Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | CARLOS CUNHA RODRIGUES CARVALHO | ||
Descritores: | TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA CONTEÚDO DA ORDEM RESPONSABILIDADE DO BANCO | ||
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Nº do Documento: | RP2025041011955/21.1T8PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA A SENTENÇA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O IBAN, International Bank Account Number, é um código que identifica de forma única uma conta bancária em transações internacionais. Foi criado para facilitar as transferências bancárias entre países, a movimentação de dinheiro entre países, tornando as transferências mais seguras, rápidas e eficientes, permitindo identificar a conta bancária a que se destina o pagamento e competindo ao banco segui-lo ao executar a ordem de transferência. II - Indicando o ordenante de uma transferência electrónica dado IBAN e sendo o pagamento efectuado na conta correspondente, embora pertencente a pessoa diferente do beneficiário que igualmente se indicou, não pode responsabilizar-se o banco em que está sediada a referida conta invocando-se a violação do dever de verificar se o beneficiário da transferência correspondia ao indicada na ordem de transferência. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc.11955/21.1T8PRT.P1
Recorrente: A..., sociedade de responsabilidade limitada. Recorrido: Banco 1..., S.A., NIPC .... * Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I.
A..., sociedade de responsabilidade limitada, sociedade comercial de direito russo, com sede na Rua ..., ..., Moscovo, Rússia, matriculada no registo nacional das sociedades comerciais russo sob o n.º ..., veio intentar acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra o Banco 1..., S.A., NIPC .... - Nessa sequência no dia 16/09/2019 foi efectuada uma ordem de transferência no montante global de € 254.124,00, para pagamento das referidas faturas, para a conta indicada nas mesmas, com o IBAN ..., do Banco 1..., S.A., endereçada à agência bancária sediada na Rua ..., no Porto, Portugal; - a A... indicou como beneficiário o número do IBAN suprarreferido, como pertencente a B... CO., Ltd., com sede em ..., na China, sociedade que não acusou a transferência e indicou que nunca mudaram a informação e número da conta bancária; - os e-mails relativos ao envio das faturas com os novos dados bancários para pagamento não haviam sido enviados pela Sra. AA à A..., sendo que no dia 20/09/2019 a B... havia sido alvo de ataque informático (hacking) através de um acesso indevido ao seu servidor de e-mail e daí sido enviados os e-mails fraudulentos; -o IBAN indicado pela A... não correspondia ao nome e morada do beneficiário pretendido e por ela também indicado; - No dia 23/09/2019 o Sr. BB dirigiu-se à agência do Banco 1... na Rua ..., no Porto, identificando-se como representante da empresa que havia procedido à transferência bancária em causa, questionando o banco em ordem a tentar perceber o sucedido e o que poderia ser feito para reverter a situação, tendo-lhe sido recusada a prestação de qualquer informação ou ajuda, invocando-se o sigilo bancário; - o Banco 1... permitiu que a sociedade detentora do IBAN indicado na ordem de transferência, C..., Unipessoal, Lda, no próprio dia em que foram recepcionados os fundos, procedesse ao levantamento, em dinheiro, da totalidade do valor indevidamente transferido (€ 254.124,00); - apesar de o IBAN indicado pela A..., na ordem de transferência, não corresponder ao nome e morada do beneficiário por ela também indicados (B... CO., Ltd.), mas sim a uma empresa portuguesa denominada C... – Unipessoal Lda., o Banco 1..., não só nada fez para impedir a errada transferência, como permitiu que, no próprio dia da sua execução, tivesse sido levantada em dinheiro toda a quantia transferida; - interpelado o Banco 1..., S.A., por carta datada de 28 de outubro de 2019, recepcionada a 30/10/2019, expondo os presentes factos, requerendo uma clarificação dos mesmos, e peticionando o pagamento do valor indevidamente transferido, nada foi respondido.
Conclui pela responsabilidade extracontratual do Banco Réu na devolução da quantia atrás referida e juros de mora.
Válida e regularmente citado, o Réu apresentou a sua contestação, declinando qualquer responsabilidade por não ter de sindicar as situações em que as transferências são realizadas em conformidade com o identificador único, considerando-se executada corretamente no que diz respeito ao beneficiário especificado pelo IBAN.
Invoca igualmente, a admitir-se o direito que a. pretende tutelar, o seu exercício abusivo por entender que, confessada uma omissiva e negligente conduta, veio-se tentar assacar responsabilidades ao Banco que cumpriu uma ordem de transferência por si emitida.
Requer a intervenção acessória de C..., Unipessoal, Lda, beneficiária da transferência que, alega o R., contactada para permitir a devolução dos valores transferidos, não o autorizou. * Deferida a intervenção acessória da C..., Unipessoal, Lda, não se logrando a sua citação, sequer edital, deu-se cumprimento ao disposto no art.21 do CPC, citando-se o MP.
O MP apresentou contestação, impugnando por desconhecimento a matéria alegada pela A. * Dispensando-se a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, com definição do objecto do litígio e fixação dos temas da prova[1]. * Agendada e realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, decidindo-se a final: * Do assim decidido interpôs a A. recurso de apelação oferecendo alegações e formulando as seguintes CONCLUSÕES[2]:
1. O presente Recurso tem como objeto a Sentença proferida em 08/07/2024, quer quanto à matéria de facto dada como assente, quer quanto à apreciação jurídica dos factos.
Da matéria de facto
2. A Sentença recorrida deu como provado, sob o n.º 40, que “A Interveniente contactada pelos serviços do Banco R. não autorizou a devolução da mesma”, o que corresponde, ipsis verbis, ao alegado pelo Banco R. sob o n.º 10 da Contestação.
3. Todavia, jamais tal facto poderia ter sido dado como provado, na medida que, compulsados os depoimentos das testemunhas CC e de DD, ambos prestados na sessão de julgamento do dia 08/05/2024.
4. A testemunha CC apenas referiu que, quando tomou conhecimento do sucedido, o seu departamento enviou um pedido para o Balcão ..., do Banco R., para que aquele contactasse a C... no sentido de obter autorização para o reembolso;
5. Acrescentando que o Banco R. não conseguiu contactar a cliente e que os fundos já tinham sido movimentados, daí que não tivessem podido reembolsar a A.
6. Por sua vez, DD, confirmou que, efetivamente, receberam o pedido de devolução da transferência por parte do departamento de transferências do banco e que fizeram vários esforços para contactar o cliente, mas que não o conseguiram contactar.
7. Acresce que, na fundamentação de facto da Sentença, quando se refere ao depoimento da Testemunha DD, o Juiz a quo afirma que o Banco R. não conseguiu contactar a C..., contrariando frontalmente, desse modo, o vertido sob o n.º 40 dos factos provados.
8. Pelo que jamais o Tribunal a quo poderia ter dado como provado que a C... foi contactada e que não autorizou o reembolso, conforme o vertido sob o n.º 40 da matéria de facto, devendo o mesmo ser suprimido dos factos provados, passando a constar dos factos não provados.
9. A A., ora Recorrente, na PI, requereu a notificação do Banco R. para juntar aos autos toda a documentação legal relativa à abertura de conta da C..., bem como aos seus movimentos, nomeadamente no que respeita o ano de 2019.
10. O Banco R., por requerimento de 06/11/2023, juntou aos autos, sob o documento n.º 1, cópia do “expediente de abertura da conta” da C... e, sob documento n.º 2, cópia do extrato da conta da referida empresa.
11. Nessa sequência, a Recorrente, alegou que se encontrava em falta, na documentação de abertura de conta, a declaração de beneficiário efetivo que deveria ter sido entregue pela C..., aquando da abertura de conta, como o impõem os artigos 31.º e 32.º da Lei n.º 83/2017, de 18/08.
12. Além disso, da análise do extrato bancário junto pelo Banco R. sob o referido doc. 2, conjugado com a documentação da abertura da conta junta sob o doc. 1, verifica-se que do mesmo decorre, de forma inequívoca e evidente, a existência de diversas transferências internacionais recebidas e levamentos imediatos através de transferências também internacionais.
13. Tendo em consideração o alegado pela Recorrente e o teor dos documentos 1 e 2 juntos pelo Banco R., bem como o documento 1 junto com a Contestação, deverão os seguintes factos, com relevo para a boa decisão da causa, ser integrados na matéria provada:
“32-A) Na documentação de abertura de conta da C... encontra-se em falta a declaração de beneficiário efetivo”.
“32-B) O Gerente da C... é um cidadão de nacionalidade italiana sem residência em Portugal”.
“32-C) Na conta da C... foi recebido inicialmente, em 22/03/2019, o montante de€ 400,00, como “pagamento de serviços”, e, depois de várias compras eletrónicas, em 06/05/2019 a conta apresentava um saldo de € 7,82”.
“32-D) Em 23/05/2019 através de “ordem de pagamento recebida” é creditado na conta da C... o montante de € 48.332,50, e, no dia seguinte, dia 24/05/2019, são efetuadas duas “transferências a débito”, uma de € 27.930,00 e outra de € 19.687,50, ficando a conta da C... com um saldo de € 693,18”.
“32-E) No dia 27/05/2019 através de “ordem de pagamento recebida” é creditado na conta da C... o montante de € 26.243,00, e, no dia seguinte, dia 28/05/2019, é efetuada uma “transferência a débito” no valor de € 25.855,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 930,38”.
“32-F) No dia 30/05/2019 é efetuada uma “transferência a crédito” para a conta da C... no montante de € 3.849,15 e duas “ordens de pagamento recebidas”, sendo creditado na conta da C... os montantes de € 8.100,00 e de € 20.081,25, e, no dia seguinte, dia 31/05/2019 são efetuadas três “transferências a débito”, uma de€ 7.980,00, outra de € 19.687,50 e outra de € 500,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 5.115,88”.
“32-G) No dia 05/06/2019 através de uma “ordem de pagamento recebida” é creditado na conta da C... o montante de € 18.905,39, e, no mesmo dia, dia 05/06/2019,éefetuadauma “transferência a débito” no montante de € 18.626,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 5.395,27”.
“32-H) No dia 12/06/2019 é efetuada uma “transferência a débito” no montante de € 5.200,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 60,97”.
“32-I) Em 05/07/2019 o saldo da conta da C... é de € 0,00”.
“32-J) No dia 16/09/2019 através de uma “ordem de pagamento recebida” (transferência em questão nos presentes autos) é creditado na conta da C... o montante de € 254.124,00.”
“32-K) No dia 17/09/2019, através de “transferência a crédito” é creditado na conta da C... o montante de € 82.900,00.”
“32-L) No dia 17/09/2019, a C... efetuou seis “transferências a débito”, uma de € 45.900,00, outra de € 44.300,00, outra de € 34.800,00, outra de € 41.200,00, outra de € 31.500,00 e outra de € 42.300,00, todas elas com pagamento de taxa de urgência, e tendo como destinatários dois IBANs espanhóis.”
“32-M) No dia 18/09/2019, a C... efetuou três “transferências a débito”, uma de € 38.950,00, outra de € 41.050,00, e outra de € 10.000,00, tendo como destinatários dois IBANs húngaros, ficando a conta da C... com um saldo de € 6.894,74”.
“32-N) No dia 20/09/2019 a C... efetuou uma “transferência a débito”, no montante de € 1.950,00, para um IBAN búlgaro, ficando a conta da C... com um saldo de € 4.944,74”.
“32-O)Todas as transferências descritas no extrato de conta da C... têm como proveniência e destino contas bancárias fora de Portugal”.
14. Deverá retificar-se o facto provado sob o n.º 42, pois, como decorre da documentação junta pelo Banco R. (cfr. doc. 1 junto com a Contestação e doc. 2 junto o requerimento de 06/11/2023 ref. CITIUS 47032987), bem como do disposto sob os factos provados n.ºs 11, 12 e 41, é manifesto o lapso no que respeita a data em que os fundos foram creditados na conta da C....
15. Assim, no facto n.º 42, onde se lê “16/12/2019”, deverá retificar-se para “16/09/2019”
Do Direito
16. Como decorredos autos deforma inequívoca e evidente, face às transferências internacionais recebidas e levantamentos imediatos através de transferências também internacionais, a conta da C... em causa foi utilizada com notório fim ilícito, durante vários meses, como “conta de passagem de dinheiro”, sem que o Banco R. tenha solicitado toda a informação necessária de identificação do cliente e das suas operações e sem que tenha efetuado qualquer controlo e vigilância, como lhe incumbia nos termos legais, tendo com essa atuação permitido que a C... se apropriasse de valor que não lhe era devido.
Todavia,
17. A Sentença a quo considerou, ao abrigo do disposto nos n.ºs 1 e2 do artigo 129.ºdo DL 91/2018, que o Banco R. só estava obrigado a controlar o número de IBAN indicado pela Recorrente na ordem de transferência, pelo que o dano sofrido pela Recorrente, em virtude do envio dos fundos para um destinatário errado, não era imputável ao Banco R., acrescentando ainda que a Recorrente, ao atuar como atuou, não utilizou a previdência que lhe era exigível, tendo concorrido para a produção do dano, nos termos do artigo 570.º do CC.
18. Por último, entendeu a Sentença a quo que os factos constantes dos autos não se subsumem ao regime do branqueamento de capitais, uma vez que, considerou que o Banco R. se limitou a abrir a conta em nome da C... sem conhecimento da sua atividade ilícita e sem suspeita de que aquela empresa se dedicava a esquemas fraudulentos.
19. Ora, existem diversos fatores que devem ser ponderados na aferição da relação entre o Banco R. e a C..., todos eles indicadores de uma situação de potencial utilização fraudulenta da conta bancária.
20. O Banco R. abriu a conta da C..., detida e gerida unicamente por um cidadão de nacionalidade estrangeira, não residente em Portugal, sem que o mesmo apresentasse a Declaração de Beneficiário Efetivo, nos termos impostos pela lei.
21. Foram recebidas na conta da C... várias ordens de pagamento, do estrangeiro, de elevados montantes.
22. Esses montantes recebidos pela C..., logo no dia seguinte a cada recebimento, foram enviados para outras contas bancárias no estrangeiro.
23. A conta bancária da C... ficava praticamente esvaziada logo após cada recebimento.
24. Era obrigação do Banco R., pelo menos a partir de maio de 2019, detetar o sucedido e tomar as medidas adequadas a prevenir e evitar o uso ilícito da conta bancária da C....
25. A quantia em causa é avultada e, por isso, impunha-se que o Banco R. tivesse agido com prudência e zelo na verificação da (i)licitude das movimentações da conta bancária da C....
26. Ficou provado sob os n.ºs 28 e 29 da matéria de facto que o Banco R. não encetou “qualquer tipo de diligência para identificação correta das partes, quer junto do banco ordenante quer junto da A...”, tendo processado a receção dos fundos na conta da C..., “que nada tem a ver com o nome e morada do beneficiário indicados pela A... na ordem de transferência”, tendo permitido ainda que a C... “procedesse à transferência da totalidade do valor indevidamente transferido”.
27. Ficou ainda provado, sob o n.º 32 da matéria de facto, que “não foi possível conhecer qualquer atividade da empresa C... a nível nacional ou internacional”.
28. Por último, sob o n.º 44, a Sentença recorrida deu como provado que em 11/11/2019, a C... promoveu o “encerramento da citada conta e o levantamento dos fundos remanescentes, em causa. - € 4.417,82”.
29. Ficou provado, também, que no dia 23/09/2024, o Gerente da Recorrente se dirigiu presencialmente ao Banco R. para tentar reaver os fundos indevidamente transferidos, e que o Banco R. tomou conhecimento da situação fraudulenta em questão, tendo inclusive solicitado ao Balcão ... que fosse requerida autorização à C... para a devolução dos fundos em questão.
30. Em face disso, não se compreende, de modo algum, como é que, ainda assim, o Banco R. permitiu que a C... procedesse, já em 11/11/2019, ou seja, após conhecimento desses factos, ao levantamento dos fundos remanescentes, no valor de € 4.417,82!! conforme provado sob o n.º 44 dos factos provados.
31. Constata-se, pois, que o Banco R. adotou uma conduta de absoluta inércia em face da utilização ilícita da conta bancária que abriu em nome da C...!!
32. Efetivamente, é nosso entendimento que o Tribunal a quo andou mal ao considerar que o Banco R. não é responsável perante os factos em causa, pois tal absolvição significa conceder uma total impunidade a condutas grosseiramente negligentes das entidades bancárias que, em violação das suas obrigações, não detetam e/ou não impedem a utilização de contas bancárias para fins ilícitos.
33. Na verdade, a ratio subjacente ao disposto no n.º 2 do artigo 129.º do DL 91/2018, assenta na vontade do legislador em tornar o processamento de ordens de pagamento ágil e célere, reduzindo, para isso, o número de elementos da ordem de transferência a verificar antes da respetiva conclusão.
34. Todavia, essa razão há de aplicar-se apenas às ordens de transferência que não ocorram num contexto em que existem outros elementos a ter, obrigatoriamente, em consideração, nomeadamente a existência de indícios claros de uma utilização ilícita da conta bancária envolvida na ordem de pagamento.
35. Por outras palavras, aquele normativo há de desresponsabilizar o banco do ordenante ou o banco do beneficiário da transferência se a única irregularidade for a discrepância entre o IBAN e o nome do beneficiário indicados na ordem de transferência.
36. Ou seja, não pode aquela previsão legal servir para desculpar e desresponsabilizar o Banco R. por toda e qualquer falha na execução da transferência.
37. In casu, o Banco R. violou diversas obrigações legais que sobre si impendiam, quer a montante, quer a jusante do momento em que creditou o montante indevido na conta da C....
38. Efetivamente, é aos bancos que cabe, em primeira linha, zelar pela utilização lícita do sistema bancário, maxime das contas bancárias e meios de pagamento disponibilizados por cada uma dessas instituições.
39. O Banco R., in casu, violou os artigos 32.º e 34.º, n.º 2 da Lei n.º 83/2017 ao proceder à abertura da conta bancária da empresa C..., permitindo a sua movimentação, sem obter previamente a declaração, válida, do registo do beneficiário efetivo.
40. Consequentemente, o Banco R. violou o vertido nas disposições contidas no artigo 50.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, al. a) da referida Lei, que determinam que o Banco tem a obrigação de recusar o estabelecimento ou manutenção da relação contratual, v.g., processar operações, enquanto não proceder à verificação do beneficiário efetivo nos termos legais, o que não ocorreu.
41. Não existe nos autos, nem o Banco R. alegou a verificação de quaisquer factos que lhe permitissem ou justificassem o recurso às medidas simplificadas constantes no artigo 35.º da supracitada Lei.
42. A conduta ilícita do Banco R. permitiu, assim, que a C... usasse e dispusesse da conta bancária para fins ilícitos, prejudicando seriamente a aqui Recorrente.
43. De acordo com o Anexo III à Lei n.º 83/2017, verifica-se que se aplicam à relação do Banco R. com a C..., desde logo, as seguintes situações de risco potencialmente mais elevado de branqueamento de capitais:
- “Relações de negócio que se desenrolem em circunstâncias invulgares”, porquanto, conforme ficou provado sob o facto provado n.º 32 da Sentença a quo, “apesar das diligências encetadas não foi possível conhecer qualquer actividade da empresa C..., Unipessoal, Lda, a nível nacional ou internacional.” e,
- “Pagamentos recebidos de terceiros desconhecidos ou não associados com o cliente ou com a atividade por este prosseguida”, uma vez que, para além de se desconhecer qualquer atividade da empresa C..., a mesma recebia pagamentos de terceiros desconhecidos, provenientes do estrangeiro.
44. Pelo que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 47.º da Lei n.º 83/2017, o Banco R. deveria ter-se abstido de processar as operações relativas à conta da C....
45. Acresce que a lista constante do Anexo III à Lei n.º 83/2017 é, como aí se refere, não exaustiva, pelo que sempre deverão considerar-se os restantes factos relevantes, nos termos dos factos n.ºs 32-A a 32-N supra, cuja integração nos factos provados se requerer para todos os efeitos legais.
46. O Banco R. violou ainda o dever de identificação e diligência que, para além da identificação e enquadramento inicial de risco da C..., o obrigava a monitorizar as atividades bancárias dessa empresa (cfr. artigos 23.º e 40.º da Lei n.º 83/2017).
47. O Banco R. violou, do mesmo modo, o dever de abstenção e de recusa do processamento da transferência dos fundos em causa nos presentes autos (cfr. artigos 47.º e 50.º da Lei n.º 82/2017).
48. O Banco R. violou também o dever de comunicação das operações suspeitas ao DCIAP (cfr. artigos 43.º e 47.º da Lei n.º 82/2017).
49. O Banco R. violou, ainda, o dever de abstenção e recusa do processamento das operações de transferência dos fundos da conta bancária da C... para outras contas bancárias no estrangeiro (cfr. artigos 47.º e 50.º da Lei n.º 82/2017) – nomeadamente depois de ter sido alertado para o facto de a transferência recebida da Recorrente ter resultado de burla/fraude!
50. Ora, em face de todo o exposto, jamais poderá sustentar-se o entendimento do Tribunal a quo, no sentido de que a verificação do IBAN é, em todos e quaisquer casos, suficiente para desresponsabilizar o Banco R. pelas operações (recebimento e transferência) por si processadas.
51. Com efeito, verifica-se, in casu, que o Banco R. permitiu, sem qualquer supervisão ou diligência, que a C... utilizasse a sua conta bancária para fins ilícitos pelo menos durante os 6 meses anteriores à transferência da ora Recorrente (cfr. factos 32-C a 32-J dos factos supra indicados, cuja integração nos factos provados se requer)!!
52. Além disso, após ter sido alertado pelo Gerente da Recorrente, em 23/09/2019, da atuação fraudulenta da C..., o Banco R. continuou a incumprir os seus deveres de abstenção e recusa, permitindo o levantamento dos fundos restantes e o encerramento da conta (cfr. factos provados n.º 23 e 44).
53. Sendo notória, pois, a absoluta falta de diligência e respeito pela lei do Banco R. relativamente aos factos constantes dos presentes autos.
54. Neste quadro, e em suma, cumpre salientar que o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 129.º do DL n.º 91/2018, no que concerne a responsabilidade do Banco R. perante ora Recorrente, jamais poderá aplicar-se ao processamento das transferências que o Banco R. levou a cabo a jusante da transferência indevida, as quais permitiriam que a C... “despachasse” os fundos provenientes do crime para o estrangeiro.
55. O erro na apreciação jurídica do Tribunal a quo quanto a esta matéria é claro, ainda, porquanto procede a uma análise do próprio crime de branqueamento, constante do artigo 368.º-A do Código Penal, para concluir que o Banco R. não praticou tal crime, tendo-se limitado, no seu entendimento, a abrir a conta em nome da C..., “desconhecendo totalmente a atividade ilícita da cliente”(cfr. Sentença a quo, pág. 14).
56. Ora, é precisamente esse total desconhecimento, por parte de quem estava obrigado a conhecê-lo, que está na fonte da obrigação de indemnizar do Banco R.
57. Com efeito, e salvo melhor opinião, é nosso entendimento que o Banco R. violou, designadamente, as normas que impõem o dever de conhecimento do cliente (know your client), as normas de vigilância dos movimentos que foram sendo efetuados na conta, bem como as normas que lhe impõem o dever de recusa ou abstenção, todas elas supra identificadas, tendo permitido que a C... se apropriasse indevidamente da quantia de € 254.124,00, prejudicando a ora Recorrente, nesse montante.
58. Para além disso, considerando o elevado valor da transferência em causa, a responsabilidade do Banco R. é indiscutível, uma vez que não deu cumprimento aos deveres de identificação e diligência que lhe incumbiam nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 23.º da Lei 83/2017.
59. Conforme resulta do artigo 8.º do Regulamento EU2015/847 e artigo 69.º do Aviso do Banco de Portugal n.º 2/2018, o Banco R. deveria conferir os elementos constantes da ordem de transferência, recusando-a face à divergência do titular da conta indicado nessa ordem.
60. Não atuando nestes termos, o Banco R. agiu com culpa, pelo menos na forma negligente, violando as obrigações e as regras de cuidado e diligência que lhe são legalmente impostas, provocando, de forma direta e necessária, o dano correspondente ao empobrecimento da ora Recorrente, no montante correspondente ao da transferência efetuada.
61. Acresce que, nos termos do artigo 73.º do RGICSF, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de dezembro, as instituições de crédito devem assegurar, em todas as atividades que exerçam, elevados níveis de competência técnica, dispondo ainda o artigo 74.º do mesmo regime legal, que as instituições de crédito devem proceder com diligência nos interesses que lhes são confiados.
62. Nesse sentido, o Banco de Portugal, através do Aviso n.º 5/2008, estabeleceu queas entidades bancárias devem agir de forma a minimizar os riscos financeiros, incluindo o risco de fraudes, irregularidades e erros, assegurando a sua prevenção e deteção tempestiva, Aviso esse cujo teor foi confirmado pelo Aviso n.º 2/2018.
63. Além disso, no âmbito da gestão de controlo de risco, do dever de diligência e de adoção de políticas de combate ao branqueamento de capitais, as instituições financeiras, como é o caso do Banco R., têm obrigações acrescidas de cuidado, averiguação, controlo e de identificação dos intervenientes nas operações financeiras, conforme resulta do já citado Regulamento EU 2015/847, relativo às informações que acompanham as transferências de fundos, estabelecendo o artigos 4.º e 7.º, quanto às transferências que excedam € 1.000,00, que os prestadores do serviço de pagamento devem verificar a exatidão das informações relativas ao beneficiário antes de creditar ou de colocar os fundos à disposição deste;
64. Pelo que, deveria o Banco R., in casu, ter rejeitado a transferência, nos termos do artigo 8.º do Regulamento supracitado, o que não aconteceu.
65. Por último, a Sentença a quo considera que a ora Recorrente atuou de modo a concorrer e a agravar a produção do dano, nos termos do disposto no artigo 570.º do Código Civil.
66. Ora, salvo melhor opinião, a Recorrente não pode ser responsabilizada pelo facto de ter sido alvo de uma burla por parte da C..., levada a cabo através das infraestruturas e serviços disponibilizados pelo Banco R.
67. Na verdade, seguindo o entendimento do Tribunal a quo, in casu, a isenção ou redução da indemnização na ponderação da existência de uma eventual culpa do lesado, levaria a uma realidade incompreensível, já que teríamos aquele que viola normas legais (Banco R.) ou o criminoso (C...) a beneficiar da sua atividade ilícita à custa da própria vítima.
68. Efetivamente, quem atuou de forma a agravar e concorrer para a produção do dano, a par da C..., nos termos do disposto no artigo 570.º do CC, foio próprio Banco R., o qual deverá ser responsabilizado pelos prejuízos causados, nos termos do disposto no artigo 483.º do CC.
69. Em face de todo o exposto, deverá o Banco R. ser responsabilizado pelos prejuízos sofridos pela Recorrente, tendo violado, claramente, diversas normas jurídicas que visam proteger tanto o sistema bancário e financeiro como os interesses e confiança de todos aqueles que o utilizam, estando provada a culpa do Banco R., o dano sofrido pela Recorrente e o nexo de causalidade entre a conduta do Banco e o referido dano. * O R. apresentou contra-alegações e ampliação subsidiária nos termos do artº 636º, nº 1 e 2 do C.P.C. quanto à matéria de facto e quanto ao conhecimento da excepção de culpa do lesado e abuso de direito.
Conclui pugnando pela improcedência total do recurso interposto.
Para tanto, igualmente a benefício da requerida ampliação subsidiária do recurso quanto à matéria de facto e direito, formula as seguintes CONCLUSÕES.
1. Veio o Banco Recorrido, na sua CONTESTAÇÃO, invocar a EXCEÇÃO DA CULPA DO LESADO, bem como a EXCEÇÃO DE ABUSO DE DIREITO.
2. Na hipótese de procedência do RECURSO interposto pela Recorrente, assiste ao Banco Recorrido a faculdade de promover a AMPLIAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO RECURSO, nos termos do artº 636º, nº 1 e 2 do C.P.C., quer quanto à MATÉRIA DE FACTO, como em relação à MATÉRIA DE DIREITO.
3. Quanto à MATÉRIA DE FACTO, o Ponto 29 da MATÉRIA DE FACTO PROVADA, deve ser desconsiderado da mesma e, como tal, da mesma eliminado.
4. Quanto à MATÉRIA DE DIREITO, relativamente à EXCEÇÃO DE CULPA DO LESADO, em sede de responsabilidade civil, a par da verificação dos respectivos requisitos por parte do lesante, pode constatar-se ainda o concurso da culpa do lesado, relevante para o cômputo ou para o indeferimento da pretensão indemnizatória à face da lei, estatuindo o artigo 570º do C.C.
5. Não é qualquer comportamento do lesado que despoleta a consequência jurídica a que alude o nº 1 do preceito em análise.
6. Exige-se que o mesmo seja, em sede de concausalidade adequada, idóneo à produção ou agravamento dos danos, aferindo o acto em caso de negligência (e excluímos a apreciação do dolo), sendo inoperantes “imprudências de relevo diminuto” por parte do lesado, compreendendo-se que não pode deixar de relevar para excluir ou reduzir a indemnização a conduta daquele que, conhecendo ou devendo conhecer o perigo de uma situação concreta de perigo não adeque o seu comportamento de molde a esconjurá-lo.
7. E como salientam Pires de Lima e Antunes Varela: “Como é sabido, para que o tribunal goze da faculdade conferida pelo nº 1, é necessário que o acto do lesado tenha sido uma das causas dos danos, consoante os mesmos princípios de causalidade aplicáveis ao agente (cfr. art 583º do C.C)”.
8. Deve, pois, a presente questão ser analisada à luz do disposto no aludido artigo 570º do C.C., tendo em conta, toda a factualidade já supra descrita.
9. Nesta perspetiva e tendo em conta a relevante e decisiva conduta culposa da Recorrente por esta confessada na P.I. e constante da factualidade provada, deve ser verificada a situação de culpa do lesado prevista no artigo 570º do C.C. e ser ponderada pelo Tribunal a exclusão do dever de indemnizar por parte do Banco Recorrido.
10.Na esteira dos considerandos, tecidos na sentença revidenda:
“…Perante todas as discrepâncias que iam sendo detetadas - IBAN incorreto, nome do beneficiário incorreto, morada alterada 3 vezes na factura, a A. não procurou contactar, diretamente, a empresa chinesa ou efectuar outras diligências para aferir e verificar se o novo IBAN correspondia à conta da empresa chinesa. O comportamento do A. consubstancia uma postura de agravamento e concorrência para a produção do dano, conforme se prevê no artº 570º do CC, constituindo ele, a par da conduta enganosa de terceiros, causa do dano por ele sofrido…”
11.Banco Recorrido, o qual cumpriu os deveres a que estava obrigado face ao D.L. 91/2018 – o Regime Jurídico do Sistema de Pagamentos.
12.De qualquer forma - sempre por mera cautela de patrocínio e sem conceder quanto a tudo o supra invocado - se dirá que, acaso possa ser considerada a responsabilidade do Banco Recorrido na execução da transferência em causa nos presentes autos, se não justifica, por outra razão, a atribuição do montante indemnizatório peticionado pela Recorrente, pelo menos de forma integral.
13.Devendo, por via disso, merecer, no limite, o abaixamento do valor da indemnização para os referidos limites razoáveis por referência à situação fáctica imputável à Recorrente detetada, em repartição do dano global considerado, para cuja verificação a mesma Recorrente, claramente, contribuiu.
14.Quanto à EXCEÇÃO DE ABUSO DE DIREITO, mesmo que, por mera hipótese de raciocínio, se possa considerar assistir o direito à Recorrente de qualquer ressarcimento à custa do Banco Recorrido, do prejuízo alegadamente sofrido.
15.Sempre se deverá considerar ilegítimo o exercício do direito por parte da Recorrente, consubstanciando a conduta do mesmo, supra descrita e alegada, como prefiguradora da EXCEPÇÃO DE ABUSO DE DIREITO, tal como consignado no art. 334º do C.C.
16.Como se asseverou já em jurisprudência sobre a matéria, “O abuso de direito pressupõe a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé”. (Ac. STJ, de 28/11/96, CJ, STJ, Ano IV, Tomo III, pg. 118).
17.Já o Prof. Vaz Serra considerava existir abuso de direito quando o comportamento do seu titular se mostre clamorosamente chocante para o sentimento jurídico reinante na colectividade, quer essa contrariedade resulte de factos subjectivos ou objectivos.
18.Em princípio, exigir-se-á que o titular actue com intenção malévola ou com grave negligência, mas também existirá abuso de direito quando o interesse geral estiver directamente em causa de modo a prevalecer sobre o interesse privado (BMJ nº 85, pg. 254).
19.O entendimento proposto pelo Prof. Antunes Varela aproxima-se, nos seus aspectos gerais dos ensinamentos anteriores, defendendo de igual modo, que o abuso de direito pressupõe que os direitos sejam exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (C. Civil Anot., vol. I, pg. 299).
20.O instituto do abuso de direito tem em vista impedir que as normas jurídicas, formuladas em termos gerais e abstractos, determinem, na sua aplicação aos casos concretos, flagrantes injustiças.
21.Os direitos não devem ser exercidos de modo insuportavelmente injusto para a consciência jurídica dominante.
22.Quando a aplicação concreta dos preceitos legais conduzirem a uma conclusão que flagrantemente viole essa consciência jurídica, o instituto do abuso de direito funcionará como “válvula de segurança” do sistema jurídico (Prof. Vaz Serra, ob. Cit., pg. 265).
23.Ora a situação, de facto e juridicamente alegada pela Recorrente prefigura e consubstancia uma violação flagrante do princípio da boa-fé e da tutela do fim social e económico dos direitos invocados.
24.Consistindo num claro “venire contra factum proprium”, pois confessando de forma expressa toda a sua omissiva e negligente conduta, tal como descrito na própria P.I. vem agora a Recorrente tentar assacar responsabilidades ao Banco Recorrido, no cumprimento da ordem de transferência por si emitida ao Banco ordenante e cumprida pelo mesmo Banco Recorrido.
25.Como tal, as invocadas EXCEPÇÕES de CULPA DO LESADO e de ABUSO DE DIREITO, caso de alguma forma, o recurso interposto pela Recorrente possa ter merecimento, devem ser julgadas provadas e procedentes.
26.Como tal devendo o Banco Recorrido ser absolvido dos pedidos, e como tal confirmada a sentença revidenda, ainda que com outros fundamentos.
Pelo que:
A. Ser ordenada a retificação do artº 42º, dos FACTOS PROVADOS, nos termos requeridos.
B. Deve o RECURSO interposto pela Recorrente, quer quanto à MATÉRIA DE FACTO, como quanto à MATÉRIA DE DIREITO, ser julgado como improcedente, confirmando-se a sentença revidenda.
C. Na hipótese de procedência do RECURSO interposto pela Recorrente, deve a AMPLIAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO RECURSO, requerida pelo Banco Recorrido, nos termos do artº 636º, nº 1 e 2 do C.P.C., quanto à MATÉRIA DE DIREITO ser acolhida e como tal julgadas como procedentes as invocadas EXCEÇÕES e como tal confirmada a sentença revidenda, ainda que com outros fundamentos. * O MP. Também contra-alegou, CONCLUINDO:
1- A sentença recorrida não merece qualquer reparo, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito. 2- A mesma não viola qualquer disposição de ordem constitucional ou legal. 3- Assim, deve a sentença recorrida ser mantida na integra. * A A. respondeu à ampliação atrás referida, CONCLUINDO:
1. O Recorrido apresentou ampliação subsidiária do recurso quanto à matéria de facto e à matéria de Direito da Sentença recorrida.
Da matéria de facto
2. O Recorrente pretende que seja eliminado dos factos provados o ponto 29, alegando que os factos aí vertidos foram por si impugnados, que configuram um juízo conclusivo e que são contrários à factualidade constante dos n.ºs 41 a 45 dos factos provados.
3. Todavia, não se vislumbra qualquer razão para alterar a matéria de facto nos termos pretendidos pelo Recorrido, porquanto os factos constantes do n.º 29 são objetivos e correspondem a uma realidade factual ocorrida e documentada.
4. Com efeito, resulta inequivocamente dos documentos 1 e 2 juntos pelo Banco Réu com o requerimento de 06/11/2023 (ref. CITIUS 47032987), bem como do documento 1 junto com a Contestação, todo o valor indevidamente transferido, em 16/09/2019, pela Recorrente para a conta da C... (€ 254.124,00) aberta junto do Recorrido, tendo esse valor sido efetivamente transferido para outras contas bancárias, logo no dia 17/09/2019 – o que consta, aliás, dos factos provados sob os n.ºs 41 a 43.
5. De facto, o Recorrido colocou, à disposição da C..., as suas infraestruturas bancárias/meios de pagamento; ou seja, permitiu que a C... procedesse à transferência dos fundos indevidamente recebidos – tanto através de comissão como por omissão, uma vez que, para além de ter disponibilizado àquela empresa a sua infraestrutura e ligação ao sistema bancário, nada fez para se opor à sua concreta utilização, como decorre da análise da documentação suprarreferida, da qual resulta, de forma inequívoca e evidente, a existência de diversas transferências internacionais recebidas e transferências também imediatas.
6. Em face de todo o exposto, deverá indeferir-se o peticionado pelo Recorrido, mantendo-se inalterado o facto provado sob o n.º 29.
Matéria de Direito
Da exceção de abuso do Direito
7. Em caso de eventual procedência do Recurso interposto pela Recorrente, o Recorrido pretende seja apreciada a exceção de abuso de direito na modalidade venire contra factum proprium por parte da Autora, considerando que a Autora adotou uma conduta “omissiva e negligente”.
8. O Banco R. baseia a referida exceção no alegado sob o ponto 85 da Contestação, onde refere que “confessando de forma expressa toda a sua omissiva e negligente conduta, tal como descrita na própria PI vem agora a A. tentar assacar responsabilidades ao Banco R., no cumprimento da ordem de transferência por si emitida ao banco ordenante e cumprida pelo mesmo banco”.
9. Todavia, tal exceção jamais poderá proceder, in casu, porquanto a Recorrente não adotou qualquer posição jurídica contrária a outra por si anteriormente assumida.
10. Na verdade, a Recorrente imputa ao Recorrido responsabilidades não só pelo facto de este ter aceitado a transferência realizada pela Recorrente, da qual constava expressamente o nome do beneficiário pretendido, e que não era a C...;
11. Mas também, e sobretudo, pelo facto de o Banco R. ter permitido que as suas infraestruturas tenham sido utilizadas para “lavagem do dinheiro” (circulado pelo sistema bancário) indevidamente sacado à Recorrida!
12. Com efeito, relativamente à transferência ordenada pela Recorrente, saliente-se que a mesma foi realizada de boa-fé, embora sob as infelizes circunstâncias da fraude patente nos autos.
13. No que respeita ao facto de a Recorrente imputar ao Banco R. responsabilidades pelo facto de o mesmo ter permitido que a C... transferisse os fundos, imediatamente após o seu recebimento, para outras contas bancárias, refira-se, também aqui, que não existem quaisquer condutas contraditórias da Recorrente, ou sequer relacionáveis entre si, que sustentem um qualquer uso reprovável do seu direito ao ressarcimento.
14. Efetivamente, o que releva para esta matéria é apenas a conduta do Banco R., e não condutas anteriores da Recorrente, inexistindo, naturalmente, qualquer conduta da Recorrente que “permitisse”, “mandatasse” ou “tolerasse” que o Banco R., ilicitamente, tenha deixado os fundos “fugir”.
15. Estruturalmente, o abuso do direito, na modalidade venire contra factum proprium, é representado por dois comportamentos do mesmo sujeito, diferidos no tempo, devendo o segundo desses comportamentos contrariar o primeiro.
16. De facto, o venire contra factum proprium corresponde ao ato de contradizer um comportamento próprio, o que não se vislumbra nem das alegações do Banco R., nem de qualquer outra matéria constante dos autos.
17. Em face do exposto, deverá improceder a exceção do abuso de direito invocada pelo Recorrido.
Da culpa do lesado
18. O Recorrido alega ainda que, em caso de procedência do Recurso interposto, deverá ponderar-se, ao abrigo do disposto no artigo 570.º do CC, a exceção da culpa do lesado, porquanto entende que a Recorrente foi grosseiramente negligente aquando da transferência dos fundos.
19. Ora, salvo melhor opinião, a Recorrente não pode ser responsabilizada pelo facto de ter sido alvo de uma burla por parte da C..., levada a cabo através das infraestruturas e serviços disponibilizados pelo Recorrido.
20. Com efeito, a Recorrente não atuou com qualquer dolo ou negligência quando efetuou a transferência, sendo, aliás, a maior prejudicada pela fraude de que foi alvo.
21. Note-se, com relevo, que a mensagem de e-mail fraudulenta recebida pela Recorrente foi proveniente do endereço de -mail verdadeiro da Sra. (...) representante do fornecedor da Recorrente, com o qual já tinha uma relação comercial há 10 anos, sendo esse o meio de comunicação usual entre as partes, como decorre dos factos provados sob os n.ºs 4 a 20 da matéria assente (em particular, o facto 19), bem como dos documentos 3, 5, 5-A, 7, 10 e 11 juntos com a PI.
22. Efetivamente, soube-se, posteriormente à transferência, que o endereço de email do fornecedor da Recorrente foi alvo de um takeover (apropriação), o que representa um crime cibernético bastante mais avançado e sofisticado do que o comum phishing.
23. Pelo que jamais poderá considerar-se que a atuação da Recorrente se subsume ao previsto no disposto no artigo 570.º do CC.
24. Por outro lado, já o Banco Recorrido, e sem prejuízo da avaliação do cumprimento das normas aplicáveis (conforme Recurso interposto), para todos os efeitos, e objetivamente, deixou que numa conta por si tutelada entrassem fundos ilícitos (produto de um crime levado a cabo pela C...) e que os mesmos fossem, também ilicitamente, transferidos de imediato para outras contas bancárias no estrangeiro.
25. Na verdade, tendo em consideração toda a atuação culposa do Banco R. no (in)cumprimento de todas as regras legais de compliance, nomeadamente no âmbito do combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, o dano sofrido pela Recorrente apenas é imputável ao Banco R. (além da C..., por outras razões).
26. O dano produzido poderia (e deveria) ter sido totalmente evitado pelo Banco R., caso o mesmo tivesse impedido a C... de movimentar os fundos indevidamente recebidos independentemente da atuação da Recorrente.
27. O Banco R. manteve, até ao momento em quedeixou queos fundos fossem transferidos para o estrangeiro, um total domínio factual sobre toda a situação, podendo (tinha meios para o efeito) e devendo (estava obrigado a evitar o resultado) ter impedido a produção final da totalidade do resultado danoso, o que, por si só, sempre afastará qualquer causalidade adequada decorrente da conduta da Recorrente.
28. Sem prejuízo do referido, para fundamentar uma isenção ou redução da indemnização a atribuir ao lesado, impõe-se que a culpa do lesado seja uma culpa grave, não se bastando uma conduta negligente.
29. Em face do referido, é evidente que a procedência da exceção da culpa do lesado, isentando ou reduzindo a indemnização peticionada, levaria a uma realidade incompreensível, já que teríamos aquele que viola normas legais (Banco R.) ou o criminoso (C...) a beneficiar da sua atividade ilícita à custa da própria vítima.
30. Efetivamente, quem atuou de forma a concorrer para a produção e agravamento do dano, a par da C..., nos termos do disposto no artigo 570.º do CC, foi o próprio Banco R., o qual deverá ser responsabilizado pelos prejuízos causados, nos termos peticionados pela Recorrente.
31. Assim, e em face de todo o exposto, deverá ser julgada totalmente improcedente a exceção da culpa do lesado invocada pelo Banco R. * O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais. * II. O tribunal a quo julgou provada a seguinte factualidade:
1) A A... é uma sociedade comercial de direito russo que tem como objecto a sintetização e processamento de polímeros, bem como a sua comercialização. 2) No âmbito da sua actividade, a A... mantém relações comerciais com a empresa B... CO. Ltd., sociedade de direito chinês, com sede na ..., ..., na China, há cerca de 10 anos, comprando-lhe produtos químicos para processamento de plásticos. 3) Assim, era usual a troca de correspondência, via e-mail, entre a A... e a D..., esta representada pela Sra. AA. 4) Em maio e julho de 2019, a A... encomendou à mencionada empresa chinesa vários produtos químicos, com o preço total de €254.124,00 (duzentos e cinquenta e quatro mil cento e vinte e quatro euros), correspondente a duas faturas: a) Factura n.º ......, de 25/07/2019, com o valor de €169.416,00; e b) Factura n.º ..., de 12/08/2019, com o valor de €84.708,00, cfr. docs. 1 e 2. 4) Para pagamento das referidas faturas, recebeu um e-mail que se afigurava ser da Sra. AA, datado de 10/09/2019, com as duas faturas em anexo e com a indicação de uma nova conta bancária para onde deveria ser feito o pagamento (cfr. doc. 3). 5) Ao referido e-mail, a A... respondeu, por e-mail de 11/09/2019, afirmando que os dados para pagamento se encontravam incorretos, nomeadamente o beneficiário indicado (doc. 4 que se junta e aqui se dá por reproduzido). 6) E, em resposta, a presumida Sra. AA, por e-mail de 12/09/2021, respondeu, enviando as faturas a pagamento com o n.º de IBAN corrigido, pedindo desculpa pelo lapso, tendo, no dia seguinte (13/09/2019), enviado também um e-mail ao Sr. EE para que lhe confirmasse os novos dados bancários (cfr. doc. 5 e doc. 5-A). 7) Por e-mail de 13/09/2021, a A..., através do Sr. BB, diz à presumida Sra. AA que em virtude de lhes terem fornecido um número de IBAN errado, o dinheiro transferido foi devolvido e que, com isso, incorreram em custos adicionais, perguntando, ainda, expressamente, se tinham uma sociedade limitada em Portugal e se, efetivamente, era para fazer a transferência para Portugal (cfr. doc. 6 e doc. 5-A). 8) Factos que foram igualmente confirmados pelo Sr. EE, por e-mail de 13/09/2021 para a presumida Sra. AA, adiantando que, com a errada transferência, tinham tido custos no valor de cerca de €1.200,00, mais lhe confirmando que o novo número de IBAN disponibilizado tinha sido aceite pelo banco da A.... 9) Ao que, a presumida Sra. AA responde, por e-mail do mesmo dia 13/09/2021, a pedir desculpa pelo erro no número do IBAN e que suportariam os custos da A... associados a esse problema, afirmando, ainda, ser essa a nova conta bancária, cfr. doc. 7. 10) Nessa sequência, a Gerente da A..., a Sra. FF, no dia 16/09/2019, efetuou, através do portal eletrónico do Banco 2..., de Moscovo, uma ordem de transferência no montante global de €254.124,00, para pagamento das referidas faturas, para a conta indicada nas mesmas, com o IBAN ..., do Banco 1..., S.A., endereçada à agência bancária sediada na Rua ..., no Porto, Portugal, cfr. doc. 8. 11) Nessa transferência, a A... indicou como beneficiário o número do IBAN suprarreferido, como pertencente a B... CO., Ltd., com sede em ..., na China (cfr. doc. 8). 12) Efectuada a referida transferência, nesse mesmo dia, 16/09/2019, o Sr. GG, responsável pela logística da A..., perguntou ao fornecedor chinês, na pessoa da Sra. AA, se já haviam enviado uma nova mercadoria, que aguardavam. 13) A Sra. AA respondeu que não haviam recebido qualquer transferência, pelo que requeria o envio dos respetivos comprovativos, tendo o Sr. GG procedido ao seu envio através de e-mail de 17/09/2019 (cfr. doc. 9). 14) Entretanto a Sra. AA por e-mail de 19/09/2019 pergunta ao Sr. GG se o banco da A... efectuou o pagamento em 17/09/2019, porquanto, até à data, ainda não o tinham recebido, solicitando a confirmação do mesmo (cfr. doc. 10). 15) E, de imediato, o Sr. GG, por e-mail de 19/09/2019 responde à Sra. AA que a sua contabilidade o informou que o dinheiro havia saído da conta da A... e que não havia sido devolvido, solicitando à Sra. AA que confirmasse com o seu banco, pois o dinheiro já deveria estar lá (cfr. doc. 11). 16) Além disso, quando a Sra. AA solicita à A... o pagamento de uma outra fatura por e-mail de 19/09/2019, por e-mail de 20/09/2019 o Sr. GG pergunta se podem utilizar os dados do banco anterior, uma vez que nunca haviam tido problema com os pagamentos, que normalmente eram executados em 1 dia e que, agora, com o novo banco, já tinha procedido ao pagamento no dia 16 e que estavam no dia 20 e o dinheiro ainda se encontrava a caminho. Desabafando que era impossível trabalhar com este novo banco (cfr. doc. 12). 17) Ao que a Sr. AA responde por e-mail do dia 20/09/2019 que nunca mudaram a informação e número da conta bancária e que não receberam, ainda, o pagamento das faturas (cfr. doc. 13). 18) Tendo-se, então, verificado, que os e-mails de 10 e 11 de setembro relativos ao envio da faturas com os novos dados bancários para pagamento não haviam sido, na verdade, enviados pela Sra. AA à A... (cfr. docs. 3, 5 e 5-A); 19) Descobriu-se, assim, no dia 20/09/2019, que a B... havia sido alvo de ataque informático (hacking) através de um acesso indevido ao seu servidor de e-mail e daí sido enviados os e-mails fraudulentos. 20) Nesse quadro, a A... contactou de imediato o Banco 2... para tentar apurar a localização dos fundos transferidos, tendo lhe sido informado que a transferência havia sido processada para uma conta bancária em Portugal, que não pertencia ao seu fornecedor chinês. 21) Deste modo, apurou-se desde logo que o IBAN indicado pela A... não correspondia ao nome e morada do beneficiário pretendido e por ela também indicado. 22) Face à situação descrita e não conseguindo cancelar a ordem de transferência efetuada, o Sr. BB, em representação da A..., no dia 22/09/2019, deslocou-se a Portugal. 23) No dia 23/09/2019 o Sr. BB dirigiu-se à agência do Banco 1... na Rua ..., no Porto, identificando-se como representante da empresa que havia procedido à transferência bancária em causa, questionando o banco em ordem a tentar perceber o sucedido e o que poderia ser feito para reverter a situação, tendo-lhe sido recusada a prestação de qualquer informação ou ajuda, tendo o Banco 1... alegado sigilo bancário. 24) Em face disso, a A... apresentou, nesse mesmo dia, queixa-crime junto da Polícia Judiciária do Porto, tendo-se constituído assistente no Proc. de Inquérito n.º ... (cfr. doc. 14), que corria termos no DIAP do Porto, e que terá sido apenso ao processo de Inquérito n.º ..., que corre termos no DIAP da Comarca de Lisboa Oeste, na 3.ª Secção de Sintra. 25) Posteriormente, em outubro de 2019, a A... viria a ser informada pelo Banco 2... que o Banco 1... permitiu que a sociedade detentora do IBAN indicado na ordem de transferência, no próprio dia em que foram rececionados os fundos, procedesse ao levantamento do dinheiro, da totalidade do valor indevidamente transferido (€254.124,00), o que foi feito mediante transferência bancária (cfr. doc. 15); 26) Tendo-se apurado que a sociedade titular do IBAN em questão é uma empresa de direito português denominada C... – Unipessoal Lda., com o NIPC ..., com sede na Rua ..., n.º ..., 2.º Esq., em Lisboa. 27) Tendo em consideração os factos descritos, verifica-se assim que apesar de o IBAN indicado pela A..., na ordem de transferência, não corresponder ao nome e morada do beneficiário por ela também indicados (B... CO., Ltd.), mas sim a uma empresa portuguesa denominada C... – Unipessoal Lda., o Banco 1..., à revelia dessas instruções, não só nada fez para impedir a errada transferência, como permitiu que, no próprio dia da sua execução, tivesse sido levantada em dinheiro toda a quantia transferida. 28) O Banco 1..., sem encetar qualquer tipo de diligência para identificação correta das partes, quer junto do banco ordenante quer junto da A..., processou a receção dos fundos na conta da sociedade comercial C..., Unipessoal, Lda., com sede em Lisboa, que nada tem a ver com o nome e morada do beneficiário indicados pela A... na ordem de transferência (cfr. doc. 8) 29) O Banco 1... permitiu que essa sociedade (C..., Unipessoal, Lda.) procedesse à transferência da totalidade do valor indevidamente transferido (€254.124,00) 30) A A... interpelou o Banco 1..., S.A., por carta datada de 28 de Outubro de 2019, recepcionada a 30/10/2019, expondo os presentes factos, requerendo uma clarificação dos mesmos, e peticionando o pagamento do valor indevidamente transferido (cfr. doc. 16). 31) Numa consulta efetuada através da internet verificou-se que, na sede da empresa C..., Unipessoal, Lda., Rua ..., n.º ..., 2.º Esq., ... Lisboa, empresa que recebeu e levantou o referido montante, estão também sediadas várias outras empresas, designadamente: - E..., Unipessoal, Lda.; F..., Unipessoal, Lda.; G..., Lda.; H..., Unipessoal, Lda.; I..., Unipessoal, Lda.; J..., Unipessoal, Lda.; K..., Unipessoal, Lda.; L..., Lda.; M..., Unipessoal, Lda.; N..., Unipessoal, Lda.; O..., Lda, tendo esta última o contacto telefónico .... 32) Apesar das diligências encetadas não foi possível conhecer qualquer actividade da empresa C..., Unipessoal, Lda, a nível nacional ou internacional. 33) A sociedade C... - UNIPESSOAL, LDA, NIPC nº ..., com sede em Rua ....; ... LISBOA, foi titular da conta de depósitos à ordem nº ..., a que correspondia o IBAN ..., no Balcão do Banco R. de ..., sito em RUA ..., ..., ... CASCAIS. 34) A qual detinha como seu representante o Sr. HH, com NIF ......, com domicilio em VIA ..., ... MILANO, ITÁLIA. 35) A A. não é cliente do Banco R. 36) O colaborador do Banco R. II, atendeu, em 23/09/2019, um cidadão estrangeiro, que se admite poderá ter sido o Sr. BB, alegando ser representante da A., que procurou informações junto do mesmo Banco, quanto a uma transferência alegadamente fraudulenta para uma conta sediada no Banco R. 37) Em face do que, então, foi alegado e suscitado por tal cidadão, o Banco R. não podia fornecer, como não forneceu, elementos quanto a contas de terceiros. 38) O que foi informado ao citado cidadão, tendo sido fornecido ao mesmo o contacto da POLÍCIA JUDICIÁRIA do PORTO. 39) No dia 30/09/2019, foi recebido no Banco R., por via da sua área de transferências, um pedido de autorização ao beneficiário da transferência, para a sua devolução. 40) A Interveniente contactada pelos serviços do Banco R. não autorizou a devolução da mesma. 41) Pôde ser apurado, no seguimento de tal reclamação, que a predita conta de depósitos à ordem da Interveniente, nº ..., a que correspondia o IBAN ..., havia sido creditada no dia 16/09/2019, pelo valor de €254.124,00, via ..., .... 42) Os fundos creditados na referida conta, em 16/12/2019, foram movimentados a débito pela respetiva titular, não por via de levantamentos em numerário, mas sim, através de várias transferências internacionais, sendo que no dia 17/09/2019 foram debitados fundos no montante de €125.000,00 por via da emissão de 3 transferências para a conta .... 43) E ainda, no mesmo dia, o montante de €115.000,00, por via da emissão de outras 3 transferências para a conta ..., sediadas em Espanha. - cf. doc. nº 1. 44) Tendo, mais tarde, em 11/11/2019, a própria Interveniente promovido o encerramento da citada conta e o levantamento dos fundos remanescentes, em causa. - €4.417,82. 45) O Banco R. deu resposta à exposição dos Ilustres mandatários da mesma A. o que fez por carta de 13/12/2029. – cf. doc. nº 2. * E deu como não provados os seguintes factos:
a) O Banco 1... permitiu que essa sociedade (C..., Unipessoal, Lda.), no próprio dia em que foram rececionados os fundos, procedesse ao levantamento, em dinheiro, da totalidade do valor indevidamente transferido (€254.124,00) b) A carta referida em 30) não obteve qualquer resposta. * III.
É consabido que resulta dos art.635.º, n.ºs 3 a 5 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, que o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das respetivas alegações[3], sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, igualmente da ampliação do recurso apresentada pelo R. Banco, caberá apreciar as seguintes questões:
a. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
a.1 - Pela Autora apelante
Facto que se pretende não provado:
- facto constante do ponto 40 dos factos provados.
Factos que se pretendem selecionados e dados como provados:
“32-A) Na documentação de abertura de conta da C... encontra-se em falta a declaração de beneficiário efetivo”. “32-B) O Gerente da C... é um cidadão de nacionalidade italiana sem residência em Portugal”. “32-C) Na conta da C... foi recebido inicialmente, em 22/03/2019, o montante de € 400,00, como “pagamento de serviços”, e, depois de várias compras eletrónicas, em 06/05/2019 a conta apresentava um saldo de € 7,82”. “32-D) Em 23/05/2019 através de “ordem de pagamento recebida” é creditado na conta da C... o montante de € 48.332,50, e, no dia seguinte, dia 24/05/2019, são efetuadas duas “transferências a débito”, uma de € 27.930,00 e outra de € 19.687,50, ficando a conta da C... com um saldo de € 693,18”. “32-E)No dia 27/05/2019 através de “ordem de pagamento recebida” é creditado na conta da C... o montante de € 26.243,00, e, no dia seguinte, dia 28/05/2019, é efetuada uma “transferência a débito” no valor de € 25.855,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 930,38”. 32-F) No dia 30/05/2019 é efetuada uma “transferência a crédito” para a conta da C... no montante de € 3.849,15 e duas “ordens de pagamento recebidas”, sendo creditado na conta da C... os montantes de € 8.100,00 e de € 20.081,25, e, no dia seguinte, dia 31/05/2019 são efetuadas três “transferências a débito”, uma de € 7.980,00, outra de € 19.687,50 e outra de € 500,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 5.115,88”. “32-G) No dia 05/06/2019 através de uma “ordem de pagamento recebida” é creditado na conta da C... o montante de € 18.905,39, e, no mesmo dia, dia 05/06/2019, é efetuada uma “transferência a débito” no montante de € 18.626,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 5.395,27”. “32-H) No dia 12/06/2019 é efetuada uma “transferência a débito” no montante de € 5.200,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 60,97”. “32-I) Em 05/07/2019 o saldo da conta da C... é de € 0,00”. “32-J) No dia 16/09/2019 através de uma “ordem de pagamento recebida” (transferência em questão nos presentes autos) é creditado na conta da C... o montante de € 254.124,00.” “32-K) No dia 17/09/2019, através de “transferência a crédito” é creditado na conta da C... o montante de € 82.900,00.” “32-L) No dia 17/09/2019, a C... efetuou seis “transferências a débito”, uma de € 45.900,00, outra de € 44.300,00, outra de € 34.800,00, outra de € 41.200,00, outra de € 31.500,00 e outra de € 42.300,00, todas elas com pagamento de taxa de urgência, e tendo como destinatários dois IBANs espanhóis.” “32-M) No dia 18/09/2019, a C... efetuou três “transferências a débito”, uma de € 38.950,00, outra de € 41.050,00, e outra de € 10.000,00, tendo como destinatários dois IBANs húngaros, ficando a conta da C... com um saldo de € 6.894,74”. “32-N) No dia 20/09/2019 a C... efetuou uma “transferência a débito”, no montante de € 1.950,00, para um IBAN búlgaro, ficando a conta da C... com um saldo de € 4.944,74”. “32-O) Todas as transferências descritas no extrato de conta da C... têm como proveniência e destino contas bancárias fora de Portugal”.
Facto que se pretende rectificado:
Rectificação de lapso material no facto constante do ponto 42: onde se lê “16/12/2019”, deverá ler-se “16/09/2019”. * a.2 - Pelo Réu apelado, deduzindo ampliação subsidiária nos termos do art.636.º, n.º2, do CPC
Facto que se pretende não provado:
- facto constante do ponto 29 dos factos provados.
Facto provado que se pretende alterado:
- facto contante do ponto 40 dos provados e por forma a que passe a ter a redacção - «O Banco R. tentou contactar a INTERVENIENTE, a fim de autorizar a devolução da transferência, o que não conseguiu”.
Facto que se pretende rectificado:
Rectificação de lapso material no facto constante do ponto 42: onde se lê “16/12/2019”, deverá ler-se “16/09/2019”. * a.3. Reformulação oficiosa do facto assente sob o ponto 27 e por forma a que se compatibilize com os factos assentes sob os ponto 42 e 43. ** ** a. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Acompanhando o que se afirmou no acórdão da Relação do Porto de 5.12.24 e proferido no processo 245/22.2T8PRD-C.P1[4], diremos:
«O presente recurso versa sobre o sentido da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida. Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil. De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1º instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante. Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro dever de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas. Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer oficiosamente, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova. Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta. Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334). A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art. ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC. O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172). Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt). A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento. Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: .- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a); .- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida (alínea b); .- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c). Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida. O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341). Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de rejeição do próprio recurso. Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt). Sublinhe-se, ainda, que com a impugnação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância pretende-se, passe a redundância, alterar o julgamento feito quanto aos factos que, por via da impugnação, se reputam mal julgados. Isto, contudo, não como fim em si mesmo, mas como meio ou instrumento de, mediante a alteração do julgamento dos factos impugnados, se poder concluir que - afinal - existe o direito que em 1.ª instância não foi reconhecido ou, pelo contrário, que não existe o direito que o foi; o mesmo é dizer, como meio de provocar um diverso enquadramento jurídico dos factos do levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, obter uma decisão diversa da nele proferida quanto ao fundo da causa. A impugnação da decisão da matéria de facto tem, por conseguinte, como referido no Acórdão da Relação de Guimarães de 15-12-2016, “carácter instrumental”, “não se justifica(ndo) a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo um carácter instrumental face à mesma” (Acórdão proferido no processo n.º 86/14.0T8AMR.G1, disponível na internet, no local já antes citado). O seu fim último é, assim, como também referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2012, naquele citado, “conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada”, não com esse único intuito, mas sim “de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante”. Por este motivo, o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que, como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 27-05-2014, também citado naqueloutro, “o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (sublinhado nosso).»
A benefício da decisão que se impõe, importa também afirmar o seguinte, transcrevendo o escrito no Ac. da Relação de Guimarães de 2.11.27[5]:
«(…) o âmbito de apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Importa, porém, não esquecer - porque (como se referiu supra) se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609). * Vejamos então por estar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto em condições legais de ser apreciado.
Facto que se pretende rectificado:
Começando por aspecto consensual, qual seja: rectificação de lapso material no facto constante do ponto 42: onde se lê “16/12/2019”, deverá ler-se “16/09/2019”.
Trata-se, em rigor, de mera correcção de lapso que não de verdadeira impugnação.
Há consenso quanto a isso e, de facto, trata-se de lapso.
O ponto 42 dos factos provados passará a ter a seguinte redacção:
«Os fundos creditados na referida conta, em 16/09/2019, foram movimentados a débito pela respetiva titular, não por via de levantamentos em numerário, mas sim, através de várias transferências internacionais, sendo que no dia 17/09/2019 foram debitados fundos no montante de €125.000,00 por via da emissão de 3 transferências para a conta ....» * Factos que impõe a apreciação conjunta da pretensão da A e R.
Pretende a A. que o facto constante do ponto 40 dos factos provados seja remetido para os não provados.
Já o banco R. pretende a sua alteração, passando a ter a seguinte redacção: «O Banco R. tentou contactar a INTERVENIENTE, a fim de autorizar a devolução da transferência, o que não conseguiu”.
«A propósito deste facto o tribunal a quo motiva nos seguintes termos: Bancária no R. há 15 anos. Era gestora de conta da Interveniente C.... Receberam o pedido de devolução da transferência e tentaram contactar com a C... o que não conseguiram. Apenas podiam fazer a devolução de fundos com autorização cliente ou decisão judicial.»
Do depoimento de CC e DD, pessoas ligadas profissionalmente ao R., nas passagens indicadas pela A., resulta que foi tentado o contacto da beneficiária da transferência, a interveniente, não se tendo logrado o mesmo.
Incontornável que o facto deve continuar no acervo dos provados mas com distinta formatação, ou seja, a pretendida pelo R.
Fica assim provado que sob o ponto 40 que: «O Banco R. tentou contactar a INTERVENIENTE, a fim de autorizar a devolução da transferência, o que não conseguiu». * a.1 - Pela Autora apelante
Factos que se pretendem selecionados e dados como provados.
Pretende a A. que sejam relevados e considerados provados o seguintes facto:
“32-A) Na documentação de abertura de conta da C... encontra-se em falta a declaração de beneficiário efetivo”. “32-B) O Gerente da C... é um cidadão de nacionalidade italiana sem residência em Portugal”. “32-C) Na conta da C... foi recebido inicialmente, em 22/03/2019, o montante de € 400,00, como “pagamento de serviços”, e, depois de várias compras eletrónicas, em 06/05/2019 a conta apresentava um saldo de € 7,82”. “32-D) Em 23/05/2019 através de “ordem de pagamento recebida” é creditado na conta da C... o montante de € 48.332,50, e, no dia seguinte, dia 24/05/2019, são efetuadas duas “transferências a débito”, uma de € 27.930,00 e outra de € 19.687,50, ficando a conta da C... com um saldo de € 693,18”. “32-E)No dia 27/05/2019 através de “ordem de pagamento recebida” é creditado na conta da C... o montante de € 26.243,00, e, no dia seguinte, dia 28/05/2019, é efetuada uma “transferência a débito” no valor de € 25.855,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 930,38”. 32-F) No dia 30/05/2019 é efetuada uma “transferência a crédito” para a conta da C... no montante de € 3.849,15 e duas “ordens de pagamento recebidas”, sendo creditado na conta da C... os montantes de € 8.100,00 e de € 20.081,25, e, no dia seguinte, dia 31/05/2019 são efetuadas três “transferências a débito”, uma de € 7.980,00, outra de € 19.687,50 e outra de € 500,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 5.115,88”. “32-G) No dia 05/06/2019 através de uma “ordem de pagamento recebida” é creditado na conta da C... o montante de € 18.905,39, e, no mesmo dia, dia 05/06/2019, é efetuada uma “transferência a débito” no montante de € 18.626,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 5.395,27”. “32-H) No dia 12/06/2019 é efetuada uma “transferência a débito” no montante de € 5.200,00, ficando a conta da C... com um saldo de € 60,97”. “32-I) Em 05/07/2019 o saldo da conta da C... é de € 0,00”. “32-J) No dia 16/09/2019 através de uma “ordem de pagamento recebida” (transferência em questão nos presentes autos) é creditado na conta da C... o montante de € 254.124,00.” “32-K) No dia 17/09/2019, através de “transferência a crédito” é creditado na conta da C... o montante de € 82.900,00.” “32-L) No dia 17/09/2019, a C... efetuou seis “transferências a débito”, uma de € 45.900,00, outra de € 44.300,00, outra de € 34.800,00, outra de € 41.200,00, outra de € 31.500,00 e outra de € 42.300,00, todas elas com pagamento de taxa de urgência, e tendo como destinatários dois IBANs espanhóis.” “32-M) No dia 18/09/2019, a C... efetuou três “transferências a débito”, uma de € 38.950,00, outra de € 41.050,00, e outra de € 10.000,00, tendo como destinatários dois IBANs húngaros, ficando a conta da C... com um saldo de € 6.894,74”. “32-N) No dia 20/09/2019 a C... efetuou uma “transferência a débito”, no montante de € 1.950,00, para um IBAN búlgaro, ficando a conta da C... com um saldo de € 4.944,74”. “32-O) Todas as transferências descritas no extrato de conta da C... têm como proveniência e destino contas bancárias fora de Portugal”.
Estes factos aportaram ao processo por constarem de documentos juntos pelo R. aos autos no dia 6.11.23, na sequência de notificação para o efeito requerida pela A na p.i: junção de toda a documentação legal relativa à abertura de conta da C... e da sua movimentação.
Resulta da p.i. e do requerimento de 17.11.23 produzido pela A. que o interesse que vê nesta factualidade liga-se com o seu interesse em provar a inobservância de vários deveres constantes da Lei 83/2017, de 18.08, ou seja, Lei que estabelece medidas de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.
Pretende-se encontrar nesta lei arrimo legal para que se conclua pela comportamento ilícito do R, por conseguinte, encontrando nela a norma destinada a proteger interesses alheios a que alude o n.º1, do art. 483.º do CC.
Veremos que a citada Lei não serve o propósito pretendido, pois que, destinando-se a mesma a proteger interesse gerais ou colectivos, só muito reflexamente, no que concerne ao branqueamento de capitais, protege direitos individuais.
Não a lemos, pois, como norma de protecção nos termos e para o efeitos do referido segmento do art. 483., n.º 1, do CC[7]/[8].
Mas que utilidade tem esta «antecipação» do que se decidirá infra para a decisão quanto à selecção dos factos em causa?
Encontramo-la no que atrás se disse.
Com «[a] impugnação da decisão da matéria de facto proferida em 1.ª instância pretende-se, passe a redundância, alterar o julgamento feito quanto aos factos que, por via da impugnação, se reputam mal julgados.
Isto, contudo, não como fim em si mesmo, mas como meio ou instrumento de, mediante a alteração do julgamento dos factos impugnados, se poder concluir que - afinal - existe o direito que em 1.ª instância não foi reconhecido ou, pelo contrário, que não existe o direito que o foi; o mesmo é dizer, como meio de provocar um diverso enquadramento jurídico dos factos do levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, obter uma decisão diversa da nele proferida quanto ao fundo da causa. A impugnação da decisão da matéria de facto tem, por conseguinte (….) “carácter instrumental”, “não se justifica(ndo) a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo um carácter instrumental face à mesma”.
(…)
O seu fim último é (…) “conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada”, não com esse único intuito, mas sim “de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante”.
Por este motivo, o tribunal de recurso não deve conhecer a impugnação da matéria de facto sempre que (…) “o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.”
Por conseguinte pretendendo-se a selecção de factos através do quais se pretenda imputar ao banco a violação de disposições de uma lei da qual não decorre nenhuma «norma» de protecção que seja arrimo para que se conclua pela ilicitude do respectivo comportamento ao abrigo do art.483.º, n,º1, do CC, temos por absolutamente desnecessário, ante a função instrumental da impugnação da matéria de facto, a consideração dos dados enumerados pela A. sob os pontos 32-A a 32-O.
Em face do exposto, improcede o recurso neste segmento. * a.2 - Pelo Réu apelado, deduzindo ampliação subsidiária nos termos do art.636.º do CPC
Factos que se pretendem não provado:
- facto constante do ponto 29 dos factos provados.
«Tem o seguinte teor o facto em crise: «O Banco 1... permitiu que essa sociedade (C..., Unipessoal, Lda.) procedesse à transferência da totalidade do valor indevidamente transferido (€254.124,00).»
Pretende o R. que este facto constante dos assentes seja retirado desse elenco, argumentando com a sua natureza conclusiva e, outrossim, por ser contrário ao factos constantes do pontos 41 a 45 dos assentes.
Já a A. pugna pela sua manutenção nos factos assentes, alegando que ««dizer-se que o “Banco permitiu” é o mesmo que referir que o Banco “nada fez para se opor”, locuções que exprimem factos objetivos pois o certo é que a C... procedeu à transferência da totalidade dos fundos indevidamente transferidos através da infraestrutura disponibilizada pelo Banco Recorrido.»»
A propósito do relevo da distinção do que seja facto, direito, conclusão importa considerar que a nova filosofia adoptada pelo CPC de 2013 implica uma nova abordagem a propósito desta velha problemática.
Convocando a «autoridade» de Abrantes Geraldes, diremos com ele:
«[o] modelo processual que passou a vigorar com o CPC de 2013, o qual, apostando no julgamento simultâneo da matéria de facto e da matéria de direito, deve levar necessariamente a que se moderem os juízos que, posto que excessivos em alguns casos, ainda encontravam algum arrimo na norma do nº 4 do art. 646º do CPC de 1961.
Este preceito (que, aliás, respeitava à distinção entre o julgamento da matéria de facto feito pelo coletivo e o julgamento da matéria de direito a cargo do respetivo presidente) já não consta do atual CPC a que é agora estranha a existência de um tribunal coletivo.
Verifica-se ainda que, depois de ainda no âmbito do anterior CPC ter sido abolido o “questionário!, peça que substituída pela “base instrutória”, e de, em face do atual CPC, a instrução relativa à matéria de facto controvertida ser feita em torno de “temas de prova”, é tempo de repensar o assunto e extrair do novo modelo processual outras soluções que deixem de lado os excessos formalistas em que anteriormente eram pródigos alguns arestos dos tribunais, por assentarem numa delimitação pretensamente objetiva, ainda que muitas vezes artificial, do que constituía matéria de facto e matéria de direito.
(…)
Para além de tudo quanto se possa dizer sobre a delimitação do que é matéria de facto e matéria de direito (questão dilemática que tem sido profusamente tratada em numerosos arestos e obras doutrinárias), com reflexos na elaboração da sentença, importa que, agora, com base na norma do art. 607º do CPC, se faça um certo aggiornamento do que pode ou não figurar como “matéria de facto”.
Para o efeito pode servir de guião o pertinente comentário de Teixeira de Sousa, em https//blogippc.blospot.pt, à margem do Ac. do STJ 28-9-17 (809/10), num caso de responsabilidade civil, mas que se revela da maior pertinência para o caso presente e do qual se extratou o seguinte:
“Sob pena de se cair num inaceitável formalismo, não pode constituir motivo de censura que o tribunal, depois de considerar provados determinados factos que consubstanciam a violação de deveres de cuidado, conclua que está demonstrada a negligência da parte. Estranho seria, aliás, que, constando dos temas da prova a atuação negligente da parte e, por isso, carecendo esta atuação de prova, o tribunal, ao analisar a prova produzida sobre esse tema, pudesse dizer tudo o que achasse adequado ao julgamento dessa matéria, exceto que está provada a negligência da parte.
(…)
A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve).»
(…) A mesma temática que ganhou relevo com a aprovação do NCPC, com a não integração do nº 4 do art. 646º do anterior CPC e com a opção pela integração na mesma peça processual (sentença) da decisão da matéria de facto e da matéria de direito, já fora abordada pelo ora relator em Recursos no NCPC, 4ª ed., no Apêndice intitulado “Sentença Cível”. Aí se expressou a ideia de que se tornava necessário modificar a metodologia no que concerne à elaboração da sentença e especificamente em relação ao que deveria considerar-se matéria de facto e matéria de direito, em termos que o seguinte extrato revela:
“A separação entre o que constitui matéria de facto e o que integra matéria de direito é questão que percorre toda a instância processual, desde os articulados, passando pela sentença, até aos recursos, maxime ao recurso de revista.
Mas pese embora o relevo que essa delimitação apresenta, jamais se conseguiu ou conseguirá a enunciação de um critério universal que responda a todas as questões suscitadas. Continuando a lei a prever tal delimitação, os respetivos contornos poderão sofrer variações em função das concretas circunstâncias, designadamente em razão do verdadeiro objeto do processo, de tal modo que uma mesma proposição pode assumir, num determinado contexto, uma questão de facto e, noutro contexto, uma questão de direito.
Posto que o julgamento da matéria de facto não deva confundir-se com o julgamento da matéria de direito, a manutenção, a todo o custo, de uma linha de separação revela-se frequentemente artificial e prejudicial à justa resolução da lide, sendo, por isso, admissível e desejável uma maior concentração da factualidade considerada provada, ainda que com auxílio de formulações de pendor mais genérico, mas que permitam uma correta e inteligível compreensão da realidade que o Tribunal conseguiu isolar». [9]/[10]
Resulta do exposto, pois, que estão actualmente muito mitigadas as soluções rigoristas que vigoram até 2013 no relevo a dar à distinção de que vimos de referir, podendo assim dizer-se que aceita-se hoje que alguns «factos» tenham contornos menos definidos, assim os aproximando de conclusões.[11]
Será o caso do facto em crise.
Na verdade, o facto em crise releva de um relevante juízo de valor que, não obstante assente, por si só, não será decisivo para o destino da acção.
Tal juízo há de ser relevado no confronto como o regime jurídico à luz do qual se procurará perscrutar se o comportamento do R. foi contrário aos deveres que lhe impunham actuação diversa.
Nessa linha refere Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, que «(…) podemos antecipar que a inclusão daquelas expressões numa ou noutra das categorias dependerá fundamentalmente do objecto da acção. Se este, no todo ou em parte, estiver precisamente dependente do significado real daquelas expressões, tem de considerar-se que estamos perante matéria de direito, pois o significado a atribuir-lhes será determinante para o desfecho da causa. Se, pelo contrário, o objecto da acão não estiver directamente associado ao significado a conferir a certas afirmações das partes, as expressões assim utilizadas (…) poderão ser tomadas como matéria de facto (…)»[12]
Impõe-se, pois, relevar o ponto em crise como facto.
Todavia, cremos estarmos legalmente autorizados[13], dentro do perímetro do alegado[14] e do que resulta provado, concretizar um pouco mais o aspecto em causa, relacionando-o e articulando-o com um outro ponto que atrás se conformou de forma distinta ao que estava assente: 40 - «O Banco R. tentou contactar a INTERVENIENTE, a fim de autorizar a devolução da transferência, o que não conseguiu».
Desta sorte decide-se altera o teor do facto 29 dos assentes nos seguintes termos:
«Sem prejuízo do que consta no ponto 40, o Banco 1... não fez qualquer outra diligência que impedisse a sociedade C..., Unipessoal, Lda. de proceder à transferência da totalidade do valor transferido (€254.124,00).»
Pelo exposto, improcede nesta parte o recurso do banco R. * a.3. Reformulação oficiosa do facto assente sob o ponto 27 e por forma a que se compatibilize com os factos assentes sob os ponto 42 e 43.
Um último aspecto relativa à matéria de facto prende-se como a formulação do facto constante do ponto 27 dos assentes.
Tem o seguinte teor tal facto: «27) Tendo em consideração os factos descritos, verifica-se assim que apesar de o IBAN indicado pela A..., na ordem de transferência, não corresponder ao nome e morada do beneficiário por ela também indicados (B... CO., Ltd.), mas sim a uma empresa portuguesa denominada C... – Unipessoal Lda., o Banco 1..., à revelia dessas instruções, não só nada fez para impedir a errada transferência, como permitiu que, no próprio dia da sua execução, tivesse sido levantada em dinheiro toda a quantia transferida.»
Este facto está em parte em oposição com o que está assente sob o ponto 42 e 43:
«42) Os fundos creditados na referida conta, em 16/12/2019, foram movimentados a débito pela respetiva titular, não por via de levantamentos em numerário, mas sim, através de várias transferências internacionais, sendo que no dia 17/09/2019 foram debitados fundos no montante de €125.000,00 por via da emissão de 3 transferências para a conta .... 43) E ainda, no mesmo dia, o montante de €115.000,00, por via da emissão de outras 3 transferências para a conta ..., sediadas em Espanha. - cf. doc. nº 1.»
Importa, pois, reformular aquele facto para ser compatibilizado com estes nos seguintes termos:
«27) Tendo em consideração os factos descritos, verifica-se assim que apesar de o IBAN indicado pela A..., na ordem de transferência, não corresponde ao nome e morada do beneficiário por ela também indicados (B... CO., Ltd.), mas sim a uma empresa portuguesa denominada C... – Unipessoal Lda., o Banco 1..., à revelia dessas instruções, não só nada fez para impedir a errada transferência, como permitiu que, no próprio dia da sua execução, a quantia transferida tivesse sido transferida conforme consta do ponto 42) e 43).» ** Decidido como se decidiu é a seguinte a matéria de facto a relevar no enquadramento que se fará, assim ajuizando do rigor da decisão posta em crise[15]:
1) A A... é uma sociedade comercial de direito russo que tem como objecto a sintetização e processamento de polímeros, bem como a sua comercialização. 2) No âmbito da sua actividade, a A... mantém relações comerciais com a empresa B... CO. Ltd., sociedade de direito chinês, com sede na ..., ..., na China, há cerca de 10 anos, comprando-lhe produtos químicos para processamento de plásticos. 3) Assim, era usual a troca de correspondência, via e-mail, entre a A... e a D..., esta representada pela Sra. AA. 4) Em maio e julho de 2019, a A... encomendou à mencionada empresa chinesa vários produtos químicos, com o preço total de €254.124,00 (duzentos e cinquenta e quatro mil cento e vinte e quatro euros), correspondente a duas faturas: a) Factura n.º ......, de 25/07/2019, com o valor de €169.416,00; e b) Factura n.º ..., de 12/08/2019, com o valor de €84.708,00, cfr. docs. 1 e 2. 4) Para pagamento das referidas faturas, recebeu um e-mail que se afigurava ser da Sra. AA, datado de 10/09/2019, com as duas faturas em anexo e com a indicação de uma nova conta bancária para onde deveria ser feito o pagamento (cfr. doc. 3). 5) Ao referido e-mail, a A... respondeu, por e-mail de 11/09/2019, afirmando que os dados para pagamento se encontravam incorretos, nomeadamente o beneficiário indicado (doc. 4 que se junta e aqui se dá por reproduzido). 6) E, em resposta, a presumida Sra. AA, por e-mail de 12/09/2021, respondeu, enviando as faturas a pagamento com o n.º de IBAN corrigido, pedindo desculpa pelo lapso, tendo, no dia seguinte (13/09/2019), enviado também um e-mail ao Sr. EE para que lhe confirmasse os novos dados bancários (cfr. doc. 5 e doc. 5-A). 7) Por e-mail de 13/09/2021, a A..., através do Sr. BB, diz à presumida Sra. AA que em virtude de lhes terem fornecido um número de IBAN errado, o dinheiro transferido foi devolvido e que, com isso, incorreram em custos adicionais, perguntando, ainda, expressamente, se tinham uma sociedade limitada em Portugal e se, efetivamente, era para fazer a transferência para Portugal (cfr. doc. 6 e doc. 5-A). 8) Factos que foram igualmente confirmados pelo Sr. EE, por e-mail de 13/09/2021 para a presumida Sra. AA, adiantando que, com a errada transferência, tinham tido custos no valor de cerca de €1.200,00, mais lhe confirmando que o novo número de IBAN disponibilizado tinha sido aceite pelo banco da A.... 9) Ao que, a presumida Sra. AA responde, por e-mail do mesmo dia 13/09/2021, a pedir desculpa pelo erro no número do IBAN e que suportariam os custos da A... associados a esse problema, afirmando, ainda, ser essa a nova conta bancária, cfr. doc. 7. 10) Nessa sequência, a Gerente da A..., a Sra. FF, no dia 16/09/2019, efetuou, através do portal eletrónico do Banco 2..., de Moscovo, uma ordem de transferência no montante global de €254.124,00, para pagamento das referidas faturas, para a conta indicada nas mesmas, com o IBAN ..., do Banco 1..., S.A., endereçada à agência bancária sediada na Rua ..., no Porto, Portugal, cfr. doc. 8. 11) Nessa transferência, a A... indicou como beneficiário o número do IBAN suprarreferido, como pertencente a B... CO., Ltd., com sede em ..., na China (cfr. doc. 8). 12) Efectuada a referida transferência, nesse mesmo dia, 16/09/2019, o Sr. GG, responsável pela logística da A..., perguntou ao fornecedor chinês, na pessoa da Sra. AA, se já haviam enviado uma nova mercadoria, que aguardavam. 13) A Sra. AA respondeu que não haviam recebido qualquer transferência, pelo que requeria o envio dos respetivos comprovativos, tendo o Sr. GG procedido ao seu envio através de e-mail de 17/09/2019 (cfr. doc. 9). 14) Entretanto a Sra. AA por e-mail de 19/09/2019 pergunta ao Sr. GG se o banco da A... efectuou o pagamento em 17/09/2019, porquanto, até à data, ainda não o tinham recebido, solicitando a confirmação do mesmo (cfr. doc. 10). 15) E, de imediato, o Sr. GG, por e-mail de 19/09/2019 responde à Sra. AA que a sua contabilidade o informou que o dinheiro havia saído da conta da A... e que não havia sido devolvido, solicitando à Sra. AA que confirmasse com o seu banco, pois o dinheiro já deveria estar lá (cfr. doc. 11). 16) Além disso, quando a Sra. AA solicita à A... o pagamento de uma outra fatura por e-mail de 19/09/2019, por e-mail de 20/09/2019 o Sr. GG pergunta se podem utilizar os dados do banco anterior, uma vez que nunca haviam tido problema com os pagamentos, que normalmente eram executados em 1 dia e que, agora, com o novo banco, já tinha procedido ao pagamento no dia 16 e que estavam no dia 20 e o dinheiro ainda se encontrava a caminho. Desabafando que era impossível trabalhar com este novo banco (cfr. doc. 12). 17) Ao que a Sr. AA responde por e-mail do dia 20/09/2019 que nunca mudaram a informação e número da conta bancária e que não receberam, ainda, o pagamento das faturas (cfr. doc. 13). 18) Tendo-se, então, verificado, que os e-mails de 10 e 11 de setembro relativos ao envio da faturas com os novos dados bancários para pagamento não haviam sido, na verdade, enviados pela Sra. AA à A... (cfr. docs. 3, 5 e 5-A); 19) Descobriu-se, assim, no dia 20/09/2019, que a B... havia sido alvo de ataque informático (hacking) através de um acesso indevido ao seu servidor de e-mail e daí sido enviados os e-mails fraudulentos. 20) Nesse quadro, a A... contactou de imediato o Banco 2... para tentar apurar a localização dos fundos transferidos, tendo lhe sido informado que a transferência havia sido processada para uma conta bancária em Portugal, que não pertencia ao seu fornecedor chinês. 21) Deste modo, apurou-se desde logo que o IBAN indicado pela A... não correspondia ao nome e morada do beneficiário pretendido e por ela também indicado. 22) Face à situação descrita e não conseguindo cancelar a ordem de transferência efetuada, o Sr. BB, em representação da A..., no dia 22/09/2019, deslocou-se a Portugal. 23) No dia 23/09/2019 o Sr. BB dirigiu-se à agência do Banco 1... na Rua ..., no Porto, identificando-se como representante da empresa que havia procedido à transferência bancária em causa, questionando o banco em ordem a tentar perceber o sucedido e o que poderia ser feito para reverter a situação, tendo-lhe sido recusada a prestação de qualquer informação ou ajuda, tendo o Banco 1... alegado sigilo bancário. 24) Em face disso, a A... apresentou, nesse mesmo dia, queixa-crime junto da Polícia Judiciária do Porto, tendo-se constituído assistente no Proc. de Inquérito n.º ... (cfr. doc. 14), que corria termos no DIAP do Porto, e que terá sido apenso ao processo de Inquérito n.º ..., que corre termos no DIAP da Comarca de Lisboa Oeste, na 3.ª Secção de Sintra. 25) Posteriormente, em outubro de 2019, a A... viria a ser informada pelo Banco 2... que o Banco 1... permitiu que a sociedade detentora do IBAN indicado na ordem de transferência, no próprio dia em que foram rececionados os fundos, procedesse ao levantamento do dinheiro, da totalidade do valor indevidamente transferido (€254.124,00), o que foi feito mediante transferência bancária (cfr. doc. 15); 26) Tendo-se apurado que a sociedade titular do IBAN em questão é uma empresa de direito português denominada C... – Unipessoal Lda., com o NIPC ..., com sede na Rua ..., n.º ..., 2.º Esq., em Lisboa. 27) Tendo em consideração os factos descritos, verifica-se assim que apesar de o IBAN indicado pela A..., na ordem de transferência, não corresponde ao nome e morada do beneficiário por ela também indicados (B... CO., Ltd.), mas sim a uma empresa portuguesa denominada C... – Unipessoal Lda., o Banco 1..., à revelia dessas instruções, não só nada fez para impedir a errada transferência, como permitiu que, no próprio dia da sua execução, a quantia transferida tivesse sido transferida conforme consta do ponto 42) e 43). 28) O Banco 1..., sem encetar qualquer tipo de diligência para identificação correta das partes, quer junto do banco ordenante quer junto da A..., processou a receção dos fundos na conta da sociedade comercial C..., Unipessoal, Lda., com sede em Lisboa, que nada tem a ver com o nome e morada do beneficiário indicados pela A... na ordem de transferência (cfr. doc. 8) 29) Sem prejuízo do que consta no ponto 40, o Banco 1... não fez qualquer outra diligência que impedisse a sociedade C..., Unipessoal, Lda. de proceder à transferência da totalidade do valor transferido (€254.124,00). 30) A A... interpelou o Banco 1..., S.A., por carta datada de 28 de Outubro de 2019, recepcionada a 30/10/2019, expondo os presentes factos, requerendo uma clarificação dos mesmos, e peticionando o pagamento do valor indevidamente transferido (cfr. doc. 16). 31) Numa consulta efetuada através da internet verificou-se que, na sede da empresa C..., Unipessoal, Lda., Rua ..., n.º ..., 2.º Esq., ... Lisboa, empresa que recebeu e levantou o referido montante, estão também sediadas várias outras empresas, designadamente: - E..., Unipessoal, Lda.; F..., Unipessoal, Lda.; G..., Lda.; H..., Unipessoal, Lda.; I..., Unipessoal, Lda.; J..., Unipessoal, Lda.; K..., Unipessoal, Lda.; L..., Lda.; M..., Unipessoal, Lda.; N..., Unipessoal, Lda.; O..., Lda, tendo esta última o contacto telefónico .... 32) Apesar das diligências encetadas não foi possível conhecer qualquer actividade da empresa C..., Unipessoal, Lda, a nível nacional ou internacional. 33) A sociedade C... - UNIPESSOAL, LDA, NIPC nº ..., com sede em Rua ....; ... LISBOA, foi titular da conta de depósitos à ordem nº ..., a que correspondia o IBAN ..., no Balcão do Banco R. de ..., sito em RUA ..., ..., ... CASCAIS. 34) A qual detinha como seu representante o Sr. HH, com NIF ......, com domicilio em VIA ..., ... MILANO, ITÁLIA. 35) A A. não é cliente do Banco R. 36) O colaborador do Banco R. II, atendeu, em 23/09/2019, um cidadão estrangeiro, que se admite poderá ter sido o Sr. BB, alegando ser representante da A., que procurou informações junto do mesmo Banco, quanto a uma transferência alegadamente fraudulenta para uma conta sediada no Banco R. 37) Em face do que, então, foi alegado e suscitado por tal cidadão, o Banco R. não podia fornecer, como não forneceu, elementos quanto a contas de terceiros. 38) O que foi informado ao citado cidadão, tendo sido fornecido ao mesmo o contacto da POLÍCIA JUDICIÁRIA do PORTO. 39) No dia 30/09/2019, foi recebido no Banco R., por via da sua área de transferências, um pedido de autorização ao beneficiário da transferência, para a sua devolução. 40) O Banco R. tentou contactar a INTERVENIENTE, a fim de autorizar a devolução da transferência, o que não conseguiu. 41) Pôde ser apurado, no seguimento de tal reclamação, que a predita conta de depósitos à ordem da Interveniente, nº ..., a que correspondia o IBAN ..., havia sido creditada no dia 16/09/2019, pelo valor de €254.124,00, via ..., .... 42) Os fundos creditados na referida conta, em 16/09/2019, foram movimentados a débito pela respetiva titular, não por via de levantamentos em numerário, mas sim, através de várias transferências internacionais, sendo que no dia 17/09/2019 foram debitados fundos no montante de €125.000,00 por via da emissão de 3 transferências para a conta .... 43) E ainda, no mesmo dia, o montante de €115.000,00, por via da emissão de outras 3 transferências para a conta ..., sediadas em Espanha. - cf. doc. nº 1. 44) Tendo, mais tarde, em 11/11/2019, a própria Interveniente promovido o encerramento da citada conta e o levantamento dos fundos remanescentes, em causa. - €4.417,82. 45) O Banco R. deu resposta à exposição dos Ilustres mandatários da mesma A. o que fez por carta de 13/12/2029. – cf. doc. nº 2. ** Inscreve a A. a tutela da sua pretensão no quadro da responsabilidade civil extracontratual – art.483.º do CC – do Banco R.. Para o efeito convoca, na articulação com este instituto, as normas de prevenção de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, em concreto aquelas donde emerjam deveres para os bancos de controlo, de identificação e diligência, de abstenção de recusa (cf. artigos 11.º a 50.º da Lei n.º 83/2017), assim procurando encontrar nelas a «norma» de protecção de um interesse particular especifico que, no caso, coincida com o seu, desta feita aí firmando arrimo para que se conclua pelo comportamento ilícito do Banco R. Mas vejamos. Nos termos do art. 483.º do Código Civil decorre a responsabilidade civil extracontratual quando se verifiquem, cumulativamente, os pressupostos que se enumeram: (a) a existência de um facto voluntário praticado pelo agente lesante; (b) a ilicitude desse facto; (c) a culpa do agente lesante; (d) o dano provocado na esfera jurídica do lesado; e (e ) o nexo de causalidade entre o facto voluntário, ilícito e culposo e o dano. Com vista ao preenchimento do pressuposto ilicitude necessário se torna que se verifique a violação de: (b.1) um direito de outrem (que não de natureza creditícia, situação em que se estaria perante responsabilidade contratual[16]); ou (b.2) qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios. Interessa-nos a benefício do relevo a dar (ou não) à citada Lei este último aspecto: a ilicitude que se retira da violação de uma disposição destinada a proteger direitos alheios. Interessa-nos essa modalidade por ser evidente que o banco R., por acção ou omissão, não violou directamente qualquer direito subjectivo[17]/[18]/[19] da A. De resto, a A., na procura da tutela da sua pretensão, convoca precisamente, na articulação com aquele instituto, as normas de prevenção de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, em concreto aquelas donde emergem deveres para os bancos de controlo, de identificação e diligência, de abstenção de recusa (cf. artigos 11.º a 50.º da Lei n.º 83/2017), assim procurando encontrar nelas a «norma de protecção» de um interesse particular especifico que, no caso, coincida com o seu, desta feita aí firmando arrimo para que se conclua pelo comportamento ilícito do Banco R.[20] Importa, pois, despistar o relevo da Lei 83/2017 na medida que não conceda a pretendida protecção por não conter normas dirigidas à tutela de interesses particulares, exclusivamente ou juntamente com o interesse público (normas de protecção), ou seja, porque a tutela de interesses privados não figura, de facto, entre os fins da «norma» violada. Esta modalidade de ilicitude exige o preenchimento dos seguintes pressupostos: a. - haja violação de uma norma jurídica; b. - essa norma tenha, dentro do círculo de interesses protegidos, um ou vários (concretos ou abstratos) privados; c. - a lesão tenha afectado um dos interesses privados tutelados pela norma[21]. Releva sobremaneira no caso o pressuposto alinhado sob a al.b) que o Professor Antunes Varela conforma nos seguintes termos: «que a tutela dos interesses privados não seja, portanto um mero reflexo da protecção dos interesses colectivos que, como tais, a lei vida salvaguardar.»[22] Refere o insigne Professor que «[é] preciso que a tutela dos interesses privados não seja, portanto, um mero reflexo da protecção dos interesses colectivos que, como tais, a lei visa salvaguardar.»[23] Para que se releve a violação de uma qualquer norma com ressonância no preenchimento desta segunda modalidade de ilicitude necessária se torna que as normas violadas tenham por vocação «tutelar interesses colectivos, públicos, gerais» (…) e contenham «dentro do seu núcleo de tutela a de interesses de círculo ou conjunto de sujeitos privados ou daquelas que protegem apenas interesses privado, embora não atribuindo um direito subjectivo, e ainda norma cujo escopo é prevenir um perigo ou dano abstrato.»[24] Assim, a admitir-se em tese que o Banco violou as normas indicadas pelo A. (e/ou outras) da citada Lei, há, pois, «de indagar até que ponto as normas da citada Lei se podem ou não configurar como disposições legais de protecção de interesses alheios. Dito de outro modo, para sabermos se a violação de uma disposição legal pode fundar uma pretensão indemnizatória contra a instituição bancária teremos de:
a) Descobrir (e, em processo, provar) a violação de uma norma legal;
b) Determinar em que medida a norma legal em questão pode ser configurada como uma disposição legal de proteção de interesses alheios; c) Determinar em que medida o interesse patrimonial que foi preterido em concreto – do ordenante – se integra entre os especiais interesses privados de um grupo de pessoas que a norma visava proteger; d) Determinar se a violação do interesse ocorre pelo modo contra o qual a norma visava a sua proteção.»[25]
Acompanhando o Ac. do STJ de 16 de Fevereiro,[26] tendo por objecto situação muito semelhante à presente, diremos com ele que «[o] Regulamento (UE) 2015/847 estabelece as regras relativas às informações sobre o ordenante e o beneficiário que devem acompanhar as transferências de fundos, em qualquer moeda, para efeitos de prevenção, detecção e investigação do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, quando pelo menos um dos prestadores de serviços de pagamento implicados na transferência de fundos estiver estabelecido na União (cfr. artigo 1.º do Regulamento).
Por sua vez, a Lei n.º 83/2017, estabelece medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo, transpondo parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva 2015/849/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro e das actividades e profissões especialmente designadas para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo.
Estabelece ainda as medidas de execução do Regulamento (UE) 2015/847, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo às informações sobre o ordenante e o beneficiário que devem acompanhar as transferências de fundos, em qualquer moeda, para efeitos de prevenção, detecção e investigação do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.
Finalmente, o Aviso n.º 2/2018 dá cumprimento aos mandatos dirigidos ao Banco de Portugal pelos diversos diplomas em matéria de prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, designadamente a Lei n.º 83/2017.
Logo se verifica que nenhum destes normativos é decisivos para o caso dos autos, designadamente para o efeito de se retirar normas destinadas a proteger interesses do tipo dos que a autora P... sustenta terem sido lesados. A autora P... imputa à ré a violação do dever de verificação de eventuais incorrecções nos elementos indicados pelo ordenante de uma transferência bancária[27], portanto, de um dever que é dirigido à protecção dos interesses privados dos intervenientes em transferências bancárias.
Ora, o que decorre daqueles normativos são deveres de outro tipo – deveres pré-ordenados à realização do interesse público da prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo.
Tem razão o Tribunal recorrido quando afirma: “[p]atentemente, estes normativos e as diversas normas injuntivas de conduta que neles se contêm visam a tutela de interesses colectivos ou supra-individuais, não sendo ordenadas para a tutela, ainda que meramente reflexa, de interesses concretos de que sejam portadores os vários intervenientes numa transferência de fundos, designadamente os do ordenante dessa transferência. Neste sentido, aquelas normas de conduta não têm a virtualidade de servir de normas de protecção e, portanto, para preencherem a apontada cláusula de ilicitude”.
Numa perspectiva criminal, crendo-se também auxiliar a considerar por ser corrente a discussão do bem jurídico protegido[28] por tipologias concretas ou grupos de tipologia[29], não obstante apenas se reportar ao tipo legal branqueamento de capitais (art.368.º-A do CP), aponta-se «na direcção do bem jurídico da administração da justiça… é possível sustentar que o branqueamento representa um comportamento de obstrução à administração da justiça, através do dificultamento da investigação, identificação e punição dos infractores dos crimes subjacentes, comportamento esse que o direito valora autonomamente em relação ao bem jurídico protegido pela tipificação de cada um desses crimes.”[30]
Também para Germano Marques da Silva o bem jurídico tutelado pelo crime de branqueamento é essencialmente a realização da justiça, invocando a inserção sistemática do artigo 368.o-A no Capítulo III, do Título V, do Livro II do Código Penal.
Refere: “ Medianamente há outros bens jurídicos tutelados, desde logo os mesmo bens protegidos pelas incriminações designadas na norma incriminadora do branqueamento, que constituem co-fundamento da punição, mas o cerne da tutela do branqueamento é a realização da justiça (...) o branqueamento não consiste simplesmente no aproveitamento das vantagens adquiridas com a prática do crime, é mais do que isso, é um facto praticado com o fim de dissimular a origem ilícita das vantagens ou de evitar que os agentes sejam perseguidos ou submetidos a uma reacção criminal, é, enfim, um facto praticado com um fim específico de dificultar a acção da justiça.”[31]
“[A]ceita-se assim como necessária a punição do branqueamento, crime a que subjaz essencialmente a protecção de interesses económicos e financeiros nos quais sobrelevam a preservação de uma sadia concorrência entre as empresas e as pessoas singulares, que sairia de todo de todo desvirtuada pela circulação de capitais ilícitos... mas pretende-se também a protecção da administração da justiça, que se torna incapaz de perseguir os responsáveis pelos crimes subjacentes em virtude da actuação do branqueador e, de igual modo, tutela-se a segurança geral da comunidade pois, desincentiva-se a prática dos crimes primários.”[32]
A protecção que se identifica na formulação das normas da Lei n.º 83/2017, mormente as invocadas pelo recorrente, quando esteja em causa o branqueamento de capitais, é de natureza supra-individual e, a conceder alguma protecção de interesses privados, não passaria do patamar meramente reflexo, por conseguinte a desatender nos termos e para os efeitos do «preenchimento» da ilicitude na 2ª modalidade de que vimos de tratar.
Não temos, pois, como contornar a síntese conclusiva do Professor Paulo Mota Pinto no parecer que foi junto aos autos:
«8.ª) Se se pode antever a existência também de interesses privados subjacentes à prevenção do terrorismo, quando esteja em causa o branqueamento de capitais, é, porém, certo que a tutela que se dispensa a eventuais interesses particulares opera apenas em termos reflexos, apontando a ratio das normas mencionadas para a salvaguarda da confiança no mercado financeiro e no sistema de pagamentos e para a boa administração da justiça, impedindo-se que através de mecanismos de “lavagem de dinheiro” se dificulte a reintegração dos bens jurídicos lesados com a prática de outros crimes – isto é, para a defesa de interesses públicos, não sendo os especiais interesses patrimoniais dos ordenantes visados pelo âmbito de proteção da norma, nem sendo protegidos de um especial risco contra o qual a norma foi pensada.»
Dizer que se no quadro da Lei, que infra situaremos, que foi gizada para salvaguardar manifesta e especificamente os interesses privados de quem ordena uma transferência bancária e respectivo beneficiário, não se protege a situação que enforma a causa de pedir destes autos, estranhamente se reconheceria essa proteção no domínio de uma lei que primacialmente visa a prevenção e combate ao branqueamento de capitais e terrorismo.
O Professor Paulo Mota Pinto socorre-se desse argumento operando pertinente e magistral interpretação sistemática para afastar a qualificação de «normas de protecção» às invocadas pelo recorrente, referindo no seu douto parecer:
«9.ª) Esta conclusão é reforçada por uma interpretação sistemática das normas, pois criar-se-ia uma antinomia normativa se entendêssemos que os deveres impostos no âmbito da prevenção e combate ao branqueamento de capitais e terrorismo visavam a salvaguarda de interesses patrimoniais de ordenante e/ou do beneficiário de uma transferência de fundos e, simultaneamente, constatássemos que, no específico domínio pensado para proteger os utilizadores dos serviços de pagamentos, as instituições bancárias não são – como na realidade não são – responsáveis pelos prejuízos sofridos em decorrência da indicação errada do identificador único (o IBAN) numa ordem de transferência.»
Em face do exposto, temos por arredada a convocação das normas constantes da Lei n.º 83/2017 (estabelece medidas de natureza preventiva e repressiva de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo) e demais instrumentos legais atrás citados com vista a substanciar, a benefício do caso em apreço, a 2ª modalidade da ilicitude referida: com vista ao preenchimento do pressuposto ilicitude necessário se torna que se verifique a violação de (b.2) qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios. * Será, pois, no quadro do RJSPME, Decreto-Lei n.º 91/2018 de 12 de Novembro (aprova o novo Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica, transpondo a Diretiva (UE) 2015/2366) quê se perscrutará da eventual imputada responsabilidade do Banco R.
Convoque-se, para o efeito, a factualidade relevante:
(…) 4) Em maio e julho de 2019, a A... encomendou à mencionada empresa chinesa vários produtos químicos, com o preço total de €254.124,00 (duzentos e cinquenta e quatro mil cento e vinte e quatro euros), correspondente a duas faturas: a) Factura n.º ......, de 25/07/2019, com o valor de €169.416,00; e b) Factura n.º ..., de 12/08/2019, com o valor de €84.708,00, cfr. docs. 1 e 2. 4) Para pagamento das referidas faturas, recebeu um e-mail que se afigurava ser da Sra. AA, datado de 10/09/2019, com as duas faturas em anexo e com a indicação de uma nova conta bancária para onde deveria ser feito o pagamento (cfr. doc. 3). 5) Ao referido e-mail, a A... respondeu, por e-mail de 11/09/2019, afirmando que os dados para pagamento se encontravam incorretos, nomeadamente o beneficiário indicado (doc. 4 que se junta e aqui se dá por reproduzido). 6) E, em resposta, a presumida Sra. AA, por e-mail de 12/09/2021, respondeu, enviando as faturas a pagamento com o n.º de IBAN corrigido, pedindo desculpa pelo lapso, tendo, no dia seguinte (13/09/2019), enviado também um e-mail ao Sr. EE para que lhe confirmasse os novos dados bancários (cfr. doc. 5 e doc. 5-A). 7) Por e-mail de 13/09/2021, a A..., através do Sr. BB, diz à presumida Sra. AA que em virtude de lhes terem fornecido um número de IBAN errado, o dinheiro transferido foi devolvido e que, com isso, incorreram em custos adicionais, perguntando, ainda, expressamente, se tinham uma sociedade limitada em Portugal e se, efetivamente, era para fazer a transferência para Portugal (cfr. doc. 6 e doc. 5-A). 8) Factos que foram igualmente confirmados pelo Sr. EE, por e-mail de 13/09/2021 para a presumida Sra. AA, adiantando que, com a errada transferência, tinham tido custos no valor de cerca de €1.200,00, mais lhe confirmando que o novo número de IBAN disponibilizado tinha sido aceite pelo banco da A.... 9) Ao que, a presumida Sra. AA responde, por e-mail do mesmo dia 13/09/2021, a pedir desculpa pelo erro no número do IBAN e que suportariam os custos da A... associados a esse problema, afirmando, ainda, ser essa a nova conta bancária, cfr. doc. 7. 10) Nessa sequência, a Gerente da A..., a Sra. FF, no dia 16/09/2019, efetuou, através do portal eletrónico do Banco 2..., de Moscovo, uma ordem de transferência no montante global de €254.124,00, para pagamento das referidas faturas, para a conta indicada nas mesmas, com o IBAN ..., do Banco 1..., S.A., endereçada à agência bancária sediada na Rua ..., no Porto, Portugal, cfr. doc. 8. 11) Nessa transferência, a A... indicou como beneficiário o número do IBAN suprarreferido, como pertencente a B... CO., Ltd., com sede em ..., na China (cfr. doc. 8). (…) 19) Descobriu-se, assim, no dia 20/09/2019, que a B... havia sido alvo de ataque informático (hacking) através de um acesso indevido ao seu servidor de e-mail e daí sido enviados os e-mails fraudulentos. 20) Nesse quadro, a A... contactou de imediato o Banco 2... para tentar apurar a localização dos fundos transferidos, tendo lhe sido informado que a transferência havia sido processada para uma conta bancária em Portugal, que não pertencia ao seu fornecedor chinês. 21) Deste modo, apurou-se desde logo que o IBAN indicado pela A... não correspondia ao nome e morada do beneficiário pretendido e por ela também indicado. (…) 25) Posteriormente, em outubro de 2019, a A... viria a ser informada pelo Banco 2... que o Banco 1... permitiu que a sociedade detentora do IBAN indicado na ordem de transferência, no próprio dia em que foram rececionados os fundos, procedesse ao levantamento do dinheiro, da totalidade do valor indevidamente transferido (€254.124,00), o que foi feito mediante transferência bancária (cfr. doc. 15); 26) Tendo-se apurado que a sociedade titular do IBAN em questão é uma empresa de direito português denominada C... – Unipessoal Lda., com o NIPC ..., com sede na Rua ..., n.º ..., 2.º Esq., em Lisboa. 27) Tendo em consideração os factos descritos, verifica-se assim que apesar de o IBAN indicado pela A..., na ordem de transferência, não corresponde ao nome e morada do beneficiário por ela também indicados (B... CO., Ltd.), mas sim a uma empresa portuguesa denominada C... – Unipessoal Lda., o Banco 1..., à revelia dessas instruções, não só nada fez para impedir a errada transferência, como permitiu que, no próprio dia da sua execução, a quantia transferida tivesse sido transferida conforme consta do ponto 42) e 43). 28) O Banco 1..., sem encetar qualquer tipo de diligência para identificação correta das partes, quer junto do banco ordenante quer junto da A..., processou a receção dos fundos na conta da sociedade comercial C..., Unipessoal, Lda., com sede em Lisboa, que nada tem a ver com o nome e morada do beneficiário indicados pela A... na ordem de transferência (cfr. doc. 8) 29) Sem prejuízo do que consta no ponto 40, o Banco 1... não fez qualquer outra diligência que impedisse a sociedade C..., Unipessoal, Lda. de proceder à transferência da totalidade do valor transferido (€254.124,00). (…) 35) A A. não é cliente do Banco R. (....) 39) No dia 30/09/2019, foi recebido no Banco R., por via da sua área de transferências, um pedido de autorização ao beneficiário da transferência, para a sua devolução. 40) O Banco R. tentou contactar a INTERVENIENTE, a fim de autorizar a devolução da transferência, o que não conseguiu. 41) Pôde ser apurado, no seguimento de tal reclamação, que a predita conta de depósitos à ordem da Interveniente, nº ..., a que correspondia o IBAN ..., havia sido creditada no dia 16/09/2019, pelo valor de €254.124,00, via ..., .... 42) Os fundos creditados na referida conta, em 16/09/2019, foram movimentados a débito pela respetiva titular, não por via de levantamentos em numerário, mas sim, através de várias transferências internacionais, sendo que no dia 17/09/2019 foram debitados fundos no montante de €125.000,00 por via da emissão de 3 transferências para a conta .... 43) E ainda, no mesmo dia, o montante de €115.000,00, por via da emissão de outras 3 transferências para a conta ..., sediadas em Espanha. - cf. doc. nº 1. 44) Tendo, mais tarde, em 11/11/2019, a própria Interveniente promovido o encerramento da citada conta e o levantamento dos fundos remanescentes, em causa. - €4.417,82. (…)
Desta matéria resulta que a transferência ordenada[33]/[34] pela A. o foi de uma sua conta num banco Russo, através do portal eletrónico do Banco 2..., de Moscovo, indicando na ordem de transferência o montante global de €254.124,00, para pagamento de montantes inscritos em facturas e para a conta indicada nas mesmas - com o IBAN ..., do Banco 1..., S.A..
Nessa transferência, a A... indicou como beneficiário o número do IBAN suprarreferido, como pertencente a B... CO., Ltd., com sede em ..., na China.
Tinha, em face desta ordem, o Banco R. de certificar a coincidência entre o beneficiário efectivo da transferência (titular do IBAN indicado) e aquele que foi como tal indicado pela A.?
Dispõe a citada lei, no seu Artigo 129.º Identificadores únicos incorretos 1 - Se uma ordem de pagamento for executada em conformidade com o identificador único, considera-se que foi executada corretamente no que diz respeito ao beneficiário especificado no identificador único. 2 - Se o identificador único fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento for incorreto, o prestador de serviços de pagamento não é responsável, nos termos dos artigos 130.º e 131.º, pela não execução ou pela execução incorreta da operação de pagamento. 3 - No entanto, o prestador de serviços de pagamento do ordenante deve envidar esforços razoáveis para recuperar os fundos envolvidos na operação de pagamento com a colaboração do prestador de serviços de pagamento do beneficiário, o qual, para o efeito, lhe deve prestar todas as informações relevantes. 4 - Caso não seja possível a recuperação dos fundos nos termos do número anterior, o prestador de serviços de pagamento do ordenante fornece ao ordenante, mediante solicitação por escrito, todas as informações de que disponha, que sejam relevantes para o ordenante poder intentar a correspondente ação judicial. 5 - O prestador de serviços de pagamento pode cobrar ao utilizador do serviço de pagamento encargos pela recuperação dos fundos, caso tal tenha sido acordado no contrato-quadro. 6 - Não obstante o utilizador de serviços de pagamento poder fornecer informações adicionais às especificadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 84.º ou na subalínea ii) da alínea b) do artigo 91.º, o prestador de serviços de pagamento apenas é responsável pela execução das operações de pagamento em conformidade com o identificador único fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento.
O art.2 da citada Lei, na sua al.z, por sua vez esclarece o que seja «identificador único», referindo que se trata de «uma combinação de letras, números ou símbolos, especificada ao utilizador de serviços de pagamento pelo prestador de serviços de pagamento, que o utilizador de serviços de pagamento deve fornecer para identificar inequivocamente outro utilizador de serviços de pagamento ou a respetiva conta de pagamento, tendo em vista uma operação de pagamento.»
Desta curta incursão resulta que o Banco apenas tinha de ater-se ao identificador da conta de destino, ou seja, o IBAN[35], nada mais se lhe impondo, concretamente a comprovação da correspondência entre a identidade do beneficiário da transferência (titular do IBAN indicado) na relação com aquele que como tal foi indicado na ordem de transferência.
Refere o Professor Paulo Mota Pinto no seu douto parecer atrás citado, pág.26: «Esta solução é também, de certo modo, confirmada pelas recentes alterações ao Regulamento dos Serviços de pagamento da União Europeia (artigo 5.º-C do Regulamento EU 2024/886[36]), que pela primeira vez instituíra, a obrigação de disponibilização de um sistema de verificação da designação ou nome do destinatário associado a um IBAN, sistema de verificação, este, que, em última instância, embora ofereça expedientes técnicos de controlo, reforça a autorresponsabilização dos utilizadores do sistema.»
Cite-se o Ac. da RC de 12.7.22. (atrás identificado), em tudo aplicável ao caso vertente e, em parte do que se transcreve, essencialmente (na nossa óptica) com relevo a ser lido à luz da eventual exclusão da culpa do banco por via do art.570.º do CC e caso não se conclua pela ausência de ilicitude por parte do banco R[37]: «A regra da irresponsabilidade do prestador de serviço de pagamento que executa a ordem de pagamento de harmonia com o identificador único que lhe foi fornecido é, de resto, a que melhor responde à exigência de equilíbrio dos interesses divergentes em presença e às necessidades de eficiência e fluidez do trato ou giro bancário, designadamente internacional.
Regra que, aliás, decorre dos princípios gerais, como resulta da circunstância de, na ausência de norma específica reguladora da responsabilidade do banqueiro por errada execução de ordens de pagamento, doutrina de incontestável valia científica já sustentar a solução da irresponsabilidade daquele, no caso de erro de transmissão que lhe fosse alheio.
Assim, se o erro fosse do mandante, porque, por exemplo, identificou erradamente o beneficiário, levando o banco a fazer uma transferência errada, as consequências recairiam sobre aquele; só no caso de haver erro do banqueiro, porque, por exemplo, recebeu a ordem correcta e executou algo diverso, é que a responsabilidade seria dele.
Maneira que, considerado o modo como é regulada a responsabilidade do banco que concretiza a ordem de pagamento, aquele apenas tem que se preocupar em a executar a favor do beneficiário especificado no identificador único e só relativamente a este ponto deve agir conformidade com a grau de diligência e de prudência a que está vinculado, não ficando incurso em responsabilidade se a incorrecção do identificador único lhe não for imputável, como é, nitidamente, o caso do recurso, em que aquela incorrecção é assacável a um acto criminoso de terceiro a que a apelante é inteiramente alheia[38].
(…) Como decorre, sem controversão, da matéria de facto adquirida para o processo, a indicação como conta de pagamento a detida pela apelante resultou da intrusão ilícita de desconhecidos nos sistemas informáticos de uma das autoras e na adulteração das respectivas comunicações electrónicas, designadamente do IBAN da conta da beneficiária da transferência.
Este facto, é de todo, alheio à apelante[39] – e a todas as instituições bancárias que intervieram no serviço de pagamento - o mesmo se não podendo dizer, com este grau de segurança, relativamente às autoras dado que a causa próxima ou primária que está na base dos eventos que conduziram ao resultado danoso se produziu na sua esfera: a permeabilidade dos respetivos sistemas informáticos a intromissões ilícitas de terceiros, com a qual a recorrente – e os demais bancos intervenientes na operação de pagamento - não tinham que contar.
Imputar, nessas condições, a responsabilidade pelo dano à apelante, representaria, de certo modo, o alijar da responsabilidade do ordenador – e também da instituição financeira que escolheu para a execução do serviço de pagamento – pelo desencadear do processo que desaguou no dano reparável.
Quem criou o risco da ocorrência de danos foram esses terceiros desconhecidos – e mesmo as próprias autoras - e foi esse risco que terminou por se materializar no resultado danoso e foi esse risco – e não outro – que conduziu à produção do resultado concreto, do que decorre que este resultado é objetivamente imputável a terceiros e não à apelante. (…).»[40]
Na procura do preenchimento dos pressuposto exigidos pelo art.483.º do CC temos, pois, por interrompido o percurso no pressuposto ilicitude, assim não se cuidando de conhecer do preenchimento dos demais.
Por todo o exposto julga-se ser de justiça confirmar a decisão em via de ausência de um pressuposto essencial para a responsabilização do Banco apelado, ou seja, a ilicitude, assim improcedendo o recurso.
Com esta decisão, porque vencedor, fica prejudicado conhecimento do objecto da ampliação promovida pelo Banco R. ao abrigo do art.636 do CPC ** IV. Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto, assim se mantendo a decisão recorrida.
As custas ficarão a cargo da apelante. *** Sumário:
……………………………… ……………………………… ……………………………… * Carlos Cunha Rodrigues Carvalho Paulo Dias da Silva Ana Luísa Loureiro _______________ [1] Objecto do Litígio: a) Direito de crédito da A. sobre a R. por esta ter violado de modo grosseiro as obrigações de controlo, vigilância, abstenção e recusa no âmbito da sua actividade. *** Temas de prova: 1) Relações comerciais entre a A. e a empresa B... CO. Ltd e correspondência trocada entre ambas. 2) Circunstâncias da transferência bancária de €254.124,00 para pagamento das facturas referidas em 4 da p.i. 3) Ataque informático de que B... CO. Ltd foi objecto e consequências que daí advieram. 4) Procedimento tido pelo R. no levantamento da quantia de €254.124,00, designadamente se adoptou as diligências devidas no controlo, vigilância, abstenção e recusa no levantamento do aludido montante. [2] Transcritas exactamente como formuladas, assim como as do R.. [3] Cfr. a citação da doutrina a propósito no Ac. do STJ de 6.6.2018 proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1: (a) António Santos Abrantes Geraldes - «[a]s conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do artigo 635º, n.º 3, do CPC. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo.» - in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª edição, Almedina, página 147. / (b) Fenando Amâncio Ferreira - «[n]o momento de elaborar as conclusões da alegação pode o recorrente confrontar-se com a impossibilidade de atacar algumas das decisões desfavoráveis. Tal verificar-se-á em dois casos; por preclusão ocorrida aquando da apresentação do requerimento de interposição do recurso, ou por preclusão derivada da omissão de referência no corpo da alegação. Se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objeto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.» - Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2000, página 108 / (c) José Augusto Pais do Amaral - «[o] recorrente que tenha restringido o âmbito do recurso no requerimento de interposição, pode ainda fazer maior restrição nas conclusões da alegação. Basta que não inclua nas conclusões da alegação do recurso alguma ou algumas questões, visto que o Tribunal ad quem só conhecerá das que constem dessas conclusões.» - Direito Processual Civil, 2013, 11ª edição, Almedina, páginas 417/418. [4] Do qual fomos adjunto. [5] Proc.501/12.8TBCBC.G1 [6] Ac. da R.P. de 6.3.25, Processo n.º 1743/22.3T8AVR.P1., do qual fomos adjunto. [7] Além do que infra se desenvolverá, parece-nos incontornável a citação de douto segmento do parecer do Professor Paulo Mota Pinto junto aos autos (pag.24):« impõe-se que a norma, a par da salvaguarda de interesses gerais, prossiga também a proteção de um interesse individual e que a proteção desse interesse se justifique. Ora, a verdade é que, se se pode antever a existência de interesses privados subjacentes à prevenção do terrorismo, quando esteja em causa o branqueamento de capitais, a tutela que se dispensa a eventuais interesses particulares opera claramente em termos apenas reflexos, apontando a ratio das normas mencionadas para a salvaguarda da confiança no mercado financeiro e no sistema de pagamentos e para a boa administração da justiça, impedindo-se que, através de mecanismos de “lavagem de dinheiro”, se dificulte a reintegração dos bens jurídicos lesados com a prática de outros crimes.» [8] Para aí se remetendo e a benefício e serviço do que ora se decide. [9] Ac. STJ de 22.3.2018, proc.1568/09.1 [10] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, cpc anotado, v.I,3ª ed., pág.774 (ponto 25) [11] AA e op. cit., e AA cit., pág.27 (ponto 5 e 6). [12] Op. cit., pág. 29 (ponto 6). [13] «(…) o regime consagrado no CPC de 2013 propugna uma verdadeira concentração naquilo que é essencial, depreciando o acessório, sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida, explicitando, depois, os motivos que o determinaram, com destaque para a explanação dos factos instrumentais que o levaram a extrair as ilações ou presunções judicias (cf. STJ 22-3-18. 1568/09) – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, cpc anotado, v.I,3ª ed., p.775. (27) [14] Art.31 da p.i. [15] A negrito os factos alterados. [16] Sem prejuízo do entendimento de alguns autores da extensão da tutela da responsabilidade extracontratual aos direito de crédito, posição estribada na teoria da eficácia externa das obrigações. [17] V.g., direitos reais, direitos de personalidade, direitos de propriedade industrial ou intelectual, direitos familiares, de conteúdo patrimonial mas também pessoal. [18] Terá sido violado um direito subjectivo da A, mas pela interveniente na medida que, por acção arredada de qualquer justificação «captou património alheio». [19] Quanto à viável coexistência entre à 1ª e 2ª modalidade de ilícito refere Elsa Vaz de Sequeira: «[n]ão raro a verificação da 1ª modalidade de ilicitude coexiste com o preenchimento da 2ª modalidade. Daqui não resulta uma sobreposição inútil dos dois critérios. «Enquanto a ordem jurídica, ao conformar um direito como absolutamente protegido, apensa impõe a qualquer terceiro fazer o objectivamente possível a um homem médio para evitar o pôr em perigo esse direito, as disposições de protecção prescrevem formas de conduta bem concretas e determinadas, trazendo com isso para o lesado a vantagem de que a ilicitude do comportamento é mais fácil de comprovar» (Sinde Monteiro, 1989: 238)»» - Comentários ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, UCP Ed., p.277,(V) [20] Alega a A. na sua douta p.i., reafirmado no recurso, que, ««é nosso entendimento que o Banco 1... violou de modo grosseiro as mais elementares obrigações em matéria de controlo, vigilância, abstenção e recusa, previstas na Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, nomeadamente nos artigos 23.º e seguintes, 36.º, 47.º e 50.º, sobretudo considerando as características do caso em apreço e o constante da alínea c), do n.º 2, do Anexo III à referida Lei, que afirma como tipos indicativos derisco potencialmente mais elevado os «Pagamentos recebidos de terceiros desconhecidos ou não associados com o cliente ou com a atividade por este prosseguida»». [21] Código Civil Anotado, coord. Ana Prata, V. I, 2ª ed-, Almedina, pág.664. [22] Das Obrigações em geral, V.I, 6ª ed., Almedina, pág.509. [23] Op. e loc. cit.. [24] Código Civil Anotado, coord. Ana Prata, V. I, 2ª ed-, Almedina, pág.664. [25] Parecer do Prof. Paulo Mota Pinto junto aos autos, p.21, cuja não citação corresponderia a falta de honestidade intelectual em face da sua excelência. [26] Proc.201/20.5T8MGL.C1.S1 – Catarina Serra. [27] Exactamente como no caso. [28] Bem jurídico: “expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo, socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso” – Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal, Coimbra Ed. (2007), pág.114 [29] Com relevância em vários aspectos, mas importando sobremaneira na identificação de existência ou não de concurso efectivo (real ou ideal) de crime em face de concreto(s) comportamento(s) – pluralidade de bens jurídicos violados. [30] Vitalino Canas. O Crime de Branqueamento: Regime de Prevenção e de Repressão Lisboa. (2004). Página 17 [31] Homenagem da FDUL ao Prof. Galvão Teles, Almedina, Pág.452 e ss. [32] Jorge Godinho. Do Crime de "Branqueamento" de Capitais. Coimbra, Almedina (2001). Página 146 [33] «A transferência bancária é uma operação abstracta, relativamente à relação subjacente entre o ordenador e o beneficiário, sendo, portanto, neutra no tocante à sua causa, e é uma transferência de crédito, dado que a iniciativa da transferência cabe ao devedor e não ao credor, com base em instruções previamente dadas pelo seu banco.» -José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 550.» [34] Ac. da RC de 12.7.22. proc. 201/20.5T8MGL.C: «a transferência bancária consiste no processo através do qual o titular da conta num banco – ordenador – dirige uma ordem de pagamento a esse banco – banco do ordenador – com a finalidade de colocar fundos à disposição do titular de outra conta – beneficiário – nesse ou noutro banco – banco do beneficiário.» [35] O IBAN, International Bank Account Number, é um código que identifica de forma única uma conta bancária em transações internacionais. Foi criado para facilitar as transferências bancárias entre países, a movimentação de dinheiro entre países, tornando as transferências mais seguras, rápidas e eficientes. A estrutura do IBAN: é composto por até 34 caracteres alfanuméricos e inclui: (1.) Código do País (os dois primeiros caracteres representam o país onde a conta está registada (por exemplo, "PT" para Portugal); (2.) Dígitos de Controle (os próximos dois números são usados para verificar a validade do IBAN); (3.) Código do Banco (os próximos caracteres identificam o banco específico onde a conta está); (4.) Número da Conta (os últimos caracteres representam o número da conta bancária em si). Um IBAN pode ter a seguinte aparência: ... 9123. [36] «Regulamento (UE) 2024/886 do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de março de 2024, que altera os Regulamentos (UE) n.o 260/2012 e (UE) 2021/1230 e as Diretivas 98/26/CE e (UE) 2015/2366 no que diz respeito às transferências a crédito imediatas em euros.» [37] O Professor Paulo Mota Pinto, no seu parecer, concordando com o decidido, não deixa de tecer uma crítica relacionada com o relevo a dar às normas de protecção se se achar violado um direito subjectivo (1ª modalidade da ilicitude). Critica ter-se deslocado a problemática para a culpa e a imputação: «Porém, denota-se a este nível uma deslocação da perspetiva de análise do problema. Na verdade, o neste Acórdão do Tribunal da entendeu-se também que “não há, no caso, qualquer utilidade em discutir o preenchimento da cláusula de ilicitude em que se resolve a violação de normas de proteção, considerada a ocorrência da violação de um direito subjetivo da apelada, e, portanto, o preenchimento da cláusula correspondente de ilicitude”. Ou seja, de acordo com o Tribunal da Relação de Coimbra, denotando-se a violação de um direito subjetivo, deixa de fazer sentido a determinação da responsabilidade por via da violação de disposições legais de proteção de interesses alheios, que passam, assim, a relevar apenas para efeitos de indiciação da culpa. Não estaríamos diante de disposições legais de proteção de interesses alheios, sempre que por meio delas se tutelasse um direito subjetivo, e, por isso, a tarefa judicativa passaria pela determinação do cumprimento ou não dos referidos deveres. A culpa, na sua articulação com a ilicitude, passaria a ser o fator determinante da imposição de uma obrigação de indemnização, ao que acresceria a necessidade de estabelecimento de um nexo de causalidade. Esta fundamentação do aresto é, no entanto, criticável. Desde logo, não é correto afastar a verificação da segunda modalidade de ilicitude sempre que se verifique simultaneamente a lesão de um direito subjetivo. Ao invés, embora a indicação da ilicitude por via da violação de disposições legais de proteção de interesses alheios tenha a virtualidade de alargar o espetro de bens jurídicos tutelados aquilianamente, esta nem sequer é uma solução consensual. Tradicionalmente, os autores questionavam, inclusivamente, se a segunda modalidade de ilicitude se limita a antecipar e reforçar a tutela que é dispensada aos bens jurídicos tutelados ao abrigo da primeira modalidade de ilicitude, ou se se verifica, de facto, um alargamento dos interesses merecedores de proteção. A questão foi posta sobretudo no direito alemão (a propósito da relação entre os n.ºs I e II do § 823 do BGB), mas deve ser ponderada também entre nós, atenta a similitude dos modelos aquilianos com que estamos a operar. Contra o que já se sustentou na doutrina alemã, entendemos que não tem de haver coincidência entre os interesses aqui intencionados e os bens jurídicos protegidos através de um direito absoluto, ao abrigo da primeira modalidade de ilicitude. Canaris, por exemplo afirma-o expressamente, considerando que o § 823, n.º II, do BGB cumpre uma dupla função: complemento e concretização da primeira modalidade de ilicitude; alargamento da tutela nos delitos de perigo abstrato. Caso a disposição legal de proteção de interesses alheios vise tutelar um dos bens já elencados no § 823, n.º I, do BGB, ela funciona como mera concretização da tutela; na hipótese inversa, o preceito aproxima-se do § 826 BGB. Ou seja, admitir o alargamento do âmbito dos bens tutelados não significa que não possa haver coincidência entre eles. E numa hipótese como essa, não é irrelevante lançar mão da segunda modalidade de ilicitude, exatamente porque esta permite uma antecipação do juízo de culpa, que se refere à violação normativa, e conceber uma presunção de culpa. Ao não ter percebido isto, o Tribunal da Relação de Coimbra errou, e só não comprometeu o acerto da decisão judicativa porque assumiu que não tinha havido violação das normas que impõem certos deveres às instituições bancárias. Ora, a questão não está em indagar se os deveres foram ou não cumpridos, mas em perceber que, mesmo que não tenham sido cumpridos, esse incumprimento não é de molde a indicar a ilicitude por referência aos interesses patrimoniais do ordenante. Este dado pode assumir importância acrescida se se concluir, em processos futuros, que efetivamente houve preterição de deveres impostos às instituições bancárias. E errou também, ao considerar que na primeira modalidade de ilicitude se integra também a violação de direitos subjetivos não dotados de eficácia erga omnes. Seja como for, a análise operada pelo Tribunal acaba por ser relevante, quando se nota nesse Acórdão: “a responsabilidade do serviço de pagamento circunscreve-se à execução correta da operação de pagamento, de harmonia com o identificador único fornecido pelo utilizador, elemento exclusivo de identificação do outro utilizador do serviço de pagamento que a lei considera inequívoco e, caso os fundos envolvidos na operação cheguem a destinatário errado devido a um identificador único incorreto fornecido pelo ordenante, e que não seja possível recuperar, o dano correspondente não deverá ser imputado ao executor da ordem de pagamento. Este apenas deve usar da diligência devida para verificar – se isso for tecnicamente possível, e não exigir uma intervenção manual – a coerência intrínseca do identificador único e só no caso de este se revelar intrinsecamente incoerente é que deve recusar a execução da ordem de pagamento. De resto, este dever de diligência melhor quadra ao prestador de serviço de pagamento do ordenante, que, no caso figurado, deve recusar a ordem de pagamento e de tudo isso informar o ordenante. De outro aspeto, considerado o meio utilizado para a execução do serviço de pagamento – meio eletrónicos automatizados assentes estruturalmente num identificador único que deve ser fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento para identificar inequivocamente outro utilizador desse serviço ou a respetiva conta de pagamento – , não era exigível à apelante que procedesse à verificação manual da ordem de pagamento, único meio adequado à deteção da discrepância da identidade do beneficiário da transferência e da identidade do titular da conta de destino, sob pena de completa paralisação, ou na hipótese mais benigna, de entorpecimento ou de disrupção do giro bancário e de inobservância sistemática do prazo de execução das ordens de pagamento. E não é exigível à apelante, como, pelas mesmas razões, também não o é ao banco do ordenador nem ao banco intermediário, dado que o sistema de pagamento utilizado assenta, sempre e só, de modo desmaterializado e automatizado, no princípio do identificador único: nenhuma das instituições bancárias intervenientes estava vinculada a outros deveres de diligência que não o da verificação da indicação do identificador único – no caso, do IBAN” (itálicos aditados).» [38] Vide pontos 4-9, 17 -19, 42-44 dos factos assentes. [39] No caso o Banco. [40] Fez a seguinte síntese conclusiva: «I - A transferência bancária, também denominada ordem de transferência consiste na convenção pela qual o titular de uma conta bancária – ordenador – ordena ao seu banco que transfira um determinado montante pecuniário para uma outra conta, de um terceiro ou do próprio – beneficiário – aberta nesse ou noutro banco. II. - Se o dano atingir direito subjectivo, com o consequente preenchimento da causa de ilicitude correspondente, é desinteressante averiguar se se encontra preenchida a segunda cláusula de ilicitude representada pela violação de normas de protecção, caso em que a violação desta categoria de normas apenas é relevante como elemento indiciador da violação do cuidado objetivamente devido, se impuserem deveres legais de cuidado. III. - A uma transferência interbancária internacional realizada por um prestador de serviços localizado fora da União e um outro localizado em Portugal é aplicável Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Electrónica, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro de 2018 e, consequentemente, a norma que considera o prestador de serviço de pagamento irresponsável pela não execução ou pela execução incorrecta da ordem de pagamento, no caso de incorreção do identificador único fornecido pelo utilizador do serviço de pagamento; IV. - Se para a execução do serviço de pagamento são utilizados meios electrónicos automatizados assentes estruturalmente num identificador único que é fornecido pelo utilizador de serviços de pagamento para identificar inequivocamente outro utilizador desse serviço ou a respetiva conta de pagamento, não são exigíveis às instituições bancárias intervenientes na transferência de fundos, outros deveres de diligência de cuidado que não os referidos à verificação da coerência intrínseca do identificador único indicado pelo ordenador, não lhes sendo exigível designadamente que procedam à verificação manual da regularidade da ordem de pagamento, único modo de detectar a discrepância entre a identidade do detentor da conta de destino e a do beneficiário da transferência, resultante do identificador único; V. - Se o erro na indicação da conta de pagamento foi dolosamente causado por terceiros desconhecidos que acederam, ilicitamente aos sistemas informáticos, da ordenante da transferência ou de beneficiária, deve considerar-se que foram esses terceiros que criaram o perigo que se concretizou no resultado danoso e, portanto, que este resultado é objectivamente imputável à conduta daqueles, e não à das instituições bancárias intervenientes na operação de pagamento, que, de harmonia com o princípio da confiança, não tinham que contar com aquele erro, antes podiam confiar na correcção do identificador único e que este tinha sido o efectivamente indicado pelo ordenador.» |