Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
674/23.4T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: POSSE
MORTE DO POSSUIDOR
COMPRA E VENDA
Nº do Documento: RP20251013674/23.4T8VFR.P1
Data do Acordão: 10/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Por morte do possuidor, nos termos do artigo 1255º do CC, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa.
II - A posse depende da execução de atos materiais demonstrativos da ligação daquele que alega ser possuidor de determinado bem a esse mesmo bem. O ato jurídico da compra e venda não é suficiente para demonstrar a relação material inerente à relação possessória.
III - Na ausência de elementos que permitam ao tribunal de recurso conhecer de facto essencial ao mérito dos autos, impõe-se a anulação da decisão nos termos do artigo 662º nº 2 al. c) e nº 3 al. c) do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 674/23.4T8VFR.P1

3ª Secção Cível

Relatora: M. Fátima Andrade

Adjunta – Teresa Pinto da Silva

Adjunto – Carlos Gil

Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Jz. Local Cível de Santa Maria da Feira

Apelante/ AA

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):

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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório

AA instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB e outros, peticionando pela procedência da ação e pelos factos que alegou que seja proferida decisão a:

“a) Declarar nulo registo predial requerido e efetuado a favor da Ré BB, em relação ao prédio descrito sob o nº... da freguesia ..., Concelho de Santa Maria da Feira, através da Ap. ... de 25/03/2019.

b) Na medida em que os factos mencionados no mesmo como motivo justificativo não correspondem à verdade, tendo sido feito com base em falsas declarações e documentos falsos;

c) Declarar assim nulo o referido registo predial a favor da Ré BB.

d) Bem como declarar-se, ter havido violação do trato sucessivo por parte das Rés que efetuaram o registo de um prédio que não lhes pertence - desde o tempo do ascendente CC que já o tinha vendido ao Pai da Autora.

e) Devendo a Ré Reconhecer a Autora como proprietária do prédio que está devida e legalmente registado em seu nome (da Autora) abstendo-se a Ré de praticar todo e qualquer ato que interfira com os direitos da Autora em relação ao seu prédio (desta).

f) Devem ser declarados nulos os atos praticados pelas Rés ora junto do serviço de finanças ora junto da Conservatória do Registo Predial, com consequente cancelamento do registo predial a favor da Ré BB.

g) Deve a Ré BB ser condenada a, consequentemente, entregar a posse do prédio, de imediato, à Autora.

(…)

Para tanto REQUER

(…)

j) Ser ordenado, pelo Tribunal, o registo da presente ação, conforme lhe compete pela alínea a) do nº3 do artº8-B do C.R.P.”

Foi ordenado o registo da ação.

Devidamente citados os RR., contestou a R. BB e reconveio, tendo em função do por si alegado, concluído nos seguintes termos:

“deve, a ação ser julgada nos termos da presente contestação totalmente improcedente, por não provada, com as legais consequências e, a final, ser a reconvenção considerada procedente, por provada, e, em consequência:

- declarar-se nulos todos os registos da descrição n.º ..., da freguesia ..., na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira, por terem sido lavrados em violação do princípio do trato sucessivo, nos termos do disposto no artigo 16°, alínea e) do Código do Registo Predial, cancelando-se a descrição e a inscrição no Registo Predial a favor da autora, e declarando-se, ainda, nulos todos os atos praticados por esta junto de quaisquer entidades e relacionados com o mesmo, com as legais consequências;

e,

- na sequência da declaração de nulidade dos registos a favor da autora ser esta condenada a reconhecer a ré BB como legítima proprietária do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º ..., prédio urbano composto por casa e Quintal, sito no lugar ..., à Rua ..., na união de freguesias ..., ... e ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., devendo esta abster-se de praticar qualquer ato que dificulte ou interfira com os direitos da ré/reconvinte relativamente ao identificado prédio,

Ou, caso assim não se entenda,

- que se declare que a ré/reconvinte, BB, adquiriu por usucapião, com efeitos retroagidos a 18.09.1996, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º ... (identificado em 91°), nos termos do disposto no artigo 1296°, do Código Civil, com as legais consequências.”

A A. apresentou réplica, respondendo ao pedido reconvencional.

Tendo, a final, concluído:

“Nestes termos e nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de Vossa Excelência, deve o pedido reconvencional improceder na íntegra.

Desde logo por ser inadmissível,

Dado não estarem preenchidos os pressupostos para que o mesmo seja formulado.

Porém, se assim não se entender,

Deve o mesmo improceder, dado não haver qualquer nulidade do registo da Autora.

Bem como não há qualquer reconhecimento de propriedade a fazer à Ré/Reconvinte,

Em relação à qual, nem à sua família há qualquer usucapião a aplicar.

Improcedendo assim, na íntegra, o pedido reconvencional.”


*

Oportunamente foi realizada audiência prévia e proferido despacho saneador. Admitido o pedido reconvencional e fixado o valor à causa.

Mais foi identificado o objeto do litígio e elencados os temas da prova, sem censura.


*

Realizada audiência de discussão e julgamento foi, uma vez produzida a prova oferecida, determinado oficiosamente pelo tribunal a quo a realização de prova pericial com vista a aferir “se o prédio que a Autora se arroga proprietária é fisicamente o mesmo prédio, atualmente da titularidade da Ré BB (artº 6º, 411ºe 477º do Código de Processo Civil).”

Perícia esta singular e cujo relatório foi junto aos autos em 20/06/2024.

Dele notificadas as partes, não apresentaram qualquer pedido de esclarecimento ou reclamação.

Após alegações orais, foi proferida sentença, decidindo o tribunal a quo:

“I - Julgo a ação totalmente improcedente, por não provada, e em consequência

absolvo os Réus dos pedidos formulados pela Autora.

II - Julgo a reconvenção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e

em consequência:

a) Declaro que a 1ª Ré/reconvinte BB, adquiriu por usucapião, com efeitos retroativos a 18/09/1996, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º ....

b) No mais, julgo a reconvenção improcedente, absolvendo a Autora/reconvinda do demais peticionado pela 1ª Ré/reconvinte.”


*

Do assim decidido apelou a A., oferecendo alegações e formulando as seguintes

CONCLUSÕES

(…)”

Apresentou a R. contra-alegações, formulando a final as seguintes

CONCLUSÕES

(…)


*

O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Foram colhidos os vistos legais.


***

II- Âmbito do recurso.

Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta serem as seguintes as questões a apreciar:

1) erro na decisão de facto – em causa os factos não provados 3 a 5 [vide conclusão 2];

2) erro na decisão de direito.


***

III – FUNDAMENTAÇÃO.

O tribunal a quo julgou provada a seguinte factualidade:

“1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira com o nº ... o prédio urbano, composto por casa de habitação com logradouro, sito na Rua ..., ..., com a área total de 1108 m2, com a área total de 1108 m2, correspondendo a área coberta com 110m 2 e descoberta com 998 m 2, correspondendo ao artigo matricial urbano ....

2. Relativamente ao prédio descrito em 1), encontra-se inscrita, pela apresentação nº 5036, de 8 de setembro de 2022, a sua aquisição, por sucessão hereditária e partilha do bens deixados por óbito de DD e mulher EE, a favor da Autora – (averb. definitivo Ap. ... de 2023/01/10).

3. Encontra-se inscrito desde 2022 no Serviço de Finanças de Santa Maria da Feira a favor da Autora, o prédio urbano, composto por casa de habitação, com o artº ... (que teve origem no artigo ...), sito na Rua ..., lugar ..., da união de freguesias ..., ... e ..., com a área total de terreno 1108 m2, área de implantação do edifício 110 m 2, área bruta de construção 110 m2 e área bruta privativa 110 m 2, como valor patrimonial de € 16.980,00.

4. Por escritura pública epigrafada Contrato de Partilha outorgada no dia 9 de julho de 2022 na Avenida ..., freguesia ..., concelho de Santa Maria da Feira, a aqui Autora e marido FF, na qualidade de primeiros outorgantes, por si, e ela ainda na qualidade de gestora de negócios de DD e GG; HH e marido II, na qualidade de segundos outorgantes; JJ, viúvo, na qualidade de terceiro outorgante; e KK, na qualidade de quarta outorgante, declararam que são os únicos interessados na herança aberta deixada por óbito de EE e de DD, e cuja herança faz parte o seguinte prédio: Prédio urbano, composto por casa de habitação, com logradouro, com a superfície coberta de 110,00 m2 e descoberta de 998,00 m2, a confrontar a norte e sul com caminho público, a nascente com LL e a poente com MM, sito no lugar ..., à Rua ..., extinta freguesia ..., atualmente união de freguesias ..., ... e ..., concelho de Santa Maria da Feira, omisso na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial urbana da referida união de freguesias no artigo urbano ....

5. … mais declararam os outorgantes que adjudicam à herdeira aqui Autora o identificado prédio, a qual aceitou.

6. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira com o nº ... o prédio urbano, descrição em livro nº ..., livro nº 70, composto por casas térreas e quintal lavradio, situado em ..., a confrontar a norte, nascente e poente com NN e a sul com caminho público (é parte do nº 23.478, B-63).

7. Relativamente ao prédio descrito em 6), encontra-se inscrita of. de 1893/06/05, a sua aquisição, por compra, a favor de OO realizada a NN casado com PP.

8. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira com o nº ... o prédio urbano, composto por casa de habitação e quintal, situado em ..., correspondendo ao artigo matricial urbano ..., a confrontar a nascente com QQ, a poente com RR, a norte com SS e a sul com caminho público.

9. Relativamente ao prédio descrito em 8), encontra-se inscrita, pela apresentação nº 2, de 27 de fevereiro de 1963, a sua aquisição, por compra, a favor de TT casado com UU, realizada a VV casado com WW.

10. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira com o nº ... o prédio urbano, composto de edifício ..., sito na Rua ..., ..., a confrontar a norte e sul com caminho, a nascente com LL e a poente com MM, correspondendo ao artigo matricial urbano ..., com a área total de 959 m2, correspondendo a área coberta com 110m2 e descoberta com 849 m2.

11. Relativamente ao prédio descrito em 10), encontra-se inscrita, pela apresentação nº 3981, de 25 de março de 2019, a sua aquisição, por compra, a favor da 1ª Ré, às 2ª e 4ª co-Rés.

12. Encontra-se inscrito desde 1996 no Serviço de Finanças de Santa Maria da Feira a favor da 1ª Ré, o prédio urbano, composto por casa antiga de r/c, omisso desde 1933, com o artº 3760 (que teve origem no artigo ...), sito na Rua ..., ..., lugar ..., da união de freguesias ..., ... e ..., com a área total de terreno 959 m2, área de implantação do edifício 110 m 2, área bruta de construção 110 m2 e área bruta privativa 110 m2, com o valor patrimonial de € 5.309,80.

13. Por escritura pública outorgada no dia 12 de março de 1941 na Secretaria Notarial sita à Praça ..., ..., CC e mulher XX, como primeiros outorgantes, declararam que por essa escritura, vendiam a DD, solteiro, na qualidade de segundo outorgante, o prédio de casas térreas com terreno a quintal junto e mais pertenças, sito no lugar ..., freguesia ..., a confinar a nascente com YY, a poente e norte com ... e a sul com caminho público, descrito na Conservatória sob o nº ..., a folhas 181 verso, do Livro ..., e inscrito na matriz sob o artº ....

14. DD pagou a SISA referente à compra do prédio identificado em 13).

15. Por escritura pública epigrafada Habilitações outorgada no dia 19 de agosto de 2011, no Cartório Notarial sito na Rua ..., ..., Gondomar, por óbito de ZZ e marido AAA, habilitaram-se como herdeiras as filhas 2ª e 4ª co-Rés.

16. Por escritura pública epigrafada Compra e Venda outorgada no dia 11 de fevereiro de 2019 no Cartório sito à Rua ..., BBB casada com CCC, aqui 4ª e 5º co-Réus, como primeira outorgante, por si e na qualidade de procuradora do seu marido; DDD, como segundo outorgante e na qualidade de procurador da 2ª Ré, declararam que por essa escritura, vendiam à 1ª Ré, na qualidade de terceira outorgante, o prédio urbano, composto de casa de habitação e quintal, sito na Rua ..., ..., da extinta freguesia ..., atualmente união de freguesias ..., ... e ..., concelho de Santa Maria da Feira, agora inscrito na matriz sob o artigo ... (proveniente do artigo ...-U-...), com o valor patrimonial de € 5.231,33, e não descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira.

17. O prédio referido em 10) e 16) fazia parte do acervo de bens da herança aberta por óbito dos avós da 1ª Ré, ZZ e AAA.

18. Em 18/09/1996, AAA (avô da 1ª Ré) participou tal prédio na matriz, através do modelo 129, entregue na 3ª Repartição de Finanças da Feira.

19. Desde então o prédio passou a estar inscrito em seu nome na matriz predial da freguesia ... sob o artigo ....

20. … desde 1996, o avô da 1ª Ré, AAA, pagou os impostos Contribuição Autárquica, IMI, depois os seus herdeiros, tia e mãe da 1ª Ré, aqui 2º e 4ª Rés e desde 2019 a própria 1ª Ré.

21. Ao longo de mais de 40 anos, era AAA quem matinha o terreno do prédio referido em 10) e 16) limpo e cultivado, no qual possuía uma horta com videiras, oliveiras e outras árvores de fruta, colhendo os seus frutos e produção.

22. … a casa esteve arrendada, durante vários anos, sendo AAA quem recebeu as respetivas rendas.

23. … por volta do ano de 2002 a casa ardeu na totalidade, ficando totalmente destruída apenas com as paredes principais a pé.

24. … foi AAA quem foi chamado a acudir ao local e quem se apresentou como dono perante as autoridades.

25. … logo após o incêndio providenciou pela construção de “cintas” de reforço ao longo das paredes, para evitar que ruíssem, suportando os respetivos custos.

26. … a longo de mais 40 anos o avô da 1ª Ré cuidou de zelar e manter limpo o quintal e o prédio.

27. …sendo a ele a quem todos os vizinhos se dirigiam para que procedesse à sua limpeza ou tratar qualquer assunto relacionado com o prédio, reconhecendo-o como seu dono.

28. … ininterruptamente.

29. …à vista de todos.

30. … sem oposição de quem quer que seja.»

Julgou ainda o tribunal a quo como não provados os seguintes factos:

«B) Os factos não provados

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente os que a seguir se enunciam:

1. Em 1963, por lapso das Finanças, foi atribuído o artigo matricial ... a um outro prédio (prédio que estava descrito sob o nº ... da freguesia ... (resultante do nº ... do Livro nº...).

2. O prédio referido em 3) dos factos provados é proveniente do prédio inscrito na matriz sob o artº ....

3. A 1ª Ré promoveu o registo predial do prédio em 10) dos factos provados, ocultando propositadamente o seu número de polícia (nº ...).

4. As Rés (e Réus), em atuação conjunto e sintonia de esforços e interesses para promover a obtenção de caderneta predial, e posteriormente, do registo predial já após a escritura, instruíram o pedido de registo do prédio referido em 10) dos factos provados, com os elementos do prédio da Autora, alicerçando tal pedido em falsas declarações e documentos falsos e/ou inexistentes.

5. A 1ª Ré deu entrada de um pedido de licenciamento de obras junto da Câmara Municipal ..., no qual mencionou que o seu prédio estava situado na “Rua ..., ...”.»


***

Conhecendo.

Da impugnação da decisão de facto.

O conhecimento da impugnação da decisão de facto, está dependente da especificação por parte do(s) recorrente(s) dos seguintes elementos, sob pena de rejeição (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):

“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

- no caso de prova gravada, incumbindo ainda ao(s) recorrente(s) [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Sendo ainda ónus do(s) mesmo(s) apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede(m) a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que as conclusões têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.

Sendo exigível que das conclusões conste, no mínimo e de forma clara, quais os pontos de facto que o(s) recorrente(s) considera(m) incorretamente julgados, sob pena de rejeição do objeto do recurso nessa parte. Podendo os demais requisitos serem extraídos do corpo alegatório.

Tendo presentes estes considerandos e analisadas as conclusões da recorrente, é possível das mesmas extrair quais os pontos da decisão de facto que impugna – factos não provados 3 a 5; os meios probatórios que a seu ver justificam o erro que imputa à decisão de facto, indicando para além de prova documental, também as passagens da gravação dos depoimentos que convocou (referência aos minutos); ainda o sentido decisório pretendido, com a respetiva introdução nos factos provados.

Têm-se assim por observados os ónus de impugnação e especificação sobre a recorrente incidentes.

Pelo que cumpre reapreciar o decidido, nesta parte.

Começando pela impugnação deduzida ao ponto 5 dos factos não provados, resulta da alegação da recorrente que tal impugnação vem sustentada no teor do doc. 14 junto pela recorrente com a sua petição e a que a mesma fez alusão no artigo 66º da sua petição. Artigo este que, mais alega, padece de manifesto lapso de escrita ao identificar o número de polícia do prédio a que ali se referiu como tendo o número “...” da Rua ..., quando não restam dúvidas de que se queria referir ao número “...”, por ser este o número de polícia do prédio em discussão nos autos e mencionado no documento para que remeteu na sua alegação.

O lapso da alegação importa reconhecer é evidente. Não só por efetivamente ser esta a identificação que a recorrente sempre atribuiu ao prédio por si invocado como de sua pertença, como também por ser o número de polícia do prédio que consta do documento para que a recorrente remeteu no por si alegado em 66º da p.i..

Acresce que o alegado em tal artigo 66º da p.i., bem como o documento junto com a p.i. e a que o ali alegado se reportou, não se mostra impugnado pela R. contestante.

Pelo que merece procedência a alteração pugnada pela recorrente, com a consequente introdução nos factos provados do seguinte ponto factual (numerado de 31):

“31. A 1ª Ré deu entrada de um pedido de licenciamento de obras junto da Câmara Municipal ..., no qual mencionou que o seu prédio estava situado na “Rua ...”.»

Pugnou a recorrente ainda pela introdução nos factos provados dos pontos introduzidos sob os números 3 e 4 nos factos não provados, cuja redação aqui se recorda:

“3. A 1ª Ré promoveu o registo predial do prédio em 10) dos factos provados, ocultando propositadamente o seu número de polícia (nº ...).

4. As Rés (e Réus), em atuação conjunto e sintonia de esforços e interesses para promover a obtenção de caderneta predial, e posteriormente, do registo predial já após a escritura, instruíram o pedido de registo do prédio referido em 10) dos factos provados, com os elementos do prédio da Autora, alicerçando tal pedido em falsas declarações e documentos falsos e/ou inexistentes.”

Defendendo a recorrente que o ponto 3 seja introduzido nos factos provados com a mesma redação nele inserida.

E que o ponto 4 dos factos provados passe para os factos provados com a seguinte redação:

“A 1ª R. instruiu o registo do prédio referido em 10) dos factos provados com os elementos do prédio da autora, alicerçando tal pedido em falsas declarações” [vide conclusões 13 e 15].

Para fundamentar a alteração assim pretendida invocou a recorrente:

i- a divergência documental resultante do facto de

. o contrato de compra e venda por via do qual a 1ª R. adquiriu o imóvel das 2ªs RR. – imóvel a que se referem os factos provados 10) a 12) e 15) e 16) – mencionar como número de polícia na sua identificação o “...”;

. número de polícia que, mais alega a recorrente, a R. já não fez constar quando promoveu o registo do prédio na CRP - inscrito sob o número ... e sem indicação de número de polícia;

. não obstante indicando já este número “...” quando requereu o licenciamento mencionado agora em 31 dos factos provados [na sequência do acima já decidido];

. número ... que resultou confirmado no relatório pericial junto aos autos, na sequência do oficiosamente ordenado pelo tribunal;

- a prova testemunhal – em causa os depoimentos das testemunhas EEE e FF, conjugado com o depoimento da R. BB para realçar – unicamente – não corresponder à verdade que a R. não conheça a autora, já que existiu uma reunião relacionada precisamente com o imóvel em causa nos autos, em casa da recorrente e à qual a R. BB compareceu.

Desta invocada divergência concluindo a recorrente, sem qualquer outra referência ou invocação de prova gravada ou outra que

“…da mesma forma que ocultou, propositadamente, conhecer a Recorrente, a 1ª Ré/Recorrida também ocultou de forma propositada o número de polícia do registo predial - porquanto indicar o número ser-lhe-ia prejudicial e levantaria outras questões.”

Para assim concluir que o ponto 3 deverá passar para os factos provados.

Devendo o ponto 4 passar para os factos provados com a redação proposta pela recorrente na medida em que “a 1ª Ré/Recorrida, ao ocultar propositadamente o seu número de polícia do registo (...), e ao registar em seu nome, na prática, o prédio que corresponde ao nº ... (o que entende através das confrontações pela mesma indicadas), o qual não lhe foi vendido, evidentemente prestou falsas declarações ao funcionário público competente.”

Analisando a argumentação da recorrente e no que à prova gravada respeita, importa assinalar que da incongruência invocada quanto ao “conhecimento” ou não conhecimento das partes por referência a uma alegada reunião, não é possível inferir nada mais no que aos factos impugnados em apreciação concerne. Implicando a irrelevância da prova gravada invocada pela recorrente para o efeito.

Acresce resultar de forma linear, quer do que foi alegado nos articulados, quer do que vem provado, que ambas as partes se arrogaram proprietárias do mesmo prédio físico, o qual veio a ser inscrito na matriz predial e descrito na CRP em duplicado.

Ambas as descrições na CRP relativamente recentes – sendo inclusive a da autora (de 2022) posterior à da R. (de 2019).

Posterior (também de 2022) sendo a inscrição na matriz do prédio que a recorrente invocou ser de sua propriedade e identificado em 1 a 5 dos factos provados] por contraponto ao prédio identificado em 10 dos factos provados, cuja inscrição é já de 1996 – embora indicando o número de polícia ... do lugar ....

A recorrente, como justificação para a recente inscrição do prédio que invocou ser de sua propriedade alegou de tal ter tido necessidade por lapso das Finanças que em 1963 atribuíram a outro prédio o artigo matricial que pertencia ao seu prédio (com o número 213). Prédio que mais alegou foi adquirido pelo pai da autora a CC em 1941.

Ora a compra de 1941 vem julgada provada em 13 dos factos provados, bem como a referência ali ao artigo matricial .... Mas, realça-se, a descrição predial é incompatível com a descrição do prédio que nos autos se discutiu – o prédio mencionado em 1941 refere confrontar com caminho público só a sul e o prédio em causa nos autos confronta a norte e sul com caminho – o que se verifica tanto para a descrição do prédio cujo registo a autora promoveu [vide factos provados 1 a 5], como para o prédio de cujo registo a R. beneficia [vide factos provados 10 a 12]. Sem que qualquer explicação tivesse sido apresentada para tal discrepância. Aliás vindo a correspondência entre o prédio registado a favor da A. e identificado em 3 dos factos provados e o prédio inscrito na matriz sob o artigo ... julgada não provada, sem impugnação.

Por outro lado, vem provado e não impugnado que o avô da 1ª R. fez inscrever o prédio identificado em 10) a 12) dos factos provados – o qual veio a à propriedade da R. por compra aos pais que por sua vez o haviam herdado do avó da 1ª R. - na matriz em 1996, desde então o utilizando nos termos apurados em 17 e seguintes dos factos provados.

Estando em causa o mesmo prédio físico, do que não há dúvidas, perante todo o circunstancialismo assinalado que vem provado e não impugnado não resulta da prova invocada pela recorrente ocorrer o imputado erro de julgamento.

Extraem-se, em consonância, da motivação da decisão de facto do tribunal a quo, entre outras, as seguintes considerações sobre a análise da prova produzida que não vêm questionadas

- quanto à coincidência do prédio físico em causa, a seguinte referência

o tribunal teve em consideração a perícia determinada oficiosamente, nos termos da qual consta as confrontações do prédio em litígio, atestando-se que o prédio que a Autora se arroga proprietária é fisicamente o mesmo prédio, atualmente da titularidade da 1ª Ré, atestando-se ainda que na planta da C.M. ... tal prédio aparece com o número de polícia ..., enquanto que na imagem Google aparece com o número ....”,

- quanto ao número de polícia ... atribuído ao prédio registado em nome da autora, a menção ao depoimento da testemunha EEE, filho da autora o qual após ter afirmado que acompanhou “o processo do prédio, com idas às finanças e Registo Central de Aveiro, munido da escritura e o pagamento da Sisa em 1941, tendo o seu avô comprado o prédio ao Sr. CC” mencionou que o “prédio não tinha número de polícia só há 2 anos é que foi atribuído.”

Permitindo a conclusão de que localizou temporalmente a atribuição deste número de polícia com a inscrição do prédio em 2022, contra o número ... atribuído já em 1996 (vide facto provado 12);

- finalmente a própria conclusão do tribunal a quo de que nada evidenciar “da prova convocada – sem prejuízo da diversidade dos números de polícia apurada – ter ocorrido uma ocultação propositada da 1ª R. na promoção do registo do número de polícia, ou ter prestado falsas declarações para tanto.”

Em suma e perante o exposto, conclui-se tal como acima já referido não evidenciar o julgamento do tribunal a quo nenhum erro que imponha decisão diversa quanto aos pontos factuais que analisamos – pontos 3 e 4 dos factos não provados.

Pelo que se decide manter o decidido pelo tribunal a quo quanto a estes pontos factuais 3 e 4 dos factos não provados.

Apenas se alterando o julgado quanto ao ponto factual 5 dos factos não provados, o qual transitou para os factos provados.

Termos em que se conclui pela parcial procedência da pretendida alteração da decisão de facto.

Adicionalmente e ainda quanto à decisão de facto, importa oficiosamente proceder à retificação da redação conferida ao ponto 12 dos factos provados. O que se determina oficiosamente, na medida em que está em causa apenas a análise de prova documental autêntica junta aos autos.

Assim em 1996 o prédio foi inscrito no Serviço de Finanças a favor do avô da 1ª R. e não desta – é o que evidencia o doc. 1 junto com a contestação, aliás em conformidade com o que foi alegado pela 1ª R. na sua contestação e também consta em 18 dos factos provados.

Tendo em 2006 sido comunicado às Finanças o falecimento do titular inscrito – vide doc. 3 junto com a mesma contestação e doc. 13 junto com a p.i., passando a constar como titular inscrito “cabeça de casal da herança aberta por óbito de AAA”. Só em 2019 constando já a 1ª R. como a titular inscrita deste imóvel – vide doc. 11 junto com a p.i.

Nesta medida tem a redação deste ponto factual 12 de ser oficiosamente corrigida por forma a nela passar a constar:

“12. Em 1996 foi inscrito no Serviço de Finanças de Santa Maria da Feira a favor do avô da 1ª Ré, o prédio urbano, composto por casa antiga de r/c, omisso desde 1933, com o artº 3760 (que teve origem no artigo ...), sito na Rua ..., ..., lugar ..., da união de freguesias ..., ... e ..., com a área total de terreno 959 m2, área de implantação do edifício 110 m 2, área bruta de construção 110 m2 e área bruta privativa 110 m2, com o valor patrimonial de € 5.309,80.

Inscrição entretanto atualizada em 2006 quanto ao titular do imóvel para o cabeça de casal da herança aberta por óbito de AAA e em 2019 para o nome da aqui 1ª R.”


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3) Do direito.

Tendo presente a alteração introduzida na decisão de facto (apenas quanto ao ponto 5 dos factos não provados que transitou sob o nº 31 para os factos provados) e concretizada oficiosamente a retificação do ponto 12 dos factos provados, cumpre aferir se a subsunção jurídica dos factos ao direito merece censura.

Para tanto e relembrando que as conclusões delimitam o objeto do recurso, assinala-se que a recorrente apenas pugnou pela revogação do decidido quanto à reconvenção, julgada parcialmente procedente, por referência ao pedido formulado sob a al. c) desta mesma reconvenção.

Nada tendo peticionado, nomeadamente, quanto à decidida improcedência do pedido pela mesma formulado e julgado totalmente improcedente, que assim transitou em julgado. Basta para tanto atentar no teor das conclusões, cuja função é delimitar o objeto do recurso.

Pendente de apreciação, como referido, apenas o segmento decisório relativo ao pedido reconvencional.

O tribunal a quo perante a factualidade que vem julgada provada, decidiu julgar procedente, e apenas procedente, o pedido formulado sob a al. c) do pedido reconvencional, declarando que a 1ª R. adquiriu por usucapião e com efeitos retroativos a 18/09/1996 [data em que seu avô participou o prédio referido em 10 e 16 dos factos provados na matriz – vide fp 18 e a partir da qual vem provada a fruição e uso que do mesmo fez, atuando como seu dono] o prédio descrito na CRP sob o número ....

Prédio este, registado na CRP a favor desta 1ª R., o que na sentença recorrida é também assinalado, declarando-se que “a 1ª Ré/reconvinte tem registado a seu favor a aquisição do prédio relativamente ao qual se arroga ser proprietária, estabelecendo a lei uma presunção – tantum juris, ou seja, sempre elidível – no sentido de que é ela proprietária deste imóvel tal qual como do registo consta (artº 7º do Código do Registo Predial)”

A A. questionou o decidido invocando, em suma, não resultar dos factos provados o cumprimento pela R. dos requisitos subjacentes à aquisição por usucapião do imóvel, na medida em que tudo o que vem julgado provado se refere a seu avô AAA.

Concluindo “por cautela académica” que apenas o avô da mesma teria direito a invocar tal usucapião. Já não a R.. Implicando o erro de julgamento do tribunal a quo ao concluir pela aquisição da imóvel por usucapião pela R., tanto que consta ter esta adquirido o imóvel por compra o que não é compatível com a usucapião. Assim pugnando pela revogação da decisão recorrida e substituição por outra que faça improceder integralmente a reconvenção apresentada.

Analisemos.

A usucapião é a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo que quando mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação - artigo 1287º do C.C. .

A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício de um direito real (artigo 1251º).

Em caso de dúvida estabelece o artigo 1252º n.º 2 do CC uma presunção de posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257º [presunção que bem se entende, atenta a dificuldade de prova que sobre este elemento intelectual poderá recair – cfr. sobre esta presunção e a consequente dispensa de prova de quem detém o poder de facto ou “corpus” de provar a “intenção de agir como titular do direito real correspondente”, Ac. TRC de 25/02/2014, Relator José Avelino Gonçalves in www.dgsi.pt].

Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente quer da validade substancial do negócio jurídico (artigo 1259º).

Diz-se de boa-fé quando o possuidor ignora ao adquiri-la que lesa o direito de outrem. Presumindo-se de boa-fé a posse titulada e de má-fé a não titulada (artigo 1260º).

No que concerne aos imóveis [tanto para o direito de propriedade como como para os demais direitos reais de gozo de acordo com o disposto no artigo 1287º do CC que nos dá a noção de usucapião acima já indicada] e conforme decorre do artigo 1294º, havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar: a) quando a posse, sendo de boa-fé, tiver durado por dez anos contados desde a data do registo; b) quando a posse, ainda que de má-fé, houver durado quinze anos contados da mesma data.

Não havendo registo do título de aquisição, mas registo da mera posse – artigo 1295º - a usucapião tem lugar: a) se a posse tiver continuado por cinco anos, contado desde a data do registo e for de boa-fé; b) se a posse tiver continuado por dez anos a contar da mesma data, ainda que não seja de boa-fé.

Por sua vez e quando não haja nem registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa-fé, e de vinte anos, se for de má-fé (artigo 1296º).

Recorda-se que a má-fé se presume quando a posse seja não titulada, por não ser fundada em modo legítimo de adquirir (1260º nº 2 do CC).

Finalmente de ter presente que por morte do possuidor, nos termos do artigo 1255º do CC, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa. Neste caso a posse ocorre “por força da lei, pela mera verificação do facto relevante, ou seja, a morte do de cujus possuidor”. E sendo assim transmitida a posse ao sucessor, prossegue este na posse que o de cujus já vinha exercendo, de forma contínua e sem interrupção, permitindo a usucapião do direito real correspondente se for o caso[1].

Atento o que está provado em 10) a 12), 15) e seguintes dos factos provados, temos que o avô da 1ª R. em 1996 inscreveu o prédio na matriz a seu favor e desde então passou a pagar os impostos, após o seu falecimento tendo as herdeiras deste e depois a 1ª R., esta desde 2019, continuado a assim proceder (vide factos provados 18 a 20).

Mais vem provado que desde há mais de 40 anos era já o avô da 1ª R. quem mantinha o prédio limpo e cultivado, colhendo os seus frutos e produção; arrendando a casa e recebendo as respetivas rendas, sendo a ele que todos os vizinhos se dirigiam para questões relacionadas com o prédio, reconhecendo-o como dono. O que fazia de forma ininterrupta, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja – vide factos provados 21 e seguintes.

Adicionalmente, vem provado que por morte do avô da 1ª R. lhe sucederam a tia e mãe, conforme escritura de habilitação de herdeiros celebrada em agosto de 2011 – vide factos provados 15 e 16 e doc. 8 junto com a p.i..

Tendo ocorrido o falecimento do avô, AAA em 2006, então já viúvo, tal como consta da citada escritura de habilitação de herdeiros.

Por sua vez estas herdeiras em 2019 vendem à aqui 1ª R. este mesmo imóvel que adviera à sua titularidade por sucessão por óbito de seus pais, ZZ e AAA – vide doc. 9 junto com a p.i..

Recordando agora que por morte do possuidor e nos termos do já citado artigo 1255º do CC, a posse se transmite aos sucessores por mera verificação da morte do de cujus, temos que desde 1996 [na verdade já desde há mais de 40 anos atento o que vem provado em 21 e seguintes dos factos provados] e até 2019, altura em que ocorre a venda à 1ª R., decorreram mais de 20 anos de posse entre o falecido AAA e os seus sucessores.

Posse que legitimaria o reconhecimento da aquisição por usucapião a favor dos sucessores de AAA à data da transmissão do imóvel para a 1ª R. em 2019.

Tal aquisição por usucapião teria, contudo de ter sido invocada por estes sucessores – vide o disposto no artigo 303º do CC ex vi artigo 1292º do CC.

Ocorre que quem invocou a usucapião, foi a 1ª R..

E a ser assim, é sobre a mesma que se tem de ter por verificada ou não a prescrição aquisitiva – aquisição originária do direito de propriedade do imóvel em causa por via da usucapião a seu favor.

Já que da presunção do registo da propriedade do imóvel a favor da aqui R. e que resulta do artigo 7º do CRP não beneficia a mesma, nos termos do AUJ 1/2017 de 23/02/2016 proferido no processo nº 1373/06.7TBFLG.G1.S1-A in www.dgsi.pt

AUJ que uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:

“Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções;”.

Nesta perspetiva, é de reconhecer razão à recorrente na crítica que aponta ao facto de nada constar nos factos provados quanto à posse da aqui 1ª R..

Na verdade, não beneficiando o meio de aquisição a favor da aqui 1ª R. da dispensa da tradição ou apreensão material da coisa que é conferida ao sucessor para a transmissão da posse, não se pode afirmar perante a factualidade provada que esta transmissão da posse operou automaticamente das vendedoras – tia e mãe da 1ª R. – para a própria 1ª R..

A posse depende da execução de atos materiais demonstrativos da ligação daquele que alega ser possuidor de determinado bem a esse mesmo bem. O ato jurídico da compra e venda não é suficiente para demonstrar a relação material inerente à relação possessória.

E da factualidade provada nada consta em relação à 1ª R., com exceção do pagamento de impostos mencionado no facto provado 20 e do pedido de licenciamento de obra mencionado agora sob o ponto 31 dos factos provados, insuficientes só por si para concluir ter a 1ª R. prosseguido/junto a sua à posse dos anteriores possuidores, para efeitos de preenchimento dos requisitos de que depende a verificação e reconhecimento da aquisição originária da propriedade por via da usucapião a favor da mesma.

Posse que em boa verdade a 1ª R. alegou na sua contestação – vide factos alegados em 87º e 88º do seu articulado que o tribunal a quo não levou, contudo, à decisão de facto – omitindo o julgamento sobre os mesmos.

Realça-se que a 1ª R. alegou nos artigos 87º e 88º da contestação que tanto ela após 2019, como as 2ª e 4ª RR. na qualidade de sucessoras continuaram a praticar os atos que antes vinha o seu avô praticando e que descrevera nos antecedentes artigos. Factualidade não considerada pelo tribunal a quo, como já assinalado.

Sem violação das regras de distribuição do ónus de prova e dos efeitos do princípio do dispositivo, afigura-se-nos que in casu ao abrigo dos poderes de averiguação que ao juiz estão conferidos (artigo 411º do CPC) deveria o tribunal a quo ter garantido o esclarecimento desta sucessão possessória alegada e objeto dos temas da prova, por indispensável ao conhecimento do mérito dos autos.

Ouvida a prova gravada, verifica-se que não foi esta sucessão de posse das vendedoras para a 1ª R. cabalmente esclarecida nem, como já referido, levada à decisão de facto. Não obstante fazer parte dos temas da prova – vide ponto 3 dos mesmos. Consequentemente estando este tribunal impedido de oficiosamente suprir tal falta, por não constarem dos autos elementos probatórios para tanto.

Por estarem em causa factos essenciais à apreciação da pretensão da R. reconvinte fundada na usucapião, impõe-se a anulação da decisão ao abrigo do disposto no artigo 662º nº 2 al. c) e 662º nº 3 al. c) do CPC para efeitos de ampliação da decisão de facto relativa a tais factos, reabrindo-se a audiência com nova produção de prova para o efeito.


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IV. Decisão.

Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em anular a decisão recorrida para cumprimento do acima ordenado, com oportuna reabertura da audiência para produção de prova e posterior prolação de nova decisão com vista ao suprimento das omissões notadas.

Custas pela recorrente.


Porto, 2025-10-13
Fátima Andrade
Teresa Pinto da Silva
Carlos Gil
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[1] Cfr. Comentário ao CC, Direito das Coisas, edição 2021 de Universidade Católica, em anotação ao artigo 1255º, p. 31; “Direitos Reais” de José Alberto Vieira, edição Almedina 2016, p. 527/528.