Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
329/22.7T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ARGUIÇÃO DA EXCEÇÃO
COMPARÊNCIA DO REQUERIDO
Nº do Documento: RP20251127329/22.7T8PVZ.P1
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - De acordo com o disposto no artigo 26.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 1215/2012, (fora do domínio de situação de competência exclusiva a que se refere o artigo 24º) é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça sem arguir a incompetência, considerando-se tacitamente aceite a respetiva jurisdição.
II - O dever de comunicação que recai sobre quem negoceia apresentando à outra parte um contrato com cláusulas gerais, pré-definidas, é uma obrigação de meios, não se exigindo para o seu cumprimento que o contratante, abrangido por tais cláusulas, delas tome conhecimento efectivo, mas que lhe sejam facultadas as condições para, em termos de razoabilidade e actuando com diligência, obter conhecimento sobre o seu conteúdo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 329/22.7T8PVZ.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

A..., com sede na Bélgica, propôs acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra B... UNIP LDA, NIPC ...94, ambas com a identificação dos autos, peticionando a condenação da R. no pagamento:

- da quantia de 51.259,64, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data de vencimento da factura;

- de juros contratualmente acordados, no valor de €7.689,00, vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento;

- da cláusula penal no valor de €5.125,96;

- das despesas com advogado, no valor de €135,00, e, bem assim, nas custas e encargos legais com o processo.

Alega, para o efeito e em síntese, que no exercício da sua actividade a A. recebeu uma encomenda da R, que aceitou, que deu lugar à factura n.º VFPT/20-0120, datada de 24.07.2020, com data de vencimento de 21.11.2020, no valor de €51.259,64, a qual não foi paga pela Ré, não obstante os bens terem sido entregues sem defeitos e a factura não ter sido devolvida.

Mais alega que, nos termos contratualmente estabelecidos, o não pagamento da factura na data de vencimento, faz a Ré incorrer em juros mensais pelo atraso, de 1% sobre o valor da factura, por mês, bem como no pagamento de cláusula penal, no montante de 10% sobre o valor da factura, a título de indemnização ipso jure e sem aviso prévio, que, no caso, é de €5.125,00.

Devidamente citada, a R. contestou alegando, em síntese, que efectivamente a factura reclamada pela Autora não foi paga, porquanto a Ré é credora daquela.

Adianta que o fornecimento que deu origem à factura em causa, teve por base um contrato de fornecimento que as partes denominaram VO/20-...82, celebrado verbalmente, mediante o qual a Autora se obrigou à realização de três fornecimentos, sendo que a Autora apenas procedeu ao primeiro fornecimento acordado, o qual foi pago, não cumprindo com os demais, não obstante interpelada para tal.

Sustenta que, em face do incumprimento da Autora, desde 10.09.2020, a Ré não pagou a factura reclamada, por os seus prejuízos serem de valor muito superior ao montante da factura em causa, prejuízos esses no montante de €92.400,00, que reclama a título reconvencional, devendo operar a compensação.

Mais impugna as cláusulas constantes do verso da factura da Autora, por não terem sido acordadas, sendo, por isso, nulas.

Reclama ainda juros de mora.

Na réplica, a Autora pugna pela inadmissibilidade do pedido reconvencional, invoca a ineptidão de tal pedido, mantendo, no demais essencial, os factos que havia já alegado, pugnando ainda pela condenação da Ré como litigante de má fé.

Foi proferido despacho saneador, o qual admitiu o pedido reconvencional, julgando improcedente a ineptidão invocada, tendo sido afirmada a regularidade da instância, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realiza a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, o Tribunal julga a ação, parcialmente procedente por provada, e a reconvenção improcedente, por não provada, e, em consequência:

a) Condena a Ré B... UNIP LDA, a pagar à A..., a quantia de €51.259,64 (cinquenta e um mil, duzentos e cinquenta e nove euros e sessenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento;

b) Condena a Ré B... UNIP LDA, a pagar à A..., a quantia de €5.125,95 (cinco mil, cento e vinte e cinco euros e noventa e cinco cêntimos), a título de clausula penal;

c) Absolve a Ré B... UNIP LDA, do demais peticionado contra si pela A...;

d) Absolve a A... do pedido reconvencional contra si formulado pela Ré B... UNIP LDA.

Custas da ação pela A. e pela Ré na proporção do decaimento – art. 527º do CPC.

Custas da reconvenção pela R - art. 527º do C. P. Civil.

Registe, ainda que apenas eletronicamente, e notifique”.

Não se resignando a Ré com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“QUESTÕES PRÉVIAS:

A – DA INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL RECORRIDO

1º - A sentença agora colocada em crise considerou válido e aplicável ao presente caso concreto as condições contratuais apostas no verso da factura, nomeadamente, a cláusula 8.5 que dispõe que:

“Qualquer disputa relacionada ao contrato e a estes termos e condições gerais é regida exclusivamente por e interpretado de acordo com a lei belga, com exclusão da convenção de vendas de Viena (Convenção de Viena 11 da ONU Abril de 1980 sobre contratos de venda internacional de Mercadorias ou “CISG”). Apenas os tribunais do distrito e/ou cantão da sede da A... estão autorizados a tomar conhecimento de essas disputas”

2º - Os presentes autos configuram uma disputa referente ao contrato celebrado entre as partes em litigio e nessa medida, por força do pacto privativo de atribuição de jurisdição redigido verificamos que os tribunais competentes para apreciação da mesma são os tribunais da sede da Apelada, sitos em Waregen, Bélgica, ao abrigo dos artigos 94º, 95º, 96º do C.P.C.

3º - A presente excepção é de conhecimento oficioso, por força do artigo 104º do C.P.C., pois estamos na presença de uma acção destinada ao cumprimento de obrigações e assim, deve a Ré ser absolvida da instância, nos termos do artigos 576º, n.º 2 e 577º al. a), ambos do C.P.C.

4º - Este entendimento é ainda reforçado pelo Regulamento 1215/2013 da EU, mais concretamente, o artº 25º integrado na secção 7, que evidencia que na presença de um pacto privativo de jurisdição acordado entre as partes, é competente o Tribunal a quem foi atribuída jurisdição pelas partes, pelo que, tem que ser declarada a excepção de incompetência dos tribunais portugueses.

B – DA NULIDADE DA SENTENÇA

5º - Mas caso assim não se entenda, o que não se concebe, mas como mera hipótese se admite, a admitir-se que o douto tribunal é competente para apreciar o presente litigio, a verdade é que a decisão é nula, nos termos do artigo 615º, n.º 1 al. d), pois por força da cláusula 8.5, qualquer disputa relacionada ao contrato é regida exclusivamente pela lei belga., o que não sucedeu nos presentes autos, pois a questão foi apreciada de acordo com a lei portuguesa.

6º - Pelo que, desta forma o juiz tomou conhecimento de questões que não podia tomar conhecimento, pois, não tem competência internacional e nem conhecimentos técnico-juridicos sobre o ordenamento belga para apreciar a questão, motivo pela qual é nula, ao abrigo do artigo referido na conclusão anterior.

C - DO RECURSO

7º- A Recorrente não se conforma com a douta sentença proferida nos presentes autos, que julgou procedente a acção intentada pela Apelada e a condenou nos termos peticionados, pois é nosso entendimento que o tribunal recorrido fez errada interpretação dos factos e inadequada aplicação do direito.

8º - O fundamento de recorribilidade ao abrigo do artigo 637º, n.º 2 do C.P.C., centra-se na declaração de invalidade das cláusulas contratuais gerais do acordo comercial celebrado entre as partes, em virtude da violação do dever de informação a cargo da Autora previsto no D.L. 446/85 de 25 de Outubro.

9º - Da leitura da sentença recorrida, constata-se que para a fixação da matéria de facto – provada e não provada - o tribunal firmou a sua convicção no acordo das partes, expressos nos respectivos articulados e no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento apreciada à luz das regras da experiência comum ou da normalidade, sendo que aqui damos como reproduzidos os argumentos constantes da douta sentença colocada agora em crise.

10º- Há que, liminarmente, sublinhar que:

1º- Toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento foi gravada;

2º- O tribunal valorou e apreciou de forma incorreta a prova, nomeadamente:

- as declarações de parte do legal representante da Ré, AA, depoimentos de BB, CC depoimentos gravados no sistema digital Habilus, atinente aos presentes autos de processo n.º 5218/19.0T8BRG do Juízo Central Cível de Braga – Juiz 1;

- a Prova documental junta aos autos.

11º - E, aqui, no 2º ponto atrás descrito, Exmos. Senhores Juízes Desembargadores, começa a discordância da recorrente quanto à apreciação da prova feita pelo Tribunal “a quo”., ou seja, toda a prova que o tribunal valorou e apreciou de forma incorrecta, pelos motivos e fundamentos legais citados na sentença, deve ser apreciada do modo que se passará a descrever e, em consequência, ser alterada a decisão sobre a matéria de facto.

12º - Foram os seguintes pontos de facto que considera-se incorretamente julgados, havendo violação do princípio de liberdade do julgamento nos termos do disposto nos artigos 640, n.º 1 al. a) do CPC:

- Pontos 12 e 14 da matéria de facto dos factos provados, que devem ser considerados como não provados.

- Al. a) dos factos não provados que deve ser considerada provada

13º - Para alteração da matéria de facto convém assinalar que, segundo a sentença agora colocada em crise, que a Recorrente conhecia as condições contratuais porque foram-lhe transmitidas pela testemunha BB.

14º - Ora, estas cláusulas contratuais que alegadamente foram comunicadas, estão escritas no verso das faturas, em letra inferior a 11 milimetros e em língua estrangeira e não se encontram assinadas por nenhumas das partes, dividindo-se por 8 artigos com diversas alíneas com muita informação.

15º - As cláusulas apostas no verso configuram conjunto de cláusulas típicas de um contrato quadro, devidamente pré-normalizado, que as partes aceitam como modelo e que não negoceiam, apenas as aceitam, como é prática corrente e normal neste tipo de negócios, sendo certo que, a Recorrente não tomou parte na negociação destas cláusulas porque estamos na presença um contrato de adesão, cujo teor integral, como infra demonstraremos não foi explicado pela recorrida.

16º - Assim, quanto às cláusulas que não foram negociadas, isto é, aquelas que não tiveram nada ver com o cancelamento, reclamações, riscos, retenção de título de propriedade, diversos, são cláusulas típicas de um contrato de adesão e as quais estão vinculadas ao regime do D. L. 446/85 de 25 de Outubro.

17º - Pelo que, o ónus da comunicação adequada e efectiva do teor do contrato cabe ao predisponente dele, que submete ao consumidor as chamadas cláusulas contratuais gerais, nos termos dos artigos 5º e 6º do regime das cláusulas contratuais gerais supra mencionado no artigo anterior, encontrando esta obrigação eco na nossa jurisprudência, cfr. acórdão do tribunal da Relação de Lisboa, datado de 29.06.2017, que expressa o seguinte:

“ I – A prova da comunicação das cláusulas contratuais cabe ao predisponente delas e não se basta com o facto de os executados aderentes terem tido o contrato em seu poder.(…)”

Cfr. acórdão que pode ser consultado no seguinte link:

https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/63931114480faa0380258153004f2c62?OpenDocument

18º - Acontece que, este dever de informação não foi cumprido, sendo que esta evidência resulta logo da instauração da presente acção nos tribunais portugueses, pois nenhuma das partes constatou que a acção teria que ser intentada na Bélgica, por força do pacto atributivo de jurisdição constante das cláusulas.

19º - Além disso, a própria testemunha BB confessa que não foram transmitidas todas as cláusulas do contrato, mas só as mais importantes, no depoimento gravado no sistema citius do tribunal recorrido, correspondente ao presente processo n.º 329/22.7T8PVZ a correr termos pelo Juiz 1 do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim, no dia 05.12.2023, com inicio às 14:20 e termo às 15:12 e duração de 52:17, procedendo-se à transcrição do seguinte excerto:

Inicio Minuto 3:30

“(…)

T. – (…) e a A... também tem algumas cláusulas no contrato, foram explicadas as mais importantes (…)” - Termo minuto 3:37

20º - Para além desta confissão, da violação do dever de informação, verificamos ainda que não há nos autos qualquer comprovativo da assinatura das partes na fatura e no clausulado junto.

21º - E reiteramos ainda novamente que, uma vez que tais cláusulas encontram-se no verso de documento não assinado pelas partes, em língua estrangeira e com um espaçamento entre linhas inferior a 1,15 milímetros, e atendendo que o dever de informação não foi devidamente cumprido de acordo com a testemunha supra mencionada, estas cláusulas encontram-se excluídas, ao abrigo do artigo 8º, 18º, 19º e 21º do D.L. 446/85 de 25 de Outubro.

22º - As provas indicadas e aqui expostas demonstram que a mesma não cumpriu com a sua obrigação de provar que comunicou de forma integral o contrato comercial que alega na sua petição inicial, ao abrigo dos artigos 341º e 342º n.º 1 do C.C..

23º - E não tendo feito essa prova, a verdade é que os pontos de factos supra assinalados merecem classificação distinta e na sequência, a Apelante têm que ser absolvida do pagamento dos juros nos termos peticionados e da cláusula penal, pois os pontos 12 e 14 dos factos dados como provados têm que ser considerados não provados e al. a) dos factos não provados merece a classificação de provada.

24º - Mas mesmo que assim não se entenda, é nosso humilde entendimento que a douta sentença recorrida padece de grave vício de erro no julgamento na questão da aplicação do direito, se considerarmos válido e aplicável nos autos o acordo estabelecido pois o tribunal recorrido não podia aplicar a lei portuguesa, mormente o artigo 874º do C.C. – contrato de compra e venda e os artigos 559º, 804º e 805º do C.C.

25º - Na verdade, no âmbito dos contratos internacionais, vigora o principio da autonomia das partes e por isso, as partes têm a liberdade e a faculdade de fixar o conteúdo dos contratos – cfr. artigo 405º do C.C.

26º - Considerando o contrato comercial, alegadamente aceite entre as partes, existe uma cláusula – a cláusula 8.5 - que dispõe que os outorgantes escolheram como lei aplicável a lei belga, excluindo desta forma a aplicação da lei portuguesa, pelo que, foi cometida uma apreciação errónea quanto à fundamentação de direito nos presentes autos, o que constitui uma ilegalidade que determina a revogação da sentença proferida nos autos.

27º - Vício que inquina toda a decisão “ a quo” e por isso, tem a mesma que ser revogada e proceder-se à prolação de decisão que declare que o tribunal é incompetente já supra declarados e determine a absolvição da Apelante.

28º - Em conclusão, têm que ser alterada a matéria de facto de acordo com o expresso na conclusão número 12º e em consequência do supra exposto, a sentença colocada em crise ser revogada e alterada nos termos supra expostos, com a consequente absolvição da Apelante

29º - Foram violadas as disposições legais constantes dos seguintes artigos:

- Artigos 94º, 95º, 96º, 104º, 576º, 577º, al. a), 615º, n.º 1 al. d) 640º, n.º 1 al. a), todos do C.P.C., artigos 341º, 342º, 405º, todos do C.C. e arts. 8º, 18º, 19º e 21º, todos do D.L. 446/85 de 25 de Outubro.

Termos em que, deve revogar-se a sentença recorrida, em conformidade com o atrás exposto, com a absolvição da Apelante nos termos supra expostos, tudo com as legais consequências devidas, fazendo V. Exas. A habitual JUSTIÇA!”.

A apelada apresentou contra-alegações, pugnando pela “inadmissibilidade do recurso”, ou, em todo o caso, pela improcedência do mesmo e confirmação do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- competência dos tribunais portugueses para apreciar e decidir a acção;

- se a sentença é nula;

- se a matéria de facto foi incorrectamente apreciada;

- se as cláusulas do contrato são nulas por violação do dever de comunicação e de informação.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:

1 - A A. dedica-se à actividade têxtil e a R. comercializa fios têxteis.

2- A A. aceitou a encomenda n.º VO/20-...00, datada de 02/06/20, da R. e entregou à R. o fio encomendado, tendo emitido a fatura VFPT/20-0120, com data de 24/07/2020, e vencimento em 21/11/2020, no valor total de 51.259,64 euros.

3 - A R. não procedeu ao pagamento do valor desta factura.

4 - A A. remeteu à R. a carta datada de 15/07/2021, junta aos autos a fls. 12, cujo teor aqui se considera reproduzido.

5 – A Ré recepcionou tal carta e não respondeu à mesma.

6 – A e Ré mantêm uma relação comercial, pelo menos, desde 2018 e a ré sempre teve conhecimento das condições gerais de venda da A., pois foram-lhe comunicadas, e aceitou-as.

7 – Em 27.07.2020 A e Ré acordaram no fornecimento de fio orgânico, com certificado GOTS, pela A à Ré, a realizar em três entregas, nas datas de 31.08.2020, 10.09.2020 e 20.09.2020, conforme ordem de encomenda Nº VO/20-...82.

8 – No seguimento dessa ordem de encomenda, a A. forneceu à Ré o fio relativo à primeira entrega, o que deu origem à fatura VFPT/20-0149 de 25/09/2020, no valor de €61.511,56, a qual foi, contudo, objecto de nota de crédito nº VFPT/20-0173.

9 – Com efeito, tal contentor entregue em 25/09/2020, tratava-se de um contentor GOTS, sendo que, como a Ré não possuía tal certificação, cedeu a sua posição contratual à empresa C..., SA, no que concerne ao acordo VO-20-...82, conforme Doc. 5 da réplica.

10 – Nessa conformidade foi emitida pela A. a fatura nº VFPT/20-0176, a favor da referida empresa C..., SA, datada de 03.11.2020, com vencimento a 23/01/2021, tendo sido liquidada a 26.3.2021.

11 – Por força da pandemia decorrente do covid-19, os fornecedores da A. na India, fecharam a fábrica, impossibilitando a A. de proceder à entrega de fio, o que foi logo em Setembro de 2020 comunicado verbalmente à Ré.

12 – De acordo com a cláusula 8.3 do referido acordo, aceite pela ré: “Se a A... não puder, não atempadamente ou não cumprir adequadamente as obrigações decorrentes do contrato, como resultado de força maior, causa estrangeira, erro de um terceiro e/ou do cliente, acidente, greve, avaria técnica, condições meteorológicas, … então essas obrigações serão suspensas até ao momento em que a A... ainda seja capaz de cumpri-los, sem que isso crie direito a compensação por parte do cliente. Nesse caso a A... informará o cliente sobre o motivo assim que razoavelmente possível”.

13 – A A., em 25.01.2021, com cópia anexa da comunicação enviada pelo seu fornecedor da Índia, comunicou por escrito à Ré o cancelamento da encomenda de fio orgânico, com certificado GOTS, devido ao encerramento da fábrica fornecedora do fio, por força do covid-19, o que foi aceite pela Ré.

14 - De acordo com a cláusula 2.2 do acordo, aceite pela ré, referido em 2, “Na falta de pagamento pontual, nada data de vencimento, de pleno direito e sem prévio aviso de inadimplemento, o valor da fatura é um juro de mora mensal igual a 1% ao mês iniciado.

Nesse caso o valor da fatura também será pago a titulo de compensação fixa de pleno direito e sem qualquer aviso prévio de inadimplência aumentada em 10%, com um mínimo de €125,00, sem prejuízo de a A... reivindicar maior compensação”.

III.2. E considerou não provado que:

a) As partes não tenham acordado nas cláusulas constantes do verso da factura reclamada nos autos pela A. e que a R. as desconhecia;

b) A A. não cumpriu com a entrega acordada de 42.000Kg de fio orgânico em falta, para 10.09.2020, não obstante interpelada para tal pela Ré;

c) A Ré teve um prejuízo decorrente do incumprimento da A. no montante de €92.400,00;

d) A Ré respondeu à carta referida em 4 dos factos provados, por correio electrónico junto como Doc. n.º 1 da contestação.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.


1. Questão prévia: da admissibilidade do recurso.

Pugna a recorrida pela imediata rejeição do recurso interposto pela Ré/Apelante alegando, com fundamento na forma como esta formula as conclusões do recurso, que “a Recorrente pouco ou nada altera, sintetiza e/ou conclui, limitando-se a reproduzir – ademais fazendo-o de um modo um tanto ou quanto confuso – as teses, questões, opiniões e deduções vertidas nas alegações apresentadas, sendo nessa medida nulo o esforço realizado no sentido da delimitação do objeto do recurso”.

Dispõe o n.º 1 do artigo 639.º do Código de Processo Civil: “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.

De acordo com o preceito citado, as alegações de recurso distinguem-se em corpo das alegações e conclusões.

No primeiro, o recorrente expõe os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão; nas segundas, sintetiza as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e o sentido com que as deverá decidir.

Esclarece, a propósito, o acórdão desta Relação, de 27.01.2020[1]: “...como resulta do disposto no citado artigo 639º, n.º 1 do CPC, quando o apelante interpõe recurso de uma decisão jurisdicional passível de apelação fica automaticamente vinculado à observância de dois ónus, se pretender prosseguir com a impugnação de forma válida e regular.

O primeiro é o denominado ónus de alegação, no cumprimento do qual se espera que o apelante analise e critique a decisão recorrida, imputando as deficiências ou erros, sejam de facto e ou de direito, que, na sua perspectiva, enferma essa decisão, argumentando e postulando as razões em que se ancora para divergir em relação à decisão proferida.

O ónus de alegação cumpre-se, assim, através da exposição circunstanciada das razões de facto [incluindo, a eventual impugnação da decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido] e de direito da divergência do apelante em face do julgado.

Trata-se, pois, de o recorrente explicitar, de forma mais ou menos desenvolvida, os motivos da sua impugnação da decisão, explicitando as razões por que entende que a decisão recorrida é errada ou injusta, através de argumentação sobre os factos, o resultado da prova, a interpretação e a aplicação do direito, para além de especificar o objectivo que visa alcançar com o recurso.

O segundo ónus, denominado de ónus de concisão ou de conclusão, traduz-se na necessidade de finalizar as alegações recursivas com a formulação sintética de conclusões, em que resuma ou condense os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão proferida pelo tribunal a quo”.

Impõe, assim, a lei que o recorrente finde as alegações de recurso com as respectivas conclusões, onde, de forma sintética, identifique as questões que devam ser apreciadas pela instância de recurso e que sirvam de fundamento ao pedido de alteração, revogação ou de anulação da decisão.

Como explica o acórdão da Relação de Guimarães de 29.06.2017[2], “Concluir significa, ao cabo de um percurso analítico-argumentativo criteriosamente orientado e validado por um raciocínio lógico, extrair deste, em proposições sintéticas e resumidas, a essência dos fundamentos de uma tese.

A tese de um recorrente que se não conforma com certa decisão judicial há-de ser a da anulação, modificação ou revogação.

Os fundamentos hão-de assentar nas razões, factualmente sustentadas e juridicamente consequentes, substanciadoras da sua invalidade ou erro.

Para discorrer sobre estas, servem as alegações. Para expor aquelas, as conclusões”.

As conclusões destinam-se a sintetizar os argumentos do recurso, a identificar as questões a apreciar e as razões que servem de suporte à decisão pretendida. Delimitando as conclusões o objecto do recurso, é através delas que a parte contrária é alertada para as questões suscitadas pelo recorrente – assegurando-lhe, desta forma, a possibilidade de um efectivo exercício do contraditório – e o tribunal de recurso fica plenamente elucidado quanto às mesmas questões e os argumentos utilizados para fundamentar a decisão recursivamente reclamada, procurando-se assim evitar que alguns escapem na exposição das alegações, necessariamente mais extensa, mais pormenorizada, mais dialéctica, mais rica em aspectos instrumentais, secundários, puramente acessórios ou complementares.

O papel relevante das conclusões foi indiscutivelmente reconhecido pelo legislador que no artigo 637.º, n.º 2 do Código de Processo Civil determina que o “requerimento do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade [...]”, equiparando, em termos de efeitos jurídicos, a falta de alegação do recorrente e a ausência de conclusões nessa alegação, sancionando com o indeferimento do recurso qualquer uma dessas situações – artigo 641.º, n.º 2, b) do referido diploma legal. E ainda que as conclusões se mostrem formuladas, quando estas se revelem deficientes, obscuras ou complexas, ou não contenham as especificações exigidas pelo n.º 2 do artigo 639.º, impõe o n.º 3 deste último normativo a adopção de alguma das soluções paliativas aí contempladas, mediante convite do relator ao recorrente para que supra as patologias que afectam as conclusões, no prazo de cinco dias, sob pena de não conhecer do recurso na parte afectada.

Com a reforma introduzida em 2007 ao Código de Processo Civil, findou a possibilidade da falta de conclusões poder ser suprida mediante convite dirigido ao recorrente para proceder à sua formulação. O convite ao aperfeiçoamento só é consentido para as hipóteses hoje expressamente previstas no artigo 639.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, exigindo-se que, pelo menos, exista arremedo de conclusões, por muito incipiente que haja sido a sua formulação.

Em situação em que era aplicável a pretérita lei processual civil, mas cujos fundamentos não se mostram invalidados pela entrada em vigo da lei actual, defendia o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 21-01-2014[3]: “..., no regime processual aplicável, são passíveis de aperfeiçoamento as conclusões deficientes, obscuras, complexas ou incompletas; mas não é suprível a sua omissão pura e simples (cfr. art. 685.º-A, n.º 3, CPC)”.

Ainda que ao arrepio da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, mas com o amparo de extensa jurisprudência da segunda instância, tem a aqui relatora defendido o entendimento de que a reprodução integral e ipsis verbis do alegado no corpo das alegações, mesmo que seguida da menção de “conclusões” não traduz a formulação de conclusões nos termos exigidos pelo n.º 1 do artigo 637.º do Código de Processo Civil, devendo esse procedimento ser equiparado a ausência de conclusões, pelo que deverá ser logo rejeitado o recurso, sem lugar a prévio despacho de aperfeiçoamento, nos termos do artigo 641.º, n.º1, al. b) do CPC[4].

Porém, ao contrário do que advoga a recorrida, neste caso não se justifica tal solução, desde logo por não se verificar o pressuposto da repetição integral e ipsis verbis do alegado no corpo das alegações equiparável à ausência de conclusões.

Ainda que longe de poderem ser consideradas modelares, na situação aqui em apreço foram formuladas conclusões, não havendo, assim, fundamento para aplicação da solução prevista no citado artigo 641.º, n.º1, al. b) do CPC.

2. Da invocada incompetência absoluta por violação de alegado pacto de jurisdição.

Convocando a cláusula 8.5 das condições contratuais, assim como o Regulamento 1215/2013 da EU, mais concretamente, o artigo 25.º, integrado na secção 7, a recorrente, em sede de recurso, veio excepcionar a incompetência do tribunal recorrido sustentando que o objecto dos autos configura “uma disputa referente ao contrato celebrado entre as partes em litígio e nessa medida, por força do pacto privativo de atribuição de jurisdição redigido verificamos que os tribunais competentes para apreciação da mesma são os tribunais da sede da Apelada, sitos em Waregen, Bélgica, ao abrigo dos artigos 94º, 95º, 96º do C.P.C.”

Invocando a circunstância da aludida incompetência só agora ter sido arguida e com fundamento no artigo 103.º do Código de Processo Civil, a apelada defende ter precludido o direito de invocar a referida incompetência que, em qualquer caso, na sua perspectiva não se verifica, referindo, para o efeito, que “A cláusula 8.5 do contrato, não designa as questões concretas paras as quais o tribunal ali escolhido ficou a ter competência e nem especifica os factos suscetíveis de as originar, limitando-se antes a conter uma fórmula demasiado genérica que, a nosso ver, não se ajusta à exigência feita, a tal propósito, pelos nºs 2 e 4 do citado artº 95 CPC”.

Importa, assim, conhecer da invocada excepção de incompetência absoluta por violação de alegado pacto de jurisdição, indagando-se previamente, para esse efeito, da oportunidade/tempestividade da arguição de tal excepção.

De acordo com o disposto nos artigos 96.º, a) do Código de Processo Civil, a violação do pacto de jurisdição determina a incompetência absoluta do tribunal.

Não sendo do conhecimento oficioso a violação do pacto de jurisdição, recai sobre as partes o impulso da arguição da referida incompetência absoluta, podendo fazê-lo até ao trânsito em julgado da decisão.

Proposta esta acção, com contornos indiscutivelmente transnacionais, em tribunal português, a excepção de incompetência internacional arguida por uma das partes, por alegada violação de pacto privativo de jurisdição, há-de encontrar solução no artigo 97.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que, abstractamente, não afasta a possibilidade de a referida excepção poder ser invocada enquanto a sentença não transitar em julgado, podendo sê-lo, assim, na fase de recurso. Como refere o recentíssimo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.10.2025[5], “Admite-se [...] que a arguição e declaração ocorra em fase de recurso, o que representa uma limitação ao princípio da preclusão ; e por outro, a admissibilidade de recurso com o fundamento da incompetência absoluta, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, conforme dispõe o artigo 629, nº2, al) a do CPC”.

Dispõe o artigo 37.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LSOJ) que “A lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais”.

Por sua vez, sob a epígrafe “Competência Internacional”, estabelece o artigo 59.º do Código de Processo Civil: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.

O artigo 62.º do mesmo diploma prevê três critérios de atribuição da competência internacional com origem legal aos tribunais portugueses, habitualmente designados por critérios da coincidência [al. a)], da casualidade [al. b)] e da necessidade [al. c)].

O artigo 63.º, por seu turno, enumera os factores de competência exclusiva dos tribunais portugueses que se traduzem numa reserva de jurisdição.

No artigo 94.º acha-se regulada a competência convencional internacional, nele estando previstos os designados pactos de jurisdição, pelos quais as partes convencionam sobre a jurisdição nacional competente para apreciar um litígio que apresente elementos de conexão com mais de uma ordem jurídica, podendo os mesmos ser atributivos ou privativos.

Os pactos atributivos de jurisdição “concedem competência aos tribunais portugueses para apreciação de pedido referente a uma situação jurídica plurilocalizada, para o que não eram por lei competentes”, enquanto os pactos privativos “retiram a competência que para tanto tinham por lei”, atribuindo-a a um ou vários tribunais estrangeiros[6].

Desta forma, pode aos tribunais portugueses ser reconhecida competência internacional por efeito de aplicação de normas de regulamentos europeus, de normas de outros instrumentos internacionais ou de normas de direito interno português, sendo que aquelas, no seu campo específico de aplicação, prevalecem sobre as normas processuais portuguesas, nomeadamente sobre as normas reguladoras da competência internacional constantes do Código de Processo Civil[7].

É o que decorre do primado do direito comunitário, da sua prevalência sobre o direito português e da sua aplicação directa na ordem interna, previsto no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das suas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais de direito democrático”.

Um dos regulamentos europeus aplicáveis em matéria de competência internacional é o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, que revogou o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, e que o substituiu (cfr. art.ºs 80.º e 81.º).

Tal Regulamento, tal como o que o precedeu, “aplica-se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição” (art.º 1.º, n.º 1).

O litígio que nos autos é objecto de discussão recai sobre matéria civil, podendo ser aqui aplicado atendendo à sua vigência à data da instauração da acção.

Dispõe artigo 25.ºdo dito Regulamento:

“1. Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário. O pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita;

b) De acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si; ou

c) No comércio internacional, de acordo com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto em questão.

[…]

5. Os pactos atributivos de jurisdição que façam parte de um contrato são tratados como acordo independente dos outros termos do contrato.

A validade dos pactos atributivos de jurisdição não pode ser contestada apenas com o fundamento de que o contrato não é válido”.

Decorre do n.º 1 do citado normativo que as partes, independentemente do seu domicílio, e não se colocando qualquer vício ou imperfeição formal relativamente ao pacto atributivo de jurisdição, podem convencionar que um tribunal (ou tribunais) de um Estado-Membro da União Europeia tenha competência para decidir quaisquer litígios surgidos ou a surgir entre elas de “uma determinada relação jurídica”, sustentando que “A cláusula 8.5 do contrato, não designa as questões concretas paras as quais o tribunal ali escolhido ficou a ter competência e nem especifica os factos suscetíveis de as originar, limitando-se antes a conter uma fórmula demasiado genérica que, a nosso ver, não se ajusta à exigência feita, a tal propósito, pelos nºs 2 e 4 do citado artº 95 CPC”.

No caso em apreço, a Ré, em sede de alegações de recurso, excepcionou a incompetência dos tribunais portugueses para conhecerem da acção proposta contra si com fundamento no pacto privativo de atribuição de jurisdição constante da cláusula 8.5. das condições contratuais apostas no contrato e no disposto no artigo 25.º do citado Regulamento (UE) n.º 1215/2012.

Em resposta, questiona a recorrida a validade do acordo celebrado entre as partes “com vista à escolha do foro competente para resolução dos litígios emergentes do sobredito contrato”.

Como já se mencionou, a recorrente só em sede de recurso excepcionou a competência dos tribunais portugueses para apreciarem e decidirem o conflito transposto para a acção que a Autora, aqui recorrida, contra ela instaurou, nunca tendo antes, nomeadamente na contestação, questionado tal competência, quando a Autora expressamente invocara no artigo 15.º da petição inicial que “O Tribunal é competente, em razão do território, matéria, valor, hierarquia e nacionalidade”.

E, curiosamente, faz constar no artigo 15.º da contestação que “impugna expressamente todas as cláusulas constantes do verso da factura da autora e respectiva tradução, que a ré desconhece, pois nunca foram acordadas, contratualizadas e muito menos aceites pela ré”, para logo acrescentar que “Não existe qualquer contrato assinado entre autora e ré, em que tais cláusulas tenham sido acordadas e aceitas entre ambas”.

Ou seja, negando a Ré, ora recorrente, o acordo que a Autora alega ter com ela firmado e no qual ancora a pretensão contra aquela deduzida, mais tarde, proferida sentença que lhe foi desfavorável e contra a qual reage através do presente recurso, serve-se daquele mesmo acordo, convocando a cláusula 8.5. dele constante, para afirmar a existência de um pacto privativo de atribuição de jurisdição que exclui a competência dos tribunais portugueses.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pela causa de pedir e pedido respectivos[8].

Como precisa o acórdão da Relação do Porto de 7.07.2016[9], “...na competência convencional, é indiferente o domicílio das partes e a competência do tribunal se determina pelo pedido do autor e pela causa de pedir em que o mesmo se apoia, expressos na petição inicial, já que ela não depende nem da legitimidade das partes nem da procedência da acção, tal como é entendimento unânime na doutrina e na jurisprudência[7], constituindo um verdadeiro pressuposto processual. Se assim é noutros tipos de competência, por maioria de razão o será na competência internacional, uma vez que a respectiva legislação condiciona o exercício da função jurisdicional dos tribunais portugueses e a infracção das suas regras determina a incompetência absoluta do tribunal e implica a absolvição do réu da instância (art.ºs 96.º, 97.º e 99.º, todos do CPC). Assim sendo, constituindo uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou de improcedência, a apreciação desta excepção dilatória terá de ser ajuizada à luz do pedido e da causa de pedir formulados pelo autor na petição inicial e/ou completada pelos dados transcritos pelo réu na sua contestação, mas circunscrita à parte em que suscita tal excepção”.

Para aferir da competência, interna ou internacional, a matéria factual fixada na sentença recorrida – sendo que outra não trouxe a recorrente posteriormente à discussão – é indiscutivelmente irrelevante, mantendo-se controvertida a questão da existência do invocado pacto privativo de atribuição de jurisdição, assim como a relativa aos pressupostos da sua validade substancial.

Acresce que sem nunca antes contestar a competência interna dos tribunais portugueses, a Ré contestou a acção contra ela proposta no tribunal recorrido, deduzindo ainda reconvenção na qual peticiona que sejam declaradas nulas as cláusulas constantes do verso da factura dada à acção pela Autora/Reconvinda, pedindo a condenação desta no pagamento uma indemnização no montante de € 92.400,00, acrescida de juros de mora à taxa legal.

Ora, dispõe o artigo 26.º, n.º 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 que “Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objetivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24.º”.

Segundo o citado acórdão do STJ de 23.10.2025, “O artigo 26º, nº1, do Regulamento (CE) n.º 1215/2012 (fora do domínio de situação de competência exclusiva de que trata o artigo 24º) estabelece em prioridade que é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça sem arguir a incompetência, caso em que se considera tacitamente aceite a respetiva jurisdição”.

A circunstância de a Ré haver comparecido no tribunal português onde a acção proposta apenas se defender quanto ao fundo da causa, aproveitando, simultaneamente, para, por via reconvencional, deduzir pretensão contra quem tomou a iniciativa de a demandar, nunca questionando a competência do tribunal português e sem fazer menção de qualquer convenção relativa à atribuição de jurisdição significa que aceitou a competência dos tribunais portugueses, fixando-se a competência nos termos dessa tácita aceitação, ficando precludida a possibilidade de posterior discussão acerca de tal questão.

Como tal, improcede a excepção dilatória da incompetência internacional suscitada pela recorrente.
2. Da nulidade da sentença.
Imputa a recorrente à sentença que impugna vício de nulidade que reconduz à previsão do artigo 615.º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil.
Dispõe o n.º 1 do artigo 615.º do referido diploma:
“ É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
A nulidade da sentença - ou de despacho[10] - constitui vício intrínseco da decisão, desde que ocorra alguma das circunstâncias taxativamente previstas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que, pela sua gravidade, comprometem a sentença ou o despacho qua tale.
Como o n.º 1 do artigo 668.º do anterior diploma, também o n.º 1 do artigo 615.º do actual Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[11], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[12].
O artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil correlaciona-se com o estatuído no n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma legal, onde se determina que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. O vício tipificado na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º ocorre quando haja falta de apreciação de questão que o tribunal devesse conhecer, cuja resolução não tenha ficado prejudicada por solução dada a outras.
Exige-se, com efeito, uma correspondência entre a pronúncia e a pretensão deduzida.
Como esclarecia Anselmo de Castro, ainda no âmbito da aplicação da pretérita lei adjectiva[13], «o vício relaciona-se com o dispositivo do art.° 660.°, n.° 2.° e por ele se tem de integrar. A primeira modalidade tem a limitação aí constante quanto às decisões que devam considerar-se prejudicadas pela solução dada a outras; a segunda reporta-se àquelas questões de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente e que não tenham sido suscitadas pelas partes, como nesse preceito se dispõe.
A palavra questões deve ser tomada aqui em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a “fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sobre os aspectos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”.
E Alberto dos Reis[14] já alertava que não se pode confundir questões suscitadas pelas partes com motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões: "São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão."
Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas pelas partes, apenas deve conhecer destas e das que oficiosamente lhe caiba conhecer[15].
Sustenta a recorrente que estando em causa uma disputa relacionada com o cumprimento do contrato invocado pela demandante, foi o litígio em causa decidido de acordo com a lei portuguesa, quando deveria ter sido de acordo com a lei belga.
Ainda que eventualmente pudesse ter sido violada convenção de atribuição de jurisdição e definição da lei aplicável à resolução judicial do incumprimento contratual, nunca ela consubstanciaria a imputada nulidade da sentença.
Note-se ainda que a Ré ao contestar a acção e ao deduzir reconvenção sem invocação da agora convocada cláusula 8.5 aceitou não só a competência dos tribunais portugueses como igualmente a aplicação da lei nacional.
Não sofre a sentença, pois, da patologia que a recorrente lhe aponta.
3. Reapreciação da matéria de facto.
Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[16], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[17] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”[18].
Também é certo que, como em qualquer actividade humana, sempre a actuação jurisdicional comportará uma certa margem de incerteza e aleatoriedade no que concerne à decisão sobre a matéria de facto. Mas o que importa é que se minimize tanto quanto possível tal margem de erro, porquanto nesta apreciação livre o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas[19].
De todo o modo, a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Discordando da decisão proferida em primeira instância que julgou provada a matéria constante dos pontos 12.º e 14.º e não provada a mencionada na alínea a), reclama a recorrente a sua reapreciação por esta instância de recurso.
Importa, assim, proceder à reapreciação da matéria de facto na parte abrangida pela impugnação recursiva da apelante.
Embora afirmando que o tribunal a quo valorou e apreciou incorrectamente a prova, nomeadamente as declarações de parte do legal representante da Ré e os depoimentos das testemunhas BB e CC e a prova documental junta aos autos, só em relação ao depoimento da testemunha BB se mostra satisfatoriamente cumprido os ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo, não identificando a recorrente quais os documentos que, em seu entender, foram indevidamente apreciados e valorados, nem cumprindo, quanto às declarações de parte, nem quanto ao depoimento da testemunha CC a imposição constante da alínea a), do n.º 2 do mencionado dispositivo.
Quanto ao depoimento da testemunha BB, convoca a recorrente uma passagem do seu depoimento em que refere que, quanto às cláusulas do contrato, foram explicadas as mais importantes.
Este segmento do depoimento da referida testemunha não é, todavia, suficiente para, como pretende a recorrente, justificar a alteração dos pontos da matéria de facto sobre os quais faz incidir a sua dissidência, não bastando, por si só, para infirmar a matéria fixada nos pontos 12.º e 14.º, nem para sustentar a factualidade constante da alínea a) dos factos não provados.
Note-se que o próprio legal representante da Ré atestou que “trabalha” com a Autora desde, pelo menos, o ano de 2018, pelo que, contendo o documento contratual normas padronizadas, como também a Ré alega, depreende-se, pelas próprias regras da experiência comum, que, não tendo as mesmas natureza individualizada e inovatória, com elas se achasse já familiarizado, nada dos autos resultando, nomeadamente das suas próprias declarações, que o teor dessas cláusulas contratuais gerais fosse dele desconhecido e que tivesse o mesmo pedido acerca do conteúdo das mesmas qualquer informação ou esclarecimento e que tal lhe tivesse sido negado.
Neste concreto contexto, sendo seguro que as relações comerciais entre Autora e Ré duravam, pelo menos, desde 2018, e que sempre que a Autora dela recebia uma nota de encomenda lhe enviava a factura com as condições contratuais apostas no respectivo verso, não é a transcrita afirmação da testemunha BB, totalmente descontextualizada, de que, relativamente às cláusulas do contrato, “foram explicadas as mais importantes”, que constitui fundamento bastante para alterar a decisão relativa à matéria de facto, na parte em que é impugnada.
Mantém-se, desta forma, inalterada a referida decisão, improcedendo, nesta parte o recurso.
4. Da invocada invalidade das cláusulas contratuais gerais relativas ao acordo comercial estabelecido entre Autora e Ré, por violação do dever de informação.

Mesmo nos contratos de natureza tipicamente consensual, a massificação dos negócios justifica o recurso, cada vez mais recorrente e generalizado, a cláusulas padronizadas, pré-redigidas e gerais, impostas também muitas vezes por exigências técnicas.

A despeito dos aspectos críticos que possam apontar-se às cláusulas contratuais gerais, é indiscutível a sua crescente necessidade: a exigência de realização efectiva de negociações pré-contratuais - individualizadas - para a concretização de todos os contratos acarretaria um significativo retrocesso na actividade jurídico-económica, em que as necessidades de rapidez e de normalização ligadas às modernas sociedades técnicas impõem o recurso àquele tipo de cláusulas.

O Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro constitui a expressão de uma intervenção legislativa necessária à regulamentação, tão cuidada quanto possível, da questão das cláusulas contratuais gerais.

Em plena vigência deste diploma, emanou do Conselho Europeu a Directiva n.º 93/13/CEE, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, definindo o seu artigo 3º/1 como cláusula abusiva a que, não tendo sido objecto de negociação individual, e a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações decorrentes do contrato.

Segundo o n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, com a redacção introduzida, entretanto, pelo Decreto-Lei nº 249/99, de 7 de Julho, “As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma”.

Por sua vez, o n.º 2 do citado dispositivo determina que “O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar”.

Do artigo 2.º do mencionado diploma retira-se que todas estas cláusulas ficam abrangidas por ele independentemente da sua forma de comunicação ao público, da extensão que assumam ou que venham a apresentar nos contratos a que se destinem, do conteúdo que as enforme, e de terem sido elaboradas pelo proponente, pelo destinatário ou por terceiros.

No domínio das cláusulas contratuais gerais não basta a sua aceitação. Como prescrevem os artigos 5.º, 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, exige-se que ao aderente tenham sido efectivamente comunicadas as cláusulas a que deva ou tenha aderido, que uma efectiva informação sobre as mesmas e a inexistência de cláusulas prevalentes.

Estabelece o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro:

1 - As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.

2 - A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.

3 - O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.

De acordo com o artigo 6.º do mesmo diploma:

1 - O contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.

2 - Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados.

E dispõe o seu artigo 8.º:

Consideram-se excluídas dos contratos singulares:

a) As cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5.º;

b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo;

[...].

No artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro surpreendem-se duas fases distintas: a primeira, a que se refere o n.º 1 do normativo em causa, respeita à emissão da proposta contratual, obrigando o emitente da mesma à comunicação integral das suas cláusulas; a segunda, reportada à recepção de tal proposta, e a que se refere o n.º 2, a determinar que a proposta seja apresentada de tal forma que “se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo” pelo aderente.

Desta forma, o critério a relevar para efeitos de cumprimento do dever de comunicação exigido pelo mencionado artigo 5.º afere-se pela adequação a um conhecimento, completo e efectivo, da proposta contratual pelo destinatário que use de comum diligência: “a comunicação não só deverá ser completa, abrangendo a globalidade das condições negociais em causa, como deverá igualmente mostrar-se idónea para a produção de um certo resultado: tornar possível o real conhecimento das cláusulas pela contraparte”[20].

Todavia, como precisam Almeida Costa e Menezes Cordeiro[21], “o dever de comunicação é uma obrigação de meios: não se trata de fazer com que o aderente conheça efectivamente as cláusulas, mas apenas de desenvolver, para tanto, uma actividade razoável”.

Importa, porém, reter que “o recurso a cláusulas contratuais gerais não deve fazer esquecer que elas questionam, na prática, apenas a liberdade de estipulação e não a liberdade de celebração. Assim, elas incluem-se nos diversos contratos que as utilizem - os contratos singulares - apenas na conclusão destes, mediante a sua aceitação - artigo 4.º da LCCG: não são, pois, efectivamente incluídas nos contratos as cláusulas sobre que não tenha havido acordo de vontades.

As cláusulas contratuais gerais inserem-se no negócio jurídico, através dos mecanismos negociais típicos. Por isso, os negócios originados podem ser valorados, como os restantes, à luz das regras sobre a perfeição das declarações negociais: há que lidar com figuras tais como o erro, a falta de consciência da declaração ou a incapacidade acidental”[22].

Ainda segundo o mesmo autor, “o ponto de partida para as construções jurisprudenciais dos regimes das cláusulas contratuais gerais residiu na condenação de situações em que, ao aderente, nem sequer haviam sido comunicadas as cláusulas a que era suposto ter aderido. Foi também a partir daqui que a doutrina iniciou uma elaboração autónoma sobre as cláusulas contratuais gerais. Temos, então, aqui em questão a análise dos deveres pré-contratuais de comunicação e de informação das cláusulas a inserir no negócio e de prestação dos esclarecimentos necessários a um exercício idóneo da autonomia privada -o que já resultava do citado artº 227º, n.º 1 do CC."[23].

A autonomia da vontade só poderá ser validamente exercida se a vontade da parte aderente ao contrato estiver devidamente formada, o que pressupõe, desde logo, um completo conhecimento do respectivo clausulado.

Neste contexto, “os deveres de informação e de esclarecimento designadamente os relativos ao conteúdo contratual, sua composição e seu significado, assumem particular relevância quando se esteja perante dois sujeitos cujo poder negocial se apresente desequilibrado, revestindo então essas obrigações maior amplitude para aquela das partes que detenha uma posição negocial susceptível de lhe permitir impor à contraparte cláusulas, que esta, em consequência da sua debilidade contratual, não aperceba no seu integral significado ou de que, mais simplesmente, nem sequer tome conhecimento"[24].

Deve ser dada efectividade a esse dever de informação de molde a que o aderente tenha pleno conhecimento e compreenda o alcance das cláusulas pré-definidas pela outra parte antes de subscrever o contrato que a mesma lhe apresenta. Como afirma o Acórdão da Relação de Lisboa de 05.02.2009[25], “o dever de comunicação a que alude o artigo 5.º do DL nº 445/85, de 25/10, consiste em ser disponibilizado ao aderente o texto do contrato, previamente à assinatura do mesmo, pelo período que ao caso se mostre mais adequado. O objectivo é o de possibilitar ao aderente uma análise de todas as cláusulas contratuais que não haja negociado directamente. Não se provando que determinadas cláusulas contratuais, apesar de inseridas numa rubrica intitulada “condições específicas”, tenham sido objecto de negociação prévia – e o respectivo ónus incumbe à parte que pretende prevalecer-se do seu conteúdo – ficarão as mesmas abrangidas pelo regime aplicável às cláusulas contratuais gerais, nos termos do artigo 1º, nº 3 do DL nº 446/85[26].

Os deveres de comunicação e de informação exigidos, respectivamente, pelo artigo 5.º e pelo artigo 6.º do aludido diploma complementam-se num escopo comum: a eficaz apreensão da proposta contratual pela parte aderente. As referidas obrigações complementam-se, revelando pontos de contacto comum.

Defende Menezes Cordeiro[27], a propósito do dever de informação, que “o cumprimento desse dever prova-se através de indícios exteriores variáveis, consoante as circunstâncias. Assim perante actos correntes e em face de aderentes dotados de instrução básica, a presença de formulários assinados pressupõe que eles os entenderam; caberá, então, a estes demonstrar quais os óbices. Já perante um analfabeto, impõe-se um atendimento mais demorado e personalizado”.

Como elucida o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.03.2011[28], “a presença dos contratos assinados pressupõe que a recorrente os entendeu e, em conformidade com o disposto no artigo 6º, a exequente apenas teria que informar a outra parte dos aspectos cuja aclaração se justificasse e prestar os esclarecimentos solicitados. (…) o cumprimento do dever de comunicação a que se reporta o artigo 5º, basta-se com a entrega da minuta do contrato, contendo todas as cláusulas (incluindo as gerais), com a antecedência que seja necessária, em função da extensão e complexidade das mesmas, na medida em que, com a entrega dessa minuta, uma pessoa normalmente diligente tem a efectiva e real possibilidade de ler e analisar todas as cláusulas e de pedir os esclarecimentos que entenda necessários para a sua exacta compreensão”.

No caso aqui objecto de discussão, o documento que incorpora as cláusulas contratuais gerais aplicáveis ao contrato celebrado entre as partes não se acha assinado, como, acertadamente, alega a recorrente.

Tal não significa, todavia, que a Autora tivesse, quanto a elas, omitido qualquer dever de informação e que a Ré tivesse aceite os termos contratuais sem deles estar esclarecida. Mantendo Autora e Ré entre si relações comerciais desde, pelo menos, 2018, é mais que expectável que esteja esta totalmente inteirada das cláusulas pré-redigidas pela Autora, que sempre constam de documento por esta emitido e entregue à Ré sempre que esta efectua encomendas de mercadorias do comércio daquela.

De acordo com o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.03.2011, “se o dever de comunicação de cláusulas contratuais gerais se destina a proteger o outorgante mais fraco dos abusos da parte mais forte e com maior poder económico, combatendo o risco de desconhecimento de aspectos significativos do contrato que vai ser celebrado, certo é também que o risco de desconhecimento de algumas cláusulas do contrato não decorre apenas do incumprimento do dever de comunicação, o qual também pode decorrer da falta de diligência da parte que vai aderir às referidas cláusulas, como sucede no caso da parte que assina um contrato contendo essas cláusulas sem ter qualquer preocupação sobre o conteúdo do documento que está a assinar.

E se, na primeira situação, se justifica plenamente a protecção da parte mais fraca, o mesmo não acontece na segunda situação, já que o objectivo do legislador foi apenas o de proteger a parte mais fraca de eventuais abusos da parte mais forte e não o de proteger a parte mais fraca da sua falta de diligência.

Embora considerando que o aderente está numa situação de maior fragilidade, face à superioridade e poder económico da parte que impõe as cláusulas, (por isso lhe concedendo protecção), o legislador não tratou o aderente como pessoa inábil e incapaz de adoptar os cuidados que são inerentes à celebração de um contrato e por isso lhe exigiu também um comportamento diligente tendo em vista o conhecimento real e efectivo das cláusulas que lhe estão a ser impostas.

Daí que o contratante não possa invocar o desconhecimento dessas cláusulas, para efeitos de se eximir ao respectivo cumprimento, quando esse desconhecimento apenas resultou da sua falta de diligência, como acontece nas situações em que o contraente foi colocado em posição de conhecer essas cláusulas e assina sem ler o que estava a assinar e sem ter qualquer preocupação de se assegurar do respectivo teor”.

Não resultando comprovado que a recorrida haja omitido qualquer informação ou esclarecimento acerca das cláusulas contratuais gerais aplicáveis ao negócio concretizado com a recorrente, não se configura violação dos deveres de informação ou comunicação que possam conduzir à invalidade dessas mesmas cláusulas.

Também nesta parte soçobram as alegações argumentativas da recorrente.

Por conseguinte, não merecendo reparo a sentença recorrida, é de manter a mesma, com a consequente improcedência do recurso.


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Síntese conclusiva:

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso da apelante B..., UNIPESSOAL LDA., confirmando a sentença recorrida.

Custas: a cargo da apelante (art.º 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil).

Notifique.

Porto, 27.11.2025

Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.

Judite Pires

João Venade

Paulo Dias da Silva

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[1] Processo n.º 2817/18.0T8PNF.P1, www.dgsi.pt.
[2] Processo n.º 413/15.3T8VRL.G1, www.dgsi.pt.
[3] Processo 689/08.2TTFAR.E1.S1, www.dgsi.pt.
[4] Cfr,. entre muitos outros, o acórdão de 8.05.2025, processo n.º 259/23.5T8VNG.P1, www.dgsi.pt.
[5] Processo n.º 3870/20.2T8GMR.G1.S1, www.dgsi.pt.
[6] Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, págs. 131, 137 e 188.
[7] Neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, pág. 124 e a jurisprudência ali mencionada, e, ainda, entre outros, os acórdãos do STJ de 26.01.2016, processo n.º 540/14.4TVLSB.S1 e 21.04.2016, processo n.º 538/14.2TVLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt.
[8] Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 91.
[9] Processo n.º 1387/15.6T8PRT-B.L1.P1, www.dgsi.pt.
[10] Artigo 613.º, n.º 3 do Código de Processo Civil
[11] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[12] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[13] “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 142.
[14] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, 1981, pág. 143.
[15] Artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[16]Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[17]Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil.
[18] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Acódão Relação de Coimbra de 11.03.2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20.09.2005, proferido no processo 05A2007, www.dgsi.pt, podendo extrair-se deste último: “De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)”.
[19] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil”, Vol. 3º, pág. 173 e L. Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, 1ª Ed., pág. 15 7.ve
[20] Almeno de Sá, “Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas”, pág. 60.
[21] “Cláusulas Contratuais Gerais”, pág. 25.
[22] Menezes Cordeiro, “Manual de Direito Bancário”, 1998, págs. 427 e 428.
[23] "Tratado de Direito Civil Português", vol. I, pág. 370.
[24] Ana Prata, "Notas sobre responsabilidade pré-contratual", Almedina, pág. 51.
[25] Processo nº 10941/08, www.dgsi.pt.
[26]Cf. ainda Acórdão da Relação do Porto, 22.06.2009, www.trp.pt/jurisprudenciacivel, e da mesma Relação, de 24.04.2008, www.dgsi.pt.
[27] “Manual de Direito Bancário”, pág. 429.
[28] Processo nº 1582/07.1TBAMT-B.P1.S1, www.dgsi.pt.