Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7919/23.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: EXPLORAÇÃO DE ALOJAMENTO LOCAL
FRACÇÃO AUTÓNOMA
TÍTULO CONSTITUTIVO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL
Nº do Documento: RP202504107919/23.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 04/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - É admissível a exploração de estabelecimento de alojamento local em fração autónoma, salvo se o título constitutivo da propriedade horizontal proibir o exercício de tal actividade ou se a mesma for proibida pelo regulamento de condomínio estando este integrado no titulo constitutivo.
II - Tem natureza comercial, na modalidade de prestação de serviços, a actividade de exploração de estabelecimento de alojamento local.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 7919/23.9T8PRT.P1

Tribunal Judicial do Porto

Juízo Local Cível do Porto – Juiz 1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

“Condomínio do edifício situado na Rua ..., nºs ... a ...” instaurou acção declarativa com processo comum contra AA.

Alegou, para o efeito, que a R. é proprietária de fracção autónoma situada no seu edifício, designada pela letra “Z”, sendo que tal fracção se destina a “comércio”.

Referiu o A. que a R. vem utilizando a aludida fracção para exploração de alojamento local.

Defendeu que esse uso que a R. dá à referida fracção é diverso do fim a que a mesma se destina.

Alegou, igualmente, que a utilização dessa fracção nos moldes em que a R. o vem fazendo prejudica a segurança do edifício; além disso, tal utilização não é consentânea com as concretas redes de água do edifício, que não estão projectadas para suportar o fluxo daí decorrente.

Pediu, assim, que a R. seja condenada a cessar a afectação da referida fracção “Z” a habitação, bem como que seja condenada no pagamento de sanção pecuniária compulsória por cada dia que viole tal proibição.

Citada, a R. contestou.

Referiu, em suma, que a utilização que vem fazendo da fracção “Z” como alojamento local não contraria o fim a que a mesma se destina, dado que não é usada para habitação.

Mais impugnou as alegadas consequências prejudiciais que dessa utilização advêm para as restantes fracções e para as partes comuns do edifício.

Pugnou, assim, pela improcedência da acção.

Proferiu-se despacho saneador, tendo sido indicado o objecto do litígio e seleccionados os temas da prova.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a Ré dos pedidos contra ela formulados pelo Autor.

Inconformado com tal sentença, dela interpôs o Autor recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“I. Nos presentes autos, e no que, para o presente recurso, importa, o ora Recorrente peticionou a condenação da ora Recorrida a cessar a afetação da sua fração, designada pela letra Z, à atividade de alojamento local, tendo o Tribunal a quo decidido que o uso da fração se contém no fim a que esta se destina, mais considerando inexistir qualquer prejuízo para o Recorrente.

II. Salvo o devido respeito, não pode o Recorrente conformar-se com a decisão revidenda, uma vez que mal andou o Tribunal a quo na subsunção jurídica dos factos apurados em apreço, tendo o presente recurso como objeto a matéria de facto (com reapreciação da prova gravada) e de Direito daquela decisão proferida nos presentes autos.

Contemplemos,

• MATÉRIA DE FACTO

PONTOS DE FACTO INCORRECTAMENTE JULGADOS (640.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CPC)

III. Não concordamos com a redação atribuída no que concerne ao facto provado 18), devendo a mesma ser alterada, mais devendo ser considerado como provado o facto 2) dos factos não provados, e serem aditados outros factos que resultaram diretamente da prova produzida e não foram devidamente contemplados, os quais infra se exporão.

MEIOS PROBATÓRIOS QUE IMPUNHAM DECISÃO DIVERSA (640.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CPC)

i. No que concerne aos factos não contemplados:

IV. Dos pontos 11, 12 e 16 dados como provados resulta, em suma, que a canalização do prédio não se encontra preparada para o uso diário de uma atividade doméstica, nomeadamente banhos e refeições, sendo precisamente esse o motivo para que a fração do sétimo andar – a única destinada a habitação-, seja servida por uma canalização e saneamento diferentes do restante condomínio e que se encontram preparados para tais atividades.

V. Sucede que compulsada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, não existe nenhum facto provado ou não provado que se relacione com tal factualidade, sendo evidente que tal facto se mostra relevante para a boa decisão da causa.

VI. Uma vez que, apesar de a fração da Recorrida não se encontrar preparada para as atividades domésticas (banhos e preparação de refeições), tais atividades são levadas a cabo na fração em causa.

VII. A testemunha BB, condómina, não deixou de referir que a fração do sétimo andar, onde existe uma habitação, é servida por uma canalização diferente (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 15/02/2024, entre as 11:08 e as 11:28, mormente o período compreendido entre 00:07:30 a 00:07:57).

VIII. Também a testemunha CC, porteiro e zelador, corroborou tal facto (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 15/02/2024, entre as 10:30 e as 11:07, minutos 00:10:25 a 00:11:00).

IX. Por fim, a testemunha DD, cujo depoimento o Douto Tribunal erradamente não considerou, confirmou que a fração do sétimo andar, por se destinar a habitação, é totalmente diferente das restantes (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 13/03/2024, entre as 11:16 e as 11:32, minutos 00:04:43 a 00:05:05).

X. Neste sentido, tendo em conta os factos 11, 12 e 16 considerados provados e a prova testemunhal produzida e indicada nos pontos que antecedem, sempre se imporia que fosse aditado aos factos provados o seguinte facto:

A canalização e saneamento da fração do sétimo piso, por se destinar a habitação, é distinta das frações do restante condomínio.

Ademais,

XI. Dos factos provados ou não provados não resulta nenhum que se relacione com os motivos que levam às regras de segurança existentes no condomínio e que impõe o cuidado de a porta se encontrar fechada.

XII. Sobre tal conspecto, a testemunha BB não deixou de referir a insegurança vivida no prédio, designadamente a existência de intromissões não autorizadas e assaltos durante a noite (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 15/02/2024, entre as 11:08 e as 11:28, minutos 00:09:28 a 00:11:35).

XIII. Também a testemunha DD referiu ter conhecimento de episódios semelhante sucedidos nas garagens do prédio (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 13/03/2024, entre as 11:16 e as 11:32, minutos 00:09:10 a 00:11:05.

XIV. Neste sentido, tendo em conta o facto 19 considerado provado e a prova testemunhal sobredita (BB e DD), sempre se imporia que fosse aditado ao leque de factos provados, o seguinte facto:

Fruto da insegurança da zona envolvente ao edifício e de situações de invasão e assaltos ao mesmo, foi solicitado a todos os condóminos que fechassem a porta de acesso ao prédio à chave.

Para além disso,

XV. Não consta, dos factos provados, qualquer facto atinente à atividade de gestão do alojamento local em apreço, tendo sido absolutamente desconsiderado o depoimento da testemunha EE.

XVI. Cumprirá, no entanto, salientar, que resulta do seu depoimento que a empresa de gestão de alojamento local da fração em apreço se denominava GuestReady, detendo a sua sede fora das instalações do Autor, contratada pela proprietária da referida fração, a Ré.

XVII. Pelo que, devidamente compulsado o depoimento da testemunha EE (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 15/02/2024, entre as 11:38 e as 11:50, mormente o período compreendido entre 00:00:01 e 00:03:00), deveria ter sido incluído no leque de factos provados, o seguinte:

A empresa de gestão de alojamento local contratada pela proprietária Ré para a exploração de atividade de alojamento local na fração Z, denomina-se GuestReady, tendo a sua sede na Rua ..., ..., ... Porto.

XVIII. Ademais, referiu ainda a sobredita testemunha que o check-in dos hóspedes era realizado de forma impessoal, através de self check-in e check-out, o que acarreta riscos, nomeadamente na devolução da chave, ainda que diminutos (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 15/02/2024, entre as 11:38 e as 11:50, mormente o período compreendido entre 00:04:00 e 00:07:48).

XIX. Pelo que, considerando o exposto, deveria ter sido aditado ao leque dos factos provados, o seguinte facto:

O check-in dos hóspedes era realizado através de self check-in, sem contacto pessoal, sendo que o check-out poderia variar, afigurando-se possível, ainda que diminuto, o risco de ocorrência de problemas na entrega das chaves.

ii. Ponto 18 dos factos dados como provados

XX. Quanto ao ponto 18) não se concorda com a redação do mesmo, pois que, da prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento não resultou que a porta se encontra «aberta, sem controlo humano ou tecnológico da entrada de pessoas no prédio pela portaria.»

XXI. Do depoimento prestado pela testemunha CC, resultou que as suas funções são de porteiro e zelador, o que significa que há momentos em que necessita de se ausentar da portaria para controlar o restante edifício.

XXII. O mesmo também referiu que quando se encontra na portaria já conhece muitas das pessoas que se frequentam o prédio, que as pessoas o abordam a pedir indicações e que, se no seu entender, a pessoa aparentar ser problemática, aborda a mesma no sentido de perceber para onde se dirigem. (cf. Depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 15/02/2024, entre as 10:30 e as 11:07, minutos 00:16:57 a 00:18:00).

XXIII. A este respeito, refira-se, ainda, que a testemunha DD corrobour tal facto, referindo que o porteiro e zelador CC encaminhava as pessoas para o destino onde pretendiam ir (cf. depoimento prestado em Audiência de Julgamento, em 13/03/2024, entre as 11:16 e as 11:32, minutos 00:08:40 a 00:09:07).

XXIV. Nessa medida, e considerando os depoimentos supra referidos, deverá a redação do ponto 18 dos factos dados como provados ser alterada, passando a ser a seguinte:

Ao longo do dia, a porta do edifício encontra-se aberta, com a vigilância de um porteiro/zelador e, sempre que possível, com controlo humano de entrada de pessoas no prédio pela portaria.

iii. No que concerne aos factos não provados:

XXV. Considerando a impugnação factual supra, concatenando o histórico de assaltos e de intromissões alheias no condomínio Autor, os riscos que comporta o self check in e check out praticados no alojamento local, aliados ao facto de o Condomínio dever estar encerrado e sem movimentações no período noturno, mais tendo em linha de conta as regras da experiência comum e da lógica, no plano da normalidade das coisas e da vida real, é expectável que seja incrementado um clima de maior insegurança e perturbação nos Condóminos, pelo que deveria ter-se dado como provado o facto n.º 2 do leque de factos não provados.

• MATÉRIA DE DIREITO

-> Da errada interpretação e aplicação de normas jurídicas:

• Das normas jurídicas ínsitas nos artigos 1418.º, 1422.º n.º 2 c) do Código Civil, artigo 2.º do Código Comercial e artigo 4.º n.º 1 do DL n.º 128/2014, de 29 de Agosto:

XXVI. Foi atribuída à fração Z licença de utilização para comércio, tendo-se concluído, em sede de motivação, que tal fração se destinaria efetivamente a comércio, exercendo-se aí a atividade de alojamento local.

XXVII. A licença de utilização em apreço previa apenas a concreta atividade de “comércio”, não contemplando a atividade de serviços ou de indústria.

XXVIII. Ao contrário do entendimento propalado a quo, não poderá ser considerado que o uso da fração Z se conteve no fim a que esta se destina.

XXIX. Desde logo porque inexiste qualquer fundamento fático ou jurídico que permita concluir que, tratando-se a atividade de alojamento local de uma prestação de serviços, tal prestação se insere, sem mais, no conceito de comércio vide, a este propósito, o entendimento propalado pelo Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão de 16-03-2023, pela relatora Laurinda Gemas, “I – Está provado que a 1.ª Ré diligenciou, antes de dar a fração de arrendamento, pela alteração da licença de utilização, que passou a ser, de “comércio” para “comércio/ serviços”. Sem essa alteração seria fácil concluir que o contrato de arrendamento era nulo (cf. art.º 5.º, n.º 8, do Decreto-Lei n.º 160/2006, de 08-08, republicado pelo Decreto-Lei n.º 266-C/2012, de 31-12), já que a exploração de um “estabelecimento de restaurante” não é de considerar incluída no conceito de comércio.”.

XXX. A atividade de alojamento local não se insere no conceito de comércio e na ratio da norma ínsita no artigo 2.º do Código Comercial (ressalva que já poderia ter sido introduzida pelo legislador, se este assim o pretendesse).

XXXI. O fim a que as frações se destinam poderá consubstanciar-se nas seguintes categorias: habitação, comércio e indústria/serviços.

XXXII. Tal como apontado pelo Tribunal a quo, a atividade de alojamento local consubstanciará, no limite, uma prestação de serviços, nos termos do artigo 4.º n.º 1 do DL n.º 128/2014, de 29 de Agosto, finalidade que se afigura distinta e autónoma da finalidade de exercício do comércio.

XXXIII. Sendo que, a atividade de alojamento não se enquadrará, no nosso modesto entendimento, na aceção de comércio, mas apenas e quando muito, na aceção de indústria ou de serviços.- ancoramos o nosso entendimento na sapiência propalada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 28-03-2017, pela relatora Salreta Pereira, nos termos do qual “(…) II - O arrendamento da fracção a turistas por curtos períodos, designado por alojamento local, não é um acto de comércio, nem consta do art. 2.º do CCom, onde já podia ter sido incluído dadas as sucessivas alterações legislativas desde o DL n.º 39/2008, 07-03, e Portaria n.º 517/2008, de 25-06, que o referencia, até ao seu actual regime jurídico estabelecido no DL n.º 128/2014, de 29-08.”

XXXIV. Pelo que, não se inserindo no âmbito do conceito de comércio, verificou-se uso diverso do fim a que a fração “Z” se destina, considerando que a atividade de alojamento local em si mesma não consubstancia um ato de comércio, podendo, quando muito, consubstanciar uma atividade de indústria ou de serviços, não contemplada naqueloutra aceção.

XXXV. De tal prisma, haveria que soçobrar de imediato a argumentação propalada, considerando que a prestação de serviços em apreço extravasa a finalidade de comércio.

Outrossim,

XXXVI. Considerando o supra exposto, resultaram transgredidas as normas jurídicas ínsitas nos artigos 1418.º, 1422.º n.º 2 c) e d) do Código Civil, artigo 2.º do Código Comercial e artigo 4.º n.º 1 do DL n.º 128/2014, de 29 de Agosto, preceitos estes que deveriam ter sido aplicados e interpretados no sentido de ter sido efetivamente dado uso diverso à fração, por não se encontrar a atividade de exploração de alojamento local contemplada no conceito e fim de comércio a que tal fração se destinava.

• Das normas jurídicas ínsitas nos artigos 154.º e 607.º n.º 3 do Código de Processo Civil e do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência:

XXXVII. Da leitura e análise do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2022 de 22-03-2022 do Supremo Tribunal de Justiça, em que se baseia o Tribunal a quo, não é possível extrair a conclusão de que “decorrendo deste Acórdão Uniformizador que o alojamento local não pode ser realizado em fracções destinadas a habitação, forçoso é concluir que poderá sê-lo, por exclusão de partes, em fracções destinadas a comércio”.

XXXVIII. Tendo sido manifestamente precipitada e infundada a decisão a quo, ao concluir por tal exclusão de partes, não interpretando devidamente o entendimento jurídico propalado em tal Acórdão, limitando-se a reproduzir o sumário, em claro vício de fundamentação e de interpretação, transgredindo o disposto nos artigos 154.º e 607.º n.º 3 do CPC.

Ainda que se considerasse que a “atividade de exploração de alojamento local” é um ato de comércio, o que por mera hipótese se concebe,

XXXIX. Assevera-se que, distinto do alojamento local em si, que é prestado e usufruído na fração em causa, será a atividade de prestação e de gestão desse serviço de alojamento local, que será realizada em instalações externas à fração propriamente dita, podendo apenas esta revestir, no limite, a natureza comercial.

XL. A fração constitui apenas o objeto imediato do contrato, não sendo aí exercida a atividade comercial em sentido próprio, pois que, em tal fração apenas haverá lugar às pernoitas, higiene pessoal e refeições dos alojados.

XLI. De acordo com a declaração de voto de Maria Olinda Garcia no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 22-03-2022, pela relatora Fátima Gomes, e em abono da nossa pretensão, é referido que o alojamento local em si poderá encontrar correspondência numa finalidade habitacional, podendo, no entanto, corresponder a um uso funcionalmente diverso na medida em que engloba dinâmicas diferentes daquelas que compõem as rotinas próprias da habitação comum ou permanente.

XLII. Tais dinâmicas afetam potencialmente os interesses de sossego e segurança dos demais condóminos, acabando o Acórdão Uniformizador por, de modo preventivo, tutelar os interesses de sossego e segurança dos residentes habituais do imóvel e dos integrantes das demais frações do edifício.

XLIII. O mesmo se verifica in casu: fará sentido considerar, até pelo recurso às regras da experiência comum, que o uso funcionalmente diverso das rotinas próprias da habitação e de escritórios e estabelecimentos abertos ao público com horário diurno, a que se encontra ligado o alojamento local, contém a potencialidade de afetar os interesses, a segurança e o sossego dos demais condóminos, seja os que habitam na fração destinada a habitação, seja os que dedicam a sua fração ao exercício do comércio e de atividades liberais.

XLIV. Pelo que, também pela presente via, haveria que considerar-se que, resultaram transgredidas as normas jurídicas ínsitas nos artigos 1418.º, 1422.º n.º 2 c) e d) do Código Civil e artigo 2.º do Código Comercial, preceitos estes que deveriam ter sido aplicados e interpretados no sentido de ter sido dado uso diverso à fração, por não se encontrar a atividade de alojamento local contemplado no fim a que a fração se destina.

Ainda que assim não se entendesse, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe,

• Da errada interpretação e aplicação dos artigos 236.º, 239.º, 1418.º n.º 2 b), 1422.º n.º 2 c) e d), 280.º do Código Civil, 607.º n.º 4 e n.º 5 do CPC, bem como o artigo 3.º n.º 2 do Regulamento do Condomínio:

XLV. Se por um lado, considerou o Tribunal a quo que o Regulamento do Condomínio não pode deixar de ser um indício sobre o uso que vem sendo dado às frações, por outro, olvidou totalmente que em tal regulamento se encontrava estipulada, no seu artigo 3.º n.º 2, a proibição de destinação de fração autónoma habitacional, comercial ou industrial, a “(…) pensão ou equivalente”.

XLVI. Se tal regulamento reveste um indício para o uso que vem sido dado às frações, também deveria ter sido considerado um indício de que as frações não deveriam destinar-se a pensão ou equivalente, in casu, a alojamento local.

XLVII. Ainda que se considerasse que a questão do alojamento local não se encontra expressamente prevista no título constitutivo e no regulamento (este, não integrante do título constitutivo), estaríamos perante situação não concretamente regulada, apelando-se ao critério da integração de eventual lacuna, nos termos do disposto no artigo 239.º do Código Civil,

XLVIII. havendo que concluir que, partindo da vontade hipotética ou conjetural da Assembleia de Condóminos/Condomínio, facilmente se depreende que não se pretenderia a atividade de alojamento local nas frações, equivalente a pensão (com pernoita, higiene pessoal e refeições).

XLIX. Aplicando a teoria da impressão do destinatário ínsita no artigo 236.º do Código Civil, o resultado da exegese das disposições do Regulamento do Condomínio em causa, e, bem assim, da descrição constante do título constitutivo “zona ampla com sanitário”, só pode conduzir à conclusão de que a vontade que presidiu à constituição da propriedade horizontal foi no sentido de excluir o alojamento temporário de turistas ou outros.

L. Aliás, recorrendo a tais normativos legais interpretativos, não se poderá considerar, atendendo à posição de um declaratário normal, que o conceito de “pensão ou equivalente” não integra a atividade de alojamento local, pois que esta se correlaciona com os serviços de hospedagem- a tal propósito, ancoramo-nos no entendimento propalado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 07-11-2019, pelo relator Bernardo Domingos, nos termos do qual é solucionada tal questão “Esta actividade de alojamento local é uma actividade lucrativa, que pode considerar-se sucedânea das chamadas pensões ou hospedarias, entretanto extintas, pelo que não constituirá abuso interpretativo se a enquadrarmos na previsão da Cl.ª 6ª do Regulamento, quando proíbe aos condóminos destinar a fracção a … pensão ou equivalente. Mas ainda que não se entenda assim e como se demonstrou supra, é indubitável que a actividade de alojamento local, consiste essencialmente numa prestação de serviços de hospedagem e outros conexos, mediante retribuição,”.

LI. Pelo que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo interpretou e aplicou erradamente as normas jurídicas ínsitas nos artigos 236.º, 239.º, 1418.º n.º 2 b), 1422.º n.º 2 c) e d) do Código Civil, bem como o artigo 3.º n.º 2 do Regulamento do Condomínio, devendo ter interpretado e aplicado tais normas no sentido de dever ter sido consideradas as disposições do regulamento do condomínio relativas à proibição da pensão ou equivalente (entendendo-se o alojamento local como integrado em tal proibição), como forma de interpretação e integração das lacunas atinentes ao fim e uso da fração, e, bem assim, devendo considerar-se que o uso conferido é contrário ao fim a que a fração se destina.

Ademais, e ainda que assim não se conceba,

• Da violação da norma jurídica ínsita no artigo 335.º n.º 2 do Código Civil:

LII. Ainda que se considerasse, o que por mera hipótese se equaciona, que à Recorrida assiste o direito de exercer na sua fração autónoma a atividade de exploração de alojamento local, não poderá ser olvidada a colisão entre o direito da Recorrida de explorar economicamente a sua fração e o direito do Recorrente, ao descanso, ao sossego, à privacidade, à segurança, ao conforto do gozo das suas casas, dos seus escritórios, a encerrar as suas instalações após o horário de trabalho sem o receio de que alguém as assalte ou vandalize, e ao gozo das partes e serviços comuns para os quais contribuem nas suas prestações de condomínio.

LIII. Entre tal colisão de direitos, de um lado um direito de exploração económico lucrativa da Recorrida, e do outro lado, os direitos do Autor com um cariz essencialmente personalístico, não restarão dúvidas da prevalência dos direitos do Autor, conforme resulta do artigo 335º n.º 2 do Cód. Civil.

LIV. Pelo que, ao decidir como decidiu, transgrediu o Tribunal a quo o disposto no artigo 335.º n.º 2 do Código Civil, devendo ter interpretado e aplicado tal norma no sentido da justificada preponderância do interesse do Recorrente sobre o interesse da Recorrida.

Ainda,

• Da violação do disposto no artigo 342.º n.º 1 do CC:

LV. Considerando a matéria factual impugnada, e, bem assim, a interpretação e aplicação nas normas jurídicas que deveria ter sido conferida, incorreu o Tribunal a quo na violação da norma jurídica ínsita no artigo 342.º n.º 1 do CC, devendo ter interpretado e aplicado, no sentido de se ter produzido prova bastante dos factos constitutivos do direito do Autor, com a necessária procedência da ação.

Alfim,

LVI. No mais alto e ponderado critério, revogando a decisão revidenda, e substituindo- a por uma outra que judicie pela procedência da ação, farão Vossas Excelências inteira e sã Justiça.

TERMOS EM QUE e noutros que VV. Exas. suprirão, concedendo-se a apelação e revogando-se a decisão revidenda, substituindo-se por outra que judicie pela procedência da ação, farão Vossas Excelências inteira e sã Justiça”.

A recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- se ocorreu erro na apreciação da matéria de facto;

- se existe fundamento que impeça a Ré/apelada de usar a fracção de que é proprietária como exploração de estabelecimento de alojamento local.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Pelo tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes factos:

1 - A Autora é Administradora do prédio sito na Rua ..., nºs ... a ... designado como prédio urbano inscrito na matriz predial sob o nº ... e descrito com o nº ..., pertencente à União de Freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., Concelho e Distrito do Porto, a qual foi eleita em Assembleia Geral Ordinária realizada em 23 de Setembro de 2020.

2 – Consta do título constitutivo da propriedade horizontal do referido prédio que o mesmo é composto por 59 fracções autónomas e cave.

3 - No título constitutivo da propriedade horizontal do referido prédio, as fracções sitas no rés-do-chão encontram-se descritas como “loja”.

4 - No título constitutivo da propriedade horizontal do referido prédio, as fracções sitas nos 1º ao 6º andar encontram-se descritas como “sala”.

5 - No título constitutivo da propriedade horizontal do referido prédio, a fracção sita no 7º andar encontra-se descrita como “habitação”.

6 - A Ré é proprietária, desde 24-02- 2020, da fracção autónoma designada pela letra “Z”, situada no segundo andar do referido prédio.

7 - A fracção autónoma “Z” é descrita no titulo constitutivo da propriedade horizontal nos seguintes moldes: “Fracção Z – segundo andar (sala ...); Zona ampla com sanitário”.

8 – Foi atribuída à referida fracção “Z”, pela Câmara Municipal ..., licença de utilização para comércio.

9 - A fracção autónoma “Z” tem sido utilizada, de forma reiterada e sucessiva, desde pelo menos a sua aquisição pela Ré, para alojamento local, ou seja, para alojamento por períodos de curta duração, entre uma a cinco noites.

10 - A Autora enviou à Ré carta registada em 03-03-2021, instando-a a cessar a utilização que vem dando à fracção autónoma “Z”.

11 - A canalização e o saneamento do prédio não se encontram preparadas para lidar com utilização intensiva inerente à vida doméstica, designadamente, da decorrente dos resíduos de refeições daí decorrentes.

12 - A canalização e o saneamento do prédio não se encontram preparados para lidar com águas provenientes de casas de banho completas, nomeadamente, da utilização em banhos e na higiene diária de várias pessoas, nem para lavagem de roupas e de cozinhas.

13 - Foram colocados, no mês de Dezembro de 2022, no exterior do edifício, dispositivos que permitem, mediante a introdução de um código, o acesso a uma chave, a qual permite a entrada no referido edifício e na fracção “Z”.

14 – Consta do Regulamento do Condomínio, no seu art. 3º, nº 1, que “As fracções autónomas destinam-se a lojas, escritórios e uma habitação no 7º andar.”

15 - Consta do Regulamento do Condomínio, no seu art. 3º, nº 2, que “Fica desde já proibido:

a) destinar (…) qualquer fracção autónoma habitacional, comercial ou industrial, a pensão ou equivalente (…).

(…)

d) O período de funcionamento ou laboração dos estabelecimentos comerciais ou industriais é das 7h às 23h”.

16 - A canalização existente no edifício foi implementada para uma parca utilização, própria ao suporte a escritórios.

17 – Nas restantes fracções do prédio são exercidas actividades cabeleireiro, consultoria, serviços de medicina, psicologia, profissões liberais, incluindo escritórios de advocacia, “Spa” e actividades financeiras.

18 – Ao longo do dia, a porta do edifício encontra-se aberta, sem controlo humano ou tecnológico da entrada de pessoas no prédio pela portaria.

19 – A porta de acesso do prédio à via pública encontra-se fechada à chave entre as 19 horas e as 8 horas, apenas sendo acessível, nesse horário, aos utilizadores de fracções com chave.

20 – A fracção “Z” é composta por casa de banho, sala com “kitchenette” e um quarto.

21 - Na fracção “Z” não existe máquina de lavar roupa, nem máquina de lavar louça.

22 – A cozinha da fracção “Z” tem uma placa vitrocerâmica de fogão, um micro-ondas e um frigorifico

23 – A casa de banho da fracção “Z” tem lavatório, sanita e uma base de chuveiro.

24 – Algumas das outras fracções do edifício têm copa.

III. 2. E julgou não provados os seguintes factos:

1 – Entre as 19 horas e as 8 horas, os utilizadores do alojamento local na fracção “Z” não fecham a porta do edifício de acesso à via pública, deixando-a aberta.

2 – A movimentação de pessoas que utilizam a fracção “Z” causa perturbação e ansiedade nos condóminos do prédio.

3 – Os ocupantes da fracção “Z” produzem ruídos, o que já gerou reclamação por parte dos restantes condóminos.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo, por sua vez, o n.º 2:
A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
O recorrente, por discordar do decidido em primeira instância quanto ao julgamento de parte da matéria de facto, reclama desta instância de recurso a sua reapreciação. Assim:
- Discordando da redacção do ponto 18.º dos factos considerados provados, pugna o recorrente pela sua alteração, de modo a que dele fique a constar: “Ao longo do dia, a porta do edifício encontra-se aberta, com a vigilância de um porteiro/zelador e, sempre que possível, com controlo humano de entrada de pessoas no prédio pela portaria”.
Para fundamentar a pretendida alteração deste segmento decisório, convoca o recorrente o depoimento da testemunha CC, porteiro/zelador do prédio sito na Rua ..., nºs ... a ..., funções que exerce há 4 anos, tendo sido este meio de prova (testemunhal) a motivar o decidido em primeira instância quanto à matéria em causa.
Após audição da gravação onde se acha registado o depoimento da referida testemunha, conclui-se que a matéria fixada no ponto 18.º não revela desconformidade com tal depoimento.
Esclareceu, com efeito, a testemunha que exercendo também as funções de zelador do prédio, diariamente incumbe-lhe verificar “se tudo está em condições”, desde a limpeza ao funcionamento dos elevadores, limpando se alguma coisa se sujar. Referindo estar ao serviço das 8,30 horas às 17 horas, precisa que nem sempre se encontra na portaria, efectuando, ao longo do dia, várias rondas pelo prédio para se certificar que tudo está em condições.
Afirma conhecer “toda a gente do prédio”, e também alguns clientes, reconhece, todavia, que metade das pessoas que passam ali, designadamente, para se dirigirem à clínica, aos gabinetes de esteticista e ao cabeleireiro, não lhe são familiares, admitindo que o único cuidado que tem é “com o aspecto da pessoa”, mencionando que “se a pessoa tiver minimamente bom aspecto” não a questiona para onde se dirige.
E não tendo sido produzida outra prova relevante quanto à matéria em causa, não se mostra justificada a alteração pretendida pelo recorrente.
Tendo sido considerado não provado que “A movimentação de pessoas que utilizam a fracção “Z” causa perturbação e ansiedade nos condóminos do prédio” – artigo 2.º dos factos não provados -, defende o recorrente que tal matéria deve ser julgada provada.
Não indica, todavia, qualquer meio de prova que sustente a pretendida alteração[2], limitando-se a argumentar que “tendo ainda em linha de conta as regras da experiência comum e da lógica, no plano da normalidade das coisas e da vida real, é expectável que seja incrementado um clima de maior insegurança e perturbação nos Condóminos, pelo que deveria ter-se dado como provado o facto n.º 2 do leque de factos não provados”, o que se revela manifestamente insuficiente para satisfazer o ónus probatório que o artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil põe a seu cargo.
Pugna, finalmente, o recorrente pelo aditamento de factos que designa por “factos não contemplados”, com a justificação de que se tratam de factos relevantes para a boa decisão da causa.
Propõe, assim, a ampliação da matéria de facto provada com o aditamento dos seguintes factos:
- A canalização e saneamento da fração do sétimo piso, por se destinar a habitação, é distinta das restantes frações do condomínio.
- Fruto da insegurança da zona envolvente ao edifício e de situações de invasão e assaltos ao mesmo, foi solicitado a todos os condóminos que fechassem a porta de acesso ao prédio à chave.
- A empresa de gestão de alojamento local contratada pela proprietária Ré para a exploração de atividade de alojamento local na fração Z, denomina-se GuestReady, tendo a sua sede na Rua ..., ..., ... Porto.
- O check-in dos hóspedes era realizado através de self check-in, sem contacto pessoal, sendo que o check-out poderia variar, afigurando-se possível, ainda que diminuto, o risco de ocorrência de problemas na entrega das chaves.
Nenhum destes factos encontra expressão na factualidade alegada na petição inicial.
Note-se que a ampliação da matéria de facto não se confunde com a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Esta consiste no pedido dirigido à Relação para que modifique o modo como foram julgados pela 1.ª instância pontos concretos da matéria de facto, pretensão que aquela aprecia, modificando, em caso de procedência, aquela decisão.
À ampliação da matéria de facto refere-se a parte final da alínea c) do n.º 2 e a alínea c) do n.º 3 do artigo 662.º do Código de Processo Civil. Se a Relação decidir que a ampliação é necessária deve determiná-la, anulando a decisão da 1.ª instância e ordenando a repetição do julgamento para que se produza prova sobre os factos objecto da ampliação. Nessa situação não é consentido à Relação que julgue em primeira mão os novos factos, sendo à 1.ª instância reservado essa tarefa.
O artigo 5.º da actual lei processual civil corresponde, ainda que com profundas alterações, ao que dispunha o anterior diploma no seu artigo 264º - que fazia recair sobre as partes os ónus de alegação –, e artigo 664º - que delimitava os poderes de cognição do tribunal.
O n.º 1 do artigo 5.º continua a impor às partes o ónus de alegação, quanto aos “factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”.
Permite, todavia, o n.º 2 do mesmo normativo que, além dos factos articulados pelas partes, o juiz considere:
“a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa [...]”.
Não podendo o juiz supor ou inventar factos que não hajam sido alegados, os factos que o n.º 2 do artigo 5.º lhe consente que atenda hão-de resultar da instrução da causa. Ou seja, tratam-se de factos que apesar de não haverem sido invocados pelas partes, a produção de prova lhes assegurou consistência suficiente para poderem ser ponderados. E, ainda assim, não serão quais quaisquer factos os atendíveis nessas circunstâncias pelo juiz, que apenas poderá ter em conta os factos instrumentais e, quanto aos essenciais, os que constituam complemento ou concretização dos alegados pelas partes.
Lopes do Rego[3] escreveu a propósito do pretérito artigo 264.º: “O regime vigente baseia-se numa fundamental distinção entre factos essenciais e factos instrumentais. Os factos essenciais são os que, concretizando, especificando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor ou do reconvinte, ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, se revelam decisivos para a viabilidade ou procedência da acção, da reconvenção ou da defesa por excepção, sendo absolutamente indispensáveis à identificação, preenchimento e substanciação das situações jurídicas afirmadas e feitas valer em juízo pelas partes.
Os factos instrumentais destinam-se a realizar prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões da defesa”.
Comungando de idêntico entendimento, mas considerando já a aplicação da actual lei processual civil, Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro[4] prestam os seguintes esclarecimentos acerca de cada um dos referidos conceitos: “Factos essenciais são os previstos nas fatispécies das normas das quais pode emergir o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou pelo reconvinte (ou nos quais pode fundar-se a excepção deduzida pelo réu), sendo imprescindíveis para a procedência da acção ou da reconvenção (ou da excepção) – artº 581º nº 4. Os factos instrumentais, não preenchendo a fatispécie de qualquer norma de direito substantivo que confira um direito ou tutele um interesse das partes, permitem, mediante presunção, chegar à demonstração de factos principais – tendo, pois, uma função probatória”.
Os factos instrumentais podem ser considerados oficiosamente pelo juiz, sem outras restrições que não sejam a sua pertinência para a decisão da causa.
Nos termos da alínea b), do n.º 2, do citado artigo 5.º, além dos factos essenciais alegados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz “Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”.
A redacção do normativo em causa permite concluir que é dispensada a manifestação da parte interessada para que os factos complementares ou concretizadores dos alegados pelas partes possam integrar a factualidade relevante, podendo, por isso, a sua inclusão na factualidade integrante do objecto do processo ser da iniciativa do tribunal[5], de modo a garantir o imprescindível exercício do contraditório, continua a exigir-se que ambas as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre os factos que se pretendem aditar, o que inclui a possibilidade de produzir prova e contraprova sobre eles[6].
Essa possibilidade só pode, assim, ser facultada se o tribunal, antes de proferir a sentença, sinalizar às partes os factos que, apesar de não terem sido por elas alegados, se evidenciaram na instrução da causa e sejam relevantes para a decisão da mesma, permitindo que estas se pronunciem sobre eles, concedendo-lhes prazo para indicarem os meios de prova que pretendam produzir, relativamente aos factos aditados ao objecto do litígio.
Como alerta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.02.2017[7]: “Admitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado.
Crê-se que a disciplina prevista no art.º 5.º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os factos referidos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido).
Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar. E só assim se assegurará um processo equitativo (art.º 547.º do CPC), facultando-se às partes o exercício pleno do contraditório, requerendo–como é admitido por qualquer das teses–, se for caso disso, novos meios de prova em relação aos factos novos, quer para reafirmar a realidade desses factos, no sentido da sua prova, quer para opor contraprova a respeito dos mesmos, infirmando a realidade que aparentam”.
A par dessa exigência, os ditos factos complementares ou concretizadores dos factos alegados devem apresentar relevância para a decisão a proferir.
Como bem se compreende, nada justifica que sejam considerados, aditando-se aos factos relevantes alegados pelas partes, os factos que nenhum contributo relevante proporcionem para a decisão do objecto do litígio.
É precisamente o caso da factualidade cuja inclusão nos factos provados é proposta pelo recorrente.
Tais factos, revelando-se totalmente inócuos para a solução do objecto do litígio, não devem, por isso, ser adicionados aos factos fixados na decisão impugnada.
Mantém-se esta, por conseguinte, inalterada, improcedendo, nesta parte, o recurso.
2. Do enquadramento jurídico dos factos apurados.
O fenómeno social associado ao forte crescimento turístico que nos últimos anos se vem manifestando em Portugal, sobretudo nas suas principais cidades, teria necessariamente de se repercutir na procura de alojamento turístico e na necessidade de oferta de soluções capazes de responder a essa crescente procura, levando à criação de mecanismos alternativos à tradicional oferta hoteleira ou afim.
Essa realidade social motivou muitos proprietários de imóveis a apostarem na actividade turística, para, através do fornecimento, remunerado, de serviços de alojamento, rentabilizarem, de forma bastante expressiva, os imóveis que lhes pertencem.
Segundo notícia publicada, já no passado ano de 2018, em órgão de comunicação social nacional, “a capital portuguesa é a 8.ª cidade a nível mundial onde á possível fazer mais dinheiro alugando um imóvel comparando com o valor médio que se receberia por uma renda no mesmo apartamento: num apartamento com uma renda média de 600 euros por mês, o aluguer a turistas pode garantir um rendimento anual de 14 mil euros, quase o dobro.”
Dados de Abril de 2017 dão conta que no Registo Nacional de Alojamento Local (RNAL) estavam registados mais de 43 mil alojamentos locais, constatando-se que as propriedades estão sobretudo concentradas em Lisboa, Porto e Algarve.
Tem-se, com efeito, assistido a uma transferência de uso de imóveis do arrendamento habitacional permanente para o alojamento local, com as implicações que essa transferência necessariamente acarreta para o mercado do arrendamento habitacional e a substancial redução de oferta neste domínio.
Esta solução, economicamente vantajosa para os proprietários de imóveis que decidem adoptá-la para assegurar a sua rentabilização, é encarada por outros com desconfiança, desagrado e mesmo oposição, que muitas vezes assumem tradução prática em deliberações sociais da assembleia de condóminos dos prédios onde se acham, ou se preparam para ser instalados, os designados alojamentos locais, sendo cada vez mais frequente o recurso aos tribunais por parte dos condomínios, como no caso, para fazer cessar essa actividade.
A explosão deste tipo de iniciativa privada desencadeou a necessidade da sua regulamentação específica, levando o legislador a produzir instrumentos legislativos com o fito de criar regras adequadas ao ordenamento desta actividade, de forma a impedir a sua proliferação desordenada e sem controlo, procurando-se, também por esta via, a conciliação de interesses que poderão conflituar entre si.
O Decreto-Lei n.º 39/2008, de 7 de Março veio, deste modo, instituir a figura do alojamento local, ao permitir a prestação de serviços de alojamento temporário em estabelecimentos que não reunissem os requisitos legalmente exigidos para poderem ser qualificados como empreendimentos turísticos.
De acordo com o artigo 3.º do referido normativo, são estabelecimentos de alojamento local as moradias, apartamentos e estabelecimentos de hospedagem que, dispondo de autorização de utilização, prestem serviços de alojamento temporário, mediante remuneração, mas não reúnam os requisitos para poderem ser considerados empreendimentos turísticos.
Confrontado com o desencadear de “uma série de realidades que ofereciam serviços de alojamento a turistas sem qualquer formalismo e à margem da lei” e constatando que “a dinâmica do mercado da procura e oferta do alojamento fez surgir e proliferar um conjunto de novas realidades de alojamento [que não são] um fenómeno passageiro [ou] residual, mas um fenómeno consistente e global[8], após a experiência das Portarias n.º 517/2008, de 25 de Junho, e n.º 138/2012, de 14 de Maio, que regulavam aspectos do alojamento local, o legislador sentiu necessidade de regular de forma autónoma esta realidade turística, aprovando o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local através do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto, entretanto alterado pelo Decreto-Lei n.º 63/2015, de 23 de Abril e, mais recentemente, pela Lei n.º 62/2018, de 22 de Agosto.
O artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto definia como «estabelecimentos de alojamento local» aqueles que prestem serviços de alojamento temporário a turistas, mediante remuneração, e que reúnam os requisitos previstos no presente decreto-lei”. E nos termos do artigo 4.º do mesmo diploma, “para todos os efeitos, a exploração de estabelecimento de alojamento local corresponde ao exercício, por pessoa singular ou colectiva, da actividade de prestação de serviços de alojamento”.
A Lei 62/2018, de 22 de Agosto, ao considerar como estabelecimentos de alojamento local “aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração, e que reúnam os requisitos previstos no presente decreto-lei”, adopta um conceito mais alargado para a caracterização deste tipo de estabelecimentos, mantendo o seu artigo 4.º, n.º 1 a redacção do anterior diploma[9].
Esclarece o acórdão desta Relação de 15.09.2016[10], que os conceitos de habitação e alojamento não são coincidentes, pelo que a habitação (do proprietário ou de terceiros mediante autorização do proprietário ou contrato com este celebrado, designadamente de arrendamento) e o alojamento temporário de turistas não são equivalentes. O conceito de habitação é mais amplo ou intenso. O turista é alguém que está de passagem, que se desloca para conhecer ou visitar outros locais e que vai regressar ao espaço onde tem organizada a sua vida e onde habita. Por isso, o turista não habita nos locais onde se hospeda ou aloja, ele apenas pernoita e descansa nesses locais para satisfação das suas necessidades de sono e repouso, aí guardando, durante o tempo da estadia, os bens indispensáveis à viagem que está a fazer.
Todavia, o conceito de alojamento está contido no conceito de habitação. Habitar é algo mais do que apenas alojar, mas inclui todos os actos e utilidades característicos do conceito de alojar. Proporcionar habitação é mais do que alojar, mas é também alojar. Nesse contexto, sendo certo que quem pode o mais deverá poder o menos, a utilização para alojamento temporário de turistas não diverge da utilização para habitação (de não turistas ou mesmo de turistas), porque a pessoa alojada não pratica no local de alojamento algo que nela não pratique quem nele habita: dorme, descansa, pernoita, tem as suas coisas.
Acresce que os estabelecimentos de alojamento local não são equipamentos hoteleiros que tenham de dispor de equipamentos, serviços e funcionários para recepção dos turistas e prestação de outros serviços desejados pelos turistas (alimentação, limpeza, animação, piscina, spas, etc.). No alojamento local o prestador de serviço limita-se a proporcionar ao turista o local de alojamento, os seus cómodos, mobiliário e equipamento doméstico, franqueando-lhe o acesso e a utilização do mesmo e cobrando a respectiva remuneração. Por outro lado, na actual conjuntura o contacto entre o dono do estabelecimento e o turista é feito por via electrónica, através da internet e do correio electrónico, dispensando a existência de qualquer balcão físico ou pessoas no local de alojamento. Nessa medida, ainda que de uma prestação de serviços se trate, no alojamento local o único serviço que é prestado é o próprio alojamento e, como tal, o espaço é utilizado unicamente para alojamento. O contrato de prestação de serviços é apenas o modo como a utilização é proporcionada a terceiros, não é algo que defina por si mesmo o âmbito ou as características dessa.
Temos assim duas ordens de razões que por um lado afastam – ser uma prestação de serviços - e por outro lado aproximam – o serviço prestado é o alojamento - a utilização para alojamento local da utilização para habitação.
Não se encontra no regime jurídico do alojamento local norma legal que resolva este conflito, isto é, norma legal que se ocupe de definir que autorização de utilização deve o espaço possuir para poder ser usado para alojamento local”.
O referido acórdão aponta, como via possível para equação do problema que resulta dessa indefinição legal, a “interpretação da vontade que presidiu à constituição da propriedade horizontal”.
No caso em apreço, demandou o Autor judicialmente a Ré pedindo que seja esta condenada a cessar a afectação da fracção “Z”, de que é proprietária, a habitação, com fundamento no facto de a mesma se destinar a comércio. Alega, para o efeito, o Autor que a Ré vem afectando aquela sua fracção à exploração de alojamento local, que constitui fim diverso daquele para que foi constituída.
Nos termos do disposto no artigo 1422.º, n.º 2, al. c) do Código Civil, “[É] especialmente vedado aos condóminos:
[...]
c) Dar-lhe uso diverso do fim a que é destinada”.
Dispõe, por sua vez, o artigo 1418.º do mesmo diploma legal: “1- No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio. 2. Além das especificações constantes do número anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente:
a) Menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum;
[...]”.
De acordo com o quadro factual apurado nos autos, a fracção “Z”, de que a Ré é proprietária desde 24.02.2020, e que a mesma, desde então, vem afectando à exploração de alojamento local, situa-se num edifício que, de acordo com o respectivo título constitutivo de propriedade, é composto por 59 fracções autónomas e cave.
No referido título constitutivo da propriedade horizontal, as fracções sitas nos 1.º ao 6.º andar encontram-se descritas como “sala”, situando-se a fracção pertencente à Ré no 2.º andar.
Ainda de acordo com o mesmo título, a dita fracção é assim descrita: “Fracção Z – segundo andar (sala ...); Zona ampla com sanitário”.
O título constitutivo de propriedade horizontal é, assim, incontestavelmente omisso quanto ao fim a que se destina a fracção “Z”.
Note-se que é o título constitutivo que determina o estatuto da propriedade horizontal - as suas determinações têm natureza real, sendo eficazes erga omnes.
Tal como refere a sentença impugnada, “Face a tal omissão, o fim a que a fracção se destina deverá apurar-se a partir “das características internas do espaço que a integra, (…) das características do prédio de que faça parte e, ainda, da sua localização.” (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-2-1990, in “www.dgsi.pt”); igualmente, deverá ter-se por referência o uso que vem sendo dado a tal fracção.
Neste ponto, ficou provado que nas restantes fracções do prédio (à excepção da situada no 7º andar, que se destina a habitação) são exercidas actividades de cabeleireiro, consultoria, prestação de serviços de medicina, profissões liberais, “Spa” e actividades financeiras.
Além disso, consta do Regulamento do Condomínio, no seu art. 3º, nº 1, que “As fracções autónomas destinam-se a lojas, escritórios e uma habitação no 7º andar.”.
Tal regulamento não consta do título constitutivo, mais se desconhecendo quando e em que moldes foi aprovado; porém, a sua aprovação, porque posterior à emissão do título constitutivo, sempre impediria que nele se dispusesse sobre o uso e fruição das fracções autónomas, apenas podendo incidir relativamente ao uso das partes comuns, conforme emerge do art. 1429-A, nº 1, parte final, do CC.
Além disso, tal regulamento, ao especificar o fim das fracções, constitui alteração ao título constitutivo, sendo que não consta dos autos que tenham sido cumpridas as exigências previstas no art. 1419º, nº 1, do CC, nem que tais alterações tenham sido levadas ao registo predial, nos termos do art. 1º, nº 1, al. b), do Código de Registo Predial (não podendo, por isso, ser apostas a posteriores adquirentes das fracções).
Assim sendo, o teor desse regulamento, na parte em que dispõe sobre o fim e uso das fracções autónomas, não pode ser invocado contra a R..
Não obstante, tal regulamento do condomínio não deixa de constituir um indício sobre o uso que vem sendo dado às fracções.
Mais: a Câmara Municipal ... atribuiu à referida fracção “Z” licença de utilização para comércio.
Nesta medida, podemos afirmar, sem hesitação – na senda, aliás, do univocamente afirmado pelas partes em sede de articulados -, que a referida fracção “Z” se destina a comércio.
Ora, ficou provado que a fracção “Z” vem sendo usada pela R. no exercício da actividade de alojamento local.
Nos termos do art. 2º, nº 1, do DL 128/2014, de 29/8, alterado pela Lei 62/2018, de 22/8, consideram-se “estabelecimentos de alojamento local” aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração. Por seu turno, o art. 4.º, n.º 1, do mesmo diploma dispõe que “para todos os efeitos, a exploração de estabelecimento de alojamento local corresponde ao exercício, por pessoa singular ou colectiva, da actividade de prestação de serviços de alojamento”.
Assim, o alojamento local destina-se, essencialmente, a proporcionar alojamento temporário.
Está em causa, por isso, uma prestação de serviço, conforme decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-11-2019, in “www.dgsi.pt”.
Nestes termos, sendo praticada na fracção “Z” uma prestação de serviço, forçoso é concluir que tal actividade se contém no uso para comércio a que tal fracção se destina”.
Acerca da natureza do alojamento local disserta detalhadamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.11.2019[11]: “O alojamento local é inquestionavelmente uma prestação de serviços. Foi o próprio legislador que insofismavelmente o qualificou como tal ao definir os estabelecimentos de alojamento local como «aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração..» (Art.º 2º nº 1 do RJAL) e reforçou essa vertente de prestação de serviços no art.º 4º n.º 1 do mesmo diploma de forma absolutamente clara, ao estipular que «para todos os efeitos, a exploração de estabelecimento de alojamento local corresponde ao exercício, por pessoa singular ou colectiva, da actividade de prestação de serviços de alojamento».
Também a Autoridade Tributária, assim a qualifica[24]. Efectivamente como bem se salienta no ac. da Relação do Porto de 27/4/2017, acima citado, «neste novo conceito de estabelecimento de alojamento local há, sem dúvida, o exercício de uma actividade de prestação de serviços de alojamento que, para além da locação do espaço (temporariamente e por curtos períodos), inclui serviços complementares como a limpeza e a recepção. E como se trata de actividade de prestação de serviços de alojamento, exercida por pessoas singulares, no âmbito da categoria B de IRS, é sempre exigido a apresentação da declaração de início de actividade nas finanças, ou a sua alteração para quem já tenha outra actividade. Este enquadramento na categoria B de IRS, em detrimento da categoria F (arrendamento residencial) determina uma alteração na forma de determinação dos rendimentos tributáveis, passando a ser possível a dedução de todos os encargos relacionados com o imóvel, incluindo a depreciação do valor de aquisição do imóvel e encargos .financeiros com essa aquisição, quando se opte pelo regime de tributação com base na contabilidade. Em alternativa, ficando enquadrado no regime simplificado de tributação, o rendimento tributável é de 15 por cento do valor dos serviços prestados de alojamento. E o enquadramento na categoria B de IRS, com o respectivo início de actividade, implica um aumento de obrigações fiscais e acessórias, nomeadamente a nível de IVA e de facturação. Com o exercício de uma actividade no âmbito da categoria B de IRS, o empresário em nome individual, que opera o estabelecimento de alojamento» local, passa a ser obrigado a estar registado para efeitos de IVA (ao contrário do que acontece com a categoria F de IRS). Este regime fiscal acentua a diferença entre o alojamento local e o arrendamento residencial. Enquanto este é considerado uma locação passiva, aquele é considerado uma locação activa, que inclui prestações de serviços complementares à mera locação do espaço».
Fernanda Paula Oliveira, Sandra Passinhas e Dulce Lopes, no seu estudo sobre Alojamento Local e uso de Fracção Autónoma[25], sustentam que a qualificação do «alojamento local» como uma actividade de prestação de serviços, se impõe inelutavelmente. Mas mais, «impede que se faça qualquer consideração sobre o objetivo concreto da prestação de serviços: relevante não é que o adquirente do serviço de alojamento vá fazer no estabelecimento local aquilo que faz na sua habitação (instalar-se e pernoitar); o que distingue o alojamento local é precisamente o exercício de uma atividade organizada com vista ao fornecimento de alojamento".
No mesmo sentido se pronuncia J. Pinto Furtado[26], quando afirma que «o alojamento local constitui uma actividade económica de controlo sucessivo da câmara municipal territorialmente competente, mediante mera comunicação prévia, convenientemente instruída, de quem se proponha exercê-la.
Esta actividade destina-se a acolher remuneradamente, por curtas estadas, não apenas turistas, mas o público, em geral, em instalações não construídas de raiz, mas com aptidão para o efeito e preparadas, à sua escala, à semelhança do que é exigido para hotéis ou pousadas.
À sua imagem, com efeito, o alojamento é prestado em instalações mobiladas, com roupas de cama, mesa e banho, cercado de serviços destinados a torna-lo aprazível e cómodo, como o de camareira, luz, águas quentes e frias, televisão e rádio, bar e pequenos-almoços, tentando proporcionar ao cliente uma estada o mais possível confortável.
[...] Em qualquer das suas modalidades, da moradia ao estabelecimento de hospedagem, passando pelo apartamento, o alojamento local proporciona sempre, uma dupla componente: a habitação breve e os serviços de acolhimento, construindo deste modo uma verdadeira e própria hospedagem.
O cliente não recebe pois, apenas, um lugar de simples dormida ou habitação breve, mas uma série de serviços envolventes, relacionados com a sua estada.
Por seu turno, o sujeito que proporciona o lugar de acomodação, reúne e organiza todo um complexo de bens e de serviços, forma assim uma empresa de alojamento local que, como expressamente se classifica no Decreto-Lei n.º 128/2014 [(artigo 6.º-2, al. e)], realiza uma atividade económica que se insere na Classificação das Atividades Económicas-Rev. 3, na secção I, como uma das figuras de Alojamento, restauração e similares aí classificadas”.
Volvendo ao que nos autos é objecto de discussão, dir-se-á que a actividade desenvolvida pela Ré na fracção “Z”, de que é proprietária – exploração do estabelecimento de alojamento local – traduz-se numa actividade comercial, na modalidade de prestação de serviços[12], actividade que se compatibiliza com os fins prosseguidos nas demais fracções, à excepção da fracção situada no 7.º andar, destinada a habitação.
Determina o artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento do Condomínio: “Fica desde já proibido:
a) destinar (…) qualquer fracção autónoma habitacional, comercial ou industrial, a pensão ou equivalente (…)”.
Segundo o citado acórdão desta Relação de 15.09.2016, “O regulamento do condomínio é, nos termos do artigo 1429.º-A do Código Civil o instrumento destinado a disciplinar o uso, a fruição e a conservação das partes comuns do edifício. O artigo 1418.º, n.º 2, do Código Civil prevê ainda que possa ainda fazer parte do título constitutivo da propriedade horizontal um regulamento do condomínio a disciplinar o uso, a fruição e a conservação quer das partes comuns quer das fracções autónomas. Em qualquer dos casos, o regulamento, pela sua própria definição, tem natureza regulatória, de pura disciplina de um regime que ficou definido em termos gerais no título constitutivo e na lei mas que importa ajustar ao caso concreto e às particularidades das necessidade e da vontade dos condóminos.
Excepto se houver concordância do condómino afectado, o regulamento não pode ultrapassar esse âmbito e interferir directamente com o conteúdo material do direito de cada um dos condóminos sobre a sua fracção, reduzindo-o ou excluindo algumas das suas valências. Se o condómino adquire a sua fracção encontrando-se a mesma autorizada pelo título e pela licença de utilização a ser afecta a determinado fim, ao condómino não pode posteriormente, contra a sua vontade, ser oposta pela assembleia de condóminos uma deliberação que a propósito de disciplinar o uso da fracção importe na prática uma restrição material do conteúdo do seu direito exclusivo de propriedade sobre a fracção que lhe pertence.
Só assim se compreende, aliás, o disposto no artigo 1422.º do Código Civil que impede os condóminos de darem à sua fracção um uso diverso do fim a que é destinada: o mais que os restantes condóminos podem exigir é que o fim a que a fracção é destinada seja respeitado, não podem impor eles mesmos uma alteração, modificação ou restrição desse uso desde que ele respeite a autorização contida no título de constituição da propriedade horizontal que delimita o conteúdo do direito real transmitido para o adquirente da fracção. Será o caso, por exemplo, de o regulamento estabelecer que as fracções habitacionais não poderão ser arrendadas ou que não o poderão ser a turistas, a estudantes ou a pessoas de determinada etnia, raça ou nacionalidade. Quando isso suceder, as disposições do regulamento são pura e simplesmente ineficazes em relação ao condómino afectado”.
A actividade desenvolvida pela Ré na fracção de que é proprietária – exploração de estabelecimento de alojamento local – não se confunde com a actividade desenvolvida em estabelecimento de pensão: como acertadamente explica a sentença recorrida, “A “pensão” é caracterizada por ser um estabelecimento comercial, com uma recepção e com vários funcionários ao serviço, tendencialmente, nas suas instalações, contendo múltiplos quartos.
Ora, o alojamento local não tem recepção, inexistem funcionários em permanência no local onde é praticado e é propiciado numa única fracção”.
Assim, ainda que aquela norma regulamentar fosse aplicável, a mesma não vedaria a actividade de exploração de alojamento local, realidade bem distinta da actividade associada à exploração de estabelecimento de pensão.
Refira-se, finalmente, que, conforme se escreveu na mesma sentença, “a actividade de alojamento local exercida na fracção “Z” nunca violaria o disposta o art. 3º, nº 2, al. d), do Regulamento, que fixa o período de funcionamento ou laboração dos estabelecimentos comerciais ou industriais entre as 7 e as 23 horas.
Desde logo, a fracção “Z” não constitui um estabelecimento, no sentido comum de loja aberta ao público, com atendimento presencial de funcionário.
Por outro lado, daquela estatuição regulamentar não decorre que a fracções devam estar desocupadas de pessoas fora daquele período de tempo; ora, não é pelo facto de alguém se encontrar alojado na fracção “Z” entre as 23 e as 7 horas que se poderá concluir que o estabelecimento aí eventualmente instalado esteja em “funcionamento” ou “laboração”, dado que nenhum funcionário da R. aí se encontra a exercer funções”.
Inexistindo fundamento legal que impeça a Ré de usar a fracção de que é proprietária como exploração lucrativa de alojamento local, teria, naturalmente, de improceder a acção.
Sem merecer reparo a sentença recorrida, é de manter a mesma, com a consequente improcedência do recurso.

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Síntese conclusiva:

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Nestes termos, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida.

Custas: a cargo do apelante – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Notifique.


Porto, 10.04.2025
Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.
Judite Pires
António Carneiro da Silva
Francisca Mota Vieira
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[1] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[2] O que, por si só, constituiria fundamento para rejeição do recurso nessa parte, por incumprimento do ónus previsto no artigo 640.º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil.
[3] “Comentários ao Código de Processo Civil”, Volume I, 2.ª edição, 2004, Almedina, pág. 252.
[4] “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, 2014, 2ª Edição, Volume I, Almedina, pág. 40.
[5] Neste sentido, cfr. Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., Almedina, 2014, págs. 43-45, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, pág. 31, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, pág. 62, Miguel Teixeira de Sousa, cpc online, livro i, pág. 10, e Miguel Mesquita, A Morte do Princípio do Dispositivo, R.L.J. n.º 147, págs. 100/ 103.
[6] Cfr., designadamente, Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit. pág. 46, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, obra citada pág. 32 e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit. pág. 40 e Rui Pinto ob, cit. pág. 62/63.
[7] Processo n.º 1758/10.4TBPRD.P1.S1, www.dgsi.pt.
[8] Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto.
[9] Posteriormente à propositura desta acção viria a ser publicada a Lei n.º 56/2003, de 6.10 – com entrada em vigor no dia seguinte à sua aplicação (artigo 55.º) -, que introduziu alterações ao Decreto-Lei n.º 128/2014, assim como o Decreto-Lei nº 76/2024, de 23.10 (entrado em vigor no dia 1.11.2024 – cf. Artigo 7º), que veio alterar o regime da exploração dos estabelecimentos de alojamento local e revogar medidas no âmbito da habitação, republicando o Decreto-lei nº 128/2014, o qual, por força do artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte do Código Civil, é aplicável às relações jurídicas já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
[10] Processo n.º 4910/16.5T8PRT-A.P1, www.dgsi.pt.
[11] Processo n.º 25192/16.3T8PRT.P1.S1, www.dgsi.pt.
[12] Registe-se, a propósito, a assertiva crítica formulada ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Março de 2017 pelo Conselheiro Pinto Furtado, que, a páginas 573 e 574 do artigo publicado na Revista de Direito Civil, Ano II (2017), Número 3, refere: “Passando à proposição, segundo a qual, a Relação teria lavrado na “grande confusão” de pretender que a atividade comercial seria exercida na fração, quando certo seria, no singular entendimento deste acórdão, que o facto de o prestador do alojamento local “ceder onerosamente a sua fracção mobilada a turistas constituir um ato de comércio não significa que na fracção se exerça o comércio, pois a cedência destina à respectiva habitação”. Ainda aqui, cremos, salvo todo o respeito, que se lavra num total equívoco. Se o hospedeiro não exerce o seu comércio na fracção – onde o exercerá então? No espaço sideral? Será porventura aí que hospeda os seus clientes? Pela mesma lógica, dir-se-ia que o titular de um restaurante, que exerce o seu comércio de restauração, não o fará no restaurante que explora; aí só serve bifes.”