Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1129/24.5T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
CONTRATO DE MÚTUO
REQUISITOS
Nº do Documento: RP202506041129/24.5T8PNF.P1
Data do Acordão: 06/04/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O extrato de conta da conferência e balancete geral da A. não impedem a prova de que as entregas e pagamentos ali registados a favor da Sociedade do Réu o foram mediante a obrigação de o Réu mesmo (pessoalmente e não na qualidade de seu legal representante ou gerente) satisfazer a sua devolução/ restituição ou pagamento. Estando em causa documentos que incorporam declarações de ciência, com relevância contabilística, se os mesmos demonstram/comprovam que os valores em apreço foram entregues e satisfeitos em benefício da Sociedade ali identificada, nada revelam ou implicam já quanto à prova do subjacente acordo/convenção/contrato entre o legal representante da A. e o Réu, em seu nome pessoal, que não já como gerente da beneficiária das quantias em causa.
II - Para ter como caracterizado um mútuo não é mister que a entrega o seja à mesma pessoa que se obriga a restituir o valor entregue ou o pagamento realizado. A entrega é pressuposto da conclusão do contrato, mas nada impede que o obrigado à restituição endosse a outrem a mesma entrega ou beneficiação. Releva é quem se obriga a restituir, tanto mais que, como é sabido, a entrega de dinheiro, ou coisa fungível, não faz presumir a obrigação de restituição, pelo que impendendo sobre o reclamante da restituição a prova da assunção da obrigação respectiva.
III - Sempre o contrato tipificado de mútuo, tal como está formatado no artigo 1142º, do CC, pode, por consenso das partes, firmado ao abrigo do princípio da liberdade negocial, consagrado pelo artigo 405º, do CC, constituir-se, por simples acordo, como um contrato atípico de mútuo, quando um dos contraentes se obriga a entregar dinheiro ou outra coisa fungível a pessoa jurídica distinta de quem se obriga a restituir, mas com o acordo desta, ficando aquele contratante vinculado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 1129/24.5T8PNF.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este

Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 4

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto: Judite Pires

2º Adjunto: Paulo Duarte Mesquita Teixeira

Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

A..., Unipessoal, Lda. veio propor acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, concluindo pedindo seja o Réu ser condenado a restituir à Autora a importância de € 56.002,97 (cinquenta e seis mil e dois euros e noventa e sete cêntimos), com juros vencidos e vincendos até integral pagamento, os quais, calculados a taxa legal, até ao dia 08.03.2024, ascendem a € 613,31.

Caso assim não se entenda e sem prescindir, em sendo declarados nulos os empréstimos realizados ao réu, a condenação do Réu a restituir-lhe a mencionada importância de € 56.002,97 (cinquenta e seis mil e dois euros e noventa e sete cêntimos), com juros vencidos e vincendos até integral pagamento, os quais calculados à taxa legal, até ao dia 08.03.2024, ascendem a € 613,73, por força do princípio do enriquecimento sem causa, que a título subsidiário se invoca.

Alegou para tanto e em síntese que a A. procedeu a empréstimos ao R. (nomeadamente pagando despesas de uma sociedade sua) e que o mesmo não devolveu o dinheiro, apesar de ter assumido a dívida e de interpelado para o efeito.

Contestou o Réu, impugnando a realidade dos mútuos e reconveio, reclamando a condenação da Autora a restituir-lhe, por via da nulidade formal do mútuo respectivo, a quantia em dinheiro emprestada, de € 7.301,45, acrescida de juros à taxa legal de 4% ano desde a notificação da pretensão até efetivo pagamento.

Peticionou a condenação da A. como litigante de má fé, em multa e em indemnização ao Réu.

Replicou a Autora, sustentando, em síntese, que os montantes que o R. lhe transferiu foram para pagar parte da dívida em causa nestes autos e que não houve qualquer apropriação por si de bens do Réu.

Retorquiu mediante o pedido de condenação do réu como litigância de má-fé, em multa e em indemnização.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, a qual julgou procedente a acção e, declarando nulos os empréstimos realizados pela A., A..., Unipessoal, Lda., ao réu, AA, o condenou a restituir-lhe a quantia global de € 56.002,97 (cinquenta e seis mil e dois euros e noventa e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação até efectivo e integral pagamento; julgando por seu turno improcedente a reconvenção, dela absolvendo a Autora, mais entendendo não haver lugar à condenação de qualquer das partes por litigância de má fé.

É desta decisão que vem interposto recurso pelo Réu, mediante as seguintes conclusões:

QUANTO AOS FACTOS

1-Com base, nas declarações de parte do gerente da A. BB no dia 13.11.2024 entre as 16 h11 m e as 16 h 53 m e no depoimento da testemunha CC no dia 9.10.2024 entre as 10h.06m e as 10h.37m e entre as 10h.44m e as 12h.05m, a resposta ao ponto 1 dos factos provados deve ser alterada de provado que “ A Autora, através do seu sócio gerente BB, como consta do documento 1 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, ajudou o R., considerando a relação de amizade que este estabeleceu com o réu, e tendo este lhe pedido ajuda para a empresa de que é sócio gerente, a B..., Unipessoal, Ld.ª, dado que a mesma estava a passar dificuldades financeiras.” para provado que “ A Autora, através do seu sócio gerente BB, como consta do documento 1 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, ajudou o R., considerando a relação de amizade que este estabeleceu com o réu, e tendo este lhe pedido ajuda para a empresa de que é sócio gerente, a B..., Unipessoal, Ld.ª, dado que a mesma estava a passar dificuldades de gestão de produção.”

2- Quer porque se trata de matéria conclusiva ou de direito; quer porque, a prova documental (doc. s 2 a 191) junta pela A., as declarações de parte prestadas pelo sócio gerente da A. no dia 13.11.2024 entre as 16 h 11 m e as 16 h e 53 m, o depoimento da testemunha CC prestado no dia de 9.10.2024 entre as 10h.06m e as 10h.37m e entre as 10h.44m e as 12h.05m, o depoimento da testemunha DD prestado no dia 22.10.2024 entre as 14 h 26 m e as 15 h e 23 m, o depoimento da EE prestado no dia 13.11.2024 entre as 15 h 01 m e as 15 h e 40 m e o depoimento da Testemunha FF prestado no dia 9.10. 2024 entre as 12h 06m e as 12 h 20 m, são manifestamente insuficientes para a prova positiva deste ponto da matéria de facto e ainda porque os documentos da A.,Ref.9893274 junto em 10.09.2024 denominado “Extrato de conta de conferência” e Ref.9912617 junto em 17.09.2024 denominado “Balancete Geral-Financeira” aludem a créditos concedidos à sociedade B..., a resposta ao Ponto 2 dos factos provados deve ser alterada de Provado que “O sócio gerente da empresa autora acordou com o réu que o ajudaria emprestando-lhe dinheiro para o mesmo injectar na sua empresa, o que o réu aceitou e permitiu que a autora usasse as instalações de B..., como estabelecimento em que a autora também poderia laborar.” para não provado que “O sócio gerente da empresa autora acordou com o réu que o ajudaria emprestando-lhe dinheiro para o mesmo injectar na sua empresa, o que o réu aceitou e permitiu que a autora usasse as instalações de B..., como estabelecimento em que a autora também poderia laborar.”

3- Quer porque se trata de matéria conclusiva ou de direito, quer porque, a prova documental (doc. s 2 a 191) junta pela A, as declarações de parte prestadas pelo sócio gerente da A. no dia 13.11.2024 entre as 16 h 11 m e as 16 h e 53 m, o depoimento da testemunha CC prestado no dia de 9.10.2024 entre as 10h.06m e as 10h.37m e entre as 10h.44m e as 12h.05m, o depoimento da testemunha DD prestado no dia 22.10.2024 entre as 14 h 26 m e as 15 h e 23 m, o depoimento da EE prestado no dia 13.11.2024 entre as 15 h 01 m e as 15 h e 40 m, são manifestamente insuficientes para a prova positiva deste ponto da matéria de facto e ainda porque o documento Ref.9893274 junto em 10.09.2024 denominado “Extrato de conta de conferência” e o documento Ref. 9912617 junto em 17.09.2024 denominado “Balancete Geral-Financeira”, aludem a créditos sobre a sociedade B..., a resposta ao Ponto 3 dos factos provados deve ser alterada de Provado que ”A autora, mediante o compromisso assumido com o Réu, foi emprestando dinheiro para o réu proceder ao pagamento de faturas de compra de materiais para laborar, empréstimos também por transferência bancária e outros em dinheiro ou pagamento por multibanco, sendo que a maior parte o réu entregava faturas que tinha em débito com fornecedores e pedia que à autora procedesse ao pagamento diretamente de faturas, de material que necessitava para laborar na empresa, para pagar salários a funcionários, pagar a renda, pagar material para o fabrico de móveis.” para não provado que ”A autora, mediante o compromisso assumido com o Réu, foi emprestando dinheiro para o réu proceder ao pagamento de faturas de compra de materiais para laborar, empréstimos também por transferência bancária e outros em dinheiro ou pagamento por multibanco, sendo que a maior parte o réu entregava faturas que tinha em débito com fornecedores e pedia que à autora procedesse ao pagamento diretamente de faturas, de material que necessitava para laborar na empresa, para pagar salários a funcionários, pagar a renda, pagar material para o fabrico de móveis.”

4- Quer porque se trata de matéria conclusiva ou de direito, quer porque, os documentos 2 a 191 juntos com a PI e os juntos em ata por requerimento nos dias 9 e 28 de Outubro de 2024, as declarações de parte prestadas pelo sócio gerente da A. no dia 13.11.2024 entre as 16 h 11 m e as 16 h e 53 m, o depoimento da testemunha CC prestado no dia de 9.10.2024 entre as 10h.06m e as 10h.37m e entre as 10h.44m e as 12h.05m, o depoimento da testemunha DD prestado no dia 22.10.2024 entre as 14 h 26 m e as 15 h e 23 m, o depoimento da EE prestado no dia 13.11.2024 entre as 15 h 01 m e as 15 h e 40 m, são manifestamente insuficientes para a prova positiva deste ponto da matéria de facto e ainda porque o documento Ref.9893274 junto em 10.09.2024 denominado “Extrato de conta de conferência” e o documento Ref. 9912617 junto em 17.09.2024 denominado “Balancete Geral-Financeira”, aludem a créditos sobre a sociedade B..., a resposta ao Ponto 4 dos factos provados deve ser alterada de Provado que “A autora, desde maio de 2023 a setembro de 2023, emprestou ao réu os seguintes montantes, conforme Docs. 2 a 191 da PI e juntos a 09 (em acta e por requerimento) e 28/10/2024, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.” para não provado que “A autora, desde maio de 2023 a setembro de 2023, emprestou ao réu os seguintes montantes, conforme Docs. 2 a 191 da PI e juntos a 09 (em acta e por requerimento) e 28/10/2024, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.”

5- Quer porque se trata de matéria conclusiva ou de direito, quer porque, os documentos 2 a 191 juntos com a PI e os juntos em ata por requerimento nos dias 9 e 28 de Outubro de 2024, as declarações de parte prestadas pelo sócio gerente da A. no dia 13.11.2024 entre as 16 h 11 m e as 16 h e 53 m, o depoimento da testemunha CC prestado no dia de 9.10.2024 entre as 10h.06m e as 10h.37m e entre as 10h.44m e as 12h.05m, o depoimento da testemunha DD prestado no dia 22.10.2024 entre as 14 h 26 m e as 15 h e 23 m, o depoimento da EE prestado no dia 13.11.2024 entre as 15 h 01 m e as 15 h e 40 m, são manifestamente insuficientes para a prova positiva deste ponto da matéria de facto e ainda porque o documento Ref.9893274 junto em 10.09.2024 denominado “Extrato de conta de conferência” e o documento Ref. 9912617 junto em 17.09.2024 denominado “Balancete Geral-Financeira”, aludem a créditos sobre a sociedade B..., a resposta ao Ponto 5 dos factos provados deve ser alterada de Provado que “Tais empréstimos foram realizados faseadamente pela autora ao réu, não tendo elaborado um contrato por escrito dada a relação de amizade que então o legal representante da A. mantinha com o R.. “ para não provado que “Tais empréstimos foram realizados faseadamente pela autora ao réu, não tendo elaborado um contrato por escrito dada a relação de amizade que então o legal representante da A. mantinha com o R.. “

6- Quer porque se trata de matéria conclusiva ou de direito, quer porque, as declarações de parte prestadas pelo sócio gerente da A. no dia 13.11.2024 entre as 16 h 11 m e as 16 h e 53 m, o depoimento da testemunha CC prestado no dia de 9.10.2024 entre as 10h.06m e as 10h.37m e entre as 10h.44m e as 12h.05m, o depoimento da testemunha DD prestado no dia 22.10.2024 entre as 14 h 26 m e as 15 h e 23 m, são manifestamente insuficientes para a prova positiva deste ponto da matéria de facto, a resposta ao Ponto 7 dos factos provados deve ser alterada de Provado que “O Réu comprometeu-se pagar o valor supracitado, mas até hoje nada pagou, apesar das interpelações efetuadas, com isso enriquecendo o seu património e melhorando a situação financeira da empresa, que é seu património e dela responsável.” para não provado que “O Réu comprometeu-se pagar o valor supracitado, mas até hoje nada pagou, apesar das interpelações efetuadas, com isso enriquecendo o seu património e melhorando a situação financeira da empresa, que é seu património e dela responsável.”

QUANTO AO DIREITO

Independentemente da alteração das respostas à matéria de facto sempre a acção teria de improceder.

7-O artº 1143º do CC preceitua que: “Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a (euro) 25 000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a (euro) 2500 se o for por documento assinado pelo mutuário.”.

8-Nos termos do art.º 220º do Código Civil “a declaração negocial que careça de forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei”.

9- A consequência da nulidade do mútuo, por falta de forma, é a restituição, pelo mutuário, ao mutuante, de tudo o que tiver sido prestado (artº 289º nº 1 do CC).Acontece que,

10-A sentença recorrida apesar de ter dado como provados diversos “empréstimos” ou contratos de mútuos (cfr Pontos 3, 4 e 5 dos factos provados e fundamentação de direito) que, com exceção de 3, são todos eles de montante inferior a € 2.500,00, logo dentro da margem de validade prevista no artigo 1143 do CC, o certo é que em sede de decisão considerou tratar-se de um único empréstimo no montante de € 56.002,97 e por essa razão julgou os “empréstimos nulos” Ora,

11-É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível – art. 615 nº1, c, do CPCivil.

12- A decisão recorrida, para além de ambiguidade, padece de manifesta oposição com os factos dados como provados e com a fundamentação de direito. Entre os fundamentos e a decisão existe uma contradição lógica.

13-Na fundamentação da sentença, a MMª Juiz “ a quo” seguiu linha de raciocínio da existência de diversos empréstimos, que, com exceção de 3, são todos eles de montante inferior a € 2.500,00, logo dentro da margem de validade prevista no artigo 1143 do CC e em vez de concluir pela sua validade como os fundamentos apontavam decidiu noutro sentido, oposto ou divergente, considerando tratar- se de um único empréstimo no montante de € 56.002,97 e por essa razão julgou os “empréstimos” nulos

14-Ocorre por isso nulidade da sentença nos termos do art. 615º/1/c, do CPCivil.

15-A declaração da nulidade do mútuo por inobservância da forma legal e a respetiva consequência, pressupõem a prova de um contrato de mútuo.

16-Ou seja não se verificando os requisitos que permitam a sua subsunção ao conceito definido no art.º 1142 do CC, prejudicada fica a questão da sua nulidade pela falta de forma, a qual pressupõe, obviamente, que se possa afirmar que foi celebrado entre as partes um contrato desse tipo.

Ora,

17-De acordo com o disposto no artº 1142º do Código Civil, “Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.”.

18-Não bastava por isso que, a A./Recorrida, invocando como causa petendi da sua pretensão, diversos mútuos ou empréstimos, prove apenas a entrega de determinados montantes pecuniários; Incumbia-lhe ainda demonstrar a obrigação de restituição a cargo do Réu, pois que só assim se perfecionam os contratos de mútuo que lhe serve de fundamento.

19-Ora, no caso “sub judice”, não se encontra provado, ou, sequer, alegado, que tivesse havido qualquer acordo entre A./Recorrida e Réu/Recorrente, mediante o qual este teria de restituir àquele as quantias referidas no Ponto 4 dos factos provados.

20- Melhor dizendo, não ficou provado nem sequer foi alegado que no momento em que alegadamente foram celebrados os diversos empréstimos, o Réu se tivesse obrigado a restituir as quantias mutuadas.

21-O que ficou provado (Pontos 6 e 7 dos factos provados) é que o Réu/Recorrido se “comprometeu” a pagar um saldo de uma conta corrente (de onde constam verbas a débito e a crédito), mas já não o compromisso de pagar supostas quantias mutuadas.

22-O que ao contrário de contratos de mútuo, indicia a existência de um contrato de conta corrente o contrato em que as partes se obrigam a lançar a crédito e a débito os valores que entregam reciprocamente no âmbito de uma relação de negócios, sendo exigível apenas o respetivo saldo final apurado na data do seu encerramento (artº 344 do Código Comercial).

23- Nem se diga que o valor do saldo final é igual à soma dos valores parciais dos empréstimos. É que havendo na referida “conta corrente” quantias lançadas a crédito não é possível perceber quais os supostos mútuos que já se encontram restituídos/pagos e quais os que ainda faltam pagar.

24-Não tendo resultado provado que o Réu se obrigou a restituir cada uma das quantias supostamente mutuadas a ação tem de improceder. Violou a sentença o disposto no artº 1142º do Código Civil.

25-Como sustenta Antunes Varela [Antunes Varela, Rev. Leg. e Jurisp, 102-253], “quando a lei define o contrato de mútuo, tem naturalmente em vista o empréstimo de dinheiro ou outra coisa fungível feito à margem de qualquer outra relação contratual.”

26-Daí que havendo a entrega de dinheiro a um terceiro para pagamento de uma dívida ou extinção de uma obrigação, se não possa enquadrar o contrato celebrado como sendo um contrato de mútuo ou empréstimo, já que a intenção dos contraentes foi a extinção da obrigação do devedor para com a entidade credora, ou seja a desoneração do devedor perante ela.

27-Na verdade, se o objecto do mútuo se destina, na intenção do próprio mutuante, a terceiro, e o mutuário intervém, por acordo de todos (mutuante, mutuário e terceiro beneficiário), apenas por conta e no interesse daquele beneficiário, então há que concluir que se deu, no caso, aquilo que é costume chamar de interposição real, em que o interposto representa o papel de um mandatário sem poderes de representação, de acordo com as regras aplicáveis dos artºs 1180º e segs., CC.

28-A manterem-se os factos provados, verifica-se que a situação dos autos é ainda mais complexa pois, as quantias mutuadas pela A./A... foram entregues a terceiros, não credores do mutuário(o Réu), mas sim credores de uma sociedade(a B...) de que o mutuário era gerente.

29-Deve concluir-se, assim, que o Réu agiu, perante a A... e a B..., como um interposto real, com o estatuto jurídico de mandatário sem poderes de representação, e que os direitos e obrigações adquiridos e assumidos no exercício de tal mandato foram transferidos para a sociedade mandante no caso a B....

30-Desta forma o mutuário, transferindo, para o terceiro, a coisa mutuada, exonerou-se da obrigação de restituir. Violou a sentença recorrida, por isso, o disposto nos artºs 1180º e segs. Do Código Civil.

31-A ausência de causa justificativa da deslocação patrimonial, pressuposto do enriquecimento sem causa, tem de ser alegada e provada pelo requerente da restituição do enriquecimento.

32-A causa de pedir nesta ação não é o enriquecimento sem causa, mas os alegados contratos de mútuo que as Partes teriam celebrado mediante os quais o A./Recorrido teria emprestado ao Réu diversas quantias.

33-O instituto do enriquecimento sem causa é um instituto que tem natureza subsidiária, competindo ao A. o ónus da prova de que ocorreu um enriquecimento de alguém (o Réu) à sua custa e que não havia causa justificativa para esse enriquecimento, por força do preceituado no art. 342º, nº 1 do CC .A carência de causa justificativa da deslocação patrimonial é facto constitutivo de quem requer a restituição.

34- A. /Recorrida pediu a condenação do Réu no pagamento de certa quantia, não com base no instituto do enriquecimento sem causa, mas sim com base em diversos contratos de mútuo que teriam celebrado. A causa de pedir invocada foram diversos empréstimo – diversos contratos de mútuo e a condenação teve como suporte não o enriquecimento sem causa mas sim diversos contratos de mútuo.

35-O Tribunal, atento os seus poderes e as regras sobre a iniciativa das partes, não pode, em regra, afastar-se da causa de pedir e dos factos alegados bem como do pedido do autor.

36-A factualidade do instituto do enriquecimento sem causa, que deveria integrar a sua causa de pedir nunca foi articulada, uma vez que a causa de pedir articulada se prendeu sempre com o eventuais empréstimos, com o contrato de mútuo.

37-A A./Recorrente invocou uma causa para a deslocação patrimonial ocorrida – diversos contratos de mútuo – e foi com base no suposto incumprimento desses contratos que pediu a restituição. Nunca a A./Recorrida alegou ou invocou falta de causa para a deslocação patrimonial. Como quer que seja,

38-A haver enriquecimento sem causa a enriquecida seria a Sociedade B... e nunca o Réu/ Recorrente pois a deslocação patrimonial teria sido para esta sociedade.

39-Pelo que também por esta via não poderia o Réu ser obrigado à restituição. Violou a sentença recorrida o disposto no art. 342º, nº 1 do Código Civil.

40./Assim, revogando-se a sentença recorrida e proferindo-se Acórdão que acolha as conclusões precedentes e absolva o Réu dos pedidos.

Contra-alegou a Autora, aduzindo que a Meritíssima Juiz do Tribunal de Primeira Instância, julgou corretamente todos os factos, não assistindo razão à recorrente. Em consciência jurídica, a recorrida pela análise dos fatos trazidos para os autos e os depoimentos das testemunhas, só pode concordar com a Douta Sentença proferida.

O Recorrente limita-se no seu recurso a fazer interpretação subjetiva dos factos dados por provados, sendo que os argumentos utilizados pela Recorrente são contrários aos factos provados e são desprovidos de fundamentação idónea.

Conclui pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cabe decidir.

II.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar.

Assim:

- a da nulidade da decisão recorrida, mediante a verificação das hipóteses das alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC;

- a do erro de julgamento da matéria de facto, no que importa aos factos provados sob 1 a 7;

- a do acerto ou correcção da solução jurídica da causa.

1. Da nulidade da sentença

É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (artigo 615º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil).

A este propósito, Alberto dos Reis refere «dois tipos de sentença viciada: a sentença injusta e a sentença nula. A primeira enferma de erro de julgamento; a segunda enferma de erro de actividade (erro de construção ou formação)»[1].

Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica: se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial[2].

Na concepção de Antunes Varela «não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro de construção do silogismo judiciário»[3].

A nossa lei impõe que o silogismo da decisão se ache correctamente estruturado por forma a que a conclusão extraída corresponda às premissas de que ele emerge e a desconformidade não está no conteúdo destas mas no processo lógico desenvolvido. E essa oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta, pois quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento.

Se, ao invés, ocorrer a assinalada desconformidade, a decisão é nula por contradição entre a fundamentação lavrada e o segmento decisório[4].

Está sedimentada na doutrina e na jurisprudência a ideia de que esta nulidade se verifica quando existe um vício real no raciocínio do julgador, na medida em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue direcção distinta.

Em síntese, a nulidade da sentença, por oposição entre os fundamentos e a decisão, só acontece quando aqueles conduzirem a uma decisão diferente.

Com referência já à alínea d) do n.º 1 do mesmo artigo 615º.

Como se aduz no Acórdão do STJ de 06-03-2024, proferido no processo sob o número 4553/21.1T8LSB.L1.S1 e bem assim acessível na base de dados da dgsi, as nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa, como o mesmo Supremo Tribunal o tem reiteradamente declarado (v.g. Ac. do STJ de 10.12.2020, proc. n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, 7.ª Secção). Em matéria de pronúncia decisória, o tribunal deve conhecer de todas (e apenas) as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s), questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, sendo certo que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

O convocado vício ocorre quando não existe congruência entre o objecto do processo – tal como as partes e a lei o delimitam –, e a decisão proferida.

Ora, a sentença recorrida apenas se pronunciou quanto ao pedido deduzido, mediante consideração tão só dos factos oportunamente alegados, sendo que vem a condenar o Réu com base na convocada causa de pedir, o(s) mútuo(s), mantendo-se sem relevância jurídica o segmento do facto sob 7 que se reporta a um incremento do património do Réu à custa da Autora. Sempre a A. tinha convocado o instituto do enriquecimento sem causa como fundamento subsidiário da pretensão.

Não se vislumbra, pois, qualquer extrapolação da causa de pedir, como aventado, assim, improcedendo, s.m.o., a arguição desta nulidade da sentença.

Quanto agora à ininteligibilidade e contradição entre factos e entre fundamentação e decisão…

Sem sentido a pretendida contradição.

A contradição entre os fundamentos e a decisão geradora da nulidade da sentença verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e, depois, inopinadamente, surge um dispositivo que de todo não se coaduna com as premissas, sendo assim um vício na construção da sentença, um vício lógico nessa peça processual distinto do erro de julgamento que ocorre quando existe errada valoração da prova produzida, errada qualificação jurídica da factualidade provada ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis. Sempre, para a integração desta patologia decisória não releva a contradição que possa eventualmente existir entre os factos provados e os não provados e a motivação desses juízos de facto.

Analisada a estrutura da decisão e as conexões existentes entre os motivos de facto e de direito a que faz apelo e o veredicto final verifica-se que existe uma lógica na arquitectura da sentença e, dessa forma, a invocada nulidade não se verifica.

Aliás, no conjunto de considerações e conclusões tiradas pelo recorrente resulta até, não obstante o apelo ou recondução ao regime das nulidades da sentença, que o mesmo se dirige antes claramente à injustiça do decidido.

Se a prova convocada justifica ou não tal aquisição probatória é questão que tem a ver com o mérito da decisão e com um eventual erro de julgamento; assim ainda o enquadramento da situação (a unificação) num único contrato ou negócio de mútuo, que não estão associadas à construção lógica da sentença, a qual se mostra correctamente formulada, vindo também justificada aquela consideração unitária. Se procede é já uma questão da correcção do enquadramento jurídico.

Assim sendo, carece de fundamento a arguição efectuada ao abrigo do artigo 615º do Código de Processo Civil, não se evidenciando qualquer das nulidades argumentadas.


2. Da impugnação da matéria de facto

Nesta sede, tendo-se por cumpridos os pressupostos do conhecimento respectivo[5], cabe analisar a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pelo recorrente, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, por forma a apurar se a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise.

Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes[6], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia. «Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

Em resumo, reapreciação dos meios de prova, de todos os meios de prova, mas verificação ainda da correcção do juízo probatório constante da sentença recorrida, em termos de não estar em causa a substituição de um juízo probatório possível por outro, mas a confirmação da evidência da apreciação errada da prova pelo juiz recorrido.

Sempre a insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1).

De todo o modo, a impugnação da matéria de facto não se destina a contrapor a convicção da parte e do seu mandatário à convicção formada pelo tribunal, com vista à alteração da decisão. Destina-se, sim, à especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (art. 640.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil).

São os seguintes os factos provados:

1. A Autora, através do seu sócio gerente BB, como consta do documento 1 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, ajudou o R., considerando a relação de amizade que este estabeleceu com o réu, e tendo este lhe pedido ajuda para a empresa de que é sócio gerente, a B..., Unipessoal, Ld.ª, dado que a mesma estava a passar dificuldades financeiras.

2. O sócio gerente da empresa autora acordou com o réu que o ajudaria emprestando-lhe dinheiro para o mesmo injectar na sua empresa, o que o réu aceitou e permitiu que a autora usasse as instalações de B..., como estabelecimento em que a autora também poderia laborar.

3. A autora, mediante o compromisso assumido com o Réu, foi emprestando dinheiro para o réu proceder ao pagamento de facturas de compra de materiais para laborar, empréstimos também por transferência bancária e outros em dinheiro ou pagamento por multibanco, sendo que a maior parte o réu entregava facturas que tinha em débito com fornecedores e pedia que à autora procedesse ao pagamento directamente de facturas, de material que necessitava para laborar na empresa, para pagar salários a funcionários, pagar a renda, pagar material para o fabrico de móveis.

4. A autora, desde maio de 2023 a setembro de 2023, emprestou ao réu os seguintes montantes, conforme Docs. 2 a 191 da PI e juntos a 09 (em acta e por requerimento) e 28/10/2024, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido:

28 2023 5 18 25,94€ - € 25,94€ 4964/Multibanco A...

61 2023 6 2 16,35 € -€ 16,35 € pequeno almoço lisboa / multibanco 2





5. Tais empréstimos foram realizados faseadamente pela autora ao réu, não tendo elaborado um contrato por escrito dada a relação de amizade que então o legal representante da A. mantinha com o R..

6. A autora notificou o réu por carta registada para proceder ao pagamento do valor que se mantém em débito, de € 56.002,97 e até à presente data nada foi pago, conforme Doc. 192 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

7. O Réu comprometeu-se pagar o valor supracitado, mas até hoje nada pagou, apesar das interpelações efectuadas, com isso enriquecendo o seu património e melhorando a situação financeira da empresa, que é seu património e dela responsável.

8. A A. tem a sua sede na Rua ..., ..., ... ..., Paredes e o objecto social da A. consiste em: “Engenharia civil construção de edifícios residenciais e não residenciais nomeadamente ampliação transformação e restauro executados por conta própria e em regime de empreitada e sub-empreitada. Instalação elétrica e canalizações e outras instalações em construção. Atividades de acabamentos em edifícios, nomeadamente estucagem montagem de trabalhos de carpintaria e de caixilharia, revestimento de pavimentos e parquês, pintura, colocação de vidros e outras atividades de acabamentos de edifícios e atividades de colocação de coberturas. Comércio de todo o tipo de mobiliário. Importação e exportação do mesmo.”, conforme doc. 1 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

9. O Réu é sócio gerente da sociedade B..., Unipessoal Lda., que tem a sua sede na Travessa ..., ... ..., Paredes e tem como objecto social a “Fabricação de mobiliário em madeira para outros fins. Polimentos. Comércio a retalho de mobiliário, de mobiliário para escritório, comércio e outros serviços, de artigos de iluminação e de outros artigos para o lar.”, conforme doc. 1 da contestação, cujo teor aqui se dá por integramente reproduzido.

10. A autora interpelou o R. para pagamento, pois começou a verificar que emprestava dinheiro ao réu, enquanto a sociedade B..., Unipessoal, Ld.ª terminava os trabalhos e o réu recebia os valores das obras em seu nome particular e não pagava nada à autora.

11. O R. ausentou-se da fábrica e deixou de atender a telefonemas e pagou apenas parte do valor emprestado (através de transferências bancárias efectuadas) e, quando a A. exigiu a totalidade, desentenderam-se, acabando a A. por sair das instalações da empresa do R..

12. Em Setembro, a autora regressou à sua sede e retirou o material que lhe pertencia, com o conhecimento e acordo do Réu, que nisso consentiu e assinou a respectiva lista de levantamento que segue, conforme Doc. 1 da réplica, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido:


*

No que à motivação importa, sendo certo que apenas colocados em causa os factos assentes, que não os indemonstrados, consignou-se na decisão recorrida:

«Para dar como provada a matéria supra referida o Tribunal considerou os factos aceites pelas partes e assentes em prova documental, assim considerados em 8º e 9º.

O Tribunal teve em consideração, também, os documentos juntos aos autos: • O documento 1 da petição inicial e o documento 1 da contestação, respectivamente, certidão comercial da A. e da empresa do R. (para prova de parte dos factos 1º, 8º e 9º dados como provados).

• Os documentos 2 a 191 da PI, bem como os que foram juntos a 10/09/2024, 17/09/2024, 09/10/2024 (em audiência de julgamento e em requerimento que se lhe seguiu) e 28/10/2024, correspondentes às facturas, recibos e comprovativos de pagamento por multibanco ou transferências bancárias, para prova de parte dos factos provados sob os n.ºs 1º a 5º, 10º, 11º (…). Todos estes documentos, em conjugação com a prova por declarações do legal representante da A. e da prova testemunhal apresentada pela A., comprovam a forma por que a A. procedeu aos referidos empréstimos. Ainda que a forma como a A. procedeu não tivesse sido a mais segura, pois efectivamente o ideal seria o empréstimo mediante a realização de um contrato formal, o certo é que a A. foi adiantando valores ao R. para este fazer face às sérias dificuldades financeiras com que se defrontava, quer de falta de dinheiro, quer de organização da empresa e do trabalho, pois isso mesmo o demonstrou o depoimento das testemunhas da A., sem que do lado do R. houvesse qualquer prova segura ou suficiente em sentido contrário, pois não só o R. não se manifestou em audiência de julgamento, como nem sequer indicou como testemunha qualquer funcionário, fornecedor ou cliente, para explicar o que quer que fosse. Não colhe também a versão de que não existiu qualquer empréstimo, pois a própria transferência que o R. efectuou (e não a sua sociedade) à A., já indicia a existência desses empréstimos da A. ao Réu, perante os documentos juntos aos autos e o depoimento das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento (sendo certo que a alegação do R. de que emprestou dinheiro à A., não resultou minimamente provada, nem sequer pela sua única testemunha ouvida em audiência de julgamento, pois se era a empresa do R. que tinha dificuldades financeiras e necessitou da ajuda do legal representante da A., não se vê como é que poderia ser o R. a emprestar qualquer valor à A.). As testemunhas da A. foram explicando, relativamente aos valores que estão em causa nestes autos, de forma minuciosa, coerente e credível e com conhecimento directo sobre a matéria, quer as obras da empresa do R. que estavam em curso, quer as despesas que eram pagas pela A., algumas das vezes com dinheiro adiantado pelo seu legal representante, mas sem que isso signifique que não eram imputados à A.. Atestaram, também, as referidas testemunhas, o pagamento de salários de funcionários que prestaram serviços para a empresa do R., bem como o pagamento das rendas em atraso (o que o R. nem sequer conseguiu contrariar e até seria relativamente fácil, arrolando como testemunha o seu senhorio). As testemunhas fizeram referência aos fornecedores da empresa do R., ao porquê daquele material em específico ser para a B... e não para a A., ao número das facturas elencado na conta-corrente e à correspondência com os pagamentos efectuados e suporte documental desses mesmos pagamentos (explicando, inclusive, o porquê de muitas das facturas estarem em nome da A., designadamente, porque muitos dos fornecedores não forneciam já à empresa do R., que era devedora; mais explicando que, não era pelo facto de lá constar como morada de descarga a sede da A., que isso acontecia [aliás, como se verifica em muitas das situações correntes do dia a dia das empresas], pois aquele material era para a empresa do R.). Explicaram, ainda, o correspondente método/forma de pagamento, evidenciando, pelo menos, uma organização em termos de valores que seriam imputados ao R., por referência à ajuda que a A. estava a dar à empresa do R.. Acresce que, em relação à conta-corrente, as testemunhas da A., ouvidas sobre essa matéria, também confirmaram os pagamentos que iam sendo realizados e porquê de os mesmos ocorrerem e que, o R. conhecia, sabia e aceitou essa conta-corrente, bem como o valor que permaneceu em dívida e que é peticionado nesta acção. Por outro lado, o R., não só não fez prova de que tenha emprestado qualquer valor à A., como não conseguiu afastar a prova da A., de que agiu desta forma, injectando dinheiro na empresa do R., esperando um óbvio retorno que não teve, adiantando dinheiro ao R. e aguardando o seu pagamento, quanto mais não fosse com o valor das obras que a empresa do R. estava para receber (mas que o R., apesar do recebimento, não devolveu à A.).

No que respeita à transferência de dinheiro do R. para a A. (doc. 2 da contestação), comprova antes de mais a versão da A., de pagamento parcial do empréstimo que a A. realizou ao R. (como a mesma veio a admitir na réplica, quanto ao valor um pouco superior aos € 7.000,00), mantendo-se, contudo, em dívida, o valor peticionado de € 56.002,97.

(…)

Em declarações de parte, o legal representante da A., BB (factos 1º a 12º dados como provados (…)), teve um depoimento coerente, suportado quer na prova documental, quer na prova testemunhal apresentada pela A. e não contrariada pela prova indicada pelo R.. Explicou a negociação que foi feita e como a sua empresa suportou os encargos de outra empresa, pelos quais o R. se responsabilizou, pois de outra forma nunca aceitaria colaborar/ajudar, pois sabia das dificuldades da aludida empresa B... (referindo ‘AA, eu empresto-te a ti, porque eu sei que a empresa não tem’). A ideia era orientar a empresa e posteriormente ser-lhe-ia cedida uma quota, mas foi sempre pagando as contas e o R. não chegou a devolver o dinheiro, embora o R. até fosse recebendo dos clientes da B.... Elencou os pagamentos que realizou: por transferência bancária, multibanco e dinheiro da A., quer quanto aos fornecimentos e compra de materiais e outras despesas necessárias para fazerem as obras da empresa do R. e colocarem nos clientes da B..., além de ter explicado o pagamento das rendas e dos salários em atraso dos funcionários da B....

Mais referiu que o R. aceitou pagar esses valores a título pessoal, e que chegou a uma determinada altura que já não dava mais para injectar dinheiro da empresa e pediu o dinheiro ao R.. Soube que o R. já tinha recebido dinheiro de clientes, confrontou-o e foi aí que começaram os problemas e que o R. ‘expulsou-o’ de lá. Chegaram a fazer uma reunião e o R. assumiu o pagamento correspondente ao documento junto aos autos a 09/10/2024 (conta-corrente), sendo o valor acumulado de cerca de € 56.000,00, mas que ‘só não prometeu que fosse tudo de uma vez’ (e não havendo qualquer duplicação com o material que retirou do local e que foi confirmado com o R.). Explicou também que há facturas em nome da A. A..., mas que eram para a B... e para serem pagas pelo R., que a isso pessoalmente se comprometeu, mas que faziam dessa forma, pois para além da B... não ter crédito na praça, chegando os fornecedores a negar-se a vender, também aconteceu de ir buscar material em nome da B... e eles cobrarem-se desse valor e de valores em atraso.

Em relação à prova testemunhal, CC (para prova de parte dos factos 1º a 12º dados como provados (…)), ex-companheira do legal representante da A., acompanhou a situação em causa nos autos, pois chegou a dar apoio à A. (que também passou a ajudar a B...), estando presente muitas vezes no escritório, nas instalações das B..., tendo um conhecimento directo da matéria dos autos. Teve a oportunidade de detalhar as ocasiões em que esteve presente e confirmou a dívida do R. à autora (‘a A... emprestava dinheiro ao AA, para ele aplicar na B... e pagar as dívidas’), uma vez que foi com o dinheiro da A. que pôs a empresa do R. a trabalhar, pagando-lhe as dívidas, sendo certo que o empréstimo era realizado ao AA (R.), havendo uma conta-corrente para o efeito, de que o R. tinha perfeito conhecimento (tendo o R. realizado uma transferência para abater a essa dívida, após ser ‘pressionado’ para o efeito e não correspondendo à verdade o alegado na reconvenção, de que o R. fez um empréstimo à A. [no fundo, uma forma de tentar explicar essa transferência bancária], uma vez que o R. não tinha dinheiro).

Explicou o uso do dinheiro para pagar a fornecedores, funcionários e rendas da B..., empresa do AA (R.), para a qual ele necessitava do dinheiro. Mais referiu que pelo menos € 56.000,00 o R. ficou a dever à A., mas que o valor até será superior, mas que do restante não ficaram com comprovativos, porque ‘não estavam à espera de uma situação destas’. Atestou, também, que o AA, acompanhado muitas vezes da testemunha GG que o apresentou ao BB, dizia que ia pagar tudo, o que acabou por não acontecer.

A testemunha FF (para prova de parte dos factos 2º a 4º, 12º dados como provados (…)), marceneiro de profissão, funcionário da A., confirmou que esteve a trabalhar na B..., designadamente na montagem de móveis, mas quem lhe pagava o salário era a A. A.... A testemunha confirmou, também, que depois tiveram que sair daquele local e levaram algumas coisas na presença do sr. AA, ou seja, com o seu conhecimento. Confirmou a presença da testemunha CC no escritório, embora não tivesse muita percepção do que fazia, até porque havia uma nítida separação entre o escritório e a área da produção.

A testemunha DD (para prova de parte dos factos 1º a 12º dados como provados (…)), administrativa, que chegou a trabalhar na B... a mando da A., apresentou um depoimento desinteressado e credível, além de ter um conhecimento directo sobre a matéria. Referiu que fazia os pagamentos a mando da A. e com dinheiro desta, designadamente, de rendas, de salários de funcionários, de matérias-primas, de despesas com deslocações para a realização/colocação de obras externas da empresa do R., que fizeram obras de melhoramento no edifício onde estava a empresa do R. e organizaram a mesma, sendo tudo pago pela A.. A testemunha confirmou, também, a conta-corrente que era realizada e que, na altura, o R. devia à A... por volta de pelo menos 40 mil euros (sendo que a dívida actual é superior). Mais referiu a testemunha que essa relação de ajuda acabou quando pretenderam que o AA (o R.) pagasse, mas que ele não fazia pagamentos e acabaram por sair. Atestou, ainda, o material que levaram e que pertencia à A. (e que não foi debitado ao sr. AA), conforme relação que confirmou (doc. 1 junto com a réplica de 07/06/2024). Mais confirmou o documento junto em audiência de julgamento de 09/10/2024, a conta-corrente, que ela própria realizou, explicando a mesma, o que, em conjugação com a demais documentação, facturas, recibos, transferências e comprovativos de pagamento multibanco, etc., foi possível dar como provada a matéria alusiva aos pagamentos efectuados pela A... ou a mando do seu legal representante, por acordo como R., como empréstimo de dinheiro realizado ao R., que o mesmo injectava na sua empresa, a B....

A testemunha explicou, ainda, que os valores da parte final foram os pagamentos do sr. AA (do R.) para abater à dívida e não qualquer empréstimo que o sr. AA tenha realizado à A., que não existiu, pois o R. é que devia dinheiro à A..

Confirmou, que o AA tinha conhecimento da conta-corrente (que lhe foi entregue), das facturas e dos pagamentos da A... e que o BB lhe pediu o dinheiro. Atestou, sem margem para dúvidas, que o AA sabia que estavam a fazer a conta-corrente e que ia vendo as facturas e o que era lançado, sendo informado de tudo, pelo que não pode alegar que desconhecia essa forma de trabalhar e os empréstimos realizados.

Referiu, ainda, a presença da testemunha CC no escritório, explicando adequadamente o que fazia, além de explicar de forma escorreita e espontânea e com conhecimento sobre a matéria específica em causa, como é que funcionavam os fornecimentos de material e porque é que era material para a B... e não para a A... (pelo tipo de trabalhos realizados por uma e por outra das empresas).

EE, tendo prestado alguns serviços nessa ocasião na B... (para prova de parte dos factos 1º a 12º dados como provados (…)), confirmando a presença da testemunha Sandra na B..., bem como os pagamentos que eram realizados nessa empresa, ou com dinheiro da A. ou adiantado pelo seu legal representante. Confirmou e explicou vários pagamentos efectuados, assim como a conta-corrente que fizeram, de acordo com os pagamentos realizados e documentados (com dinheiro da A., investido na B...).

Da conjugação da prova documental e testemunhal (e por declarações de parte), apurou-se que as contas que eram feitas tinham, efectivamente, como interlocutores, a A. (ainda que por vezes através do seu legal representante a adiantar o dinheiro) e o R., que a título pessoal assumiu o pagamento dos valores de que a sua empresa acabou por beneficiar. O montante global emprestado pela A. ao R., além de confirmado pela prova testemunhal (quer quanto ao valor, quer em relação ao acordo efectuado de pagamento, este confirmado, nomeadamente, pela testemunha CC), tem suporte documental, devidamente enquadrado com a área de actuação da empresa do R. e com as obras que a mesma estava a realizar, tudo confirmado de forma espontânea, pormenorizada e coerente pelas referidas testemunhas da A..

A testemunha GG, amigo do R. e cunhado do legal representante da A. (com quem está de relações cortadas), teve um depoimento parcelar, que o Tribunal não pôde considerar.

Não obstante, a testemunha sempre foi dizendo que o legal representante da A. deve ter comprado materiais ‘porque estava à frente daquilo’, ou seja, não conseguiu afastar o facto de a A. ter injectado dinheiro na empresa do R. (parte dos factos 1º, 2º (…)).

A testemunha invoca (de forma que não é sustentável) desconhecimento do empréstimo da A. ao R., mas tal matéria é confirmada por outras testemunhas, que aliás invocam que quem apresentou o legal representante da A. ao R., foi a testemunha GG e que este sempre referiu que o R. ia pagar. A versão trazida aos autos pela testemunha GG (que está agora à frente da B...), de que foram realizadas compras e obras sem o consentimento do R., não é condizente com o convite, que o próprio admite, que fizeram ao legal representante da A., para ajudar o R. ‘a levantar’ a B... e, nem é credível que não saiba quem pagava tudo naquela época, quem pagou aos funcionários, quem pagava as despesas de deslocações dos funcionários para montar as obras que estavam em curso da empresa do R., quem pagou as rendas, a luz, os materiais, etc. (mas sempre foi referindo que quando a A. ajudou, havia débitos por parte da B...). Nem a versão de que, apareceram facturas que seriam da A... para a B... pagar ou de que foram retirados materiais da B..., resultou credível, não só pela lista assinada pelo R. quanto a esses materiais, mas também pela falta de qualquer suporte documental para o alegado, além de que a prova produzida é toda em sentido contrário ao da única testemunha trazida aos autos pelo R..

(…) o que resultou da prova produzida, testemunhal e documental, foi que a A., através do seu legal representante, passou a ‘administrar’ de facto a empresa do R., com o consentimento deste, procedendo a compras, orientando o trabalho da B..., através de um acordo com o R., injectando dinheiro nesta sua empresa, que o mesmo se comprometeu a pagar e não pagou integralmente, como consta dos factos provados.

(…) as testemunhas da A. foram unânimes ao confirmar que os produtos comprados e constantes das facturas juntas aos autos eram destinados ao serviço da B.... E que existiam outras facturas em nome da A., mas que eram destinadas à empresa do R., como já foi explicado supra e, nem a testemunha do R. conseguiu infirmar tal matéria.»


*

Reconduz-se o recorrente na impugnação à menção a “empréstimo” e emprestou como integrando matéria conclusiva (de natureza jurídica).

A diferenciação entre matéria de facto e matéria de direito assume particular dificuldade quando se empregam termos que, para além do seu sentido jurídico, têm uma generalizada significação na linguagem corrente[7], isto é, quando esses termos expressam um significado médio em consequência da experiência comum sobre os conteúdos referidos com a sua utilização.

Desde logo, o art. 607/4 do CPC, nos termos do qual o tribunal só deve consignar os factos que julga provados e não provados, exclui a pronúncia, nesta sede, sobre questões de direito, sendo que, tradicionalmente, se englobam neste conceito, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos, os quais são, no dizer de Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107, “ aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa” ou, dito de outro modo, aqueles que se fossem considerados provados ou não provados levariam a que toda a ação ficasse resolvida, em termos de procedência ou improcedência, com base nessa única resposta.

A título de exemplo, cita-se STJ de 28.09.2017 (809/10.7TBLMG.C1.S1), relatado por Fernanda Isabel Pereira, no qual se entendeu que, “[m]uito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito.”

Este entendimento estrito tem sido objeto da crítica da doutrina, em especial de Miguel Teixeira de Sousa, “Anotação ao Acórdão do STJ de 28.9.2017, processo n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1”, Blog IPPC, Jurisprudência 784, https://blogippc.blogspot.com/ [17.10.2023] (O autor retomou o tema em no escrito “Factos conclusivos": já não há motivos para confusões!”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2023/06/factos-conclusivos-ja-nao-ha-motivos.html), que, a propósito, escreve que, “[e]nquanto no CPC/1961 se selecionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra (…).

A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. (…) Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.”

Da nossa parte, entendemos que é preferível um entendimento eclético.

Com efeito, ainda na vigência do CPC de 1961, o mesmo STJ notou, em Acórdão de 13.11.2007 (07A3060), relatado por Nuno Cameira, que “[t]orna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.” E acrescentou que “não pode perder se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”

Já no âmbito do CPC de 2013, o STJ, em Ac. de 22.03.2018 (1568/09.1TBGDM.P1.S1), relatado por Abrantes Geraldes, considerou que a inexistência no CPC de 2013 de um preceito como o do art. 646/4 do CPC de 1961 “não pode deixar de ter implicações no que concerne à atual metodologia no que concerne à descrição na sentença do que constitui matéria de facto e matéria de direito.” Escreveu-se ali que “[n]o que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova, tarefas relativamente às quais foram introduzidas no CPC importantes alterações que visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia usualmente aplicada no âmbito do CPC de 1961 (…) A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do CPC de 1961 (…)”

O relator deste Acórdão, Conselheiro António Abrantes Geraldes, renovou este entendimento na sua obra Recursos em Processo Civil (7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 354-355), ao escrever que, em resultado da modificação formal da produção de prova em audiência, que passou a ter por objeto temas de prova, e da opção da integração da decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, “deve existir uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais em torno do que seja matéria de direito ou matéria conclusiva que apenas sirva para provocar um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso (...) A patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como matéria de facto provada pura e inequívoca matéria de direito…”

Sem prejuízo, como salientado no Acórdão da Relação de Guimarães de 11.11.2021 (671/20.1T8BGC.G1), relatado por Raquel Batista Tavares, “não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir “factos provados” para esse efeito as afirmações que “numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido”… (e, acrescentamos, a causa de defender). De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a “assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”.

No mesmo sentido, o Acórdão da mesma Relação de 31.03.2022 (294/19.8T8MAC.G1), relatado por Pedro Maurício, sintetiza a questão nos seguintes termos: “[a]figura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor.” E, sufragando RP 07.12.2018 (338/17.8YRPRT), acrescenta que: “Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais.”

Deste modo, tendo presente que a linha divisória entre o facto e o direito não é linear, tudo dependendo, no dizer de Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, Coimbra: Almedina, 1982, p. 270, “em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa: o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes”, há sempre que verificar se o facto, mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo que importa para uma decisão justa.

Ainda quando os factos conclusivos estejam diretamente relacionados com o thema decidendum, apenas são a desconsiderar quando impeçam ou dificultem de modo relevante a percepção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor.

Não é claramente o que acontece com as palavras empréstimo e emprestar. Desde logo, o termo ou expressão jurídico vem a ser mútuo e mutuar, sendo certo que não é minimamente equívoco ou duvidoso o significado corrente ou comum de emprestar. Não há qualquer dúvida sobre o significado real das expressões utilizadas. "Emprestar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/emprestar, vem a ser: confiar temporariamente algo, sob condição de ser devolvido. Esse o sentido comum, universal, generalizado da expressão, com o que se impõe concluir que não estamos perante matéria de conclusiva de direito e que tal expressão pode ser submetida a prova e integrar a decisão sobre matéria de facto.

Não colhe, pois, a objecção do recorrente[8], nada obstando a que se mantenham as versadas expressões.

No entanto, procede a objecção agora quanto ao segmento do facto sob 7 dos assentes: “com isso enriquecendo o seu património e melhorando a situação financeira da empresa, (que é seu património e dela responsável)”, cuja eliminação se decide, pois.

Nessa parte, em causa apenas e só um juízo de valor conclusivo quanto ao enriquecimento ou atribuição patrimonial, sem um conteúdo fáctico imediatamente apreensível…

Com efeito, não se traduz ali a mera poupança por via do incumprimento de uma obrigação própria (inferível necessariamente), mas, conclusivamente, se extrapola para um incremento patrimonial relacionado já à situação financeira da sociedade, cuja personalidade, como se sabe vem a ser distinta do Réu e sempre não vindo factualizado um tal “enriquecimento”. Por isso que, nos termos expostos, se decide da eliminação daquele segmento[9].

No que interessa agora ao cerne da matéria de facto relevante: o da pessoa jurídica a quem foi/foram feitos o(s) empréstimo(s)[10] alegados, todos aceitando que as quantias em dinheiro despendidas pela A. (entregues umas e como tal e usadas outras para pagamentos “directamente” pela A de dívidas e bem assim para a aquisição de materiais necessários à manutenção da actividade produtiva da empresa “do Réu” – por facilidade de expressão).

Já se adiantou que no desenho legal do recurso em matéria de facto, o reexame a fazer passa, em primeiro lugar, pela reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente (recurso de apelação limitada). Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia, possibilitando-se o seu conhecimento pela Relação, que formará a sua própria convicção sobre a factualidade impugnada (Acs. STJ de 04/mai./2010, Cons. Paulo Sá; 14/fev./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt). Porém, fica sempre em aberto, quando tal for admissível, a possibilidade do tribunal de recurso, designadamente por sua iniciativa e perante o mesmo, renovar ou produzir novos meios de prova (662.º, n.º 2, al. a) e b) NCPC), alargando estes para o reexame da factualidade impugnada (recurso de apelação ampliada)[11].

O NCPC preceitua no seu artigo 607.º, n.º 5 que “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”. A estes últimos condicionantes legais de prova, acrescem seja ainda os de natureza substantiva elencados no Código Civil, como os de natureza adjetiva enunciados na mesma lei do processo civil (410.º - 422.º; 444.º - 446.º; 463.º; 446.º, 489.º, 490.º, 516.º NCPC), com destaque para a prova ilícita (417.º, n.º 3 NCPC). Mas também existem outros condicionantes, estes até mais fortes, porquanto decorrem dos direitos humanos e constitucionais, como sucede com o direito a um processo justo e equitativo (20.º, n.º 4 Constituição; 10.º, DUDH; n.º 14.º, n.º 1 PIDCP; 6.º, n.º 1 CEDH; 47.º § 2 CDFUE). Nesta conformidade, podemos assentar que o regime da legalidade da prova, enquanto “imperativo de integridade judiciária”, tanto versa sobre os meios de prova, que correspondem aos elementos que servem para formar a convicção judicial dos factos submetidos a julgamento, como sobre os meios de obtenção de prova, que são os instrumentos legais para recolha de prova, acaba por comprimir o princípio da livre apreciação da prova, estabelecendo as correspondentes proibições de produção ou valoração de prova.

Por tudo isto, o princípio da livre apreciação das provas é constitucional e legalmente vinculado, não tendo carácter arbitrário, nem se circunscrevendo a meras impressões criadas no espírito do julgador. O mesmo está desde logo sujeito aos princípios estruturantes do processo justo e equitativo (a) – como seja o da legalidade das provas –, como ainda condicionado pelos critérios legais que disciplinam a sua instrução (b), estando, por isso, submetido às regras da experiência e da lógica comum (i), e nalguns casos expressamente previstos (v.g. 364.º exigência legal de documentos escrito) subtraído a esse juízo de livre convicção (ii), sendo imprescindível que esse julgamento dos factos, incluindo a sua análise crítica, seja motivado (c).

Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 23-02-2023, proc. n.º 30/21.9T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt: «[…] Os artigos 346.º do Código Civil e 516.º do Código de Processo Civil mandam que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova. Todavia, não existe entre nós norma ordinária ou constitucional que se pronuncie sobre o que deve ser entendido por dúvida, rectius, por dúvida relevante para fazer operar essa consequência.

A nosso ver a prova de um facto num processo judicial e para fins jurídicos é, por princípio, a demonstração de um alto grau de probabilidade (e não de mera possibilidade) de o mesmo corresponder à realidade material dos acontecimentos (dita verdade ontológica). O poder soberano que o Tribunal exerce, impondo às partes, mais que os efeitos jurídicos dos factos, os efeitos práticos da decisão jurisdicional, supõe e exige, como matriz radical da sua própria legitimidade, não uma qualquer probabilidade (apenas mais provável que não) mas um alto grau de probabilidade.

Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz a ideia de que o facto em discussão, mais do que ser possível e verosímil, possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, a um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que, em princípio, se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.

Esta regra carece, contudo, de adequação prática. Trata-se de uma regra que o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há-de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspectos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da acção.

Na verdade, se o padrão de prova for particularmente exigente tal pode conduzir à negação dos direitos, na medida em que dificulta a demonstração dos pressupostos de facto do direito. Todavia, a aceitação de um padrão pouco exigente importa precisamente o mesmo risco, na exacta medida em que ao facilitar a prova de quase tudo acaba por contemporizar com estratégias processuais vagas, difusas e pouco sustentadas, seja do lado activo seja do lado passivo da lide e, portanto, potencia a possibilidade de se fazer a prova do que não é verdade, perturbando o reconhecimento dos direitos correspondentes ao que realmente sucedeu. Por conseguinte, caso a caso o juiz deve adequar essa regra – esse grau de exigência – aos contornos da concreta situação que tem para julgar e ao contexto da prova dos factos que a corporizam.

[…] a circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correcto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam. Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exactas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida.

Quando os factos têm intervenção humana ou resultam de acções humanas é necessário atentar que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objectivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa actuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de actuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias.

Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.

Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer perceptível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou o seu objectivo é diferente daquele que se pretende.

[…] Nos termos do artigo 414.º do Código de Processo Civil, havendo dúvidas sobre a realidade de um facto, a decisão deve ser desfavorável à parte a quem o facto aproveita. À outra parte não é exigida a prova do facto contrário, basta-lhe tornar o facto duvidoso. Isso mesmo resulta do artigo 346.º do Código Civil segundo o qual à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos e se o conseguir, rectius, se lograr criar dúvidas sobre a verificação dos factos, a questão é decidida contra a parte onerada com a prova. Por conseguinte, o esforço probatório a produzir pela parte sobre quem recai o ónus de prova é tanto maior quanto maior forem as dúvidas sobre o facto criadas pelos meios de prova produzidos pela parte contrária, mesmo que estes não sejam suficientes para fazer a prova do contrário.

Desse modo, na nossa leitura, numa situação como a que nos ocupa, não existe meio de prova que seja, pela sua própria natureza, isto é, abstractamente, mais valioso que outro, e todos se encontram sujeitos não apenas à livre apreciação do tribunal, como, sobretudo, aos critérios racionais de avaliação epistemológica do seu valor probatório relativo.»

São dois os fundamentos que o recorrente convoca para a impugnação dos factos assentes:

Um do domínio das regras da prova, a partir agora do pretendido valor probatório de documentos, assim o extrato da conta de conferência e o balancete geral financeiro da Autora mesma, no qual estão identificados como créditos da A. sobre a Sociedade do Réu (manter-se-á à simplificação) os valores aqui reclamados ao Réu mesmo.
Outro no plano da relevância probatória das declarações de parte do legal representante da A., BB e sua companheira na ocasião, objecção esta que se situa num domínio que denominamos como da credibilidade.

Sempre o ataque à matéria de facto não pode ser feito fornecendo apenas a versão dos factos que se considera mais correcta, pois dessa forma o julgamento seria em conformidade com a “livre convicção do Recorrente”, em detrimento da “livre convicção do julgador”.

Outrossim, ao invés de segmentos truncados e parciais de depoimentos, o que importa é o conjunto das declarações e a articulação ou corroboração destas por outros meios de prova. Ora, patentemente descontextualizados os segmentos das declarações de parte e testemunhais transcritos pelo Recorrente, em termos de não lhes poder ser atribuído o pretendido significado probatório, rectius, infirmatório da convicção adquirida pelo tribunal recorrido.

E, assim, o que nesta sede compete ao Recorrente, é a alegação/demonstração de que as provas produzidas não consentem a análise feita pelo juiz, de que a análise crítica por ele feita contraria a lógica, a razão e as regras da experiência comum, ou uma qualquer regra de direito material probatório. Desde logo porque, tratando-se em ambos os casos de “livre convicção”, com o que ela tem de pessoal, incumbiria sempre a mesma pergunta: qual delas seria a mais consentânea com a realidade material?

E assim é que, «4 - Se o recorrente impugna somente a credibilidade da testemunha deve indicar os elementos objectivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade dos depoimentos, pois ela, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso.»[12]

Ouvida integralmente toda a prova gravada, adiante-se, concluímos como a Mmª Juíza.

Atenda-se, desde logo, à motivação pertinente da primeira instância, que analisa o tipo de declarações/testemunhos alvitrados, a partir ainda dos pontos cristalizados do lastro de coincidência das versões (do legal representante da A. e sua companheira) e o maior grau indiciário de probabilidade (sobre estes conteúdos, vd. Karl Larenz, "Metodologia da Ciência do Direito", FCG, 2ª edição, 367 e ss.).

Sempre, como se disse já, a prova documental demonstra as quantias em dinheiro entregues e os pagamentos feitos (pela A), (sendo nessa parte a prova esmagadora, mais que concludente, aqui nos remetendo à fundamentação da sentença recorrida), à e em benefício da Sociedade da qual o Réu era o gerente…Foi, de resto, o que resultou da totalidade da prova, assim as declarações de parte do legal representante da A. e depoimentos testemunhais escalpelizados na sentença recorrida. Com tradução, aliás, no extrato da conta de conferência e balancete financeiro a que apela o Recorrente… O dinheiro entregue e os pagamentos feitos foram-no para satisfazer encargos ou dívidas ou necessidades de tesouraria da empresa. Ninguém o pôs em causa. Nem mesmo o legal representante da Autora…

Ora, os convocados extrato de conta da conferência e balancete geral não impedem a prova de que as entregas e pagamentos ali registados a favor da Sociedade do Réu o foram mediante a obrigação de o Réu mesmo (pessoalmente e não na qualidade de legal representante ou gerente) satisfazer a sua devolução/ restituição ou pagamento… Estando em causa documentos que incorporam declarações de ciência, com relevância contabilística, se os mesmos demonstram/comprovam que os valores em apreço foram entregues e satisfeitos em benefício da Sociedade ali identificada, nada revelam ou implicam já quanto à prova do subjacente acordo/convenção/contrato entre o legal representante da A. e o Réu, em seu nome pessoal, que não já como gerente da beneficiária das quantias em causa… E é este o cerne do juízo probatório…

O Recorrente invoca ainda a seu favor o regime previsto no n.º 2 do art. 44.º C. Comercial e a força probatória especial que aí se atribui aos livros de escrituração comercial devidamente arrumados, força probatória que não teria sido considerada.

Prevê-se ali, efectivamente, uma hipótese especial relativamente à regra do n.º 1 do artigo, que se limita a respeitar e reiterar ao princípios consignados no art. 376.º C. Civil de que os escritos particulares não fazem prova a favor do seu autor.

Agora, no n.º 2, considera-se que se os livros estão devidamente arrumados, isto é, se foram observadas todas as regras legais relativamente à escrituração, dando a conhecer de forma clara todas as operações comerciais da empresa, então os assentos «fazem prova em favor dos seus respectivos proprietários, não apresentando o outro litigante assentos opostos nos mesmos termos ou prova em contrário».

Quando assim seja, cede o princípio de que ninguém pode fazer prova a seu favor - o que é consequência da função específica atribuída aos livros dos comerciantes, cuja existência a lei lhes impõe, "precisamente para criar uma prova pré-constituída" (P. COELHO, "Lições de D.to Comercial - Obrigações Mercantis em Geral", I, 70) -, ficando estabelecida uma presunção legal de veracidade ilidível pela apresentação de assentos opostos em livros também regularmente arrumados ou por outra prova em contrário.

Ora, se assim é, então, a escrituração comercial, mesmo regularmente arrumada, não goza, em caso algum, de força probatória plena, o que também emerge do que se dispõe no art. 380.º C. Civil (cfr. F. OLAVO, "D.to Comercial", I, 366).

Enquanto presunção, impende sobre a parte que dela pretende beneficiar, ou seja, beneficiar da prova do facto presumido, alegar e provar o facto que lhe serve de base.

Desde logo, a A. não invocou e declarou pretender fazer uso da "escrituração", alegando e demonstrando a sua regular arrumação (facto que serve de base à presunção), muito embora esta tenha resultado.

Sempre o princípio de prova utilizável vem a sê-lo o do “simples” facto da entrega e pagamento a favor da sociedade, que não também de que tenha sido esta quem se obrigou à restituição/reembolso ou pagamento daqueles valores…

Nessa medida, por não estar sequer caracterizada a hipótese invocada, mas ainda por via da prova efectivamente feita, não assiste razão ao recorrente quanto ao relevo ou significado probatório da convocada escrituração.

Finalmente, quanto à credibilização das declarações de parte do legal representante da A. e sua corroboração pelo depoimento da sua então companheira.

Reconheça-se existirem factos integrantes do thema probandum (assim a assunção da obrigação de pagar/devolver as quantias entregues e pagamentos satisfeitos, pelo Réu, ele mesmo), que caracterizam factos de natureza mais pessoal ou reservada, factos respeitantes a «acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes» (REMÉDIO MARQUES, A Aquisição e a Valoração Probatória de Factos (Des) Favoráveis ao Depoente ou à Parte, in Julgar, jan-abr. 2012, Nº16, p. 168). No que tange a este tipo de factos, a recusa do tribunal em admitir e valorar livremente as declarações favoráveis do depoente pode implicar «uma concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro da garantia de um processo equitativo e da tutela jurisdicional efectiva dos direitos subjectivos e das demais posições jurídicas subjectivas.» (REMÉDIO MARQUES, Op. Cit., p. 168).

Na medida em que o quadro em que ocorreram aquelas entregas de dinheiro, pagamentos e suporte de custos resultou já do convénio ou acordo entre o legal representante da A e o Réu, bem assim na qualidade de gerente da beneficiada, mas, como referido, ainda em seu nome próprio e pessoal, mostra-se insuficiente a prova documental à aquisição da assunção da responsabilidade pelo pagamento dos valores assim “injectados” pelo próprio Réu. Caracterizada, por conseguinte, a natureza mais reservada (no confronto com a evidência externa dos pagamentos e entregas) do acordo ou compromisso, como atestado[13], pelo Réu em satisfazer ele mesmo a “restituição” dos valores em causa.

Esclareça-se, por ser uma questão primeira e decisiva, a afirmação que antecede, de que integrava o thema probandum a assunção da obrigação de pagar/devolver as quantias entregues e pagamentos satisfeitos, pelo Réu, ele mesmo… Como se viu, o conceito ou expressão comum de “empréstimo” comporta ou refere-se à obrigação ou compromisso de restituir ou pagar o entregue, sendo certo que nada obsta, desde que acordado, que a entrega pela qual se constitui o negócio o seja a pessoa distinta de quem se obriga a restituir. Ponto é que resulte provado, a um tempo, o acordo/convenção ou compromisso de satisfazer a “devolução”, a determinação, por acordo, também do beneficiário da entrega temporária e a efectiva entrega de dinheiro, que pode sê-lo pelo pagamento de despesas…

E é neste contexto que, ouvido já o depoimento de parte do gerente da Autora, que se constitui como determinante (vista a natureza pessoal ou provada do acordo ou declaração negocial subjacente), se tem como correcto, lógico e coerente o juízo probatório na sentença recorrida.

Sempre as declarações de parte apenas são admissíveis se corresponderem a prova direta (factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou sejam do seu conhecimento direto), não se convertendo automaticamente numa demonstração imediata e suficiente dos factos controvertidos, tratando-se antes de uma prova habilitada, cuja valoração está sujeita à livre apreciação do tribunal[14].

Para o efeito, será de submeter as declarações de parte, como qualquer outra prova oral, a um standard de valoração judicial, que passa pela sua credibilidade subjetiva (a), designadamente a sua razão de ciência e os seus interesses (pessoal, profissional ou qualquer outro), credibilidade objetiva (b), mormente no confronto com prova pré-constituída, e a verosimilhança da sua versão (c), tanto ao nível da coerência narrativa, como do contexto descritivo e eventual corroboração periférica.

Adiante-se que, apesar da margem de risco que a conclusão implica, concordamos com a decisão da 1.ª instância de julgar provada a assunção de responsabilidade pessoal e própria pelo Réu à restituição/devolução/satisfação das quantias que a A. entregou (directamente ou mediante a realização de pagamentos e aquisições), decisão que aqui se confirmará a final.

Se a prova reclamasse a certeza absoluta a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça (cf. Prof. Antunes Varela na RLJ 116/339). Importa considerar que a formação da convicção do juiz e a criação do espírito no julgador de que determinado facto ocorreu e de determinado modo, “se deve fundar numa certeza relativa, histórico-empírica, dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida. Neste sentido Manuel Tomé Soares Gomes, Um Olhar sobre a Prova em Demanda da Verdade no processo Civil, Revista do CEJ, Dossier temático Prova, Ciência e Justiça - Estudos Apontamentos, Vida do CEJ, Número 3º, 2º Semestre, 2005, pp. 158 e 159. Ensina ainda o prof. Castro Mendes “a convicção humana é uma convicção de probabilidade”; de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente”.

Ora, ao contrário do que pretende o Recorrente, perfeitamente justificado o juízo de probabilidade qualificada na sentença quanto à assunção pessoal pelo Réu da obrigação de satisfazer a devolução/restituição das quantias que a A. emprestou (mediante a entrega de dinheiro e a realização de pagamentos) para o exercício da actividade social da empresa do Réu, tal como trazida aos autos pelo depoimento do legal representante da A. e corroborado pelas declarações da sua então companheira e, de forma não escamoteável, pelo comportamento subsequente do próprio Réu, ao proceder ele mesmo a um pagamento ou restituição …

Já se adiantou que decisiva para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, i.é., a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que, por definição, possuem motivações apreensíveis, são orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.

Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer perceptível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou que o seu objectivo é diferente daquele que se pretende.

E vem a talho de foice, em sede de afirmação/confirmação de regras/juízos de normalidade, convocar aqui a teoria da prospecção que valeu a Daniel Kahneman o Prémio Nobel da Economia e nela ao estruturante conceito de aversão à perda.

Assim é que o pretendido comportamento da Autora (de emprestar à sociedade do Réu, que não a este), mediante o conhecimento como declarado pelo seu legal representante (e indiciado pelas despesas assim satisfeitas/pagas) de que conhecia a impossibilidade da beneficiária das disposições cumprir a generalidade das respectivas obrigações, corresponderia a um desprendimento anómalo, a uma postura que não reflecte, de harmonia com as regras da experiência comum e os estudos científicos, o comportamento de um decisor económico normal…

Anote-se já o ênfase que o declarante BB atribuiu ao exercício pelo Réu de outra actividade comercial, esta bem sucedida, em termos de se tornar compreensível os termos em que dispôs de fundos (em montante avultado) da Autora para acautelar a continuação do exercício da actividade industrial da empresa do Réu.

Tudo para reforçar o fundamento em si já sólido da decisão recorrida, no que importa ao alto grau de probabilidade e, decisivamente, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso, do alegado empréstimo pela A ao Réu mesmo das quantias em apreço, como confirmado directamente pelo legal representante da A. e corroborado pela sua então companheira, com relevo indirecto este último depoimento.

Em conclusão, suficiente a prova produzida à aquisição probatória dos factos que vêm postos em causa, nos termos em que o foram, sem prejuízo da decidida eliminação do segmento final do ponto 7 daquela.

Cabe manter, pois, a matéria de facto decidida, com a ressalva que vem de consignar-se.


3. Do erro de juízo no enquadramento jurídico da causa

Impõe-se, desde logo, qualificar o negócio celebrado entre as partes. Esta qualificação é a fazer em face dos factos que resultaram provados, que não de interpretações ou extrapolações a partir da realidade que o Recorrente pretende ver substanciada, sem qualquer suporte nos factos demonstrados/adquiridos processualmente.

Na configuração da acção - e da causa de pedir - pela autora o seu crédito não emerge de um contrato de conta-corrente, tal como este é configurado pelo art. 344º do Código Comercial. E nem tal resulta dos factos apurados.

Com efeito, tal figura jurídico-contratual existe quando duas pessoas, tendo de entregar valores uma à outra, se obrigam a transformar os seus créditos em artigos de “deve” e “há-de haver”, de sorte que só o saldo final resultante da sua liquidação seja exigível; sendo ainda característico de tal contrato, nos termos do §2 do art. 346º do Código Comercial, a novação entre o creditado e o debitado da obrigação anterior, de que resultou o crédito em conta corrente. Ora, atenta a caracterização das relações que resulta dos factos provados, não resulta que esteja em causa o contrato típico que vem de analisar-se sumariamente, antes provindo da referência aos documentos cujo teor foi reproduzido sob 4., a remissão para uma prática muito frequente, a da escrituração em conta corrente, forma contabilística de escrituração, à qual subjazem relações de crédito e débito. Tal como tem sido, desde sempre, realçado (cfr. Acs. STJ de 17.05.27. 26.11.54 e 05.11.63, respectivamente in RLJ, 60º, 331, BMJ, 46º, 481, e BMJ, 131º, 414; e Ac. RL de 29.01.69, in JR, 5º, 43), há que distinguir claramente o contrato de conta corrente, sujeito ao regime dos arts. 344º e segs. do C. Com., da forma contabilística ou processo de escrituração frequentemente chamado de conta corrente (a que se dá ainda o nome de sistema diagráfico de escrita). Esta última realidade consiste tão-só em efectuarem-se os lançamentos, quer dos créditos, quer dos débitos, num processo de escrituração, daí resultando um saldo credor ou devedor.

Ora, apreciando os documentos apresentados pela A., constata-se que mais não são do que um registo das entregas em dinheiro e pagamentos por ela efectuados, bem como das entregas feitas pelo Réu para amortização dos seus débitos, tratando-se, pois, da segunda realidade supra descrita.

Bem assim não emerge caracterizada da matéria de facto a actuação do legal representante da autora como mandatário sem representação da empresa do Réu, ainda quanto aos pagamentos de bens necessários à laboração daquela. Por isso que impossível o pretendido enquadramento jurídico.

O contrato de mútuo é tipificado, no art. 1142 do Código Civil [Diploma ao qual pertencem as disposições legais indicadas sem menção expressa da respectiva proveniência.], como “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género ou qualidade”.

Quanto a natureza jurídica do contrato em análise, não há unanimidade na doutrina. Uma parte da doutrina[15] considera o contrato como real quoad constitutionem, uma vez que a sua perfeição depende do ato de entrega (empréstimo) da coisa. Pelo que a datio rei é “elemento constitutivo ou integrante do próprio contrato; este não existe sem ela”[16]. Como afirmam Antunes Varela e Pires de Lima, a natureza do mútuo como contrato real resulta do artigo 1142º do CC[17] porque ao estabelecer que o mútuo é “o contrato pelo qual uma das partes empresta”, coloca a entrega da coisa na fase formativa do contrato e, portanto, fora da fase de execução do mesmo[18]. Outra parte da doutrina, sustenta que o mútuo é um contrato consensual[19], a entrega das coisas mutuadas não era um elemento constitutivo do negócio mas seria um ato de execução do contrato, não necessariamente contemporâneo da sua celebração, pelo que o mutuante ao entregar as coisas mutuadas, estaria a cumprir uma obrigação já existente[20]. Segundo João de Castro Mendes, quando no artigo 1142º do CC se fala em “empresta” significa que põem “à disposição de, entregando ou permitindo que o mutuário tome, ou vinculando – se a entrega”, pelo que, não se pode falar em natureza real do mútuo[21]. Existe uma tese intermédia entre estas duas, de acordo com a qual o “contrato é celebrado no momento do acordo das partes, mas este não faz nascer a obrigação restituitória nem produz a transferência da propriedade, uma vez que esta pressupõe a entrega das coisas mutuadas, que é assim considerada uma conditio iuris de certos efeitos do contrato ou como uma concausa da sua eficácia”, verificando – se, assim “um hiato entre a celebração do contrato e a produção de alguns dos seus efeitos”[22]. Por último, importa referir que entre nós existe mais uma posição[23], a qual admite o mútuo consensual como figura intermédia entre a promessa de mútuo e o mútuo real, segundo esta conceção a “entrega não é condição de validade do contrato, pelo que o facto de as partes acordarem na sua não realização tem apenas como efeito tornar atípico esse mesmo contrato”[24]. De acordo com Pires de Lima e Antunes Varela, o mútuo consensual não apresentava para o comércio jurídico qualquer interesse prático, uma vez que “ou se empresta a coisa ou se promete emprestá–la “, sendo que no primeiro caso, há um contrato de mútuo e no segundo, um contrato - promessa[25].

Já se anotou que os vocábulos emprestou e emprestar caracterizam, no uso corrente da expressão, a assunção da obrigação de restituir correspondente, em termos de se impor, por interpretação, haver por demonstrada a assunção de uma tal obrigação pelo Réu mesmo.

E, concorda-se bem assim com o segmento da decisão recorrida, para o qual nos remetemos, nos termos do qual não é mister que a entrega o seja à mesma pessoa que se obriga a restituir o valor entregue ou o pagamento realizado… A entrega é pressuposto da conclusão do contrato, mas nada impede que o obrigado à restituição endosse a outrem a mesma entrega ou beneficiação. Releva é quem se obriga a restituir, tanto mais que, como é sabido, a entrega de dinheiro, ou coisa fungível, não faz presumir a obrigação de restituição, pelo que impendendo sobre o reclamante da restituição a prova da assunção da obrigação respectiva, a qual, como exposto, se teve por verificada.

É que sempre o contrato tipificado de mútuo, tal como está formatado no artigo 1142º, do CC, pode, por consenso das partes, firmado ao abrigo do princípio da liberdade negocial, consagrado pelo artigo 405º, do CC, constituir-se, por simples acordo, como um contrato atípico de mútuo, quando um dos contraentes se obriga a entregar dinheiro ou outra coisa fungível a pessoa jurídica distinta de quem se obriga a restituir, mas com o acordo desta, ficando aquele contratante vinculado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.

Finalmente, mais se tem por correcta ou justificada a unificação sob um único mútuo das sucessivas e distintas entregas e pagamentos[26], na medida da sua conexão ao/implicação com o demonstrado acordo primeiro pelo qual a Autora, na pessoa do seu legal representante, assentiu em conceder meios financeiros para que a empresa do Réu pudesse manter a sua actividade, mediante o compromisso pelo próprio Réu do seu reembolso/restituição.

Como é sabido, dentro dos limites da lei, as partes podem ordenar e tutelar livremente os seus interesses (artigos 398.º e 405.º, do Código Civil). Podem, assim, escolher alguma das modalidades típicas, misturar características dessas modalidades ou mesmo estabelecer um clausulado distinto.

Do ponto de vista negocial é chamado no caso à colação o acordo pelo qual o legal representante da Autora aceitou perante o compromisso de restituir os valores entregues e satisfeitos ou pagos pelo Réu, ajudar a empresa do Réu, financiando o pagamento de dívidas desta e necessidades de tesouraria, nos termos assentes. Em causa afigura-se-nos uma convenção semelhante a uma abertura de crédito, que, na prática, configura um mútuo comercial, pelo qual a Autora acedeu em colocar à disposição da empresa do Réu quantias monetárias não imediatamente fixadas ou limitadas, por tempo indeterminado, ficando aquele Réu obrigado ao reembolso das somas utilizadas. Prefigura-se uma espécie de acordo-quadro ou pressuponente, caracterizado sob os pontos 1 e 2 dos factos assentes, em que, nesta ordem de ideias, pela própria natureza das coisas, necessária a prova da tradição do dinheiro subsequentemente, no contexto de uma relação global, que foi a que resultou, que não mediante o acordo firmado em cada uma das ocasiões ou momentos no sentido da concreta disponibilização de dinheiro.

Na realidade, através da análise do comportamento de concretização daquele acordo inicial ou fundante, emerge uma relação continuada ou duradoura, unificada, pois, que não um quadro de sucessivos acordos de concessão de mútuos parcelares….

O contrato de mútuo caracterizado nos autos configura-se, pois, como um acto complexo sequencial, unificando cada uma das entregas e pagamentos em que se concretiza a tradição quod constitutionem por referência ao acordado “financiamento” da actividade empresarial da firma do Réu.

Reconheça-se já, um mútuo atípico, próximo agora de um contrato de abertura de crédito, sem prejuízo de não configurar, ao contrário daquele, um contrato que se completa com o mero consenso das partes, evidenciando-se a necessidade da entrega de dinheiro, caracterizada. Assim, pois, uma relação obrigacional de mútuo que teve por fonte os termos do “financiamento” que o legal representante da Autora e o Réu acordaram que pela primeira seria realizado à empresa daquele, em termos de resultar agora a unidade do valor do financiamento e, assim, correcto o julgamento sobre o âmbito e conteúdo da obrigação de restituir, por via da invalidade formal.

III.

Nega-se, por conseguinte, provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Notifique.

Porto, 04 de Junho de 2025

Isabel Peixoto Pereira

Judite Pires

Paulo Duarte Teixeira


[1] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, pág. 122.
[2] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pág. 670.
[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 686.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/02/2005, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 09/07/2014, in www.dgsi.pt.
[5] Pode dizer-se que, em geral, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem observado, fundamentalmente, um critério de proporcionalidade e de razoabilidade, entendendo que os ónus previstos no art. 640.º do CPC têm em vista garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objeto do recurso. Deste modo, “a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no art. 640.º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco” , Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de junho de 2020 (Rijo Ferreira), proc. n.º 1519/18.2T8FAR.E1.S1 – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:1519.18.2T8FAR.E1.S1/.
Vide, no mesmo sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de julho de 2020 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 4081/17.0T8VIS.C1-A.S1, – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:4081.17.0T8VIS.C1.A.S1/; de 16 de junho de 2020 (Henrique Araújo), proc. n.º 8670/14.6T8LSB.L2.S1 – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:8670.14.6TB8LSB.L2.S1/; de 5 de fevereiro de 2020 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 3920/14.1TCLRS.S1 – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:3920.14.1TCLRS.S1/. Para acesso a mais jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre o tema do ónus de impugnação da matéria de facto, pode consultar-se o caderno de jurisprudência temática disponível in ttps://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/11/onus_-impugnacao_materia_facto-.pdf.
[6] Ob. citada, págs. 274 e 277.
[7] Cfr. o já longínquo Acórdão do STJ de 01.07.2004, no processo n.º 04B2285, na base de dados da dgsi.
[8] E, adiante-se, muito embora a sede própria dessa observação seja já outra, a do enquadramento jurídico, perante a alegação de que não resultou demonstrada a assunção da obrigação de restituição, vindo agora, a talho de foice, pela evidência linguística (o factor interpretativo mais determinante)  de que a expressão ela mesma, no sentido comum, o atendível, convoca a obrigação de devolver, como correspectivo da de entregar…
[9] «O tribunal da Relação tem a liberdade de eliminar os pontos de facto fixados na sentença recorrida se os mesmos encerrarem juízos conclusivos, como sucede com aqueles que se reconduzem diretamente à resolução da questão jurídica em discussão nos autos» — acórdão do STJ de 16/11/2023, processo nº 2053/21.9T8BRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt/, sendo-o no caso a “questão subsidiária”, como exposto.
[10] A sede para esta classificação é, novamente, a da matéria jurídica.
[11] Mas em ambas as situações, sob pena de excesso de pronúncia e de nulidade do acórdão (666.º, 615.º, n.º 1, al. d) parte final), o tribunal de recurso continua a estar vinculado ao ónus de alegação das partes (5.º) e ao ónus de alegação recursiva (640.º) – de acordo com a primeira consideram-se como não escritos o excesso de factos que venham a ser fixados, face à segunda o tribunal superior não conhece de questões não suscitadas, salvo se for de conhecimento oficioso (Ac. STJ de 11/dez./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt).

[[12]] Acórdão do STJ, de 15.12.2005 (processo 05P2951).
[13] Já se esclarecerá em que termos.
[14] Quanto a estas,
Até à entrada em vigor do actual Código de Processo Civil, a parte estava impedida de depor como testemunha (Art. 617 do CPC), podendo ser ouvida pelo juiz para a prestação de esclarecimentos sobre a matéria de facto (Art. 265.2. do CPC) sendo que tais esclarecimentos não podiam ser valorados de per si como meios probatórios. Podia ainda a parte ser convocada, oficiosamente ou a requerimento da contraparte, para a prestação de depoimento de parte (Arts. 552.1. do CPC).
Constitui doutrina e jurisprudência dominantes que o depoimento de parte integra um meio processual através do qual se pode obter e provocar a confissão judicial, sendo esta uma declaração de ciência que emana da parte e em que se reconhece a realidade de um facto desfavorável ao declarante (contra se pronuntiatio) e favorável à parte contrária a quem competiria prová-lo (Art. 352º do Código Civil).
Nessa medida, o depoimento de parte só poderia incidir sobre factos desfavoráveis ao depoente. Chamado a pronunciar-se sobre esta questão, o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 504/2004, Artur Maurício, DR, II Série de 2.11.2004, p. 16.093, foi peremptório no sentido de que “A confissão (...) não constitui meio de prova de quem emite a declaração, mas a favor da parte com interesses contrários, ninguém podendo, por mero ato seu, formar provas a seu favor. / Não se vê que fique vedado ao legislador ordinário regular a possibilidade de limitar o depoimento de parte de forma a impedir o exercício do direito de o prestar quando o respectivo objecto seja irrelevante enquanto confissão, ou seja, quando se anteveja uma disfunção entre o meio processual e o fim tido em vista pela sua previsão.”
Todavia, ainda na vigência do Código de Processo Civil revogado, foi crescendo uma corrente jurisprudencial pugnando no sentido de que o depoimento de parte - no que exceder a confissão de factos desfavoráveis à mesma parte - constitui meio de prova de livre apreciação pelo tribunal – Artigo 361º do Código Civil. Neste sentido, cf. os Acórdãos do STJ de 2.10.2003, Ferreira Girão, 03B1909, de 9.5.2006, João Camilo, 06A989, de 16.3.2011, Távora Víctor, 237/04 (“(…) o depoimento tem um alcance muito mais vasto, podendo o tribunal ouvir qualquer uma das partes quando tal se revele necessário ao esclarecimento da verdade material. E se é certo que “a confissão” só pode versar sobre factos desfavoráveis à parte, não é menos verdade que o Juiz no depoimento em termos gerais não está espartilhado pela confissão, podendo colher elementos para a boa decisão da causa de acordo com o princípio da “livre apreciação da prova”), de 4.6.2015, João Bernardo, 3852/09. No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.11.2011, Araújo de Barros, 2700/03, também se discorreu que: «Por decorrência do princípio da livre apreciação da prova, embora o depoimento de parte seja o meio próprio para colher a confissão judicial das partes, nada impede que dele se extraiam elementos que contribuam para a prova de factos favoráveis ao depoente ou para a contraprova de factos que lhe sejam desfavoráveis.»
Ou seja, embora configurado processualmente no sentido da obtenção da confissão, foram reconhecidas ao depoimento de parte virtualidades probatórias irrecusáveis perante um sistema misto de valoração da prova, em que a par de prova tarifada existem meios de prova sujeitos a livre apreciação.
A parte podia ser ouvida pelo juiz sob as vestes preconizadas no Art. 265.2. do CPC e como depoente de parte, estando-lhe vedado ser testemunha em causa própria (“nemo debet esse testis in propria causa”). As razões determinantes desta inadmissibilidade são essencialmente três: «receio de perjúrio; as partes têm um interesse no resultado da ação e podem ser tentadas a dar um testemunho desonesto e finalmente mesmo que as mesmas não sejam desonestas, estudos psicológicos demonstram que as pessoas têm uma maior tendência a recordar factos favoráveis do que factos desfavoráveis pelo que o depoimento delas como testemunhas nos processos em que são partes não é, por essa razão de índole psicológica, fidedigno.» (ELIZABETH FERNANDEZ, “Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito”, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, p. 27)
Sempre constituía dado da experiência comum que a inadmissibilidade da prestação de declarações de parte conduzia – com frequência – a assimetrias no exercício do direito à prova dificilmente compagináveis com o princípio da igualdade de armas ínsito no direito à prova. ELIZABETH FERNANDEZ, Op. Cit., p. 22, apelava aqui à ideia de «um preocupante deficit de processo equitativo.» Constituía exemplo paradigmático o julgamento de acidente de viação em que o autor/condutor – por ser formalmente parte - não era ouvido quanto ao relato da dinâmica do acidente enquanto o segurado (e também condutor) da Ré (Seguradora) era sempre arrolado como testemunha.
Por outro lado, como se salientou já no texto, existem factos integrantes do thema probandum que são por natureza revéis à prova documental, testemunhal e mesmo pericial, nomeadamente «factos de natureza estritamente doméstica e pessoal que habitualmente não são percepcionados por terceiros de forma directa» (ELIZABETH FERNANDEZ, Op. Cit., p. 37).
Se outras razões não ocorressem, tanto bastava para evidenciar a pertinência da consagração das declarações de parte como um novo meio de prova no actual Código de Processo Civil. Na Exposição de Motivos, de forma bastante sucinta, anuncia-se o novo meio de prova assim: «Prevê-se a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão.»
Nos termos do Artigo 466.3. do Código de Processo Civil, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
Para LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 2013, p. 278, «A apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, maxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.» Ou seja, para este autor as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária. PAULO PIMENTA, p. 357, afirma que «Face ao sistema probatório instituído, o mais provável é que a prova por declarações de parte tenha uma natureza essencialmente supletiva(…)».
Por sua vez, a jurisprudência tem vindo a valorar as declarações de parte com reservas, degradando a sua valoração para um mero princípio de prova. Sem preocupações de exaustividade:  Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.11.2014, Pedro Martins, 1878/11, posição reiterada no Acórdão da mesma Relação de 17.12.2014, Pedro Martins, 2952/12; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.6.2014, António José Ramos, 216/11, posição reiterada no Acórdão da mesma Relação de 30.6.2014, António Ramos, 46/13, www.colectaneadejurisprudencia.com.
Como esclarece Luís Filipe Pires de Sousa,  Prova por Presunção no Direito Civil, Almedina, 2013, 2ª Ed., p. 142, o princípio de prova é o grau de prova mais débil, significando que a prova em causa não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova.
Com o mesmo Autor, Pires de Sousa, desta feita na sua obra Prova Testemunhal, Almedina 2013, p. 42, que seguiremos de muito perto, agora, data venia, repudiamos este pré-juízo de desconfiança e de desvalorização das declarações de parte, sendo infundada e incorrecta esta postura que degrada prematuramente o valor probatório das declarações de parte.
 Em primeiro lugar, a prova testemunhal, a prova pericial e a prova por inspecção estão também sujeitas à livre apreciação do tribunal (Arts. 389, 391 e 396 do Código Civil), sem que se questione que o juiz possa considerar um facto provado só com base numa dessas provas singulares, no limite, só com base num depoimento.
 Em segundo lugar, desde há muito que se enfatiza que o interesse da testemunha na causa não é fundamento de inabilidade, devendo apenas ser ponderado como um dos factores a ter em conta na valoração do testemunho.  Assim, «Nada impede assim que o juiz forme a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha interessada (até inclusivamente com base nesse depoimento) desde que, ponderando o mesmo com a sua experiência e bom senso, conclua pela credibilidade da testemunha.» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.3.2012, Deolinda Varão, 6584/09). Ou seja, o interesse da parte (que presta declarações) na sorte do litígio não é uma realidade substancialmente distinta da testemunha interessada: a novidade é relativa e não absoluta, a diferença é de grau apenas.
Em terceiro lugar, o texto do Artigo 466 não degradou o valor probatório das declarações de parte, nem pretendeu vincar o seu carácter subsidiário e/ou meramente integrativo e complementar de outros meios de prova. Se esse fosse o desiderato do legislador, o mesmo teria adoptado uma formulação diversa (à semelhança, por exemplo, do que se prevê no § 445 do Código de Processo Civil Alemão).
Em quarto lugar, o julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório. A credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstractas pré-constituídas, sob pena de esvaziarmos a utilidade e potencialidade deste novo meio de prova e de nos atermos, novamente, a raciocínios típicos da prova legal de que foi exemplo o brocardo testis unis, testis nullus.
Existem variados parâmetros, normalmente aplicáveis à prova testemunhal (Cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, cit., p. 89-115;136-138; 300-302; 308-309), que podem desempenhar um papel essencial na valoração das declarações da parte. Reportamo-nos designadamente à produção inestruturada, à quantidade de detalhes, à descrição de cadeias de interacções, à reprodução de conversações, às correcções espontâneas, à segurança/assertividade e fundamentação, à vividez e espontaneidade das declarações, à reacção da parte perante perguntas inesperadas, à autenticidade do testemunho. São também aqui pertinentes os sistemas de detecção da mentira pela linguagem não verbal e a avaliação dos indicadores paraverbais da mentira.
De todo o modo, inexiste qualquer hierarquia apriorística entre as declarações da parte e a prova testemunhal, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada segundo os parâmetros explicitados. Em caso de colisão, o julgador deve recorrer a tais critérios sopesando a valia relativa de cada meio de prova, determinando no seu prudente critério qual o que deverá prevalecer e por que razões deve ocorrer tal primazia.
As declarações de parte integram, pois, um testemunho de parte, cujos critérios de valoração coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente, sendo que em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado, desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação. 
[15] Como é o caso de Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes de Varela (Código Civil – Anotado, Volume II, 2º Ed. Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 601) e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ob. cit., p. 394.
[16] Abrantes, José João, “Algumas nota sobre o contrato de mútuo “, “Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais. Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier”, Volume II Vária, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 1058.
[17] Lima, Fernando Andrade Pires de e Varela, João de Matos Antunes, Código Civil – Anotado, Volume II, 2º Ed. Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 601.
[18] Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ob. cit., p. 389.
[19] O Direito das Obrigações alemão, depois da reforma de 2001, passou a adoptar a tese da consensualidade do mútuo (§ 488 do BGB), diferentemente da solução consagrada no anterior § 607 do BGB, que afirmava, expressamente, a sua natureza real. Cfr. João José Abrantes, ob. cit., p.1058, nota 4.
[20] Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ob. cit, p. 390.
[21] Mendes, João de Castro, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, AAFDL, Lisboa, 1985, p. 309 a 310.
[22] Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ob. cit., p 390 e 391.
[23] A qual é defendida, por exemplo, por Vaz Serra (Notas acerca do contrato de mútuo”, in RLJ, Ano 93 (1960), p. 65 e ss), Carlos Mota Pinto (Cessão da posição contratual, (reimpressão), Almedina, Coimbra, 1982, p. 13 e ss e Teoria Geral do Direito Civil, 4º Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 396 e 397) e António Menezes Cordeiro (Manual de Direito Bancário, 4º Ed., Almedina, 2012, p.625).
[24] Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ob. cit., p 391.
[25] Cfr. Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, ob. cit., p. 601.
[26] Sempre “prejudicial” até ao Recorrente a consideração de cada um dos mútuos em função do valor autónomo respectivo, na medida então do vencimento anterior à citação dos juros moratórios, caracterizada a interpelação para a restituição respectiva, quanto à restituição de valores em relação aos quais não se impondo a nulidade formal.