Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | GERMANA FERREIRA LOPES | ||
Descritores: | PRAZO ADICIONAL DE DEZ DIAS PREVISTO NO ARTIGO 80.º N.º 3 DO CPT NÃO CUMPRIMENTO DOS ÓNUS ESTABELICIDOS NO ARTIGO 640.º DO CPC ASSÉDIO O ARTIGO 25.º N.º 5 DO CT/2009 / INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA | ||
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Nº do Documento: | RP202507104088/23.8T8MTS.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE. CONFIRMADA A SENTENÇA. | ||
Indicações Eventuais: | 4. ª SECÇÃO SOCIAL | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – O incumprimento pelo recorrente dos ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC não acarreta necessariamente que o recurso seja considerado como versando apenas sobre matéria de direito, com a consequente exclusão da aplicação do n.º 3 do artigo 80.º do CPT, havendo, antes, que aplicar tal preceito e conceder o prazo adicional aí previsto quando resulte do recurso instaurado, máxime das suas alegações, que o recorrente pretendeu interpor um recurso em matéria de facto tendo tido para o efeito que ouvir e consultar prova gravada. II – O não cumprimento pelo recorrente do ónus primário de impugnação da decisão da matéria de facto da 1ª instância estabelecido na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, traduzido na falta de individualização ou especificação, nas conclusões da alegação do recurso, dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, determina a imediata rejeição desse segmento do recurso. III – O atual artigo 29.º do CT/2009 (na redação da Lei n.º 73/2017, de 16-08), abrange agora, a par do assédio sexual (que constitui uma discriminação de género – cfr. n.º 3 desse mesmo artigo), as seguintes formas de assédio: o assédio moral discriminatório - baseado numa atuação discriminatória do empregador, nomeadamente, num dos fatores discriminatórios descritos no artigo 24.º do CT/2009; o assédio moral não discriminatório, quando o comportamento indesejado não se baseia em qualquer fator discriminatório concreto, mas, pelo seu carácter continuado e insidioso, tem os mesmos efeitos hostis. IV - O artigo 25.º, n.º 5, do CT/2009 apenas permite a inversão do ónus da prova se o trabalhador alegar e provar algum factor característico de discriminação legalmente previsto, sendo que, não estando em causa a discriminação, são aplicáveis as normas gerais em termos de distribuição do ónus de prova (artigo 342.º do Código Civil). V – O assédio moral pressupõe comportamentos real e inequivocamente humilhantes, vexatórios e atentórios da dignidade do trabalhador, aos quais estão em regra associados mais dois elementos: certa duração; e determinadas consequências. VI - Não é, nem poderá ser, um qualquer comportamento, ainda que violador de algum direito ou garantia do trabalhador, que poderá ser configurado como assédio, sob pena de, «assim não sendo, tudo o poder ser, afigurando-se-nos ser exigível, numa apreciação global e conjunta, uma gravidade, intensidade e/ou reiteração tais que permita concluir-se no sentido da existência de um comportamento “assediante”, direcionado ao trabalhador, reprovável, ainda que não intencional.». [Sumário elaborado pela sua relatora nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil (cfr. artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho] | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Recurso de apelação nº 4088/23.8T8MTS.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto– Juízo do Trabalho de Matosinhos, ...
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório AA (Autora) intentou a presente acção de processo comum contra A...-Agência, Promoção e Comercialização de Produtos e Serviços, Unipessoal, Lda. (Ré), peticionando o seguinte:
Realizada audiência de partes, frustrou-se a conciliação, sendo a Ré notificada para contestar.
A Ré apresentou contestação, na qual impugnou a factualidade alegada pela Autora, concluindo pela improcedência dos pedidos e respetiva absolvição.
Foi fixado o valor da causa em € 25.706,87. Foi proferido despacho saneador, tendo sido dispensada a enunciação do objeto do litígio e dos temas de prova.
Realizada a audiência final de discussão e julgamento, foi proferida sentença que conclui com a decisão seguinte (transcrição):
A Autora interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem[1]: Termina, pugnando pela revogação da sentença recorrida na parte em que absolveu a Ré da prática de assédio laboral na vertentente discriminatória, e da consequente indemnização a título de danos não patrimoniais, e em consequência, ser substituída por outra que determine a condenação da Ré pela prática de assédio laboral na vertente discriminatória, e no pagamento duma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 15.000,00 (quinze mil euros).
A Ré apresentou resposta ao recurso da Autora, que sintetizou nas seguintes conclusões, que se transcrevem: Termina, pugnando em primeira linha para que o recurso seja considerado extemporâneo e, no caso de assim não se entender, pela improcedência do mesmo e confirmação da sentença recorrida.
Foi proferido despacho pelo Tribunal a quo a admitir o recurso de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (artigo 87º, nº 3, do Código de Processo do Trabalho), aí se lendo (transcrição): As partes não responderam ao indicado parecer.
Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência. *** II – Questão prévia Da invocada intempestividade do recurso - questão suscitada nas contra-alegações e que no despacho preliminar proferido pela Relatora foi consignado que seria apreciada em conferência. A Recorrida sustenta, em síntese, que: para que se possa dizer que o recurso tem por objeto a reapreciação da matéria de facto, e deste modo poder o recorrente beneficiar do acréscimo de prazo a que se refere o n.º 3 do artigo 80.º do Código de Processo do Trabalho[2], é necessário que o recorrente tenha integrado no recurso conclusões que envolvam efetivamente a impugnação da matéria de facto tendo por base depoimentos gravados; no caso, a Autora não ataca o decidido quanto a qualquer um dos pontos de facto sujeitos a julgamento, sem o que não pode entender-se que tenha recorrido da decisão proferida sobre os factos, incumprindo com os ónus de alegação, no que concerne à delimitação do objecto do recurso, estabelecidos no artigo 640.º do Código de Processo Civil[3], o que tem como consequência a rejeição do recurso; consequentemente deixou de ter fundamento o alargamento do prazo de interposição estabelecido no artigo 80.º, n.º 3 do CPT e, consequentemente, a interposição do recurso no 40.º dia, acrescido da dilação de 3 dias com multa, para a impugnação da matéria de direito deverá ser julgada extemporânea, com a consequente rejeição da apelação por manifestamente intempestiva. A questão suscitada prende-se, afinal, tão-só com a de saber se a Recorrente beneficiava do prazo adicional de dez dias previsto no artigo 80.º, n.º 3, do CPT para a interposição do seu recurso de apelação. Sublinhe-se que tal questão não se confunde com a questão do cumprimento ou incumprimento pela Recorrente dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, que é questão distinta a resolver em momento diverso. Como se evidencia no Acórdão da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça de 30-03-2022[4], “[o] acréscimo de 10 dias no prazo para interpor recurso previsto no artigo 80.°, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho não depende do cumprimento dos ónus de impugnação e muito menos do mérito da impugnação, dependendo sim de a impugnação da matéria de facto visar a reapreciação da prova gravada”. No mesmo sentido, no Acórdão dessa mesma Secção do STJ de 11-04-2018[5] decidiu-se que “[o] incumprimento pelo Recorrente dos ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do Código de Processo Civil não acarreta necessariamente que o recurso seja considerado como versando apenas sobre matéria de direito, com a consequente exclusão da aplicação do n.º 3 do art. 80.º do Código de Processo do Trabalho, havendo, antes, que aplicar tal preceito e conceder o prazo adicional nele previsto quando resulte do recurso intentado, mormente das suas alegações, que o mesmo tinha por objeto a reapreciação da prova gravada”. No Acórdão da mesma Secção do STJ de 3-11-2023[6], sublinha-se que, “mesmo que por força do incumprimento dos ónus do artigo 640.º se deva rejeitar o recurso na parte respeitante à decisão da matéria de facto a que o incumprimento se reporte, ainda assim há que conceder os dez dias suplementares quando o recurso tenha por objeto a reapreciação da prova gravada.” Claro está que tal pressupõe que exista na alegação e/ou nas conclusões referência à prova gravada, como se destaca neste último Acórdão[7]. No caso, a Recorrente anuncia pretender impugnar a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada [cfr. ponto I da alegação sob o item objeto do recurso – pág. 2 das alegações – e ainda conclusão A)], sendo que na motivação apela a prova testemunhal gravada, que localiza em parte na gravação e transcreve excertos [(apenas identifica o início da gravação quanto a cada um dos excertos transcritos, no que se refere às testemunhas que indica – BB, CC, DD) – cfr. páginas 8 a 10 da alegação], e na conclusão H) menciona que as indicadas testemunhas confirmaram os factos alegados pela Autora [H. “As testemunhas BB (Colega de trabalho), CC (colega de trabalho), e Dra. DD (médica de família), confirmaram os factos alegados pela Autora, tendo esta última testemunha identificado de forma credível e isenta os problemas que aqueles comportamentos da Ré causaram à saúde e à família da Autora”.]. Ora, independentemente da perfeição/imperfeição da impugnação da matéria de facto, e mesmo que por força do incumprimento dos ónus do artigo 640.º do CPC se venha a concluir pela rejeição do recurso na parte respeitante à decisão da matéria de facto – questão que será tratada no momento próprio –, é patente que a Recorrente ouviu e utilizou a prova gravada para a elaboração do seu recurso. Não colhe, pois, a posição defendida pela Recorrida, sendo que, como já decidiu o STJ no Acórdão proferido a 3-03-2016[8], “independentemente da perfeição/imperfeição da impugnação da matéria de facto, não pode o Tribunal da Relação considerar que o prazo de 30 dias, fixado no artigo 80.º, n.º 3, do CPT não é aplicável, reduzindo-o para o prazo de 20 dias, previsto no n.º 1 desse mesmo artigo, para depois concluir que o recurso é extemporâneo e decidir no sentido da sua rejeição” – entendimento perfeitamente transponível para a atual redação do artigo 80.º do CPT introduzida pela Lei n.º 107/2019 de 9-09. Face ao entendimento jurisprudencial atrás enunciado, que se acolhe, o prazo suplementar de dez dias deve aplicar-se ao caso em análise, porquanto resulta inequivocamente do recurso de apelação que a Recorrente pretendeu interpor um recurso em matéria de facto, tendo tido para o efeito que ouvir e consultar prova gravada, ainda que, como melhor se explicitará aquando do conhecimento da questão do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no artigo 640.º, tenha, depois, interposto tal recurso de maneira deficiente. Assim, estando certificada no citius a elaboração da notificação da sentença ao Ilustre Mandatário da Autora no dia 13-05-2024, considera-se a mesma realizada no terceiro dia subsequente, ou seja, no dia 16-05-2024, pelo que é tempestivo o recurso apresentado no dia 28-06-2024 (3.º dia útil subsequente, sendo que foi paga a multa prevista no artigo 139.º, n.º 5, alínea c), do CPC). Improcede, pois, a invocada intempestividade do recurso. Cumpre, assim, quanto ao mais decidir. * III - Questões a decidir O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado e das que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras [artigos 635.º, n.º 4, 637.º n.º 2, 1ª parte, 639.º, n.ºs 1 e 2, 608.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis por força do artigo 87.º, n.º 1, do CPT]. Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinam-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação). Assim, são as seguintes as questões a decidir: - Impugnação da decisão da matéria de facto, onde se inclui a questão preliminar da verificação do cumprimento ou não dos ónus legais; - Saber se existe fundamento para concluir que ocorreu na sentença recorrida inadequada aplicação da lei e do direito, a respeito da absolvição da Ré da prática de assédio laboral e da indemnização a título de danos não patrimoniais. *** IV – Fundamentação 1) Decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância Os factos considerados provados na primeira instância são os seguintes (transcrição): “A) A ré tem por objeto a prestação de serviços de agenciamento, promoção, divulgação e comercialização de serviços por conta de terceiros designadamente da A... – Alarmes Dissuasão Portugal, Unipessoal, L.da. B) A autora em 07.04.2015 começou a trabalhar por conta e direção da A... – Companhia de Segurança, L.da para exercer as funções inerentes à categoria profissional de “ prospetor de vendas”. C) Em 17.08.2015 através de um acordo celebrado entre a autora, a A... – Companhia de Segurança, L.da e a ré, a autora passou a exercer as suas funções ao serviço da ré mantendo a antiguidade e a retribuição base que tinha. D) Tendo, ainda, que a partir daquela data a autora teria a categoria de “Comercial Júnior.” E) No dia 01.06.2017 aquando do desempenho das funções de chefe de equipa comercial foi atribuído à autora um prémio de função no valor de € 150/mês a ser pago em 11 meses do ano. F) No mês de março de 2018 não foi liquidado à autora o prémio de função no valor de € 150.00 G) Em 11 de abril de 2018 foi comunicado à autora que, com efeitos a 01.04.2018 passaria a exercer as funções de “ Tutor Comercial” recebendo um subsídio de função de € 400/més a ser pago em 11 meses do ano. H) Em 1 de dezembro de 2018 foi comunicado à autora que passaria a exercer as funções de Delegada Comercial de Vila Real mantendo as condições salariais sendo o variável o que se encontrava em vigor para todos os delegados. I) As funções pressupunham a coordenação da delegação de Vila Real e o poder de representação da própria ré. J) Durante o tempo em que exerceu as funções, no recibo de vencimento da autora não foi alterado a categoria profissional para Delegada apesar da anuência nessa alteração. L) Em 8 de agosto de 2019 é comunicado a nova organização da A... Alarmes na zona norte passando a delegação de Vila Real a ser uma subdelegação de Viseu deixando a autora de exercer as funções de delegada comercial e a exercer as funções de “ Key Account”. M) A partir de agosto de 2019 não foi pago o subsídio de função no valor de € 400 mensais à autora. N) Não obstante as insistências da autora designadamente por email. O) A ré passou a exigir que a autora apresentasse relatório de visitas o que esta fez pelo menos em 13 e 14 de agosto de 2019. P) A autora esteve em situação de incapacidade temporária desde dezembro de 2019 a outubro de 2020. Q) Em data não concretamente apurada mas anterior a 14 de dezembro de 2019 a ré ordenou à autora que entregasse o veículo que lhe tinha sido atribuído, bem como equipamentos que tinha em sua posse. R) No dia 8 de outubro de 2020 a ré solicitou à autora que se apresentasse nos recursos humanos onde lhe foi comunicado que ficaria em gozo de férias nos dias 9 a 13 de outubro e que estava dispensada do dever de assiduidade no dia 8 de outubro. S) A autora apresentou-se na empresa no dia 14 de outubro. T) A autor foi comunicado que deixaria de exercer as funções de Key Account e passaria a ser comercial trabalhando sob a alçada de KK. U) A autora sentia-se humilhada e desvalorizada. V) A autora apresentou uma denúncia no ACT. X) À autora foi entregue uma viatura à autora tendo sido necessário proceder pelo menos à sua limpeza. Z) A autora esteve sem email e telemóvel por um período não concretamente apurado. AA) No dia 13 de janeiro de 2021 a subdiretora de administração e compensação dos RH apresentou uma proposta de revogação do contrato de trabalho por mútuo acordo que a autora não aceitou disponibilizando-se para apresentar uma contraproposta BB) No dia 28 de janeiro de 2021 o delegado regional, KK questionou a autora sobre a contraproposta e refere terá em princípio nessa semana um cartão de telemóvel para lhe entregar. CC) A ré envia uma comunicação registada à autora datada de 17 fevereiro de 2021 a autora onde refere que apesar da tentativas de a contactar para o novo número de telemóvel o mesmo não dá sinal de chamada e solicita a sua presença nas instalações da delegação do Porto onde lhe será dado a conhecer as novas tarefas pela chefia. DD) Em 15 de fevereiro a ré já tinha enviado à autora um email com o seguinte teor:
EE) A autora apresentou queixa no ACT em 16.02.2021 queixando-se de discriminação em relação aos colegas que se mantiveram em teletrabalho e de retirada de equipamentos de trabalho. FF) A autora tinha um filho menor e apresentou atestado de baixa por apoio à família. GG) Em fevereiro de 2022 e terminadas as diversas baixas a autora voltou a apresentar-se nas instalações da ré onde lhe foi apresentado um novo supervisor, LL. HH) A autora foi colocada em formação inicial com os colegas que estavam em início da sua atividade. II) A autora sentiu-se humilhada e desvalorizada. JJ) Terminada a formação foi determinado que a mesma fosse para a rua sem viatura tendo sido acompanhada designadamente pelo supervisor, LL. LL) A autora sentia-se fragilizada e diminuída. MM) Em julho de 2022 a ré determinou que a autora passasse por um plano de recuperação de produtividade. NN) A autora denunciou o contrato de trabalho com efeitos a 15 de setembro de 2022. OO) A autora recorreu a acompanhamento clínico. PP) A ré não pagou à autora a quantia de € 2178,05 relativa a créditos finais. QQ) Aquando do regresso da autora em fevereiro de 2022 e por um período não concretamente apurado não havia carro disponível exercendo a autora a sua atividade na área circundante à delegação. RR) Em julho de 2019 foi liquidado à autora o valor de €400 a título de prémio de função.”. Quanto aos factos não provados, consta da sentença recorrida o seguinte: “Não se provaram mais nenhuns factos com relevo para a decisão da causa e que estejam em contradição com os dados como provados, sendo designadamente factos não provados que: - não tenha sido liquidado à autora o prémio de função no montante de € 150 em fevereiro de 2018; - que tenha sido prometido pela superior hierárquica, MM que com a alteração das funções de delegada e promoção a “key account” a autora não perdesse qualquer compensação financeira - não tenha sido liquidado o subsídio de função no montante de € 400 em julho de 2019; - após se ter apresentado na empresa a 14 de outubro a autora ficasse sentada alguns dias numa sala por ordens de MM a aguardar que lhe fossem atribuídas funções e que lhe devolvessem os instrumentos de trabalho; - não lhe tenham sido restituídos a viatura comercial, telemóvel ou conta de email nem acessos a qualquer informação; - supervisor KK se tenha limitado a dizer que deveria sair para a rua a pé onde iria fazer a sua prospeção; - no período de outubro de 2020 ainda que se vivesse no período pandémico por força do vírus SARZ – COV ninguém se pudesse aproximar de outras pessoas muito menos receber um prospetor comercial; - a autora permanecesse sem informação e sem acesso à plataforma interna de forma divergente de todos os seus colegas; - no dia 15 de janeiro de 2021 por força do agravamento das condições e por imposição legal todos os trabalhadores foram colocados em regime de teletrabalho; - fosse na sequência da recusa da autora em fazer cessar o contrato de trabalho nos moldes propostos pela ré que a autora recebesse a comunicação de 17 de fevereiro; - a ré tivesse discriminado a autora em relação aos EE, FF, GG, HH, CC, II e JJ; - a ré em fevereiro de 2022 ordenou à autora que aguardasse sentada na receção onde permaneceu por dois dias; - os superiores hierárquicos agendassem diversas reuniões com toda a equipa deixando a autora deliberadamente de fora; - autora fosse ridicularizada por toda a hierarquia da ré ou por todos; - fosse no limite da exaustão e por se sentir totalmente humilhada que não restasse à autora outra alternativa senão a de colocar termo à relação laboral; - fossem comportamentos dolosos, grosseiros e culposos levados a cabo pela ré que lhe tenham provocado medo ansiedade e instabilidade emocional; - autora deixasse de dormir sem ser medicada; - autora vivesse durante vários anos angustiada e infeliz.”. *** 2) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto/verificação do cumprimento ou não dos ónus legais de impugnação A Recorrente, como vimos supra em II, alega que o recurso por si apresentado visa também a matéria de facto, citando, e transcrevendo, excertos de depoimentos de testemunhas prestados em audiência de julgamento. Contrapõe a Recorrida/Ré que a Recorrente não cumpriu o estabelecido no artigo 640.º do CPC, no que é acompanhada no parecer do Exmº Procurador Geral da República. Nesta consonância, importa verificar se foram ou não cumpridos pela Recorrente os ónus legais exigíveis à parte que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sendo que preliminarmente se fará uma breve incursão sobre tais ónus estabelecidos pelo legislador. Sobre a modificabilidade da decisão de facto no âmbito do recurso de apelação, estabelece o n.º 1 do artigo 662.º do CPC, aplicável ex vi artigo 87.º, n.º 1, do CPT, que «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa». Como é consabido, pretendendo a parte impugnar a decisão da matéria de facto, deve observar determinados ónus de impugnação previstos no artigo 640.º do CPC. O n.º 1 deste último normativo, impõe ao recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição: a) “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” (tem que haver indicação inequívoca dos segmentos da decisão que considera afetados por erro de julgamento); b) “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (tem que fundamentar os motivos da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos – constantes dos autos ou da gravação – que, no seu entender, implicam uma decisão diversa da impugnada); c) “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”. No que respeita ao ónus previsto na alínea b), determina o legislador no n.º 2 do mesmo artigo que se observe o seguinte: a) “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”; b) “independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. Importa também ter presente que se entende inexistir despacho de aperfeiçoamento quanto ao recurso da decisão da matéria de facto[9]. Neste sentido, vejam-se, entre outros, os recentes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (adiante STJ) de 6-02-2024[10] e de 23-01-2024[11]. Este entendimento vem também sendo seguido nesta Secção Social, de forma que se pensa unânime, e de que é exemplo o Acórdão de 5-06-2023[12]. Como refere António Santos Abrantes Geraldes[13], quanto às funções atribuídas à Relação em sede de intervenção na decisão da matéria de facto, “foram recusadas soluções maximalistas que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas e relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”. A modificação da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que for declarado pela 1ª instância. Porém, como também sublinha António Santos Abrantes Geraldes[14], «(…) a reapreciação da matéria de facto pela Relação no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662.º não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente, de forma concludente, as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que impliquem decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter». Sobre a situação plasmada na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão n.º 12/2023[15], uniformizando a jurisprudência nos seguintes moldes: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.». Apesar de apenas ter sido fixada jurisprudência a respeito da referida alínea, o certo é que a fundamentação de tal Acórdão contém um conjunto de considerações que são inequivocamente relevantes quanto às demais exigências que resultarão do mesmo preceito, nos termos que a seguir se transcrevem: «(…) Desse modo, impõe-se a respetiva harmonização com os mais ditames no que concerne à admissibilidade do recurso, legitimidade para recorrer, prazos para tanto, bem como as regras no que concerne ao modo de interposição, no que para aqui releva, os recursos interpõem-se por meio de requerimento, devendo conter obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade, artigo 637, n.º 1 e n.º 2, especificando o n.º 1, do artigo 639, que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, artigo 639, n.º 1, preceito legal de cariz genérico, reportando-se assim aos recursos onde sejam apenas suscitadas questões de direito, mas também se pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto(57), procedendo à delimitação do objeto do recurso, como avulta do previsto no artigo 635, n.º 3 e 4. Em conformidade, não surpreende que no artigo 640 não se faça qualquer referência aos aspetos formais, antes enunciados, relevando sim, que sejam dadas essencialmente as indicações previstas na alínea a), na medida em que as mesmas delimitam a atividade de reapreciação junto do Tribunal da Relação, do julgado quanto à matéria de facto. 4 - Não pode, no entanto, ser esquecida a ratio legis, no atendimento dos princípios já enunciados na abordagem do histórico do preceito, que seria despiciendo repisar, mas também, e com eles necessariamente relacionados, os hodiernos vertidos no vigente Código de Processo Civil, caso do princípio da cooperação, enquanto responsabilidade conjunta de todos os intervenientes processuais, numa visão instrumental do processo para a obtenção da solução justa e atempada do litígio, bem como, com as devidas adaptações, o dever da gestão processual na vertente da respetiva adequação, sublinhando a prevalência da matéria em relação à forma, sempre pautados pelo dever de boa-fé, não esquecendo o ónus de alegação, numa pretendida colaboração ativa para a apreciação a realizar pelo Tribunal, inculcada com a inclusão do apontamento da decisão alternativa, e tendo presente a imprescindível consideração da proporcionalidade e razoabilidade que para a causa em concreto seja atendível e se justifique. Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso. Quando aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador(58), chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso(59), conforme o n.º 1, alínea c) (60) do artigo 640, apresentando algumas divergências ou em sentido não totalmente coincidente, vejam-se os Autores, Henrique Antunes(61), Rui Pinto(62), Abílio Neto(63). 5 - Em síntese, decorre do artigo 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.(…)» (fim de transcrição). Assim, e como se mostra sintetizado no Acórdão desta Secção Social de 20-05-2024[16], «[d]o que nos afigura também resultar da citada fundamentação, entendemos como adequado, em face do que resulta da lei, o entendimento de que, para cumprir os ónus legais aqui analisados, o recorrente sempre terá de alegar e levar para as conclusões, sob pena de rejeição do recurso, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, como estabelecido na alínea a) do n.º 1 do preceito citado, enquanto definição do objeto do recurso, sendo que, noutros termos, já quanto ao cumprimento do disposto nas alíneas b) e c) do mesmo número, desde que vertido no corpo das alegações, a respetiva não inclusão nas conclusões não determina tal rejeição do recurso». Neste mesmo sentido, António Santos Abrantes Geraldes[17], quando elenca as situações de rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto tendo por base o entendimento jurisprudencial que vem sendo sufragado nesta matéria, máxime pelo Supremo Tribunal de Justiça [entre as quais figura a falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados]. De facto, as conclusões de um recurso exercem uma importante função de delimitação do seu objeto, através da identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende impugnar na decisão recorrida e sobre o qual se pretende que o tribunal superior faça uma reapreciação, pelo que a não indicação nas conclusões das alegações do recurso de apelação dos concretos pontos da matéria de facto que se pretende impugnar permite a rejeição imediata do recurso nessa parte[18]. Revertendo ao caso dos autos, constitui realidade incontornável que, ao contrário do que lhe era imposto para cumprimento do ónus primário estabelecido na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, a Recorrente não levou às conclusões – como, aliás, também não o fez na motivação, sempre se considerando exigível que o tivesse feito nas conclusões – a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, limitando-se a levar às conclusões considerações genéricas que não se traduzem no cumprimento do indicado ónus. Reitere-se que, nestes casos, não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento. Conclui-se, pois, que não se mostra cumprido pela Recorrente o ónus de impugnação acima exposto, donde decorre, como expressamente cominado no normativo citado, a rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, o que se decide. * 3) Face ao atrás decidido, o elenco factual a atender para o conhecimento do direito do caso é o que foi fixado pelo Tribunal recorrido e que se mostra já supra transcrito em 1). *** 4) Aplicação/motivação de direito Saber se existe fundamento para concluir que ocorreu na sentença recorrida inadequada aplicação da lei e do direito, a respeito da absolvição da Ré da prática de assédio laboral e da indemnização a título de danos não patrimoniais. Nesta sede, a Recorrente sustenta, em síntese, que se a fundamentação do Tribunal assenta na falta de prova produzida, então, tratando-se de assédio laboral na vertente discriminatória, e atentas as regras de repartição do ónus de prova (ou da inversão desse ónus), devidamente assentes na doutrina e na jurisprudência, deveria a solução ter sido inversa, ou seja a condenação da Ré. Argumenta que cabia ao empregador demonstrar que as diferenças invocadas não assentam num fator discriminatório, pois têm justificação plausível. Conclui que tendo sido alegado, tendo sido feita prova documental e testemunhal, e tendo sido identificados os colegas relativamente aos quais a Autora foi vítima de assédio na vertente discriminatória, cabia ao Empregador demonstrar o contrário, pelo que não o tendo feito, e de acordo com as regras de repartição do ónus da prova na vertente do assédio moral e do assédio discriminatório deveria a sentença recorrida ter condenado a Ré por assédio e consequente indemnização peticionada. Por sua vez, a Recorrida defende que a sentença fez correta interpretação e aplicação do direito aos factos dados como provados, não merecendo censura, no que é acompanhada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto no respetivo parecer. Consta da sentença recorrida em sede de fundamentação de direito, e no que respeita à matéria do assédio/danos não patrimoniais, o seguinte: “O artigo 29º n.º 1 do CT proíbe o «assédio» no ambiente do trabalho, oferecendo no seu n.º 2 uma definição bastante longa: «comportamento indesejado, nomeadamente o baseado no fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidante, humilhante ou desestabilizador». Maria do Rosário Palma Ramalho refere a propósito que “[e]sta matéria [noção de assédio contida no artigo 29º/1] coloca problemas de delimitação e de regime. No que se refere à delimitação do assédio, trata-se de um comportamento indesejado que viola a dignidade do trabalhador […]. Desenvolvendo este conceito geral, a doutrina costuma identificar as seguintes formas de assédio: - O assédio sexual e o assédio com conotação sexual (sexual harrassement), em que o comportamento indesejado e com efeitos hostis tem conotação sexual, podendo assumir forma verbal, gestual ou física (artigo 29º n.º 2); - O assédio moral discriminatório, em que o comportamento indesejado e com efeitos hostis se baseia em qualquer fator discriminatório que não o sexo (artigo 29º, n.º 1) (discriminatory harrassement); - E o assédio moral não discriminatório, quando o comportamento indesejado não se baseia em nenhum fator discriminatório, mas, pelo seu carácter continuado e insidioso, tem os mesmos efeitos hostis, almejando, em última análise, afastar aquele trabalhador da empresa (mobbing).” “[A] formulação da norma do atual Código do Trabalho (artigo 29º, n. 1) abre a porta a outras possibilidades de interpretação, uma vez que a existência de um fator discriminatório na base do comportamento assediante deixou de estar obrigatoriamente presente. Assim, parece-nos que o Código acolhe hoje expressamente as três modalidades de assédio acima referidas, não sendo por isso necessário recorrer ao princípio da tutela da integridade física e moral do trabalhador (agora constante do artigo 15º) para o proteger contra as práticas do mobbing.” In Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais -, 4ª Edição, revista e atualizada, Almedina, páginas 188 e ss. (citação extraída do Ac. do STJ de 11.09.2019 proferido no processo 8249/16.8T8PRT.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt”. Importa, ainda, ter presente que o assédio moral implica comportamentos continuados, praticados diretamente pelo empregador ou através de superiores hierárquicos ou colegas de trabalho, que sejam humilhantes e atinjam a dignidade do trabalhador, em que este resultado tem como causa adequada aquela conduta assediante, tendo associado um objetivo final ilícito ou eticamente reprovável. No caso concreto, da matéria alegada provou-se a diminuição da retribuição, a apresentação de relatórios de visitas, o pedido de entrega dos instrumentos de trabalho, várias vicissitudes com a sua devolução aquando da retoma ao trabalho, proposta de cessação do contrato, trabalho presencial e alterações das funções da autora com necessidade de formação e, ainda, do estabelecimento de plano de recuperação de produtividade. Não cremos, no entanto, que se possa afirmar estar perante comportamentos humilhantes perpetrados pela ré/superiores hierárquicos com o objetivo de humilhar a autora. Senão vejamos. A diminuição da retribuição – sem olvidar o impacto negativo que possa subjetivamente ter nos rendimentos da autora tanto mais que o seu estaria sujeito a penhora (os recibos mencionam num rubrica retenção judicial) - não integrará o conceito de assédio tanto mais que houve da parte dos superiores hierárquicos da autora o reencaminhar das suas queixas para o departamento de recursos humanos situando-se possivelmente a divergência das partes no entendimento de o mesmo não ser devido, como preconiza a ré. Também se afigura que o pedido de relatório de visitas e de entrega dos equipamentos – em caso de incapacidade para o trabalho– enquadrar-se-á nos poderes de gestão de equipamentos da entidade empregadora, sendo certo que não se apurou que fosse a autora a única a quem foram exigidos e com o propósito alegado pela autora, assim como se compreende que a devolução e/ou entrega dos equipamentos possa ter ocorrido com vicissitudes sem que as mesmas afigurem graves, de todo o modo os constrangimentos foram superados. A proposta de cessação do contrato não poderá ser entendida como uma forma de pressão sendo uma prerrogativa da entidade empregadora e à qual a autora ficou inclusive de enviar uma contraproposta ficando, assim, afastado o entendimento de que possa configurar uma pressão. Da necessidade de efetuar trabalho presencial e/ou a colocação de outros trabalhadores em teletrabalho não se vislumbra, no caso em apreço, que configure factualidade suscetível de integrar assédio tanto mais que a empresa tinha quer trabalhadores em regime presencial quer em teletrabalho e da participação da autora ao ACT não há notícia que tenha originado qualquer contraordenação. Por outro lado não logrou a autora demonstrar a prática de discriminação relativamente aos trabalhadores da ré que identifica. A imposição de formação profissional e plano de recuperação de produtividade – num contexto do afastamento da atividade laboral por períodos ainda longos – ligados à desmotivação que se admite sentida pela própria autora também não configuram factualidade suscetível de integrar assédio laboral, a formação profissional é até legalmente imposta. Relativamente às alterações de funções e/ou categoria apraz-nos referir que não foi alegado pela autora e por isso não poderia ser demonstrado qual o conteúdo funcional de cada uma delas para que o Tribunal pudesse verificar a existência em concreto de um esvaziamento das mesmas. De todo o modo nem em qualquer ato isolado que analisámos nem no seu conjunto se pode afirmar que consubstancie uma atuação ilícita - por parte da ré ou dos superiores hierárquicos da ré e de que tenha sido dado conhecimento à ré -eticamente reprovável justificativo do estado emocional sentido pela autora. Não se pode, assim, concluir que tenha existido uma atitude persecutória, por parte da ré nem concluir pela existência de comportamentos que possam ser humilhantes, vexatórios e atentatórios da dignidade da autora, com o objetivo de lhe causar perturbação e constrangimento. Outrossim não foi possível estabelecer um nexo de causalidade entre o estado da autora e qualquer atuação da ré. Em face de tudo o exposto terá de improceder a pretensão da autora com a consequente absolvição dos pedidos formulados de reconhecimento de prática de assédio laboral e discriminação, respetivas contraordenações e fixação de indemnização por danos não patrimoniais.”. Ponderando a transcrita fundamentação, tendo por base a factualidade provada e o quadro normativo aplicável, diremos, desde já adiantando a solução que, sempre ressalvando o devido respeito por posição divergente, consideramos não assistir razão à Recorrente na sua pretensão de ver alterado o julgado na matéria objeto de recurso. Vejamos porquê. No âmbito do Código de Trabalho de 2009[19], em linha com o preceituado no artigo 15.º, segundo o qual o trabalhador goza do direito à respetiva integridade física e moral, e ainda nos artigos 23.º, 24.º, 25.º e 129.º, n.º 1, al. c), e concretizando os comandos constitucionais presentes nos artigos 25.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, estabelece o n.º 2 do artigo 29.º[20] que por assédio se entende “o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, humilhante ou desestabilizador”. O assédio constituiu fenómeno que tem vindo a vulgarizar-se e que, por isso, tem merecido atenção crescente, designadamente a nível doutrinal, existindo também inúmeros acórdãos que se debruçam sobre o mesmo. Sobre a temática do assédio, conforme se consignou no Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 3-06-2024[21], pronunciou-se recentemente o Acórdão do STJ de 12-04-2024[22], com apelo fundado à Doutrina e Jurisprudência, explanando de forma singular e clara os princípios e quadros analíticos relevantes em matéria de assédio, em termos que merecem a nossa inteira concordância e que plasmam a Jurisprudência firmada da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça. Como se dá a devida nota no citado Acórdão do STJ, o artigo 29.º do CT/2009 (na redação da Lei n.º 73/2017, de 16-08), abrange agora, a par do assédio sexual (que constitui uma discriminação de género – cfr. n.º 3 do artigo 29.º), as seguintes formas de assédio: - O assédio moral discriminatório - baseado numa atuação discriminatória do empregador, nomeadamente, num dos fatores discriminatórios descritos no artigo 24.º do CT/2009; – O assédio moral não discriminatório, quando o comportamento indesejado não se baseia em qualquer fator discriminatório concreto, mas, pelo seu carácter continuado e insidioso, tem os mesmos efeitos hostis. No caso vertente, a Recorrente não alega o assédio baseado em qualquer fator de discriminação a que alude o artigo 25.º, n.º 1, do CT/2009, pelo que não é aplicável a presunção a que se refere o n.º 5 da mesma disposição legal. De facto, sufraga-se o entendimento jurisprudencial no sentido que o artigo 25.º, n.º 5, do CT/2009 apenas permite a inversão do ónus da prova se o trabalhador alegar e provar algum factor característico de discriminação legalmente previsto, sendo que, não estando em causa a discriminação, são aplicáveis as normas gerais em termos de distribuição do ónus de prova (artigo 342.º do Código Civil). Neste sentido podem ver-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-09-2019[23], os Acórdãos desta Secção Social do Tribunal do Porto de 11-12-2024[24] e de 13-07-2022[25], o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-06-2021[26], o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6-03-2024[27] e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-05-2023[28]. Não colhe, pois, a argumentação da Recorrente em termos de ónus de prova, impendendo sobre a Autora o ónus de prova dos factos em que assenta o seu direito face ao disposto pelo artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil. Assim, e prescindindo do enquadramento da situação dos autos na figura do assédio discriminatório, importa ter presente que, face ao disposto no artigo 29.º, n.º 2, do CT/2009, o assédio moral pode concretizar-se não apenas quando se apura que era objetivo do empregador afetar a dignidade do trabalhador, como também nas situações em que, não tendo sido esse o objetivo, é, contudo, esse o efeito obtido, afetando a dignidade da pessoa ou criando um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante e desestabilizador. Com efeito, a lei estipula que no assédio não tem de estar presente o “objetivo” de afetar a vítima, bastando que este resultado seja “efeito” do comportamento adotado pelo “assediante”, como é jurisprudência firmada da Secção Social do STJ[29]. Não obstante, a verdade é também que a formulação legislativa não impede, ainda assim, a constatação de que a esta figura se encontra, em regra, associado o facto do empregador agir animado por determinados objetivos/finalidades (como seja afastar determinado trabalhador da empresa ou força-lo a aceitar condições menos favoráveis), tal como não impede a afirmação de que o assédio, em qualquer das suas modalidades, tem em regra asssociado, «um objetivo final “ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável”», tudo nos termos melhor explicitados no citado Acórdão do STJ de 12-04-2024. Do mesmo passo, interessa ainda ter em conta que o assédio constitui, por regra um processo, não um mero ato isolado, pressupondo um conjunto mais ou menos encadeado de atos e condutas que ocorrem de forma sistemática. A disposição legal em referência, como também se dá nota no citado Acórdão desta Secção Social de 11-12-2024, e na linha do já propugnado no citado Acórdão do STJ de 12-04-2024, «carece, porém, de uma interpretação, prudente, subordinada aos princípios ínsitos no artigo 9.º, n.ºs 2 e 3 do Código Civil, sob pena de se reconduzirem à sua previsão, todas e quaisquer situações de mera tensão laboral decorrente do conflito entre os interesses, tantas vezes opostos, do empregador e trabalhador geradas pelo exercício do poder de direção do empregador no desenvolvimento das relações laborais». Assim, e como se observa no Acórdão do STJ em referência, «[n]em todo o conflito no trabalho constitui assédio, sob pena de se descaraterizar a figura.». O assédio moral pressupõe comportamentos real e inequivocamente humilhantes, vexatórios e atentórios da dignidade do trabalhador, aos quais estão em regra associados mais dois elementos: certa duração; e determinadas consequências. Não é, nem poderá ser, um qualquer comportamento, ainda que violador de algum direito ou garantia do trabalhador, que poderá ser configurado como assédio, sob pena de, como se sublinha no Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 17-04-2023[30], «assim não sendo, tudo o poder ser, afigurando-se-nos ser exigível, numa apreciação global e conjunta, uma gravidade, intensidade e/ou reiteração tais que permita concluir-se no sentido da existência de um comportamento “assediante”, direcionado ao trabalhador, reprovável, ainda que não intencional.». Revertendo ao caso dos autos, relembre-se que o elenco factual a ter em conta é o que foi enunciado em III 1), sendo certo que existem afirmações conclusivas da Recorrente que nem sequer encontram respaldo na matéria de facto provada. Atente-se ainda no conjunto da materialidade que foi julgada como não provada. Por seu turno, a sentença recorrida pronuncia-se sobre a matéria alegada e que resultou demonstrada com relevância nesta sede, fazendo uma análise que se considera ponderada e pertinente à luz dos princípios e quadros analíticos relevantes em matéria de assédio, para a qual se remete, dispensando considerações adicionais. Realce-se que a Recorrente, para além da alegada situação de inversão do ónus de prova, que como vimos não se verifica, não apresenta, no âmbito da aplicação do direito aos factos, quaisquer outros efetivos argumentos jurídicos. Conforme se dá nota no Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 5-06-2023[31], é comummente afirmado que «impende sobre o recorrente, em sede de recurso, o ónus de invocar, também no domínio da aplicação da lei, os argumentos (jurídicos) que na sua ótica justificam o afastamento dos fundamentos constantes da decisão recorrida para sustentar o modo como interpretou e/ou aplicou a lei, de tal modo que o tribunal superior os possa apreciar, no sentido de lhes dar ou não sustentação – versando o recurso sobre matéria de direito, deve o Recorrente, para além de indicar nas conclusões as normas jurídicas violadas, referir também o sentido que, no seu entender, as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas (artigo 639.º, n.º 2, do CPC).». Visto o teor da sentença recorrida, a mesma não evidencia qualquer erro na interpretação ou aplicação do direito, ao ter concluído não ter ficado demonstrada uma situação de assédio moral e ao absolver a Ré do peticionado a esse título, sendo certo que também não se nos afigura estar-se perante um comportamento suficientemente demonstrativo da verificação da figura do assédio moral. Não se encontram fundamentos para colocar em crise a aplicação do direito realizada na sentença recorrida, sendo a mesma de manter na ordem jurídica. Em conclusão, o recurso é improcedente. *
V – DECISÃO: Em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, rejeitando-o na parte dirigida à impugnação da matéria de facto, em julgar no mais improcedente o recurso interposto pela Autora, confirmando-se a sentença recorrida.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão. Notifique e registe.
(texto processado e revisto pela relatora, assinado eletronicamente)
Porto, 10 de julho de 2025 Germana Ferreira Lopes [Relatora]
__________________________ [1] Consigna-se que em todas as transcrições será respeitado o original, com a salvaguarda da correção de lapsos materiais evidentes e de sublinhados/realces que não serão mantidos. |