente recebido o respetivo preço pago pelo ½ da aludida fração autónoma, pelo que, é a Massa Insolvente responsável pelo pagamento de ½ das despesas emergentes da sua administração, desde a declaração de insolvência da Sra. BB, não podendo apenas beneficiar do lucro obtido com a sua venda.
VII - Com efeito, atento o exposto, dúvidas não existem de que metade do valor das despesas relativamente ao mútuo, constituem dívidas da Massa Insolvente de BB, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alíneas c) e i) do CIRE e nos termos do art. 473.º e seguintes do Código Civil, pelo que metade desse valor deveria ter sido pago pela Massa Insolvente.
VIII - Do artigo supra citado, resulta de forma clara e expressa que são dívidas da massa insolvente as dívidas emergentes dos atos de administração da Massa Insolvente. Ora, as prestações do mútuo, referentes à fração autónoma, cuja meação, correspondente a ½, foi apreendida a favor da Massa Insolvente, constituem, nos termos do art. 51.º, n.º 1, alínea c) do CIRE, dívidas da massa insolvente,
IX -Ademais, atendendo a que o Autor procedeu ao pagamento integral das prestações ao Banco 1..., S.A., nos termos supra melhor expostos, o que o mesmo apenas fez para não entrar em incumprimento e não ser alvo de processos de execução, é certo que ocorreu um enriquecimento sem causa e injustificado da Massa Insolvente, nos termos do artigo 473.º do CC, à custa de um empobrecimento sem causa e injustificado do Autor, o que não se pode aceitar, nem consentir, já que a Massa Insolvente era/é responsável pelo pagamento de metade dessas despesas, correspondente à meação que foi apreendida e entretanto vendida.
X - Ora, com relevância para o caso em apreço, veja-se que o art. 51.º, n.º 1, alínea i) do CIRE, remete expressamente para o instituto do enriquecimento sem causa ao consignar que “Salvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente: As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente.”
XI - Pelo que, no caso em apreço, o aqui Autor, na qualidade de empobrecido, à custa do enriquecimento injustificado da Massa Insolvente, tem o direito a ser restituído pela Massa Insolvente de metade do valor de todas as despesas de administração integralmente pagas pelo Autor (relativamente ao mútuo), desde a data de declaração de insolvência da sua ex-cônjuge, Sra. BB, nos termos do que dispõem, de forma conjugada, as alíneas c) e i) do n.º 1 do art. 51.º do CIRE,
XII - Não se podendo ainda olvidar que é igualmente pacífico que este normativo (art. 51.º do CIRE) não é sequer de enumeração taxativa (Cfr. a título meramente exemplificativo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07-10-2021), pelo que não se considerando a situação fáctica abrangida e/ou enquadrável nas alíneas supra mencionadas, a verdade é que sempre se teria de considerar estarmos na mesma perante uma dívida da massa insolvente.
XIII- Ora, in casu estamos, sem dúvida, perante dívidas que se constituíram após a declaração da insolvência da Sra. BB, e cujo não pagamento ou reembolso ao Autor consubstanciam um enriquecimento sem causa e injustificado da massa (que aqui vai novamente invocado), existindo, igualmente, uma clara conexão com o processo (de insolvência) e aproveitando esta situação todos os credores.
XIV - Quanto às dívidas da massa insolvente, embora enunciadas no art. 51º (e também noutras disposições do código que assim as qualifiquem - cfr. arts. 84º, 140º/3 e 142º/2), não existe uma definição legal, mas a doutrina e a jurisprudência têm vindo a considerar que: dizem respeito às dívidas que são constituídas na pendência ou decurso do processo de insolvência e que são essencialmente contraídas no interesse comum dos credores e, por isso, são correlativas dos créditos sobre a massa insolvente e são as geradas concomitantemente com o processo e respectiva administração.
XV - Explica, como aliás até citou a sentença ora em crise, Catarina Serra que “quanto aos créditos sobre a massa não existe propriamente uma definição. E por mais que seja tentador, ela não deve ser retirada, a contrário, da definição de créditos sobre a insolvência que é dada pela lei, sob pena se de incorrer em erros.” Que salvo melhor opinião é o que acontece!
XVI - E conclui: “Agrupando os casos atendendo ao seu denominador comum, é possível concluir, em primeiro lugar, que a classificação como dívidas da massa assenta na existência de uma espécie de nexo causal (ou nexo de derivação) entre as dívidas e o processo de insolvência. Sendo previsíveis e naturais ao processo de insolvência, tendo por finalidade assegurar a abertura e o curso de um processo de insolvência (como as resultantes das custas), ou sendo meramente eventuais (como as que derivam da actividade dos órgãos e, em particular, do exercício, pelo administrador da insolvência, das suas funções), a verdade é que todas são consequências do processo de insolvência.”
XVII - E o crédito reclamado é isso mesmo: uma consequência jurídica e patrimonial (que surgiu para o Autor) do processo da insolvência (momento em que se constitui o seu crédito com a acção executiva que lhe é movida pelo Credor Hipotecário), com reflexos imediatos para todos os credores e para a liquidação. Mesmo que no limite, até enquadrável nesse conceito mencionado pela Autora supra citada de “de “mera eventualidade”.
XVIII - Há efetivamente in casu um nexo causal ou de derivação entre a dívida reclamada e o processo de insolvência. Os pagamentos efetuados pelo Autor manifestamente aproveitam todos os credores porque não só foi sendo pago o crédito hipotecado, que está á frente dos demais credores comuns, reduzindo, em consonância e consequentemente o seu valor, como tal também faz com que o valor da venda da meação da Insolvente venha a ser utilizada para pagar, seguindo as regras do CIRE, os créditos comuns, o que nunca aconteceria se não tivesse honrado o contrato de mútuo do qual era parte a Insolvente.
XIX - Seria aliás abusivo de direito e até mesmo inconstitucional – o que aqui vai igualmente invocado - não ter o Autor direito ao reembolso das quantias que pagou e a respetiva qualificação como dívida da massa, já que decidindo-se como na sentença ora em crise a verdade é que o Réu, enquanto co-devedor (contrariando até as normas do CIRE que acautelam esta situações), vê o direito de regresso/reembolso vedado face à manifesta insolvência (e falta de liquidez) da Insolvente e, em bom rigor, o credor hipotecado até sai beneficiado porque se viu ressarcido dos montantes reclamados, como se não existisse qualquer processo de insolvência e/ou mesmo respeito pelo principio de igualdade com os demais credores.
XX - E, pior, se o Autor não pagasse, seria executado e colocado numa posição económica difícil, quando a sua intervenção aproveitou, reflexa e mesmo diretamente, todos os credores, de forma positiva, que ficaram a beneficiar com os pagamentos por si feitos.
XXI - Aliás, se a dívida se tivesse constituído antes da insolvência e/ou fosse relacionada com causa anterior à insolvência como entende erroneamente a sentença, então o que assistiríamos era à apresentação à data da insolvência de duas reclamações de crédito com origem na mesma obrigação, uma pelo credor hipotecário e outra pelo Autor, o que levaria a uma manifesta incompatibilidade entre credores e geraria uma situação de confusão no reconhecimento e graduação dos respetivos créditos, ou até mesmo a existência de um passivo/créditos reconhecidos de valor duplicado.
XXII - Sendo jurisprudência dominante que a data da constituição do crédito ocorre apenas quando há incumprimento do mútuo bancário, ou seja, desde que o Autor deixou (ou iria deixar) de pagar as prestações bancárias, conforme refere, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11-02-2021 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-05-2021, ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt;
XXIII - Parece-nos, por isso, que colhendo do conceito doutrinal e jurisprudencial de “dívida da massa” que sempre se terá de considerar, atentas as circunstâncias de facto e de direito, que o crédito reclamado pelo Autor na presente acção, com referência às prestações bancárias por si pagas, deve ser qualificado como dívida da massa, o que aqui vai defendido e impõe a procedência do presente recurso e a revogação da sentença e a sua substituição por outra que conclua, igualmente, pela procedência do respetivo pedido de condenação da Ré no pagamento, como dívida da massa, ao Autor do valor de metade das prestações bancárias por si pagas até à data, nos valores melhores identificados na sentença, só assim se fazendo justiça!
Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, por clara violação do disposto nos artigos 51.º do CIRE e 473 do CC, e, por via dele, ser revogada parcialmente a sentença, ora em crise, e substituída por outra que considere a acção por totalmente procedente (condenando a ré no pagamento da totalidade do pedido, qualificando o crédito com ref.ª às prestações do mútuo bancário como dívida da massa), nos termos supra expostos, com as demais consequências legais.”
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A ré Massa Insolvente veio arguir a inadmissibilidade do recurso por falta de conclusões, ou a necessidade do seu aperfeiçoamento. Em qualquer caso, pronunciou-se pela confirmação da sentença recorrida.
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O tribunal recorrido admitiu o recurso como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
A apelada veio invocar a inadmissibilidade do recurso, por falta de conclusões, ou a necessidade do seu aperfeiçoamento, por falta de indicação das disposições legais aptas a sustentar a pretensão recursiva.
A apontada falta de conclusões seria consubstanciada pela circunstância de as afirmações enunciadas a esse título serem meras reproduções de segmentos das próprias alegações.
Sem prejuízo de as conclusões do recorrente estarem afastadas daquilo que foi idealizado pelo legislador, para esse efeito, por não concretizar tão especificadamente quanto deveria as questões em função das quais a decisão deve ser revertida, certo é que “conclusões existem”. Assim, nada justificaria a rejeição do recurso, por falta delas. Poderia, isso sim, determinar-se o sue aperfeiçoamento. Todavia, tal solução só prolongaria o curso do processo, revelando-se ainda pouco útil, pois que as conclusões apresentadas permitem antever com alguma nitidez quais são as questões suscitadas pelo apelante. Aliás, a própria apelada as entendeu, pois que a menor qualidade das conclusões não a inibiu de responder ao recurso.
Para além disso, o apelante aponta como normas que sustentam a sua pretensão os arts. 51.º do CIRE e 473º do CC. Também perante isso, que não deixa de ser complementado pela análise do corpo das alegações, se entende ser desnecessário qualquer aperfeiçoamento das conclusões.
Pelo exposto, cumpre decidir.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é circunscrito pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da decisão de questões que sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC.
Cumpre, neste caso, decidir se o crédito do Autor, referente a metade do valor das prestações do mútuo por si pagas ao Banco 1... após a declaração de insolvência de BB, deve ser qualificada como dívida da massa insolvente. O Autor discorda da decisão do Tribunal de Primeira Instância que julgou improcedente este pedido.
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A decisão a proferir convoca a seguinte factualidade, que resulta dos termos do processo:
Factos Provados:
1. O Autor é ex-cônjuge da insolvente, BB.
2. O Autor e a Insolvente adquiriram a fração autónoma descrita na Conservatória do registo Predial de Vila do Conde sob o n.º ... - H, em 17.09.1998, no estado de solteiros.
3. No dia 05 de junho de 2002, o Autor e a sua ex-cônjuge, aqui insolvente, celebraram um contrato de mútuo com hipoteca com o Banco 1..., S.A., através do qual o identificado Banco emprestou aos, então, mutuários, solidariamente e a prazo, a quantia de € 85.503,88, tendo constituído hipoteca a favor do Banco 1..., S.A., sobre a fração autónoma designada pela letra “H” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde com o n.º ... da freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....
4. No contrato de mútuo convencionou-se que as verbas mutuadas, bem como os referidos juros, à taxa legal convencionada entre as partes e nos termos fixados no aludido contrato, haveriam de ser pagas pelos mutuários (aqui autor e insolvente) ao Banco 1... em 312 prestações mensais e sucessivas de capital e juros, vencendo-se de acordo com o estipulado no clausulado contratual.
5. Ficou, ainda, estipulado que os mutuários haveriam de suportar todas as despesas extrajudiciais e judiciais necessárias à segurança e cobrança do empréstimo fixadas, desde logo, em € 3.420,16.
6. Em julho de 2014, o Autor e a ora insolvente divorciaram-se, conforme decisão de 11.07.2014 e transitada em julgado na mesma data.
7. Em sede de divórcio, fora acordado entre os ex-cônjuges (aqui autor e insolvente) que o uso da casa de morada de família ficaria atribuído ao aqui autor até à venda ou divisão dos bens comuns.
8. BB, ex-cônjuge do autor, veio a ser declarada insolvente por sentença de 18.03.2016, transitada em julgado em 13.04.2016.
9. Fora apreendido para a Massa Insolvente o direito da insolvente sobre aquela fração autónoma, correspondente a ½ da fração autónoma designada pela letra “H”, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde com o n.º ..., da freguesia ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ....
10. No âmbito da Liquidação da massa insolvente, por escritura de compra e venda outorgada a 02.02.2024, fora vendida a metade indivisa da fração n.º ... – H apreendida para a Massa Insolvente, pelo preço de € 71.407,00, tendo sido exercido o direito de remição pela filha da insolvente.
11. No âmbito dos autos de insolvência, o Banco 1..., S.A. reclamou um crédito no valor de global de € 59.796,46 (sendo a quantia de € 56.376,30 a título de capital e a quantia de € 3.420,16 a título de despesas), tendo este crédito sido reconhecido na lista de créditos elaborada pelo Sr. Administrador de Insolvência e junta em 21.02.2017 no Apenso D e tendo sido reconhecido por sentença de verificação e graduação de créditos proferida a 23.10.2017, transitada em julgado.
12. Em simultâneo, com a declaração de insolvência da mutuária BB, o Banco 1..., S.A. considerou imediatamente vencidas todas as obrigações e responsabilidades emergentes do contrato de mútuo com hipoteca, tendo, por esse motivo, considerado resolvido o contrato de mútuo com hipoteca celebrado com os mutuários e, posteriormente, instaurado ação executiva contra o aqui Autor, que veio a correr termos sob o processo n.º 9495/16.0T8PRT, no Juízo de Execução do Porto, Juiz 4.
13. Por sua vez, no âmbito do aludido processo de execução, o aqui Autor deduziu embargos de executado, que vieram a ser julgados procedentes por sentença de 20.09.2018, tendo o Tribunal considerado verificada a inexigibilidade e iliquidez da obrigação exequenda titulada pelo contrato de mútuo com hipoteca e documento complementar dados à execução, por não se verificarem os requisitos legais para perda do beneficio do prazo nem para a resolução do citado contrato.
14. A sentença foi posteriormente confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.12.2019, mantendo-se em vigor aquele contrato de mútuo com hipoteca, com referência ao aqui Autor.
15. Apesar da declaração de insolvência da Sra. BB em abril de 2016 e da apreensão do direito da insolvente sobre aquela fração, correspondente a 1/2 da fração autónoma designada pela letra “H”, o Autor procedeu ao pagamento do valor das prestações do mútuo celebrado com o Banco 1..., S.A., do valor das quotas de condomínio e do Imposto Municipal sobre Imóveis referente àquela fração.
16. Desde a declaração de insolvência de BB até 19.03.2024, o aqui Autor efetuou o pagamento da quantia global de € 35.480,57, a título de prestações do contrato de mútuo com hipoteca celebrado com o Banco 1..., S.A.
17. O valor das prestações de crédito hipotecário fora liquidado pelo autor em março de 2020, após interpelação banco para o efeito.
18. E tanto assim é que, nos presentes autos principais, o Banco 1..., S.A. já veio reconhecer que o valor do seu crédito deve ser reduzido à quantia de € 27.350,53 (sendo a quantia de € 23.930,37 a título de capital e a quantia de € 3.420,16 a título de despesas).
19. O aqui Autor efetuou ainda o pagamento das seguintes quantias ao Condomínio ..., ..., a título de quotas/ despesas de condomínio:
-a quantia de € 469,47 referente a despesas ordinárias do Condomínio de 14 de Abril de 2016 a 31 de dezembro de 2016;
-a quantia de € 653,55 referentes a despesas ordinárias do Condomínio do ano de 2017;
-a quantia de € 3.795,00, referentes a despesas ordinárias do Condomínio dos anos de 2018, 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023;
-a quantia de € 95,84 referente a despesas ordinárias de Condomínio dos meses de janeiro e fevereiro de 2024;
o que perfaz o valor global de € 5.013,86, a título de quotas de condomínio do período de 14 de abril de 2016 a 31 de dezembro de 2016, e dos anos de 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022 a 2023 e janeiro e fevereiro de 2024.
20. Procedeu ainda o Autor ao pagamento integral do valor do Imposto Municipal Sobre Imóveis referente à identificada fração autónoma, tendo pago as seguintes quantias:
-a quantia de € 139,33, referente IMI do ano de 2016;
-a quantia de € 139,33, referente IMI do ano de 2017;
-a quantia de € 139,33, referente IMI do ano de 2018;
-a quantia de € 130,48, referente IMI do ano de 2019;
-a quantia de € 121,63, referente IMI do ano de 2020;
-a quantia de € 112,78, referente IMI do ano de 2021;
-a quantia de € 112,78, referente IMI do ano de 2022;
-a quantia de € 112,78, referente IMI do ano de 2023;
o que perfaz o valor global de € 1.008,44, a título de IMI da identificada fração autónoma dos anos de 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022 a 2023.
21. O Autor tem vindo a habitar e a ocupar, pelo menos parte, da fração autónoma n.º ... – H desde abril de 2016 até à data de hoje.
22. Atendendo às características e localização da fração autónoma n.º ... - H, o arrendamento da fração implicaria o pagamento de uma renda mensal de €800,00.
Factos Não Provados:
A - O Autor tem vindo a ocupar exclusivamente a totalidade da fração autónoma n.º ... - H, sem aí se encontrar a residir a insolvente e a filha de ambos.
B - Apenas o autor, e já não a insolvente, tem vindo a ocupar, habitar e a tirar proveito da fração autónoma n.º ... - H, desde a declaração de insolvência.
C - Houve um período de 95 (noventa) e cinco meses nos quais o Autor utilizou a totalidade do imóvel, sem a concorrência da utilização da insolvente e sua filha.
D - Não fosse a ocupação da totalidade do imóvel por parte do autor, a Massa Insolvente teria obtido a quantia mensal de € 400,00 ao longo dos 95 (noventa e cinco) meses, que mediaram a apreensão do direito da insolvente sobre a fração H e a venda do direito apreendido.
E - Ficara acordado entre o Autor e o anterior Administrador de Insolvência nomeado no processo de insolvência (Sr. Dr. CC), que se o Autor viesse a ser obrigado a adiantar a parte da Insolvente nas despesas da fração referentes a IMI, condomínio e prestações referentes ao crédito hipotecário – as quais reconheceu como serem responsabilidade da massa insolvente – e/ou o fizesse para evitar problemas judiciais e/ou legais, que aquando da venda de metade da Insolvência lhe liquidaria a parte desta (enquanto dívida da massa) e/ou, se este adquirisse a metade em causa, sempre poderiam compensar os créditos à data da escritura.
F - A Sra. Administradora da Insolvência nomeada em substituição do anterior AI não quis honrar o acordado entre o Autor e o anterior AI, recusando-se a reconhecer conforme acordado, que o valor de metade do crédito hipotecário pago como dívida da massa e/ou a compensar o crédito do Autor no valor da aquisição de metade, o qual aliás o Autor estava disposto a ceder à sua filha para efeitos legais e contratuais.
G - As despesas de condomínio pagas pelo autor e acima referidas só foram liquidadas no inverno de 2021 (após desfecho dos embargos de executado acima referidos e por dificuldades do Autor, desempregado durante a pandemia),
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Como acima se referiu, pretende o apelante que se declare que metade do valor das prestações do mútuo por si pagas ao Banco 1... após a declaração de insolvência de BB, deve ser qualificada como dívida da massa insolvente
São diversas as razões invocadas pelo apelante para esse efeito:
- Por ser titular de apenas metade da fração autónoma (a outra metade foi apreendida para a Massa Insolvente e posteriormente vendida), é responsável apenas por metade das despesas da fração. A outra metade das despesas, referente à quota-parte de BB, deveria ter sido paga pela Massa Insolvente, tanto mais que beneficiou da respectiva venda.
- Por isso, tal valor é uma dívida da Massa Insolvente nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alíneas c) e i) do CIRE.
- A dívida só se constituiu com o incumprimento do mútuo, o que não se verificou por ele ter efetuado os pagamentos, pelo que a mesmo não é anterior à insolvência.
- Existe um nexo causal entre a dívida reclamada e o processo de insolvência, pois os pagamentos efetuados pelo apelante beneficiaram todos os credores, ao reduzir o valor do crédito hipotecário e aumentar o valor disponível com a venda da quota-parte da insolvente.
- Não constituir uma dívida da Massa Insolvente consubstanciaria um enriquecimento sem causa desta, responsabilizando-a nos termos do artigo 473.º e seguintes do Código Civil.
- Abuso de direito e inconstitucionalidade da solução contrária ao reembolso, pois o apelante ficará impedido de exercer o seu direito de regresso face à insolvência de BB, enquanto o credor hipotecário ficou integralmente ressarcido.
*
O Artigo 47.º do CIRE estabelece, nos seus nºs 1 e 2:
“1 - Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.
2 - Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência.”
Por sua vez, o art. 51º, na parte útil para o caso, dispõe:
1 - Salvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código:
(…);
c) As dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente;
(…)
i) As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente;
(…).
Depois de assinalar o carácter não taxativo da enumeração constante do art. 51º, até porque ao longo do código outras dívidas resultam classificadas como dívidas da massa insolvente, Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2ªedição, Almedina, p. 62) conclui: “Agrupando os casos atendendo ao seu denominador comum, é possível concluir, em primeiro lugar, que a classificação como dívidas da massa assenta na existência de uma espécie de nexo causal (ou nexo de derivação) entre as dívidas e o processo de insolvência. Sendo previsíveis e naturais ao processo de insolvência, tendo por finalidade assegurar a abertura e o curso de um processo de insolvência (como as resultantes das custas), ou sendo meramente eventuais (como as que derivam da actividade dos órgãos e, em particular, do exercício, pelo administrador da insolvência, das suas funções), a verdade é que todas são consequências do processo de insolvência. Olhando para as restrições inerentes à classificação como dívidas da massa (em particular para os casos dispersos), é possível concluir, em segundo lugar, que a classificação como dívidas da massa assume um caracter marcadamente excepcional (…).
No caso, o valor reclamado pelo apelante resulta de ele ter satisfeito a quota parte de um crédito hipotecário que cabia à insolvente, mas relativamente à qual ele era devedor solidário (cfr. ponto 2 dos factos provados).
Aliás, na sequência da declaração de insolvência de BB, o banco credor considerou imediatamente vencidas todas as obrigações emergentes do contrato de mútuo com hipoteca, tendo, declarado a sua resolução e, posteriormente, instaurado ação executiva contra o apelante (ponto 12 dos factos provados), a qual foi extinta por terem procedido os embargos que lhe opôs (ponto 13 dos factos provados). No entanto, desde a declaração de insolvência de BB até 19.03.2024, o apelante pagou € 35.480,57, a título de prestações do contrato de mútuo com hipoteca celebrado com o Banco 1..., S.A., após interpelação banco para o efeito, na sequência do que este veio reconhecer que o valor do seu crédito deve ser reduzido à quantia de € 27.350,53 (sendo a quantia de € 23.930,37 a título de capital e a quantia de € 3.420,16 a título de despesas).
Verifica-se, assim, que o montante pago pelo apelante resulta do vencimento e resolução do crédito do Banco 1.... O apelante, tendo mantido o benefício do prazo em relação à sua responsabilidade contratual perante o banco, veio a satisfazer algumas prestações pelas quais era apenas solidariamente responsável.
Tal situação é subsumível ao disposto no art. 47º1, nº 1 do CIRE: trata-se de um crédito cujo fundamento é anterior à insolvência, também garantido por um bem integrante da massa insolvente. Com efeito, o fundamento do crédito invocado pelo apelante corresponde ao crédito constituído pela insolvente e por si próprio perante o credor Banco 1.... E é inequívoco que esse crédito era garantido pelo direito da insolvente sobre o imóvel, o qual, aliás, foi alienado no processo da insolvência e adquirido pela própria filha, no exercício do seu direito de remição.
Contra isto não se afirme que o direito que o apelante pretende exercer contra a massa insolvente é um direito próprio, surgido ex novo na sua esfera jurídica, consubstanciado pelo direito de regresso em relação às quantias que pagou na vez da insolvente, que lhe foram exigidas por delas ser devedor solidário. Se é certo que esse direito é enquadrável no disposto no art. 524º do Código Civil, o que releva para a verificação da facti species do nº 1 do art. 47º é o fundamento do crédito sobre o insolvente.
De resto, se assim não fosse, então por outra via sempre o crédito continuaria a ser um crédito sobre a insolvência, designadamente por aplicação do nº 3 do mesmo art. 47º do CIRE. Com efeito, sempre teríamos de considerar que o direito de regresso que o ora apelante se propunha exercer, nascido do facto de ele próprio ter satisfeito obrigações pretéritas da insolvente, teria nascido na sua esfera jurídica no decorrer do próprio processo de insolvência, em substituição do direito do credor, em circunstâncias absolutamente equivalentes às da aquisição de tal crédito a tal credor.
Acresce que, se por um lado, o direito invocado pelo autor/apelante se nos apresenta como subsumível ao disposto no nº 1 do art. 47º do CIRE, por outro lado ele afasta-se da hipótese da sua qualificação como crédito sobre a massa insolvente e, assim, da subsunção a qualquer das hipóteses do art. 51º do CIRE, maxime às das als. c) e i) concretamente invocadas.
Como acima se referiu, citando Catarina Serra, uma dívida sobre a massa insolvente exige a identificação uma espécie de nexo causal ou de derivação para com o próprio processo de insolvência. As dívidas sobre a massa são “previsíveis e naturais ao processo de insolvência”, são inerentes à tramitação do processo de insolvência (ex, as das custas), ou, sendo meramente eventuais (como as que derivam da actividade dos órgãos e, em particular, do exercício, pelo administrador da insolvência, das suas funções), todas são consequências do processo de insolvência. O mesmo é dizer-se, são dívidas que não existiriam se não houvesse o processo de insolvência.
Ora, como é bom de ver, o crédito que o apelante pretende ver pago existe em razão do crédito hipotecário constituído por si e pela entretanto insolvente, perante o Banco 1.... E inscreveu-se na esfera jurídica do apelante por este, no cumprimento de obrigação solidária, ter acorrido a suprir o incumprimento da insolvente. Não surgiu, assim, nem por ser inerente à tramitação do processo de insolvência, nem ao exercício das funções do administrador da insolvência, nem por este ter entendido dever cumprir qualquer contrato.
Acresce que, contrariamente ao alegado pelo apelante, o facto de o pagamento que fez se reflectir no volume de créditos a considerar no processo de insolvência, reduzindo-o (como o próprio credor Banco 1... veio declarar) não constitui o nexo causal subjacente à previsão da al. c) do nº 1 do art. 51º. Com efeito, para que a dívida onere a massa insolvente, pressupõe esta norma que seja o próprio processo a respectiva causa. E isso, repete-se, não aconteceu com o crédito do apelante.
Excluída está, portanto, a verificação da hipótese da al. c) do nº 1 do art. 51º do CIRE.
Sem prejuízo do exposto, alega ainda o apelante que a situação verificada, consubstanciada pelo pagamento das prestações que fez ao Banco 1... e que corresponderiam obrigação da insolvente, resulta num enriquecimento sem causa da massa insolvente. Preencher-se-ia, assim, a previsão da al. i) do nº do mesmo art. 51º do CIRE.
O regime do enriquecimento sem causa (perfeitamente descrito no Ac. do TRG de 12/6/2024, no proc. nº 2852, em dgsi.pt, que a sentença recorrida reconhecidamente acolheu) está previsto no art. 473º e ss. do C.Civil, prescrevendo essa norma: “1.-Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. 2 - A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.
A natureza subsidiária deste instituto é afirmada no art. 474º do C.Civil, que dispõe: “Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
Densificando o respectivo significado, estabelece o art. 479º ainda do C.Civil: “1 - A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. 2 - A obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento à data da verificação de algum dos factos referidos nas duas alíneas do artigo seguinte”.
Identificam-se, assim, os seguintes requisitos para o funcionamento do instituto (cfr. Ac. do TRC de 2711/2010, proc. nº 1867/08.0TBVIS.C1):
1. Existência de um enriquecimento (encaixe de uma vantagem de carácter patrimonial);
2. Ausência de uma causa justificativa para o surgimento dessa vantagem;
3. Esse enriquecimento corresponde a um empobrecimento de quem pede a restituição, ainda que os mesmos não sejam sobreponíveis;
4. Inexistência de outro instituto que faculte ao empobrecido a possibilidade de ser restituído/indemnizado
A falta de uma causa justificativa traduz-se na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios ou institutos jurídicos aceites no sistema, legitime o enriquecimento. Como se diz no ac. citado do TRG, “… se o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; faltará essa causa se não existe uma relação ou facto que, à luz dos princípios aceites pelo sistema, legitime o enriquecimento.”
Além disso, como ali também se esclarece: “O objecto da obrigação de restituição encontra-se submetido a um duplo limite: o beneficiado deve entregar na medida do locupletamento; nunca mais, todavia, do que o quantitativo do empobrecimento do lesado, caso este se mostre inferior àquele.”
Transpondo o que vem de expor-se para a situação sub judice, verifica-se que o ganho alcançado pela massa insolvente, correspondente à diminuição do crédito reclamado pelo Banco 1..., teve uma causa efectiva: o facto de o próprio apelante ser responsável, a par da insolvente, pela satisfação desse crédito. Aliás, essa é precisamente a mesma causa do “empobrecimento do autor”, isto é, a sua responsabilidade por tais pagamentos, que levaram, na mesma medida, à exoneração do correspondente valor da dívida da insolvente, como o próprio banco credor logo veio dar conta ao processo de insolvência.
Para além disso, a inviabilidade de recurso ao instituto do enriquecimento sem causa resulta ainda da sua natureza subsidiária, pressuposto este que aqui também tem de considerar-se não verificado. Com efeito, o apelante, vendo-se constituído num direito de regresso em função dos pagamentos que fez (art. 524º do CPC), dispõe de outro meio para poder ser ressarcido: a reclamação do crédito correspondente perante a própria insolvência, à semelhança dos restantes credores da insolvência, designadamente através do expediente previsto no art. 146º do CIRE (verificação ulterior de créditos).
Se tal expediente não foi usado, por questão de tempestividade ou por opção (parece o apelante afirmar ter isso por inútil, face às forças da insolvência), isso não exclui a sua possibilidade, o que é de ordem a prejudicar a admissibilidade do recurso ao instituto do enriquecimento sem causa.
Conclui-se, pois, pelo não preenchimento da al. i) do nº 1do art. 51º do CIRE, havendo de ser confirmada a decisão recorrida, também nesta parte.
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Por fim, alega o apelante “Seria aliás abusivo de direito e até mesmo inconstitucional – o que aqui vai igualmente invocado - não ter o Autor direito ao reembolso das quantias que pagou e a respetiva qualificação como dívida da massa, já que decidindo-se como na sentença ora em crise a verdade é que o Réu, enquanto co-devedor (contrariando até as normas do CIRE que acautelam esta situações), vê o direito de regresso/reembolso vedado face à manifesta insolvência (e falta de liquidez) da Insolvente e, em bom rigor, o credor hipotecado até sai beneficiado porque se viu ressarcido dos montantes reclamados, como se não existisse qualquer processo de insolvência e/ou mesmo respeito pelo principio de igualdade com os demais credores.”
Face a esta alegação, logo se constata que o apelante, apesar de invocar a inconstitucionalidade da solução que não considere o seu crédito como uma dívida da massa insolvente, antes a qualificando como dívida da insolvência, não esclarece minimamente os termos por via dos quais conclui pela apontada inconstitucionalidade, nem especifica qualquer norma que tenha por inconstitucional ou que esteja a ser aplicada em condições que resultem na violação de qualquer preceito constitucional.
Por conseguinte, a este propósito, resta afirmar que não se descortina qualquer resultado ofensivo de qualquer preceito constitucional, na solução decretada na decisão recorrida e que agora se confirma, quanto à qualificação do seu crédito como uma dívida da insolvência e não da massa insolvente, o que redunda necessariamente na absolvição da ré Massa Insolvente quanto ao pedido da sua condenação nestes autos, como decidido na sentença em crise.
De forma igualmente genérica e desprovida de qualquer explicitação jurídica, afirma o apelante que a referida solução consubstanciaria um abuso de direito. Não esclarece, sequer qual a modalidade de abuso de direito que está subjacente à sua hipótese, nem como ela se constrói no caso em apreço. Meneses Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Livraria Almedina, pág. 239 e ss.), explica de forma clara as modalidades em que o abuso de direito pode ocorrer, destacando as mais comuns: suppressio, venire contra factum proprium, tu quoque e desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados. Porém, no caso, nenhuma destas modalidades identifica sequer o apelante, para fundamentar a sua tese.
Ora, a mera alegação de que vê o seu direito de reembolso vedado face à insolvência e falta de liquidez da Insolvente e por o credor hipotecado ter saído beneficiado, “porque se viu ressarcido dos montantes reclamados, como se não existisse qualquer processo de insolvência e/ou mesmo respeito pelo principio de igualdade com os demais credores” não permite concluir que a ré, Massa Insolvente, incorra em qualquer abuso de direito por não ser responsável pelo reembolso, ao autor, ora apelante, dos valores que este pagou ao banco. Acresce que nem é legítima a conclusão segundo a qual a satisfação do crédito do banco comportou a violação do princípio da igualdade entre credores, pois que o mesmo era de per si um credor hipotecário, o que o colocava em posição privilegiada perante outros credores, quanto à satisfação do seu crédito por via do produto da alienação do imóvel hipotecado.
Conclui-se, pois, que tais alegações do apelante, genéricas, carecidas de fundamentos concretos ou explicitação, não procedem a qualquer título.
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Resta, em suma, concluir pelo não provimento do presente recurso, na confirmação integral da decisão recorrida.
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Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento ao presente recurso de apelação, na confirmação integral da decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Reg. e not.

Porto, 8 de Abril de 2025
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
João Proença