Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA JOANA GRÁCIO | ||
Descritores: | CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL IRREGULARIDADE DA NOTIFICAÇÃO NULIDADE DA SENTENÇA PERDA DE VANTAGENS ERRO DE JULGAMENTO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP20250409196/22.0T9AVR.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/09/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO ARGUIDO E PARCIALMENTE PROCEDENTE O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. | ||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - A notificação a que se refere o art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT não exige a concretização dos valores devidos à autoridade tributária. II - Esta norma não visa dar a conhecer ao sujeito tributário o valor em dívida, que foi pelo próprio anteriormente declarado, mas tão-somente assegurar-lhe uma derradeira oportunidade de se eximir à responsabilidade criminal, procedendo ao pagamento das quantias em dívida, juros e coima aplicável, incidindo sobre ele o ónus de colher informação, junto da autoridade tributária, sobre a dimensão concreta desses valores. III - Como tal, a existência de uma divergência entre os valores que sejam porventura incluídos da notificação efectuada ao abrigo do referido preceito legal e os que forem, a final, considerados relevantes para efeitos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social não invalida que se tenha por verificada a condição objectiva de punibilidade que a norma estabelece. IV - A perda de vantagens (perda clássica) e o pedido de indemnização pelo lesado devem conviver em simultâneo no mesmo processo, não excluindo este pedido aquela pretensão, e devendo os arguidos, sendo caso disso, ser condenados por ambas as vias. V - O objectivo do instituto da perda de vantagens (perda clássica) é o de permitir a reconstituição da situação patrimonial existente em data anterior à prática pelo agente do facto ilícito típico, impedindo que os arguidos condenados obtenham ainda assim vantagens patrimoniais indevidas. VI - Se ficou demonstrado que os arguidos pagaram os valores em dívida e acréscimos legais, antes de ser proferida a sentença condenatória, o propósito da declaração de perda de vantagens (perda clássica), isto é, a reposição da situação anterior à prática do ilícito penal, impedindo-se que os arguidos beneficiam com a prática do crime cometido, tornou-se supervenientemente inútil, não podendo o Estado receber por duas vezes nem os arguidos liquidar em dobro as vantagens que obtiveram. | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 196/22.0T9AVR.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Competência Genérica de ...
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
* Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desta sentença, solicitando a respectiva revogação, considerando que na nova decisão (transcrição): «- 1. Deverá ser declarada a nulidade da sentença uma vez que não existe qualquer fundamentação e motivação de facto e de direito na sentença quanto à não declaração da perda das vantagens obtidas pelos arguidos e, em consequência, decidiu pela não condenação dos arguidos no pagamento solidário ao Estado no valor total de €55.562,56 (oitenta e um mil setecentos e sessenta e dois euros e quarenta e oito cêntimos), que corresponde à vantagem da actividade criminosa desenvolvida pelos arguidos, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4, do Código Penal, verificando-se a nulidade prevista nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), primeira parte, do Código de Processo Penal. Caso não se entenda que existe a nulidade invocada, mas considerando o supra explanado, deverá ser declarada perdida a favor do Estado a quantia de €55.562,56 (cinquenta e cinco mil quinhentos e sessenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos), e, em consequência, os arguidos deverão ser condenados no pagamento solidário ao Estado no valor total de €55.562,56 (cinquenta e cinco mil quinhentos e sessenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos), que corresponde à vantagem da actividade criminosa desenvolvida pelos arguidos, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4, do Código Penal. 2. Deverá ser declarada a nulidade da sentença pois existem factos que constam no despacho de pronúncia (que remete para a acusação) e não constam na sentença (não constam nos factos provados, nem nos factos não provados), verificando-se a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal. 3. Atenta a prova produzida, existindo um erro na apreciação da globalidade dos elementos probatórios produzidos nos autos – erro de julgamento (cfr. artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal), deverá ser revogada a sentença recorrida na parte em que não fez constar todos os factos como provados, e substituída por acórdão que dê como provados os factos 10. e 11. da acusação (por remissão do despacho de pronúncia). 4. Os arguidos AA e BB deverão ser condenados pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de dois crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 6.º, 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105, n.ºs 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pelo artigo 1.º, da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e a arguida “A..., Lda.” (ora designada “B..., Lda.”) deverá ser condenada pela prática de dois crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 7.º, n.ºs 1 e 3, 12.º, n.º 2, 105.º, n.ºs 1 e 4, e 107.º, todos do RGIT, tal como vinham acusados/pronunciados. 5. Quanto às penas a aplicar, o Ministério Público entende por adequada, necessária e proporcional a aplicação de penas não privativas da liberdade aos arguidos, confiando no douto critério desse Tribunal superior no que respeita à determinação das medidas concretas das penas, de acordo com a ponderação da gravidade dos crimes (dois crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social) e com as exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, considerando-se que deverá ser aplicada, a final, uma pena única de multa e nunca de admoestação. Ainda que se considere que em causa estará um crime continuado, sufraga-se o mesmo entendimento/raciocínio, ou seja, que deverá ser aplicada, a final, pena de multa aos arguidos e nunca de admoestação.» Apresentou em apoio da sua posição as seguintes conclusões da motivação (transcrição): * Também o arguido BB interpôs recurso da sentença, solicitando a sua revogação e substituição por outra decisão que tenha em consideração as soluções dadas às questões que suscita, e que conduzirão à sua absolvição, apresentando em apoio da sua argumentação as seguintes conclusões da motivação (transcrição): «I. Salvo o devido respeito e merecido respeito, pelo Ilustre Tribunal subscritor da douta Sentença recorrida, que é muito, não pode o ora recorrente aceitar a decisão proferida relativamente à sua condenação na pena de admoestação pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, na forma continuada, especialmente atenuado, previsto e punido pelos artigos 14º, 1, 26º, 3ª proposição, 30º, 2, 73º, 1, a) a c), e 79º, todos do C. Penal, e dos arts. 22º, 2, 107º e 105º, 1, estes do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de junho. II. Constam dos autos quanto ao arguido BB duas notificações que lhe foram dirigidas nos termos e para os efeitos da al. b, do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT; III. Uma notificação, constante de fls. 99 a 105, de Julho de 2021, remetida pela via postal registada, com a indicação da necessidade de efectuar o pagamento do montante de € 28.763,32, tendo por referência o período compreendido entre os meses de Dezembro de 2019 a Março de 2020 e o mês de Agosto de 2020; IV. Uma notificação, constante de fls. 190, de Abril de 2022, feita pessoalmente aquando da sua constituição como arguido, no montante de € 90.275,83, sem indicação de qual o período de referência, tendo o tribunal a quo apurado no despacho de referência 129781518 de 13.11.2023 e a fls. 6 da sentença que o período de referência daquele valor é Dezembro de 2019 a Outubro de 2021 e que aquela notificação foi efectuada no âmbito de outro processo de inquérito (...); V. O arguido foi acusado e julgado nos presentes autos tendo por referência a quantia de € 55.562,56, relativa aos períodos de 01.12.2019 e de 31.03.2020 e de 01.08.2020 a 28.02.2021; VI. Ao arguido foi efectuado nos autos um pedido de indemnização civil no valor de € 51.455,67, tendo por referência os mesmos períodos da acusação deduzida; VII. O tribunal a quo deu como provado que o arguido BB só exerceu a gerência até 30.09.2020 (cfr. 3 e 6 dos factos provados); VIII. Nos presentes autos há cinco valores díspares quanto às quotizações em divida sobre o período temporal constante da acusação pública (cfr. requerimento de referência 15867531); IX. A verificação da condição objectiva de punibilidade prevista na al.b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, impõe a adopção de uma concreta conduta do agente (“a conduta de depois de notificado para o efeito, não efectuar no prazo de 30 dias o pagamento da prestação devida, juros respectivos e valor da coima aplicável”), conduta essa, que pressupõe que o agente tenha nessa actuação uma vontade livre e consciente, compreendendo que aquela é a “última possibilidade que lhe foi concedida para evitar a sua punição”. X. A notificação da al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT “destina a dar conhecimento ao devedor, com exacto rigor, das prestações em dívida, na medida em que estas são ou devem ser do seu conhecimento, pois que foi ele quem as descontou, não as entregando à Administração Tributária, como devia, visando, isso sim, dar ao devedor uma nova oportunidade para pagar, agora com os juros de mora respetivos e o valor da coima aplicável, e, desse modo, permitindo-lhe escapar à punição criminal”. XI. Não se pode considerar que a vontade do arguido de não proceder ao pagamento nos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, para terminar o procedimento criminal de efectuar o pagamento do valor de € 90.275,83 (fls. 190), referente a meses que nem sequer são objecto do presente crime (fls. 203) e sobre o qual o mesmo não tinha qualquer ligação à empresa (cfr. 6 dos factos provados), mais de um ano e meio depois ter saído da empresa (cfr. fls. 190, 200 e 6 dos factos provados) com a indicação de que aquele pagamento “poderia” determinar o final do processo de inquérito em curso foi uma vontade esclarecida quanto ao comportamento de não efectuar o pagamento no decurso dessa notificação. XII. Decorre das regras da experiência inerentes à teleologia da acção humana, que o comportamento de alguém que é notificado para efectuar o pagamento de € 90.275,83 no prazo de 30 dias para evitar o prosseguimento do processo criminal (cfr. fls. 190), que de seguida é constituído arguido (cfr. fls. 200) e em que lhe é imputada factualidade referente ao período de Dezembro de 2019 a Outubro de 2021 (cfr. fls. 203), quando já tinha passado mais de um ano e meio de ter deixado de prestar funções na sociedade, exercendo o arguido nesse período diversas funções (cfr. 19 dos factos provados), não acompanhado de advogado e num centro de segurança social de um distrito diferente ao da sede da sociedade arguida, poderia ter sido diferente se soubesse que o processo-crime em causa só se referia em abstracto a € 55.562,56 e a um período temporal compreendido entre 01.12.2019 a 31.03.2020 e de 01.08.2020 a 28.02.2021 (cfr. 5, 6, 10 e 9 da Acusação), do qual apenas era responsável pelo período compreendido até Agosto de 2020 (cfr. 3 e 6 dos factos provados). XIII. A máxima da experiência aplicável à concreta situação da existência de dois valores substancialmente diferentes é a de que a conduta de alguém que é notificado para efectuar o pagamento de € 90.275,83 no prazo de 30 dias para evitar o prosseguimento do processo criminal é poderia ser bem diferente o valor que lhe tivesse sido comunicado para o efeito fosse substancialmente inferior. XIV. A incorrecta indicação daquele valor negou ao arguido o acesso a uma informação essencial para “poder aferir da (des)conformidade do valor indicado com os montantes efectivamente em divida e para poder ajuizar sobre se dispõe e, não dispondo, sobre se consegue arranjar, no prazo de 30 dias meios de pagamento para liquidar o valor em causa”. XV. A discrepância significativa dos valores constantes da notificação efectuada nos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT é um elemento essencial e necessário à formação da vontade do arguido “de não efectuar o pagamento da prestação devida, juros e coimas no prazo de 30 dias”, consubstanciando uma irregularidade que afecta o valor daquele acto, que é condição de punibilidade do crime. XVI. Havendo assim, conforme é defendido doutrinal e jurisprudencialmente, nos termos do n.º1 do artigo 123.º do Código de Processo Penal (“CPP”) uma irregularidade relevante, que afectou, desde logo, a validade do acto de notificação, impedindo o arguido de esclarecidamente exercer o seu direito potestativo de terminar com o processo procedendo ao pagamento do valor referente à notificação que lhe foi efectuada apara os efeitos da al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT. XVII. A verificação da irregularidade da notificação de fls. 190, quanto ao montante e quanto ao período a que se refere relativamente ao objecto do processo constante da acusação deduzida, impõe nos termos do n.º 2 do artigo 129.º do CPP a sua reparação oficiosa. XVIII. A matéria constante de 7 dos factos provados, não consta da acusação deduzida nos autos a fls. 318 a 327 pela qual os arguidos foram objecto de pronúncia, não resultou da contestação apresentada pelo arguido, nem tem qualquer indicação na sentença a quo sobre a motivação que esteve subjacente à decisão sobre aquela factualidade. XIX. A matéria constante de 7 dos factos provados contém um juízo conclusivo (“não entrega no prazo legal nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo“) fundado num conceito de direito (“prazo legal”) que não é possível de ser extraído de outro qualquer facto simples e apreensível. XX. A matéria constante de 7 dos factos provados quanto “à não entrega no prazo legal nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo” contém uma valoração jurídica de factos. XXI. Assim, a factualidade constante de 7 dos factos provados, pelos motivos indicados nas 3 conclusões antecedentes não cumpre o disposto no n.º 2 do artigo 374.º do CPP, por força da al. a) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, quanto à enumeração dos factos a seleccionar na sentença, devendo em consequência considerar-se como não escrita. XXII. Podendo assim essa factualidade (“a não entrega no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo”) ser eliminada de 7 dos factos provados por esse venerando Tribunal nos termos da al. a) do artigo 431.º do CPP. XXIII. A sentença a quo, decidiu em 7 dos factos provados sobre matéria diversa da imputada em 5, 6 e 7 da acusação deduzida que consubstanciava a concreta imputação factual que o Ministério Público entendia ser suficiente para extrair a conclusão quanto à verificação do momento de consumação formal e material do crime de abuso de confiança contra a segurança social. XXIV. Em 5 e 6 da acusação não é imputado que “os arguidos não procederam à entrega dos montantes respectivos à segurança social no prazo legal”, uma vez que o prazo lá mencionado é o 15.º dia do mês seguinte, ou seja, a meio do prazo legal, constante do artigo 43.º do Código dos Regimes Contributivos; XXV. Em 7 da acusação não é mencionado “que os arguidos, como gerentes da sociedade arguida não procederam à entrega dos montantes respectivos à segurança social (…) nos 90 dias seguintes ao términus desse prazo”, uma vez que de 7 da acusação consta que “os arguidos” (sem ser na qualidade de gerentes da sociedade arguida) não procederam à entrega das quantias mencionadas em 5 e 6, sequer nos noventa dias subsequentes ao prazo mencionado nesses artigos” (“o 15.º dia do mês posterior”). XXVI. Não se verificou quanto à factualidade constante de 7 dos factos provados qualquer dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º do CPP XXVII. Assim a sentença é nula, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação deduzida, por referência à pronúncia de 23.06.2023, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP. XXVIII. A sentença a quo, decidiu em 11 dos factos provados sobre matéria diversa da imputada em 8 da acusação deduzida que consubstanciava a concreta imputação factual que o Ministério Público entendia ser suficiente para extrair a conclusão quanto à verificação do cumprimento da condição objectiva de punibilidade da al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT. XXIX. Não decorre da imputação de 8 da acusação, que a notificação a que esse facto se refere foi feita nos termos e no prazo previsto pelo art.º 105.º4, b) do RGIT, até porque toda a factualidade que lhe é anterior (5, 6 e 7 da acusação), não respeita as exigências procedimentais prévias à notificação a que alude a al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT); XXX. A factualidade constante de 11 da sentença a quo não decorre da factualidade constante de 8 da acusação, pois não menciona que a notificação a que se refere foi para efectuar o pagamento da divida, dos respectivos juros e das coimas aplicáveis, condições substanciais da notificação da al.b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT. XXXI. A factualidade constante de 11 da douta sentença a quo é diversa da factualidade constante de 8 da acusação. XXXII. Não se verificou quanto à factualidade constante de 11 dos factos provados qualquer dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º do CPP. XXXIII. Assim a sentença é nula, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação deduzida, por referência à pronúncia de 23.06.2023, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP. XXXIV. A matéria de facto constante do ponto 7 dos factos provados foi incorrectamente julgada (art.º 412, n. º 3 al. a) do CPP). XXXV. Matéria essa que não deveria ter sido julgada como provada, pois implicou uma violação do princípio da vinculação temática decorrente da estrutura acusatória do processo penal constante do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), bem como a violação do princípio da livre apreciação da prova, constante do artigo 127.º do CPP. XXXVI. Impõe decisão diversa do decidido na douta sentença (art.º 412.º, n. º3, al. b) do CPP) o cumprimento do princípio da vinculação temática, ou seja, “a subordinação do juiz do julgamento (descuramos, por não interessar para aqui a fase de instrução) ao objecto definido pela acusação (os factos dela constantes), a demarcação do thema probandum por esse objecto, e também a determinação dos limites da decisão (thema decidendum)” e o cumprimento do principio da livre apreciação da prova constante do artigo 127.º do CPP e das regras probatórias que lhe estão inerentes. XXXVII. A decisão tomada em 7 dos factos provados é diversa da factualidade que foi mobilizada pelo tribunal a quo para o julgamento constante da factualidade imputada em 5, 6 e 7 da acusação. XXXVIII. A factualidade constante de 7 dos factos provados, violou o princípio da vinculação temática, uma vez que o tribunal a quo, considerando que “os arguidos, como gerentes da sociedade arguida, não procederam à entrega dos montantes respectivos à segurança social no prazo legal (1), nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo” (2), foi além do objecto do processo definido pela acusação, ultrapassando os limites possíveis da decisão (“thema decidendum”). XXXIX. Analisada a motivação da sentença (“2.2. Motivação- páginas 10,11 e 12”) não resulta a existência de qualquer prova produzida em audiência que faça resultar a matéria constante de 7 dos factos provados. XL. Foi violado o princípio da livre apreciação da prova na valoração da factualidade constante de 7 como provada, uma vez que aquela factualidade foi valorada como provada sem qualquer suporte probatório. XLI. Nos períodos temporais a que se referem os autos (01.12.2019 a 31.03.2020 e 01.08.2020 a 28.02.2021) verificou-se a situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, que obrigou por força da Lei 1-A/2020 e por força da Lei 4-B/2021 à adopção de medidas legislativas especiais que se traduziram na suspensão do prazo de 90 dias a que se refere a al. a) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, tendo havido no primeiro período uma suspensão de prazos de 87 dias e no segundo período uma suspensão de prazos de 74 dias. XLII. Não consta dos autos, nem foi produzida qualquer prova relativamente a cada uma das quotizações em divida de quando ocorreu a data do limite para o seu pagamento face à data indicada em 5 e 6 da acusação e de quando decorreu quanto a cada uma delas o prazo de 90 dias, prazo esse que foi afectado com suspensão em ambos os períodos pelas medidas legislativas excepcionais da pandemia, constantes da Lei 1-A/2020 e da Lei 4-B/2021. XLIII. Não há nenhuma regra probatória, ou regra da experiência, que perante a ausência total nos autos da informação quanto às datas limites de entrega (“identificadas em 5 e 6 da acusação como o 15.º dia do mês seguinte”, quando o artigo 43.º do Regime dos Contributivos determina como data limite o 20.º dia do mês seguinte), nem quando, relativamente a cada uma daquelas se verificou o decurso do prazo de 90 dias (prazos esses que inclusive estiveram suspensos pelas medidas legislativas excepcionais) que permita concluir pela existência da matéria dada como provada em 7. XLIV. Assim, deve ser removido dos factos provados a matéria de facto constante de 7, provados quanto “à não entrega no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo” por violação ao princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127.º do CPP. XLV. A matéria de facto constante do ponto 12 dos factos provados foi incorrectamente julgada (art.º 412, n. º 3 al. a) do CPP). XLVI. Matéria essa que não deveria ter sido julgada como provada, pois implicou uma violação do princípio da livre apreciação da prova, constante do artigo 127.º do CPP. XLVII. Impõe decisão diversa do decidido na douta sentença (art.º 412.º, n. º3, al. b) do CPP) a análise conjugada da concreta prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, utilizada como fundamentação para a decisão sobre a matéria provada, sujeita a um exame critico daquela prova com a prova documental constante dos autos, conforme determina o n.º2 do artigo 374.º do CPP, segundo as regras da experiência. XLVIII. Consta dos autos prova documental junta antes da audiência de julgamento que foi notificada e aceite por todos os intervenientes processuais, que informa da concreta data do pagamento das quantias a que os autos se referem e do concreto circunstancialismo factual em que esse pagamento ocorreu. XLIX. Decorre da prova documental junta em 08.03.2024, através do requerimento de referência CITIUS 15855923, que o pagamento do valor em causa nos autos, foi feito por iniciativa das arguidas e antes do início da audiência de julgamento. L. As regras probatórias e as regras da experiência inerentes ao princípio da livre apreciação da prova, permitem extrair desse requerimento e da documentação que lhe foi junta a seguinte factualidade: “A arguida B..., LDA, depois de ter obtido no âmbito dos presentes autos a informação sobre o valor actualizado da divida e juros referente aos períodos em referência nos autos, pediu ao Instituo da Segurança Social a sua liquidação, tendo aquela entidade emitido e remetido em 06.03.2024 os Documentos Únicos de Cobrança n.º ...30, no valor de € 20.736,68 e ...73 no valor de € 37.346,58 que foram liquidados em 07.03.2024 a partir da conta bancária do Banco 1... da arguida B..., LDA” LI. Impõe-se assim que a factualidade constante de 12 dos factos provados, por resultar da análise crítica da prova testemunhal efectuada em julgamento e da prova documental constante dos autos, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova e por relevar para efeitos das finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º do CPP seja completada e corrigida nos seguintes termos: “A arguida B..., LDA, antes de iniciada a audiência de julgamento dos autos, depois de ter obtido no âmbito dos presentes autos a informação sobre o valor actualizado da divida e juros referente aos períodos em referência nos autos, pediu ao Instituo da Segurança Social a sua liquidação, tendo aquela entidade emitido e remetido em 06.03.2024 os Documentos Únicos de Cobrança n.º ...30, no valor de € 20.736,68 e ...73 no valor de € 37.346,58 que foram liquidados em 07.03.2024 a partir da conta bancária do Banco 1... da arguida B..., nada tendo em dívida neste momento aos competentes serviços de segurança social por conta dos períodos em análise nos autos”; LII. Não consta da acusação pública deduzida de fls. 318 a 327 dos autos e objecto de pronúncia no despacho de 23.06.2023 factualidade suficiente para o preenchimento do tipo objectivo de crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º do RGIT tendo por referência o crime de abuso de confiança fiscal previsto no n.º1 do artigo 105.º do RGIT. LIII. A factualidade constante de 5 e 6 da acusação, que o Ministério Público entendeu ser suficiente para o preenchimento do pressuposto legal do n.º1 do artigo 105º do RGIT de “quem não entregar prestação deduzida nos termos da lei (n.º2 do artigo 42.º do CRC) e que estava legalmente obrigado a entregar (n.º1 do artigo 42.º e artigo 43.º do CRC)” não é suficiente para tal. LIV. A factualidade constante de 7 da acusação, que o Ministério Público entendeu ser suficiente para o preenchimento do pressuposto legal da al. a) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, não é suficiente para tal. LV. Da conjugação da factualidade constante de 5, 6 e 7 da acusação deduzida de fls. 318 a 327, apenas se pode concluir, caso tal factualidade fosse provada, que não se verificou o pagamento de quotizações retidas das remunerações dos trabalhadores até ao 15º dia do mês seguinte (cfr. “5 e 6” da acusação) e que não houve entrega das quotizações retidas e não entregues até ao 15º dia do mês seguinte, nem no prazo de 90 dias sobre esse data; LVI. Ademais, na factualidade constante de 7, a factualidade sobre a falta de entrega das quotizações no prazo de 90 dias após o 15.º dia útil do mês seguinte, apenas é imputada aos dois arguidos de forma individual, sem a qualidade de gerentes da sociedade, não sendo tal factualidade imputada à sociedade, que é a única arguida que pode assumir a qualidade de agente do crime, pois é sobre ela que recai a obrigação legal de dedução nos termos do n.º2 do artigo 42º e artigo 43.º, ambos do CRC. LVII. Assim, a concreta factualidade constante da acusação e que definiu o objecto do processo “não constitui crime, por não conter todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminal”, padecendo a acusação pública deduzida nos autos, de um vício insanável. LVIII. A acusação pública deduzida a fls. 318 a 327 é “jurídico penalmente inócua”, faltando-lhe os factos integradores do elemento objectivo do tipo legal de crime de abuso de confiança contra segurança social tipificado nos artigos 107.º e 105.º do RGIT, em especial os do n.º1 do artigo 105.º do RGIT tendo por referência o n.º2 do artigo 42.º e artigo 43.º do CRC e os da al. a) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT; LIX. A conduta dos arguidos descrita na acusação pública de fls. 318 a 327 “é uma conduta atípica e não constituindo crime a factualidade descrita na acusação, outra solução não resta senão a absolvição dos arguidos”. LX. Da acusação pública nem sequer consta factualidade concreta referente à verificação da condição objectiva de punibilidade da al.b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, pois da factualidade constante de 8 da acusação de fls. 318 a 327, não decorre que a notificação nela descrita tenha sido efectuada pelos órgãos da Segurança Social, ou pela entidade titular da fase processual aplicável, que essa notificação tenha sido apenas efectuada depois de decorrido o prazo de 90 dias sobre a data legal de entrega das quotizações deduzidas (que não é referida na acusação) e que o cumprimento daquela notificação se destinava a evitar a instauração/prosseguimento de procedimento criminal contra os arguidos pelo crime de abuso de confiança à segurança social previsto no n.º 1 do artigo 105.º do RGIT, aplicável por referencia ao artigo 107.º do RGIT; LXI. Pelo que se impõe a absolvição de todos os arguidos por falta de preenchimento dos elementos objectivos do tipo de crime de abuso de confiança contra a segurança social. LXII. Verificando-se sobre a matéria de facto julgada como provada em 7 da sentença a quo as soluções legais acima indicadas e constantes de “C”, “D”, e “E1” das alegações a mesma não deverá constar da decisão que venha a ser tomada em consequência deste recurso. LXIII. A factualidade constante de 7 dos factos provados quanto “à não entrega no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo” deve-se considerar como não escrita por inobservância do art.374º, nº2 do CPP, por força da al. a) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP quanto à enumeração dos factos a selecionar na sentença (cfr. “C”); LXIV. A factualidade constante de 7 dos factos provados quanto “à não entrega no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo” consubstancia uma condenação em factos diversos dos descritos na acusação e na pronúncia, determinando a nulidade da sentença nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP (cfr. “D”); LXV. A factualidade constante de 7 dos factos provados quanto “à não entrega no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo” é diversa da factualidade que a deveria suportar, constante de 5, 6 e 7 da acusação. LXVI. A factualidade constante de 7 dos factos provados quanto “à não entrega no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo”, violou o princípio da vinculação temática decorrente da estrutura acusatória do processo penal, constante do n.º 5 do artigo 32.º da CRP, tendo o tribunal decidido fora dos limites da decisão (“thema decidendum”). LXVII. A factualidade constante de 7 dos factos provados quanto “à não entrega no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo”, não tem qualquer suporte probatório nos autos, não constando sequer da motivação da sentença a quo, qualquer prova produzida em audiência que faça resultar essa matéria como provada. LXVIII. Assim, a factualidade constante do ponto 7 dos factos provados quanto “à não entrega no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo” foi incorrectamente julgada (art.º 412, n. º3 al. a) do CPP ) e em cumprimento do princípio da vinculação temática e do princípio da livre apreciação da prova impõe-se decisão diversa do decidido na douta sentença, devendo a mesma ser removida dos factos provados (art.º 412.º, n. º3, al. b ) (cfr. “E1”) LXIX. Desta forma, inexistindo nos autos qualquer factualidade referente à não entrega das quotizações deduzidas, não entregues até ao 20.º dia do mês seguinte ao que se reportam (“prazo legal”- artigo 43.º CRC), nem tendo sido entregues nos 90 dias seguintes a esse prazo, inexiste na factualidade provada factualidade necessária para o preenchimento das condições objectivas de punibilidade do tipo legal de crime de abuso de confiança à segurança social, constantes do n.º1 e da al. a) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, aplicável por força do artigo 107.º do RGIT. LXX. Razão pela qual devem os arguidos ser absolvidos do crime de abuso de confiança contra a segurança social. LXXI. Não há da factualidade dada como provada na douta sentença, factualidade suficiente para a verificação do cumprimento da condição objectiva de punibilidade constante da al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, aplicável por força do artigo 107.º do RGIT. LXXII. Embora conste da factualidade constante de 11 dos factos provados a menção ao artigo 105.º, 4, b) do RGIT, a mesma tem por referência ao prazo de 30 dias, de que os arguidos foram notificados, por si e em nome da sociedade arguida, para procederem ao pagamento das quantias em divida; LXXIII. Não consta da factualidade provada sobre 11 da sentença que os arguidos foram notificados para os efeitos da al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT de que deviam efectuar o pagamento no prazo de 30 dias, das quantias em divida acrescidas dos juros e da coima aplicável. LXXIV. Pelo que a factualidade constante de 11 dos factos provados da douta sentença a quo, não é suficiente para o preenchimento da condição objectiva de punibilidade da al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, LXXV. Razão pela qual se impõe a absolvição dos arguidos sobre a prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social.» * O Ministério Público respondeu ao recurso apresentado pelo arguido BB, renovando integralmente os fundamentos invocados no recurso por si interposto e pugnando pela não verificação de qualquer irregularidade na notificação efectuada nos termos e para os efeitos do art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT. * Também o arguido BB respondeu ao recurso, apresentado pelo Ministério Público, pugnando pelo seu não provimento, aduzindo em apoio da sua posição as seguintes conclusões (transcrição): «I. A Magistrada do Ministério Público junto do ... do Juízo de Competência Genérica de ... inconformada com a sentença que condenou os arguidos na pena de admoestação pela prática, em co-autoria material, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, na forma continuada, especialmente atenuado, previsto e punido pelos artigos 14º, 1, 26º, 3ª proposição, 30º, 2, 73º, 1, a) a c), e 79º, todos do C. Penal, e dos arts. 22º, 2, 107º e 105º, 1, estes do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de junho. II. Nenhuma das cinco questões indicadas pelo Ministério Público para fundamentar o seu recurso é susceptível de ser procedente. III. Não deverá proceder a alegada nulidade da sentença por falta de fundamentação e motivação de facto e de direito quanto à não declaração da perda das vantagens obtidas pelos arguidos. IV. O tribunal a quo tomou posição na sentença proferida sobre o pedido de “perda de vantagens” deduzido pelo Ministério Público (cfr. “2.º parágrafo da página 26”); V. O tribunal a quo tem na sentença fundamentação que sustenta a decisão de “Absolver os arguidos da requerida perda a favor do Estado do produto do ilícito praticado”; VI. Desde logo deu como provada a factualidade enunciada sob o ponto 12, que fundamentou devidamente (“cfr. penúltimo paragrafo da página 11 da motivação da sentença” e “º paragrafo da página 26 da sentença a quo”) VII. Assim, as alegações constantes do ponto A.1 das alegações de recurso apresentadas (páginas 7 a 12 e as conclusões constantes de 3 a 6) carecem de qualquer fundamento, pois o tribunal a quo fundamentou a decisão de absolvição do pedido de perda a favor do estado das vantagens, e esse pedido carece de qualquer fundamentação de facto ou de direito, em face do pagamento integral efectuado em 07.03.2024. VIII. O fundamento de que a sentença a quo é nula em face do tribunal não se ter pronunciado sobre questões constantes da acusação nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, em concreto a factualidade constante de 10 e 11 da acusação também não deverá proceder. IX. A matéria dada como provada pelo tribunal a quo sob os pontos 5, 6, 7, 9 e 10 toma posição quanto à factualidade constante de 10 e 11 da acusação. X. Assim, o tribunal a quo não se deixou de pronunciar sobre questões que devesse apreciar, não se verificando a nulidade constante da al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, devendo em consequência improceder as alegações constantes de A.2 (página 14 e 15) e as conclusões constantes de 8 e 9. XI. Não deverá proceder também o fundamento da existência de “erro de julgamento nos termos do artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, por erro na apreciação da globalidade dos elementos probatórios produzidos nos autos”. XII. O recorrente Ministério Público considera que há erro de julgamento (alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP) por parte do tribunal a quo quanto à factualidade constante de 10 e 11 da acusação; a factualidade constante de 10 e 11 da acusação, consta da sentença a quo, em 5, 6, 7 9 e 10 dos factos provados. XIII. É com base nessa factualidade dada como provada que o tribunal a quo faz o enquadramento jurídico penal na douta sentença, conforme é referido na página 15 do recurso apresentado. XIV. Assim, não se verifica qualquer erro de julgamento do tribunal a quo, quanto a esta factualidade, improcedendo assim as alegações constantes de B (página 15 e 16) e as conclusões constantes de 11, 12 e 13 do recurso XV. A questão suscitada pelo recorrente Ministério Público quando “à condenação dos arguidos em 2 crimes de abuso de confiança contra a segurança social e não num crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social” também não deverá proceder. XVI. Decorre da factualidade dada como provada na sentença a quo que se verificam todos os requisitos do crime continuado mos termos do artigo 30.º do CP; XVII. Da factualidade dada como provada na sentença a quo é evidente na conduta dada como provada que há várias condutas homogéneas de execução quanto ao preenchimento do tipo penal que protege o mesmo bem jurídico, que foram igualmente praticadas da mesma forma, que foram sujeitas a um mesmo quadro exterior, evidenciando assim uma diminuição da culpa do agente, essencial à existência de crime continuado. XVIII. Pelo que, havendo a mesma circunstância exterior nos dois períodos, a decisão do tribunal a quo não é censurável, pois existiu a realização homogénea que é requerida para efeitos de aplicação do regime do crime continuado. XIX. Ademais, há conexão temporal entre os dois períodos em causa nos autos. XX. Assim, a decisão do tribunal a quo de aplicação do regime do crime continuado constante do artigo 30.º do CP não merece qualquer censura, improcedendo assim as alegações constantes de C.1 (página 16 a 20) e as conclusões constantes de 14 a 30 do recurso; XXI. A questão da “alteração da natureza das penas em que os arguidos foram condenados para pena de multa e nunca de admoestação” também deverá improceder. XXII. O recorrente Ministério Público não põe em causa a escolha de uma pena não privativa da liberdade. XXIII. O recorrente Ministério Público não concorda, mas não apresenta qualquer argumentação/conclusão que ponha em causa a concreta medida da pena de multa que o tribunal a quo aplicou a cada um dos arguidos. XXIV. Nos presentes autos, verificam-se os 3 pressupostos objectivos da aplicação da pena de substituição de admoestação constantes do n.º 1 do artigo 60.º do CP; XXV. Nos presentes autos, também decorre da factualidade dada como provada a verificação do pressuposto objectivo da pena de admoestação constante do n.º 2 do artigo 60.º do CP. XXVI. A conduta dos arguidos de reparar voluntariamente o valor em divida nos autos, depois de aprovado um plano de insolvência e de recuperação de empresa e antes do início da audiência de julgamento, sem a aplicação de qualquer pena reintegrou o bem jurídico violado, repondo a situação que existia antes da prática dos factos sem a necessidade de aplicação de qualquer pena. XXVII. Assim, a pena de admoestação realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, em concreto as de prevenção especial e geral positiva, uma vez que foi por uma conduta voluntária, antes de qualquer julgamento e da aplicação de uma pena que foi evidenciada a ressocialização dos arguidos e a estabilização contra fáctica da norma violada. XXVIII. Pelo que a decisão do tribunal a quo de que a pena de admoestação realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição não merece qualquer reparo, improcedendo assim as alegações constantes de C.2 (página 25 a 26) e as conclusões constantes de 31 a 58 do recurso» * Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde subscreveu no essencial a posição do recorrente Ministério Público, designadamente quanto à necessidade de aplicar aos arguidos penas mais graves, que assegurem as necessidades de prevenção geral, pugnando, por isso, pelo provimento desse recurso e pelo não provimento do recurso do arguido BB, por carecer de sentido a pretensão da sua absolvição. * Cumpridas as notificações a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não foram apresentadas respostas. * Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento dos recursos. * II. Apreciando e decidindo: Questões a decidir nos recursos É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1]. O Ministério Público identifica no seu recurso as seguintes questões que coloca à apreciação deste Tribunal de recurso: - Nulidade da sentença, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPPenal, por falta de fundamentação quanto à não declaração da perda das vantagens obtidas pelos arguidos; - Nulidade da sentença, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPPenal, por existirem factos que constam no despacho de pronúncia (que remete para a acusação) e não constam na sentença, nem nos factos provados, nem nos factos não provados; - Erro de julgamento em sede de matéria de facto (art. 412.º, n.º 3, al. a), do CPPenal), uma vez que deviam ter sido dados como provados os factos 10. e 11. da acusação; - Erro de julgamento em sede de direito quanto à qualificação jurídica; - Errada escolha da pena. O arguido BB identifica no seu recurso as seguintes questões cuja apreciação submete à apreciação deste Tribunal de recurso, por não concordar com a solução para as mesmas encontrada na sentença recorrida: - Decisão de improcedência do vício de irregularidade da notificação a si efectuada nos termos da al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT; - A inclusão da factualidade constante do ponto 7. dos factos provados mostra-se em inobservância do n.º 2 do art. 374.º do CPP; - Nulidade da sentença por condenar nos termos do ponto 7. dos factos provados em moldes diversos dos constantes da acusação/pronúncia deduzida nos autos, em violação da al. b) do n.º 1 do art. 379.º do CPP; - Erro de julgamento quanto à matéria dos pontos de facto provados 7. e 12. da sentença (art. 412.º, n.º 3, do CPPenal); - Enquadramento jurídico-penal quanto à prática pelos arguidos do crime de abuso de confiança contra a segurança social tipificado no n.º 1 do art. 105.º do RGIT por referência ao n.º 1 do art. 107.º do RGIT. * Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes da sentença recorrida (transcrição): «2– Fundamentação 2.1. Factos provados: 1- A sociedade arguida “A..., Lda.” (ora designada “B..., Lda.”) é uma sociedade por quotas com o NIPC ...10, atualmente (desde 12 de agosto de 2022) com sede na Rua ..., ..., ..., que tem por objeto a fabricação, reconstrução, montagem, transformação de veículos ligeiros e pesados de passageiros, de transporte de mercadorias e de veículos especiais, bem com a importação, exportação e comércio de veículos automóveis ligeiros e pesados, novos ou usados, suas peças e acessórios e dispositivos médicos e de emergência médica; 2- Anteriormente, a sociedade encontrava-se sediada na Rua ..., ...; 3- Concretamente, entre 1 dezembro de 2019 e 30 de setembro de 2020, a gerência da sociedade arguida era exercida conjuntamente pelos arguidos AA e BB, casados entre si e sócios daquela sociedade, tendo o arguido BB renunciado à gerência na segunda data acima mencionada; 4- Nos períodos abaixo descriminados, os arguidos praticaram os actos indispensáveis ao regular funcionamento da sociedade arguida, designadamente, contratando trabalhadores, procedendo ao pagamento de salários e impostos, deduzindo das remunerações dos seus trabalhadores as quantias correspondentes às quotizações devidas por estes à Segurança Social, adquirindo bens, contraindo empréstimos bancários, sendo os rostos visíveis daquela sociedade nas relações comerciais mantidas com clientes, fornecedores e entidades bancárias; 5- Assim, no período compreendido entre o dia 1 de dezembro de 2019 e 31 de março de 2020, os arguidos, no exercício daquela gerência, agindo em nome e no interesse da sociedade arguida, deduziram das remunerações dos seus trabalhadores e gerência as quantias correspondentes às quotizações devidas por estes à Segurança Social, no montante total de € 21.125,33; 6- De igual forma, no período compreendido entre o dia 1 de agosto de 2020 e 28 de fevereiro de 2021, os arguidos, no exercício daquela gerência, agindo em nome e no interesse da sociedade arguida, deduziram das remunerações dos seus trabalhadores e gerência as quantias correspondentes às quotizações devidas por estes à Segurança Social, no montante total de € 34.437,23, só tendo o arguido BB exercido a gerência até 30 de setembro de 2020; 7- Porém, após terem descontado e retido aquelas contribuições, os arguidos, como gerentes da sociedade arguida, não procederam à entrega dos montantes respectivos à segurança social no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus deste prazo; 8- Durante os aludidos períodos contributivos, a sociedade arguida atravessava grandes dificuldades financeiras, resultantes, em particular, da diminuição de encomendas e da crise generalizada decorrente da pandemia de Covid-19; 9- Os arguidos actuaram da forma descrita, aproveitando o facto de, durante todo o referido período, não terem sido alvo de qualquer fiscalização, verificando assim a possibilidade de repetir a sua conduta, utilizando as referidas quantias, sobretudo, para liquidar salários a trabalhadores e dívidas a fornecedores, ao que deram primazia; 10- Agiram deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei; 11- Os arguidos foram notificados, por si e em nome da sociedade arguida, para procederem ao pagamento das quantias em dívida no prazo de 30 dias previsto pelo art. 105º, 4, b), RGIT, o que não lograram realizar; 12- Porém, posteriormente, em sede de execução fiscal, os arguidos procederam ao pagamento integral das quantias em dívida e demais acréscimos legais, nada tendo em dívida neste momento aos competentes serviços de segurança social; 13- O arguido BB é licenciado em agronomia e administrador de empresas, com vencimento global de, sensivelmente, € 16.000,00/ mês; 14- Paga cerca de € 8.000,00/ mês para reembolso de empréstimos pessoais que contraiu para solver dívidas da sociedade arguida; 15- É casado com a arguida AA; 16- Têm 2 filhos, de 14 e 12 anos de idade; 17- Residem em casa pertencente aos pais do arguido BB; 18- A arguida AA é gestora e declara auferir o salário mínimo nacional; 19- No período de dezembro de 2019 a março de 2020 e em agosto de 2020, o arguido BB desempenhava simultaneamente funções executivas na sua sociedade unipessoal (“C..., Lda.”, pessoa colectiva ...84), numa cooperativa (“D..., CRL”) e foi Presidente da Junta de Freguesia ... e de ..., do concelho ...; 20- Do CRC dos arguidos nada consta; 21- A sociedade arguida “A..., Lda.” foi declarada insolvente por decisão proferida em 29 de junho de 2023 e transitada em julgado em 1 de agosto seguinte. * Não houve quaisquer outros factos provados ou não provados com relevância para a boa decisão da causa, ou que não estejam em oposição ou não tenham ficado já prejudicados com os que foram dados como provados. * 2.2. Motivação A decisão do tribunal assentou na conjugação dos seguintes elementos probatórios: - Teor da certidão de matrícula da sociedade arguida; - Depoimento da testemunha CC, funcionário da sociedade arguida no período temporal em preço nos autos, a qual, com relevância, deu conta de que, nas suas funções, reportava a um encarregado, o qual, por seu turno, reportava aos ora arguidos AA e BB; - Depoimento das testemunhas DD e EE, também funcionários da sociedade arguida no período temporal em preço nos autos, as quais declararam expressamente que foram os dois arguidos que as contrataram para a firma; - Com relevo, a primeira testemunha ora mencionada mais asseverou que o arguido BB tratava da parte operacional em relação aos veículos vendidos para as ilhas, sendo a esse arguido que a testemunha reportava os relatórios de assistência que elaborava; - As três citadas testemunhas, bem como a testemunha FF, confirmaram igualmente que, nos respectivos salários, lhes foram sempre descontadas as quotizações devidas à segurança social; - Assim, a despeito das demais actividades que o arguido BB desempenhava (que se mostram atestadas nas certidões de matrícula juntas com a contestação, respeitantes à sociedade “C..., Lda.” e à “D..., CRL”), bem como às funções que exerceu na Junta de Freguesia ... e de ... (o que é possível de confirmar no link ...), ficou plenamente demostrado que, no período em questão, exerceu simultaneamente a gerência da sociedade arguida; - Aliás, na certidão de matrícula da sociedade, o arguido consta como gerente entre 11 de novembro de 2014 e 30 de setembro de 2020, tendo o mesmo contraído empréstimos pessoais para acorrer a dívidas da empresa (segundo declarou ao tribunal a propósito das suas condições pessoais), o que é bem apodíctico da relação próxima que tinha com a firma (consistindo tais empréstimos em verdadeiros actos de gestão); - Depoimento da testemunha GG, técnica superior da segurança social, a qual, com conhecimento de causa, descreveu os montantes em dívida pela sociedade arguida e os períodos a que respeitavam e asseverou que os mesmos se foram integralmente liquidados no âmbito do processo de execução fiscal instaurado; - Depoimento das testemunhas HH (comercial na sociedade), II (auxiliar de escritório da empresa), JJ (que exerceu funções de consultor na empresa) e KK (área financeira da sociedade arguida), unânimes em esclarecer as dificuldades financeiras pelas quais a firma passou na altura em questão e que estiveram na génese do incumprimento com os serviços de segurança social; - Por outro lado, resulta das regras da experiência comum que, em caso de dificuldades de tesouraria (que as sobreditas testemunhas descreveram), os contribuintes acabam por descurar as contribuições devidas ao Estado, tendo em conta, desde logo, que a administração fiscal e a segurança social tardam em agir sobre os seus devedores, contrariamente ao que sucede com os trabalhadores e fornecedores da empresa, que são mais expeditos em reivindicar as quantias a que têm direito; - Mostra-se atestado documentalmente nos autos que os arguidos foram notificados, nos termos legais, para regularizarem as dívidas à segurança social; - Relativamente às condições sócio-económicas dos arguidos e aos seus antecedentes criminais, atendemos às declarações daqueles e ao teor dos CRC juntos aos autos, respectivamente; - No mais, os arguidos não contribuíram para a descoberta da verdade material, pois remeteram-se ao silêncio.»
Vejamos, então. Recurso do arguido Iniciaremos pela apreciação do recurso do arguido BB, posto que pugna pela sua absolvição, o que poderá prejudicar a argumentação recursória do Ministério Público. Segundo o recorrente, mostra-se incorrecta a decisão do Tribunal a quo de julgar improcedente a invocada irregularidade da notificação efectuada nos termos da al. b) do n.º 4 do art. 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, de 05-06 (doravante RGIT) que lhe foi feita. Considera o recorrente[2] que a sua situação é substancialmente diferente da das demais arguidas, pois «constam dos autos duas notificações que lhe foram dirigidas nos termos e para os efeitos da al. b, do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT: Acrescenta que «[q]uanto a essas duas notificações verifica-se que: i. Os meses de dez. 19, jan.20, fev,.20, mar.20 e ago.20, no valor de € 28.763,32 (fls. 100); ii. O mês de dez.19, no valor de € 66,00 (fls. 101); iii. O mês de ago.20, no valor de € 40,50 (fls. 102); iv. O mês de dez.19, no valor de € 20,94 (fls. 103); v. O mês de mar.20, no valor de € 42,77 (fls. 104); Prosseguindo a sua alegação, afirma o recorrente que «[o] tribunal a quo apurou quanto à segunda notificação de fls. 190 que a mesma se refere ao período entre Dezembro de 2019 a Outubro de 2021 (cfr. despacho de referência 129781518 de 13.11.2023 e fls. 6 da douta sentença e fls. 203); 9- Sobre as quantias em divida referentes aos autos, ao arguido, no âmbito dos presentes autos e antes da audiência de julgamento foram ainda comunicados os seguintes valores como estando em dívida: 10- No âmbito do processo, já na fase de julgamento, em 06.03.2024 o ISS informou as arguidas AA e B... (cfr. requerimento da arguida de referência 15855923 de 08.03.2024) de que à data, o montante em divida referente às quotizações e juros referentes aos meses de 12/2019 a 03/2020 e de 08/2020 a 02/2021 era no valor global de € 58.083,26 (quotizações e juros), sendo € 20.736,68 referentes ao primeiro período e € 37.346,58 referentes ao segundo período. 11- O tribunal a quo, deu ainda como provado que o arguido BB só exerceu a gerência até 30.09.2020 (cfr. 3 e 6 dos factos provados); 12- Assim, de acordo com os valores comunicados pelo ISS às arguidas (no requerimento de 06.03.2024) e que foram por aquela liquidados em 07.03.2024, o arguido BB apenas seria responsável pelos meses do primeiro período de 12/2019 a 03/2020 e de um mês do segundo período (ago/20) com o valor global de € 29.452,05, sendo esse valor de € 24.145,81 a título de quotizações e € 5306,24 a título de juros desses meses. Em face dessa informação, alega que «no processo há cinco valores díspares quanto a quotizações em divida quanto ao período temporal constante da acusação pública conforme informou o arguido o tribunal em 11.03.2024 (cfr. requerimento de referência 15867531)» e que «[a] única notificação pessoal que foi efectuada ao arguido em cumprimento da al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, foi a de fls. 190, realizada a 07.04.2022 (mais de um ano e meio depois de ter saído da gerência da sociedade) num valor global de € 90.275,83 e refere-se a um período que abrange mais de 12 meses de actividade da sociedade depois da sua saída da gerência (cfr. 3 e 6 dos factos provados, fls. 190 e 203)». Acrescenta que «[a]o arguido foi remetido em Julho de 2021, cerca de 9 meses depois de ter saído da gerência da sociedade, uma notificação por parte do Centro Distrital ... do Instituto da Segurança Social (Centro Distrital da Segurança Social com competência territorial sob a sede da arguida- cfr. 2 dos factos provados), para efeitos de cumprimento da exigência da al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, com a indicação do pagamento da quantia de € 28.763,32 e que se referia a um conjunto de meses do qual o arguido era representante legal da arguida (de dez. 2019 a ago.2020)- (cfr. 3 e 6 dos factos provados e fls. 99 a 105); 21- Em 07.04.2022, desta feita de forma pessoal e no núcleo de investigação criminal do centro distrital ... do Instituto da Segurança Social (cfr. fls. 190), foi feita uma notificação nos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT para efectuar o pagamento da quantia de € 90.275,83 (fls. 190), referindo-se essa notificação aos meses de Dezembro de 2019 a Outubro de 2021 (cfr. fls. 203) e precedendo a sua imediata constituição como arguido (cfr. fls. 200). (…) 24- O arguido em 07.04.2022 (à data em foi notificado a fls. 190 e constituído arguido a fls. 200) já não fazia parte da gerência da sociedade há mais de um ano e meio, 25- Tendo havido entre as duas notificações (cfr. fls. 99 e fls. 190) feitas por entidades diferentes, um acréscimo de valores de € 61.512,51 relativamente ao período que o arguido era por gerente. 26- Da notificação de fls. 99 consta de forma expressa a menção de efectuar o pagamento “sob pena de ser instaurado procedimento criminal”; 27- Da notificação de fls.190 já consta que “o cumprimento da presente notificação pode determinar o eventual arquivamento do processo de inquérito atualmente em curso”» Entende, por isso, que «não se pode considerar que a vontade do arguido de não proceder ao pagamento nos termos da al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, para terminar o procedimento criminal de ter de efectuar o pagamento do valor de € 90.275,83 (fls. 190), referente a meses que nem sequer são objecto do presente crime (fls. 203) e sobre o qual o mesmo não tinha qualquer ligação à empresa (cfr. 6 dos factos provados), mais de um ano e meio depois ter saído da empresa (cfr. fls. 190, 200 e 6 dos factos provados) com a indicação de que aquele pagamento “poderia” determinar o final do processo de inquérito em curso foi uma vontade esclarecida quanto ao comportamento de não efectuar o pagamento no decurso dessa notificação.» E entende que «[a] questão suscitada pelo arguido não se resume à “simples circunstância” da incorrecta indicação de valores nas duas notificações efectuadas no âmbito do processo nos termos da al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT. 30- A questão suscitada e que configura uma irregularidade processual que afecta o valor do acto praticado nos termos do n.º2 do artigo 120.º do CPP, é a de que o arguido BB, no mesmo procedimento foi objecto de duas notificações nos termos da al.b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, com um intervalo de 9 meses para o mesmo efeito, sendo que a única efectuada no âmbito de um processo- crime (cfr. fls. 190), antes da sua imediata constituição como arguido é 3,14 vezes superior à primeira e refere-se a um período superior a um ano após a sua saída da sociedade arguida», sendo certo que «o objecto do processo delimitado pela douta acusação pública se reporta ao período compreendido entre 01.12.2019 e 31.03.2020 e ao período compreendido entre 01.08.2020 e 28.02.2021 (cfr. 5 e 6 da acusação) e ao montante de prestações não entregues de € 55.562,56 (cfr. 9. e 10. da acusação).» Concluiu assim que «as duas notificações para o mesmo efeito não continham a mesma informação quanto ao desfecho resultante do pagamento dos valores nelas mencionado, mencionando a primeira a cominação sobre o não pagamento com a instauração de procedimento criminal (cfr. fls 99) e a segunda que o pagamento da quantia “poderia” determinar o arquivamento do processo criminal em curso (cfr. fls. 190).» Concluiu ainda que «[a] incorrecta indicação daquele valor negou ao arguido o acesso a uma informação essencial para “poder aferir da (des)conformidade do valor indicado com os montantes efectivamente em divida e para poder ajuizar sobre se dispõe e, não dispondo, sobre se consegue arranjar, no prazo de 30 dias meios de pagamento para liquidar o valor em causa”. 43- A discrepância significativa dos valores constantes da notificação efectuada nos termos da al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT é um elemento essencial e necessário à formação da vontade do arguido “de não efectuar o pagamento da prestação devida, juros e coimas no prazo de 30 dias”, consubstancia uma irregularidade que afecta o valor daquele acto, que é condição de punibilidade do crime, 44- Havendo assim, conforme é defendido doutrinal9 e jurisprudencialmente10, nos termos do n.º1 do artigo 123.º do Código de Processo Penal (“CPP”) uma irregularidade relevante, que afectou, desde logo, a validade do acto de notificação11, impedindo o arguido de esclarecidamente exercer o seu direito potestativo de terminar com o processo procedendo ao pagamento do valor referente à notificação que lhe foi efectuada apara os efeitos da al. b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT. 45- A verificação da irregularidade da notificação de fls. 190, quanto ao montante e quanto ao período a que se refere relativamente ao objecto do processo conforme consta da acusação deduzida, impõe nos termos do n.º2 do artigo 129.º do CPP a sua reparação oficiosa12.»
A sentença recorrida, analisando previamente ao mérito do julgamento esta mesma questão que lhe havia sido colocada pelo arguido, aqui recorrente, na sua contestação, decidiu o seguinte (transcrição):
O Ministério Público, na resposta que apresenta ao recurso do arguido afirma que «quanto à irregularidade da notificação ao arguido nos termos previstos na al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT e reproduzindo o que já constou em anterior resposta a recurso (que o recorrente, entretanto desistiu): O Ministério Público, nessa parte, adere integralmente à sentença proferida pelo Mm.º Juiz do tribunal a quo, abstendo-se de reproduzir ou explanar a decisão proferida, uma vez que se encontra fundamentada e bem decidida. Aliás, tal como referido na promoção datada de 26-10-2023, «… sempre se dirá que a existir divergência dos valores da notificação, ao abrigo do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, e da acusação, tal não afectará a validade da notificação. Na notificação em causa é irrelevante a indicação dos concretos valores em dívida, uma vez que a função subjacente à referida notificação não é de dar conhecimento do montante concreto da dívida ao devedor, mas sim conceder-lhe uma nova oportunidade para proceder ao pagamento da dívida. A lei não exige a concretização dos montantes em dívida, limitando-se a impor que o agente seja notificado para proceder ao pagamento do valor em dívida, acrescido dos juros respectivos e, quando for o caso, do valor da coima aplicável (cfr. artigo 105.º n.º 4, do RGIT). “Na notificação a que alude o artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, é irrelevante a indicação dos concretos valores em dívida, ou, pelo menos, é irrelevante que essa indicação seja feita com a menção correcta dos mesmos”. “…O que o legislador teve em vista, na prossecução de objectivos de política criminal e fiscal que visavam não só a diminuição de processos, mas sobretudo uma mais rápida e fácil arrecadação de receitas, foi, tão só, dar aos agentes devedores uma segunda oportunidade de efectuarem o pagamento das quantias devidas a cada um daqueles títulos, interpelando-os para o efeito, e oferecendo-lhes como contrapartida (caso correspondam positivamente a essa interpelação), a impunibilidade criminal das respectivas condutas. Ora, os devedores tributários que estejam interessados em fazê-lo dispõem de tempo mais do que suficiente para diligenciarem no sentido de, junto da entidade própria e que também é naturalmente aquela junto da qual o pagamento há-de ser efectuado, averiguarem o montante concreto e total que devem pagar, sendo certo que, pelo menos o montante das prestações ou contribuições já o saberão, além do mais porque já as declararam. E é evidente que, no caso de sentirem dificuldades em obter as informações necessárias junto daquelas entidades, sempre poderão transmiti-las ao tribunal, que não deixará de providenciar para que daí não resulte prejuízo para aqueles que só não efectuem o pagamento atempado devido a falhas que não sejam da sua responsabilidade”, in acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03-11-2015, relatora Maria Leonor Esteves, processo n.º 546/12.8IDFAR.E1, in www.dgsi.pt. Neste sentido, a título exemplificativo, vide acórdãos TRP de 06-01-2010, proc. n.º 130/03.7IDAVR.P1; TRG de 03-05-2011, proc. n.º 2371/07.9TABRG.G2; TRP de 23-11-2011, proc. n.º 15138/09.0IDPRT.P1; TRP de 11-01-2012, proc. n.º 7484/05.9TDPRT.P2; TRP de 17-10-2012, proc. n.º 425/10.3IDPRT.P1; TRE de 04-06-2013, proc. n.º 299/09.7IDSTB-D.E1; TRP de 07-01-2015, proc. n.º 735/09.2TAOAZ.P1; TRP de 25-03-2015, proc. n.º 3760/12.2IDPRT.P1, todos in www.dgsi.pt.». Face ao exposto, nesta parte, conclui-se pelo acerto da sentença ora recorrida e, por conseguinte, o que vem alegado pelo recorrente carece de qualquer fundamento e/ou sustentação legal, não existindo a violação de qualquer dispositivo legal.»
À semelhança do Tribunal a quo e do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, também entendemos que não assiste razão ao recorrente. Dispõe o art. 105.º n.º 4, al. b), do RGIT, aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social ex vi art. 107.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, que:
Esta redacção do art. 105.º, n.º 4, do RGIT, que passou a incluir a citada al. b), foi introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29-12 (Orçamento do Estado para 2007), tendo a natureza da formalidade ali prevista sido esclarecida pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para uniformização de jurisprudência n.º 6/2008[3], de 09-04, que definiu que[4] «[a] exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo [alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT]».
Desde a sua vigência, tem sido posição maioritária da jurisprudência o entendimento, que acompanhamos, acolhido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08-09-2021, relatado por José Eduardo Martins no âmbito do Proc. n.º 180/19.1T9SRT.C1[5], em cujo sumário consta: «O artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT (redacção conferira pela Lei n.º 53-A/2006, de 29-12) não exige que a notificação nele prevista concretize os valores devidos à autoridade tributária. II - Assim é porque o fim visado pelo legislador com a consagração daquele normativo foi o de assegurar ao sujeito tributário uma derradeira oportunidade de se eximir à responsabilidade criminal, procedendo ao pagamento das quantias em dívida e da coima aplicável, incidindo sobre ele o ónus de colher informação, junto da autoridade tributária, sobre a dimensão concreta desses valores.»
Esta mesma posição é, no essencial, a que se perfilha nos seguintes arestos (todos acessíveis in www.dgsi.pt): Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03-05-2011, relatado por Fernando Chaves no âmbito do Proc. n.º 2371/07.9TABRG.G2 «A existência de uma disparidade entre os valores constantes da notificação efectuada nos termos do artigo 105º/4 al. b) do RGIT e os que foram, a final, considerados relevantes para efeitos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, não invalida que se tenha por verificada a condição objectiva de punibilidade».
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-06-2012, relatado por Pedro Vaz Pato no âmbito do Proc. n.º 3563/07.6TAMTS.P2 «I - A notificação a que se reporta o art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, situa-se no âmbito do processo penal e não lhe são aplicadas disposições e exigências do procedimento administrativo. II - Tal notificação não se destina a assegurar a defesa do arguido no processo.»
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04-06-2013, relatado por Fernando Pina no âmbito do Proc. n.º 299/09.7IDSTB-D.E1 «I. Da notificação efectuada ao abrigo e para os efeitos do art. 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, não tem de constar a menção expressa dos montantes em dívida, atenta a natureza variável desses montantes até à concreta data da entrega no momento da liquidação efectiva dos mesmos.»
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-01-2015, relatado por Eduarda Lobo no âmbito do Proc. n.º 735/09.2TAOAZ.P1 «I. A nova redação do artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, estabelece um pressuposto adicional de punibilidade segundo o qual a não punição resultará de uma atitude positiva do agente que obsta a essa consequência penal, pagando a dívida. II. A condição de punibilidade não é a notificação para pagamento, mas sim a atitude que o contribuinte toma perante ela, liquidando (ou não) as quantias em causa [condição de não punibilidade]. III. Na notificação realizada ao abrigo do disposto no art. 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, não têm que ser indicadas as concretas importâncias em dívida.»
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-03-2015, relatado por Eduarda Lobo no âmbito do Proc. n.º 3760/12.2IDPRT.P1 «I - É admissível a indicação de factos na acusação por remissão para documento junto aos autos onde se faz a discriminação, com referência aos períodos respetivos, dos montantes alegadamente recebidos e não entregues ao Estado suscetíveis de integrar a prática de um único crime de Abuso de confiança fiscal, do art. 105.º, do RGIT. II - A sentença pode especificar a discriminação do documento sem que isso implique uma alteração substancial ou não substancial dos factos da acusação. III – O que é decisivo na notificação efetuada ao abrigo e para os efeitos do art. 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, não é a correta liquidação dos montantes em causa mas a atitude que o contribuinte assume face à mesma.»
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03-11-2015, relatado por Maria Leonor Esteves no âmbito do Proc. n.º 546/12.8IDFAR.E1 «Na notificação a que alude o artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, é irrelevante a indicação dos concretos valores em dívida, ou, pelo menos, é irrelevante que essa indicação seja feita com a menção correta dos mesmos.» Neste aresto, em apoio da posição assumida, é ainda referido o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 151/2009, de 25-03, relatado por Ana Maria Guerra Martins, afirmando-se que a interpretação que se acolhe, «no tocante aos juros devidos, já foi caucionada pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente no Ac. nº 151/2009 de 25/3/09, que respondeu negativamente à questão “de saber se “a norma extraída do “artigo 105. º, nº 4, alínea b), do RGIT segundo a qual pode ser criminalmente punido quem tenha sido notificado para pagar uma prestação tributária acrescida dos respectivos juros, sem que seja indicado o montante concreto desses juros, nem a forma de os calcular, designadamente por omissão das respectivas taxas, do período de cálculo dos mesmos e das normas legais que os prevêem” configurará uma lesão dos direitos fundamentais do recorrente ao respeito pelos princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, da CRP), da legalidade (artigo 29º, n.º 1, da CRP), da proporcionalidade (artigo 18º, n.º 2, da CRP), da plenitude das garantias de defesa (artigo 32º, n.º 1, da CRP), da boa fé e do dever de fundamentação (artigos 266º, n.º 2, e 268º, n.º 3, ambos da CRP)”.»
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16-02-2016, relatado por Alberto Borges no âmbito do Proc. n.º 501/13.0TDEVR.E1 «i. Para que se verifique a condição objetiva de punibilidade prevista no art.º 105 n.º 4 al.ª b) do RGIT não se exige que na notificação sejam indicados os concretos valores em dívida, uma que essa notificação não se destina a dar conhecimento ao devedor das prestações em dívida; ii. A condição de punibilidade constante do referido normativo legal não é a notificação que deve ser feita para o pagamento, mas sim a atitude do agente na sequência dessa notificação, a quem se exige – em seu benefício – um facere, uma atitude positiva junto da administração para aferir dos montantes concretos em dívida, já que os montantes a pagar serão sempre diferentes, pela natureza das prestações, dos constantes da notificação, uma vez que tais prestações continuarão a vencer juros até ao respetivo pagamento.»
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-10-2016, relatado por Maria dos Prazeres Silva no âmbito do Proc. n.º 263/11.6IDBRG.G1 «I) Não está ferida de irregularidade a notificação do sujeito tributário nos termos do artº 105, nº 4, do RGIT, por não haver concretizado os valores que têm de ser pagos. II) É que o legislador quis conceder ao arguido uma última oportunidade de se eximir à responsabilidade criminal por via do pagamento das quantias devidas e da respectiva coima, sendo único ónus daquele inteirar-se dos valores, junto das entidades competentes.»
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-07-2019, relatado por Cândida Martinho no âmbito do Proc. n.º 290/15.4IDBRG.G1 «I) Determina o art. 105º, nº 4, alíneas a) e b), do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributária, aprovado pela Lei 15/2001, de 5/6) que os factos (descritos nos números anteriores) só são puníveis se: a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. Acrescenta o nº 7 desse mesmo preceito legal que “Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que nos termos da legislação aplicável devem constar de cada declaração a apresentar à administração tributária” II) Ainda que tal notificação apresente alguma desconformidade em termos de valores, designadamente por não ter contemplado a quantia entretanto paga por conta da prestação tributária, tal não se traduz em qualquer irregularidade susceptível de afastar a punibilidade da conduta do recorrente. III) A notificação em apreço não se destina a dar conhecimento ao devedor, com rigor, das prestações ainda em dívida – o devedor, melhor do ninguém, sabe o que deve - mas antes, conceder-lhe uma nova oportunidade para pagar, agora já com os juros de mora respectivos e o valor da coima aplicável, e, consequentemente, uma vez liquidados tais montantes, eximi-lo de responsabilidade criminal. IV) Perante tal notificação, o que se impõe a qualquer devedor que pretenda beneficiar de tal factualidade, é que junto da administração tributária se inteire do correto valor global a pagar, seja ele o que lhe tenha sido vertido na notificação ou outro que lhe venha validamente a ser apresentado, e proceda à sua liquidação no prazo de trinta dias que lhe foi concedido.»
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-02-2021, relatado por Fernando Pina no âmbito do Proc. n.º 1129/18.4T9MTA-A.E1 «- A notificação a que alude o artº 105º, nº 4, al. b), do R.G.I.T., não tem que conter os valores exactos a pagar. - Aquilo que o legislador pretendeu foi que se concedesse ao sujeito tributário uma derradeira oportunidade de se eximir à responsabilidade criminal, procedendo ao pagamento das quantias devidas e da coima aplicável, sobre ele incidindo o ónus de se inteirar dos valores exatos em dívida junto da autoridade tributária.»
Este entendimento está em consonância com os objectivos da referida alteração legislativa, bem explícitos no Relatório do OE2007[6] quando clarifica as razões da (transcrição):
Com efeito, se na base desta oportunidade de desresponsabilização penal está uma situação de facto em que o contribuinte cumpriu as suas obrigações declarativas, mas não efectuou os pagamentos devidos, parece razoável a ilação de que a comunicação prevista no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT não se destina a dar a conhecer ao contribuinte o valor dos pagamentos em falta, pois esses ele já conhece, posto que cumpriu o dever de declarar os valores que reteve e devia liquidar, no caso perante a Segurança Social. A comunicação destina-se, sim, como se refere no relatório citado, a dar uma oportunidade aos contribuintes que se mostraram cumpridores das obrigações declarativas de regularizar a sua situação tributária, tornando desnecessária a instauração ou prosseguimento de inquérito por crime de abuso de confiança, no caso, contra a Segurança Social. Como muito bem se explica no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-11-2019, relatado por Jorge Bispo no âmbito do Proc. n.º 103/17.2T9CBT.G1[8], «[a]quilo que o legislador pretendeu foi que se concedesse ao sujeito tributário uma derradeira oportunidade de se eximir à responsabilidade criminal, procedendo ao pagamento das quantias devidas e da coima aplicável, sobre ele incidindo o ónus de se inteirar dos valores exatos em dívida junto da autoridade tributária. Ao arguido que esteja interessado em efetuar o pagamento caberá diligenciar junto dessa entidade pelo apuramento do montante exato em dívida e do total a pagar, sendo certo que o valor das prestações retidas e não pagas serão do seu conhecimento, porque as declarou, o mesmo sucedendo com eventuais pagamentos parcelares que entretanto tenha efetuado. Daí que seja defensável o entendimento de que a notificação em apreço não se destina a dar conhecimento ao sujeito tributário, com exatidão, das prestações ainda em dívida, uma vez que ele próprio delas terá conhecimento, mas sim conceder-lhe uma nova oportunidade para pagar, agora já com os juros de mora respetivos e o valor da coima aplicável, a fim de se eximir à sua responsabilidade criminal. Decisivo para a verificação da condição objetiva de punibilidade é que o arguido não venha a ser condenado por falta de pagamento de prestações tributárias em relação às quais não lhe foi dada a oportunidade de proceder à respetiva regularização, o que, manifestamente, não é o caso dos autos. Aliás, importa realçar que a condição de punibilidade não reside, em si mesma, no conteúdo concreto da notificação efetuada pela entidade tributária, mas sim na atitude que o contribuinte toma perante ela, liquidando ou não as quantias em dívida.»
Compulsados os autos mostra-se correcto que o arguido aqui recorrente foi notificado por duas vezes para os efeitos do disposto no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT: - Uma primeira, a 15 de Julho de 2021, para que procedesse ao pagamento da dívida à Segurança Social por parte da Sociedade A..., também arguida nos autos, referente aos «períodos de 12/2019 a 5/2020 e 8/2020 no valor de 28.763,32 € (vinte e oito mil setecentos e sessenta e três euros e trinta e dois cêntimos), respeitante às cotizações retidas dos salários pagos aos seus trabalhadores e membros dos órgãos estatutários, não tendo os respetivos montantes sido entregues à Segurança Social no prazo legal nem nos 90 dias a ele posteriores.» Mais informava a referida notificação que «[s]obre essas cotizações são devidos juros de mora calculados à taxa legal em vigor, até à data do seu integral pagamento», que tal «facto constitui indício da prática do crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo art.º 107.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT)» e que o destinatário ficava notificado «nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT, para proceder ao pagamento, no prazo de 30 dias», do valor indicado, «sob pena de ser instaurado procedimento criminal.» - Uma segunda vez, a 07-04-2022, «para, no prazo de 30 dias, pagar ou apresentar prova de ter pago o valor das quotizações em dívida à Segurança Social.» Mais se informava que «[o] valor das quotizações retidas e não entregues à Segurança Social é de 90 275,83 euros, sendo que a esse valor somam-se os juros de mora e a(s) coima(s) aplicável(is). O valor final vai depender da data em que for efetuado o pagamento uma vez que os juros de mora aumentam por cada mês de atraso no pagamento. O cumprimento da presente notificação pode determinar o eventual arquivamento do processo de inquérito atualmente em curso», identificando-se lateralmente o art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.
À luz da análise antecedente, as notificações efectuadas contêm a informação necessária ao cabal cumprimento da comunicação prevista na al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT. As diferenças quanto aos montantes que vêm indicados decorre, naturalmente do diferente período de tempo em causa, posto que a segunda notificação ocorreu muitos meses após a primeira, pelo que nenhuma incorrecção se verifica na realização desta segunda notificação. Pelo contrário, foi uma segunda oportunidade que foi conferida ao recorrente para liquidar as quantias em dívida recorrentes da sua gerência. E caso tivesse procurado liquidar aquilo que decorria da sua responsabilidade como gerente da sociedade arguida certamente não estaria agora a discutir a sua responsabilidade criminal.
Aliás, como bem se referiu no já citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-11-2019, a não se entender como não determinante a indicação de valor em dívida na comunicação a que alude o art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, seja por total omissão de indicação, seja por menção diversa ao valor em dívida, o resultado seria o de que «sempre que da prova produzida resultasse uma redução do valor considerado em dívida na acusação, haveria que concluir no sentido da não verificação da condição objetiva de punibilidade, o que seria absurdo.» Caberia ao recorrente, em tempo e querendo, ter procurado junto da Segurança Social a liquidação dos valores em dívida no período em que exerceu a gerência da sociedade arguida. Por fim, a diferente cominação que o recorrente invoca decorre, naturalmente, do momento processual em que é feita a notificação, mas em qualquer dos casos o destinatário da notificação compreende que a realização do pagamento das quantias em dívida determina a não responsabilização criminal. E o uso do termo eventual usado na segunda notificação não impede o regular alcance o acto, pois não pode ser desligado da informação antecedente, que a comunicação também incorpora, de que o valor final [a pagar] vai depender da data em que for efetuado o pagamento uma vez que os juros de mora aumentam por cada mês de atraso no pagamento. Podemos, assim, concluir que as notificações realizadas não padecem de qualquer irregularidade e muito menos de irregularidade que determinasse a reparação oficiosa do acto, uma vez que nenhum dos argumentos avançados pelo recorrente permite concluir que foi afectado o valor do acto praticado, como se exige no art. 123.º, n.º 2, do CPPenal. As comunicações realizadas em cumprimento do disposto no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT cumpriram a sua função. A inércia do recorrente é que impediu o resultado favorável que as notificações previam. Improcede, pois, este segmento do recurso. * Prosseguindo o seu recurso, pretende o recorrente BB que se deve determinar como não escrita a factualidade constante do ponto 7. dos factos provados, por inobservância do n.º 2 do art. 374.º do CPP, por força da al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPPenal Invoca o recorrente que na enumeração dos factos provados e não provados deve o Tribunal atender ao disposto no n.º 4 do art. 339.º do CPPenal, o que no caso dos autos não aconteceu, porquanto:
Vejamos. O art. 379.º, n.º 1, do CPPenal elenca os casos de nulidade da sentença, que ocorre quando esta (ou o acórdão): a) - não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; b) - condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º; c) - deixar de se pronunciar sobre questões que o tribunal devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Por sua vez, prevê o art. 374.º, n.º 2, do CPPenal que ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Ora, o recorrente não invoca qualquer argumento que fragilize a sentença com a nulidade prevista na al. a) do n.º 1 do art. 379.º do CPPenal, pois não identifica qualquer omissão de fundamentação. Aliás, o recorrente, verdadeiramente, não argúi qualquer nulidade, pretendendo apenas que o ponto 7 da matéria de facto provada seja dado como não escrito nos termos do art. 431.º, al. a), do CPPenal. Talvez pretendesse invocar a al. b) do n.º 1 do art. 379.º do CPPenal ([é] nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º), tanto assim que invoca o não cumprimento do disposto no n.º 4 do art. 339.º do mesmo diploma legal ([s]em prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º). Porém, já existe um segmento do recurso com esse fundamento, pelo que o que aqui aborda será diferente, embora não se perceba bem qual o alicerce legal e a invalidade respectiva. Considera o recorrente que a acusação não contém a factualidade constante do ponto 7. da matéria de facto provada ([p]orém, após terem descontado e retido aquelas contribuições, os arguidos, como gerentes da sociedade arguida, não procederam à entrega dos montantes respectivos à segurança social no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus deste prazo), que também não resulta da contestação, nem, tão-pouco, da prova produzida, já que a motivação a não menciona. O recorrente considera ainda que se trata de facto conclusivo e que contém uma valoração jurídica dos factos. O ponto 7. da acusação, posteriormente reproduzido na decisão instrutória, referia que «[o]s arguidos AA e BB não procederam à entrega das quantias mencionadas em 5 e 6, sequer, nos noventa dias subsequentes ao prazo mencionado nesses artigos.» O prazo referido nos antecedentes pontos 5. e 6. da acusação é o décimo quinto dia do mês imediatamente seguinte àquele a que respeitavam as quantias retidas correspondentes a quotizações devidas pelos trabalhadores à Segurança Social. A redacção adoptada pelo ponto 7.º dos factos provados nenhuma alteração em termos substanciais introduz relativamente ao texto da acusação, sendo a própria lei que recorre à expressão prazo legal (a al. b) do n.º 4 do art. 105.º ex vi art. 107.º do RGIT prevê que [o]s factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação)[9]. Este prazo legal resulta directamente da lei e é sempre o mesmo, mas em termos práticos varia consoante a factualidade subjacente, tendo por referência os meses a que respeitam as retenções realizadas. A técnica que aqui se questiona não é incorrecta, nem se pode dizer que corresponde a juízo conclusivo ou que contém uma valoração jurídica dos factos, já que o prazo legal em si é certo e está previsto na lei. Esta é uma característica dos crimes tributários, que têm subjacentes regras técnicas muito específicas, mas isso em nada afecta a validade das normas respectivas e nessa decorrência das decisões que os concretizam. Veja-se, por exemplo, a propósito da violação do princípio da legalidade, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 698/2016 (relatado por Joana Fernandes Costa e acessível em www.tribunalconstitucional.pt) sobre o «tema da compatibilidade com o princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29.º da Constituição, das normas penais constantes do RGIT que, no específico âmbito do estabelecimento dos critérios operativos dos chamados limites negativos da punição (cf. Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Coimbra Editora, p. 304) — ou, na terminologia acolhida pelo Acórdão recorrido, das “cláusula[s] objetiva[s] de extinção das responsabilidade” (cf. fls. 698) − elegem como “valores a considerar” para o efeito aqueles que “nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”..» e que nenhuma inconstitucionalidade encontra nessa área com tais fundamentos.
Por outro lado, o decurso do prazo legal decorre da tramitação do próprio processo, da documentação nele existente e, naturalmente do decurso do tempo, sendo certo que «[c]onstitui jurisprudência sedimentada que as provas pré-constituídas não têm que ser lidas ou reproduzidas, enquanto tal, na audiência, naturalmente desde que submetidos à discussão e exercício do contraditório»[10], o que no caso ocorreu, considerando a prova indicada na acusação. Como tal, nenhuma invalidade processual se identifica na configuração deste facto provado 7. Improcede, pois, esta parcela do recurso. * O recorrente invoca ainda a nulidade da sentença, por violação da al. b) do n.º 1 do art. 379.º do CPP, ao condenar por factos provados (ponto 7.) diversos dos constantes da acusação/pronúncia deduzida nos autos, posto que o 15.º dia do mês seguinte a que se referem os pontos 5., 6. e 7. da acusação não correspondem ao prazo legal, identificando, apenas, o meio desse prazo, que vem estabelecido no art. 43.º do Código dos Regimes Contributivos ([o] pagamento das contribuições e das quotizações é mensal e é efectuado do dia 10 até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que as contribuições e as quotizações dizem respeito).[11] Mais entende que este desacerto entre o prazo legal de pagamento à Segurança Social das quantias retidas referido na sentença recorrida e o prazo identificado com o 15.º dia do mês seguinte na acusação contamina igualmente o facto provado 11. ([o]s arguidos foram notificados, por si e em nome da sociedade arguida, para procederem ao pagamento das quantias em dívida no prazo de 30 dias previsto pelo art. 105º, 4, b), RGIT, o que não lograram realizar), tendo por comparação o ponto 8. da acusação ([a]cresce que os arguidos AA e BB e a sociedade arguida foram devida e regularmente notificados para procederem ao pagamento, em 30 (trinta) dias, das supra apontadas quantias, acrescida dos respetivos juros e do valor da coima aplicável, não tendo procedido a tal pagamento) e o encadeamento temporal dos factos 5., 6. e 7.. Por outro lado, afirma ainda o recorrente, o ponto 11. dos factos provados menciona a notificação no prazo de 30 dias previsto pelo art. 105º, 4, b), RGIT e o ponto 8. da acusação não menciona que a notificação efectuada o foi ao abrigo do mencionado preceito. Concluiu o recorrente que: «78- A acusação pública com a concreta imputação efectuada em 5, 6, 7 e 8 dos factos, é “jurídico penalmente inócua”, faltando-lhe factos integradores do elemento objectivo do tipo legal de crime de abuso de confiança contra a segurança social tipificado nos artigos 107.º e 105.º do RGIT; 79- Mais concretamente, da acusação pública de fls. 318 a 327 não há narração de factos que concluam que: 80- Pelo que a nem a conduta da sociedade arguida, nem por extensão a conduta dos arguidos narrada na douta acusação pública contém “todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminal”, consubstanciando três condutas não puníveis. 81- Pelo que não pode o tribunal a quo “introduzir em juízo factualmente os elementos relativos ao tipo (que não foram narrados na acusação) pois consistira em convolar uma conduta não punível em punível”»
Mais uma vez, não assiste razão ao recorrente. Com efeito, esquece o arguido BB na sua alegação que o ponto 9. da acusação ([e]m face da conduta supra descrita, assumida pelos arguidos AA e BB e pela sociedade arguida, tais valores nunca chegaram a dar entrada nos cofres da Segurança Social, antes tendo sido apoderados e gastos pela sociedade arguida em proveito próprio) reconhece que a 14-10-2022 (data da dedução da acusação) não haviam sido pagos os valores em dívida discriminados nos quadros que se seguiram nesse mesmo ponto. Considerando que os factos mais recentes da acusação respeitam ao dia 28-02-2021 (ponto 6.), fácil é perceber que o diferencial de 5 dias (diferença entre o 15.º e o 20º dia do mês seguinte) do qual o recorrente pretende extrair a ideia de que a acusação era inócua, não permitindo a sua condenação, mostra-se sem qualquer fundamento, pois o período que decorreu desde a última das datas imputadas até 14-10-2022, isto é, um ano sete meses e dezasseis dias, permitiu o decurso do prazo de pagamento voluntário, do prazo de noventa dias sequente e do prazo suplementar de 30 dias, mostrando-se a acusação suficientemente completa para permitir a condenação dos arguidos nos termos da qualificação jurídica imputada. A reorganização do texto da sentença recorrida no que respeita aos pontos de facto provados 7. e 11. não traduz, no que às questões aqui suscitadas respeita, qualquer modificação dos factos imputados, mostrando-se inócua, essa sim, a menção ao art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT que se fez inscrever no ponto 11. dos factos provados. Improcede igualmente este segmento do recurso. * De seguida, suscita o recorrente o erro de julgamento quantos aos factos provados 7. e 12., tendo presente o art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPPenal. Como argumentos, volta a trazer à colação a diferente redacção do ponto de facto provado 7. relativamente ao texto da acusação, com os fundamentos já aduzidos nos pontos anteriores e ainda com a justificação de que o ponto 7. da acusação menciona apenas os arguidos não procederam à entrega das quantias mencionadas em 5 e 6, sequer nos noventa dias subsequentes ao prazo mencionado nesses artigos, sem indicação de que actuarem na qualidade de gerentes da sociedade arguida, menção que veio a integrar o texto do ponto 7. dos factos provados. Esta redacção, conclui, excedeu os limites do “thema decidendum”. Invoca ainda que não há nenhum suporte probatório que permita a conclusão dos factos provados nesse ponto 7. dos factos provados, pois «impunha-se que explicitamente constasse dos autos prova com a concreta indicação dos prazos legais incumpridos e do concreto prazo de 90 dias a contar do termo de cada um deles, devendo a motivação da sentença a quo expressamente os referir», acrescentando que não foi produzida prova que demonstrasse a interferência nos prazos para entrega de quantias à Segurança Social dos períodos de suspensão, por 87 dias e 74 dias, respectivamente, decorrentes das Leis 1-A/2020 e 4-B/2021 (Leis COVID). Concluiu, assim, pela remoção do ponto 7. dos factos provados do segmento “à não entrega no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus desse prazo”. O recorrente reclama ainda a alteração do facto provado 12. ([p]orém, posteriormente, em sede de execução fiscal, os arguidos procederam ao pagamento integral das quantias em dívida e demais acréscimos legais, nada tendo em dívida neste momento aos competentes serviços de segurança social), realçando a circunstância de o pagamento ter sido realizado antes do início da audiência de julgamento, entendendo que lhe devia ser dada a seguinte redacção: Vejamos. Na análise desta pretensão do recurso importa ter presente que resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto. As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração realizada pelo Tribunal a quo, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados. Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo, é necessário que essa versão seja a única admissível. E, na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto. É necessário que os recorrentes demonstrem que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, e não à consignada pelo Tribunal. E na análise da prova que apresentam na sua impugnação da matéria de facto têm os recorrentes de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.
Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[12]:
E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância. Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[13]:
Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, apreciemos a argumentação do recurso. E o problema que, desde logo, se suscita é o do cumprimento das formalidades legais necessárias à reapreciação da matéria de facto com tal amplitude. Com efeito, para a perfectibilização do recurso com esta natureza e dimensão, formalmente, têm os recorrentes de cumprir o preceituado no art. 412.º, n.º s 3 e 4, do CPPenal, isto é:
Mais, devem explicitar relativamente a cada facto impugnado, fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova, os elementos de prova que impõem decisão diversa e qual o sentido dessa decisão. E a referência aos meios de prova que impõem decisão diversa deve ser realizada com menção às concretas parcelas que corroboram a sua posição e com expressa indicação dos elementos relevantes para efeitos do disposto no n.º 4 do art. 412.º, do CPPenal[14]. Ora, relativamente ao ponto 7. da matéria de facto provada o recorrente começa por invocar argumentos que respeitam ao uso da expressão prazo legal e não 15.º dia do mês seguinte, como se indica na acusação, matéria que ficou apreciada nos pontos antecedentes, nada mais havendo a argumentar. Na mesma linha de raciocínio – que, verdadeiramente, não tem a ver com o erro de julgamento em sede de matéria de facto – invoca o recorrente que no ponto 7. da matéria de facto se refere a qualidade de gerentes dos arguidos ([p]orém, após terem descontado e retido aquelas contribuições, os arguidos, como gerentes da sociedade arguida, não procederam à entrega dos montantes respectivos à segurança social no prazo legal, nem nos 90 dias seguintes ao terminus deste prazo), qualidade que não vem mencionada no ponto 7. da acusação. Esta invocação não tem qualquer fundamento – para além de não se enquadrar do objecto da norma invocada –, pois a acusação refere no ponto 3. que à data dos factos a gerência da sociedade arguida era exercida conjuntamente pelos arguidos AA e BB; no ponto 4. menciona-se que eram os arguidos quem, nos períodos a que se reportam os factos descritos na acusação, praticavam todos os actos indispensáveis ao regular funcionamento da sociedade arguida; e nos pontos 5. e 6. afirma-se que nos períodos aí mencionados os arguidos, no exercício dessa gerência, em nome e no interesse da sociedade deduziram das remunerações dos trabalhadores as quantias correspondentes às quotizações devidas à Segurança Social, retiveram-nas, mas não as entregaram àquela entidade, fazendo-as suas. Nesta decorrência a actuação consignada no ponto 7. da acusação decorreu, por força do mencionado nos pontos antecedentes, da qualidade de gerentes da sociedade arguida, nenhuma incorrecção sendo de apontar por esta via à redacção do ponto 7. da matéria de facto provada da sentença recorrida. No que concerne à falta de prova para dar como demonstrado o ponto 7. da matéria de facto provada, posto que, segundo o recorrente, «impunha-se que explicitamente constasse dos autos prova com a concreta indicação dos prazos legais incumpridos e do concreto prazo de 90 dias a contar do termo de cada um deles, devendo a motivação da sentença a quo expressamente os referir», lembra-se o recorrente que está em causa a prática de condutas omissivas que decorrem do mero decurso do tempo estabelecido na lei. Ora, da fundamentação da sentença recorrida consta que «[a]s três citadas testemunhas [CC, DD e EE], bem como a testemunha FF, confirmaram igualmente que, nos respectivos salários, lhes foram sempre descontadas as quotizações devidas à segurança social» E ainda que a testemunha «GG, técnica superior da segurança social, a qual, com conhecimento de causa, descreveu os montantes em dívida pela sociedade arguida e os períodos a que respeitavam e asseverou que os mesmos se foram integralmente liquidados no âmbito do processo de execução fiscal instaurado». Os prazos legais estabelecidos no Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei 110/2009, de 16-09, e no art. 105.º, n.º 4, als. a) e b), ex vi art. 107.º, ambos do RGIT não decorrem de qualquer elemento probatório, mas do simples decurso de tempo perante os factos apurados de acordo os elementos de prova referidos. Acresce que também constam dos autos elementos documentais onde estão vertidas informações da Segurança Social relativas a pagamentos em falta. O recorrente limitou-se a dizer que não havia prova, ignorando a que foi invocada na sentença para dar como provado o facto descrito, não a infirmando, nem demonstrando que se impunha decisão diversa da proferida. Acresce que, mesmo que se tenham em conta os períodos de suspensão, por 87 dias e 74 dias, respectivamente, decorrentes das Leis 1-A/2020 e 4-B/2021 (Leis COVID), o prazo acima apurado de um ano sete meses e dezasseis dias, que decorreu entre o último facto referente a 28-02-2021 e a data da acusação (14-10-2022), permite abarcar o decurso do prazo de pagamento voluntário, do prazo de noventa dias sequente, dos apontados 161 dias de período suspensão decorrentes das Leis COVID e ainda do prazo suplementar de 30 dias nos termos do art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT (tendo por referência a notificação de Abril de 2022). A conclusão será sempre a de que decorreram todos os prazos previstos na lei sem que tenha sido realizado qualquer pagamento das quantias identificadas na sentença, que se mantinham em dívida à data da acusação.
No que concerne ao ponto 12. dos factos provados não se percebe a relevância da alteração pretendia, sendo que a informação que consta desse mesmo ponto de facto, não identificando se antes ou após o início do julgamento, afirma o pagamento integral das quantias em dívida, o que decorre aliás, do depoimento da testemunha GG, sendo o suficiente para se retirar em benefício dos arguidos as legais consequências. Improcede, pois, este segmento do recurso. * Por fim, invoca o recorrente a questão do enquadramento jurídico-penal e a falta de preenchimento do tipo legal do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social. Neste segmento, começa por retomar a questão, já abordada, da [in]validade da acusação para permitir a configuração dos crimes imputados, dado, na sua perspectiva, se mostrar factualmente incompleta – segundo o recorrente a acusação refere incorrectamente os prazos para pagamento das quantias em dívida, não está indicada factualidade suficiente para demonstrar o cumprimento da condição objectiva de punibilidade e não menciona a actuação dos arguidos como gerentes -, sendo, por isso, inócua para o fim a que se propôs. Contudo, as falhas a imputar à acusação devem ser arguidas até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito, conforme resulta do disposto no art. 120.º, n.º 3, al. c), do CPPenal. Depois disso, e passando a acusação pelo crivo da instrução, como ocorreu no caso dos autos, resta ao recorrente impugnar os factos da sentença, não mais estando em aberto a possibilidade de criticar a acusação enquanto peça processual. A relevância da acusação e dos factos nela consignados nesta fase processual apenas se pode manifestar na apreciação de nulidade da sentença, nos termos do art. 379.º do CPPenal. Mas essa análise já foi realizada em pontos antecedentes e nenhuma falha se apurou que pudesse ser imputada à sentença relativamente às questões suscitadas. Assim, no âmbito deste recurso, nada mais se oferece referir quanto à acusação. Num segundo momento deste segmento do recurso, agora centrado na decisão recorrida, o recorrente volta a mencionar que o ponto 7. da matéria de facto provada não deve constar da sentença, pelas razões já invocadas em capítulos anteriores, e que não está factualmente demonstrado (ponto 11. dos factos provados) o cumprimento da condição objectiva de punibilidade a que alude o art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, pelo que a sentença não contém factos suficientes para permitir a condenação dos arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, que do mesmo devem ser absolvidos. Todas estas matérias foram já anteriormente apreciadas, não sendo detectadas quaisquer invalidades e não se reconhecendo razão ao recorrente nas suas pretensões de alterar a matéria de facto provada, pelo que, não havendo novos argumentos, por esta via, nenhuma alteração se impõe decretar à sentença recorrida. Improcede na totalidade o recurso do arguido BB. * Recurso do Ministério Público Inicia o recorrente a sua peça recursória invocando a nulidade da sentença, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPPenal, por falta de fundamentação quanto à não declaração de perda das vantagens obtidas pelos arguidos, que entende deve ser decretada. Caso não se reconheça a existência de nulidade, pede que seja «declarada perdida a favor do Estado a quantia de €55.562,56 (cinquenta e cinco mil quinhentos e sessenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos), e, em consequência, os arguidos (…) condenados no pagamento solidário ao Estado no valor total de €55.562,56 (cinquenta e cinco mil quinhentos e sessenta e dois euros e cinquenta e seis cêntimos), que corresponde à vantagem da actividade criminosa desenvolvida pelos arguidos, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4, do Código Penal.» Entende o recorrente que «o legislador nacional estabeleceu o confisco das vantagens como uma medida obrigatória, subtraída a qualquer critério de oportunidade, e que ocorrerá sempre, por imperativo legal, que com a prática do crime tenham sido gerados benefícios económicos – como claramente resulta do disposto no artigo 110.º do Código Penal, na redação introduzida com a Lei 30/2017, reproduzindo, no essencial, o disposto no art.º 111º do Código Penal, na versão anterior à entrada em vigor daquele diploma legal.» Invoca jurisprudência em abono da sua posição, incluindo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para uniformização de Jurisprudência n.º 5/2024, de 11-04, que decidiu: «Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto.» Contudo, não lhe assiste razão. A sentença recorrida decidiu absolver os arguidos da requerida perda a favor do Estado do produto do ilícito praticado (al. d) do dispositivo) e justificou tal solução com a afirmação de que não haverá lugar à requerida perda a favor do Estado do produto do ilícito praticado, uma vez que os arguidos já procederam à sua integral liquidação. Embora de forma sucinta, o Tribunal a quo não deixou de justificar a decisão de não condenar na perda de vantagens: os arguidos já procederam ao integral pagamento ao Estado das quantias em dívida. Esta afirmação tem de ser analisada em conjugação com o facto provado 12 que refere que «em sede de execução fiscal, os arguidos procederam ao pagamento integral das quantias em dívida e demais acréscimos legais, nada tendo em dívida neste momento aos competentes serviços de segurança social», permitindo, assim, considerar cumprido o dever de fundamentação, já que é perfeitamente perceptível a razão que levou o Tribunal a quo a absolver os arguidos do pedido de perda de vantagens. Não tem, por isso, razão o recorrente ao invocar a nulidade da sentença com o argumento indicado e também não tem razão ao pedir que seja declarada perdida a favor do Estado a quantia de €55.562,56 e que sejam os arguidos condenados no pagamento solidário ao Estado no valor total de €55.562,56. Com efeito, a jurisprudência que o recorrente invoca a seu favor, e com a qual se concorda, considera que a perda de vantagens (perda clássica) e o pedido de indemnização pelo lesado devem conviver em simultâneo, não excluindo este pedido aquela pretensão, e devendo os arguidos, sendo caso disso, ser condenados por ambas as vias. A ideia, como se refere no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência n.º 5/2024, é que «[a] coexistência entre a perda de vantagens e a pretensão indemnizatória é, pois perfeitamente admissível.» Mas também se acrescenta, e esse é o ponto que, cremos, escapou ao recorrente: «Tal não significa que o arguido possa vir a ser executado por ambos os títulos, mas nada impede que o ofendido/lesado os utilize alternativamente, pois têm âmbitos subjectivos distintos, não estando a sentença que condena no pagamento da indemnização apta a assegurar as finalidades pretendidas com o confisco. Como se disse no recente Ac. do STJ, de 02/06/2022, Proc. n.º 61/21.9GBMTS.S1, em www.dgsi.pt, “O pedido de indemnização não é uma espécie de questão prejudicial que impeça o confisco prévio dos instrumentos, produtos e vantagens decorrentes da prática do crime. Ou seja, a declaração de perda de vantagens é independente do pedido de indemnização civil e do interesse ou não do lesado na reparação do seu prejuízo.”. O art. 130.º do CP, particularmente do seu n.º 2, ao estabelecer que “Nos casos não cobertos pela legislação a que se refere o número anterior, o tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os instrumentos, produtos ou vantagens declarados perdidos a favor do Estado ao abrigo dos artigos 109.º a 111.º, incluindo o valor a estes correspondente ou a receita gerada pela venda dos mesmos”, consagra a preferência da perda de bens sobre o pedido de indemnização, além de salvaguardar o direito dos lesados, que poderiam ver dificultada a execução dos bens do arguido em face da declaração do confisco. Importa demonstrar ao arguido que o crime não compensa e, por outro lado, que se houver bens obtidos através da prática do crime devem ser usados para indemnizar os lesados. Deste modo, nem o Estado está impedido de confiscar os proventos do crime, nem o lesado vê a sua compensação dificultada, nem o arguido pode ser constrangido a pagar duas vezes.”»[15]
Na verdade, o objectivo do instituto da perda de vantagens (perda clássica) é, como se afirma no mencionado acórdão n.º 5/2024, permitir «a reconstituição da situação patrimonial existente à data anterior à prática pelo agente do facto ilícito típico, não admitindo que este obtenha vantagens patrimoniais indevidas, actuando, assim, como um mecanismo não só preventivo, mas também como instrumento de profilaxia do enriquecimento ilícito. Constitui, pois, um modo verdadeiramente eficaz de combater a actividade ilícita que visa o lucro.»[16] Por isso se acrescenta que «[a] perda de vantagens é um mecanismo subsidiário, podendo apenas ser utilizado para o montante que exceder o valor da indemnização do ofendido, quando este solicite o seu pagamento e o mesmo tenha lugar, operando plenamente nos demais casos.»[17]
No caso dos autos está provado que a quantia em dívida e acréscimos legais foram liquidados pelos arguidos, nada estando em dívida neste momento aos competentes serviços de segurança social. A consulta da documentação que foi junta aos autos para comprovação desse facto revela que foi liquidada a quantia global de € 58.083,26, logo em valor superior à perda de vantagem pedida. A situação existente antes do cometimento dos crimes já está efectivamente reposta, dado que o pagamento das quantias em dívida foi realizado. A condenação dos arguidos na perda de vantagens nos termos requeridos tornou-se inútil, pois o propósito dessa declaração seria assegurar que ou por via do pedido de indemnização ou por via da perda de vantagens os arguidos não beneficiavam com a prática do crime cometido. Esse objectivo foi alcançado e foi-o antes da prolação da sentença, pelo que a decisão adequada não seria a absolvição dos arguidos da perda de vantagens – uma vez elas existiram e havia inicialmente, no momento da dedução do pedido, fundamento para a declaração de perdimento e condenação respectiva –, mas antes a declaração da inutilidade superveniente do pedido dado a efectiva (não potencial) reposição pelos arguidos da situação que existia antes da prática do crime. Aliás, o próprio recorrente, talvez não se apercebendo, reproduz jurisprudência que vai ao encontro desta solução. Trata-se do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-09-2023, relatado por Liliana de Páris Dias no âmbito do Proc. n.º 2111/21.0T9VFR.P1[18], segundo o qual, conforme transcrição das alegações de recurso, «[s]ó em situações comprovadas e concretas de inutilidade – pois, como se acentua no acórdão deste TRP, de 11/4/2019 [11], o Estado não pode receber duas vezes a mesma quantia – se poderá verificar uma específica e excecional subsidiariedade entre os dois institutos»[19]. Neste mesmo sentido, em acórdão da mesma Relação para o qual remete o agora citado, datado de 26-10-2017, relatado por Vítor Morgado no âmbito do Proc. n.º 217/15.3IDPRT.P1[20], se afirma que «[j]ustificar a rejeição da perda com a necessidade de evitar a proliferação de títulos executivos [artigo 535º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil] subverte a política criminal definida pelo legislador, esquece as singularidades destes títulos e que esse problema é resolvido a montante, em sede de execução. O exequente não pode cobrar duas vezes a mesma quantia e, se o tentar fazer, deverá ser processualmente responsabilizado e o seu pedido indeferido. Na fórmula de Alberto dos Reis: «a eficácia do título executivo significa apenas isto ... pelo facto de ser portador legítimo do título o credor tem o direito de pôr em movimento a sanção executiva, isto é, de promover os atos necessários para que a execução atinja o seu fim. Mas a eficácia é meramente processual e não pode prevalecer sobre a eficácia substancial da relação jurídica subjacente, de sorte que se o executado demonstrar, no processo de oposição, que o direito de crédito, cuja existência o título faz supor, não existe na realidade, a eficácia do direito cai, é submergida e vencida pela supremacia da relação jurídica substancial» (Processo de execução, Coimbra, Coimbra Editora (1985), I, p. 119/20). É por isso mesmo, porque não pode ser executada duas vezes (sob pena de se modificar a natureza jurídica do confisco: em vez de colocar o arguido no status patrimonial anterior à prática do facto ilícito típico seria um mecanismo de redução do seu património lícito) que Jorge de Figueiredo Dias refere quer nesses casos, decretar o confisco poderá não ter utilidade. Da sua asserção não se pode, todavia, retirar que o confisco cessa quando existe um pedido de indemnização civil, mas apenas que «poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá ser decretada utilmente» (Direito Penal Português…, p. 633). O que não significa, por exemplo, que não tenha já relevância (teórica) ou que não possa vir a ganhá-la no futuro (v.g. porque o título executivo já existente prescreveu entretanto).» Em face do exposto, improcede, assim, este segmento do recurso, embora o dispositivo, na sua al. d), deva ser alterado e substituído por parágrafo com o seguinte teor: “d) Declarar, face ao pagamento integral da dívida à Segurança Social e acréscimos legais, a inutilidade superveniente do pedido de perda de vantagens e de condenação solidária dos arguidos no pagamento da quantia de € 55.562,56 correspondente à vantagem da actividade criminosa pelos mesmos desenvolvida”. * Em sede de invalidades da sentença, o Ministério Público invoca a respectiva nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPPenal, por existirem factos que constam no despacho de pronúncia (que remete para a acusação) e que não constam na sentença, nem nos factos provados, nem nos factos não provados. Alega o recorrente que, apesar da redacção distinta dada à factualidade julgada na sentença, comparativamente à pronúncia (que remete para a acusação), e que não põe em causa, entende que os factos 10. e 11. da acusação acabaram por não ser vertidos no elenco factual da sentença, nem como provados, nem como não provados. Tais factos têm o seguinte teor:
O recorrente acrescenta que entende que tais factos devem constar como provados, até para compatibilização com o enquadramento jurídico-penal que consta da sentença, sendo certo que a condenação dos arguidos em co-autoria não prescinde dos referidos factos. Vejamos. De acordo com o disposto no n.º 2 do art. 374.º do CPPenal, sob a epígrafe “Requisitos da sentença”, «[a]o relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.» Essa análise, que se impõe que o julgador verta na sua decisão, permite aos destinatários da mesma acompanhar o processo lógico-valorativo da formação da convicção do Tribunal, verificar da legalidade da decisão de facto face às regras de apreciação da prova – como o princípio in dubio pro reo, as regras da experiência comum, as proibições de prova, o valor da prova pericial, o grau de convicção exigível e a presunção de inocência –, bem como da decisão de direito e, pretendendo, impugná-las, possibilitando ainda ao Tribunal de recurso uma mais clara e efectiva reponderação da decisão da 1.ª Instância. A este propósito decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-01-2018[21]:
É, assim, pressuposto da completude de qualquer sentença que a mesma tenha, desde logo, a indicação, isto é, descrição, enumeração, dos factos provados e não provados, sendo igualmente pacífico que tais factos são os que constam da acusação ou pronúncia, da contestação, do pedido de indemnização civil e ainda os que resultarem da discussão da causa[22], conforme sobressai do teor do art. 368.º do CPPenal. Com efeito, este preceito, sob a epígrafe “Questão da culpabilidade”, determina que na deliberação que é realizada após o encerramento da discussão:
Decorre, assim, desta norma que não são quaisquer factos provenientes da acusação/pronúncia, da defesa, do pedido de indemnização civil ou da produção de prova em julgamento que importa verter entre os provados e não provados a enumerar na sentença mas apenas aqueles que são relevantes, isto é, essenciais, para a definição dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime e do tipo de participação do agente, para a determinação da respectiva culpa, para a verificação de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, para a verificação dos pressupostos de punibilidade ou de aplicação de medida de segurança, bem como dos de arbitramento da indemnização civil e, finalmente, de acordo com o preceituado no art. 369.º do CPPenal, os atinentes à determinação da sanção, sendo de realçar os relativos aos antecedentes criminais do arguido, à personalidade do arguido e ao seu enquadramento social, posto todos eles influenciarem e serem determinantes da escolha e determinação da medida concreta da pena a encontrar pelo Tribunal. De fora da apontada obrigação de enumeração dos factos provados e não provados ficam todos aqueles que são acessórios ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, e bem assim aqueles que se mostram prejudicados com a solução dadas a outros, por apenas os contrariarem, ou seja, representarem mera infirmação, negação, de outros já constantes do elenco dos factos provados ou não provados.
Volvendo ao caso concreto há que reconhecer que os factos que constam dos indicados pontos 10. e 11. da acusação são essenciais ao enquadramento dos elementos constitutivos dos crimes imputados nessa mesma peça processual, e bem assim ao tipo de participação dos arguidos na prática dos crimes. Como tal o Tribunal a quo deveria ter elencado como provados ou como não provados esses factos, justificando a sua opção na motivação da matéria de facto. Não o fazendo deixou de dar cabal cumprimento ao disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPPenal e por via disso a decisão padece de nulidade nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. a) (e não c), como invocado), do CPPenal. Assim, devem os autos baixar à 1.ª Instância para que o Tribunal a quo complete a sentença quanto aos pontos 10. e 11. da acusação, considerando-os como provados ou como não provados e justificando a sua decisão, de modo a colmatar a falha apontada. Da análise da acusação, por remissão do despacho de pronúncia, verifica-se ainda uma outra falha de igual natureza, que embora não invocada é de conhecimento oficioso, como o são as nulidades previstas no art. 379.º do CPPenal. É que no ponto 9. da acusação estão inseridos quadros onde se discrimina mês a mês as quantias que foram retidas dos vencimentos dos trabalhadores e não entregues à segurança social. Mostra-se, por outro lado, assente que a actuação do recorrente BB como gerente da sociedade arguida decorreu em período inferior ao da co-arguida AA, abrangendo apenas dois meses do segundo dos períodos identificados na acusação. Tendo em conta as várias soluções de direito possíveis, ainda em aberto, mostra-se relevante, designadamente para efeito de aplicação de sanção penal, saber qual o exacto valor dos montantes retidos e não entregues no período da gerência do arguido BB, pois esse diferencial deverá ser reflectido nas penas caso se mantenha a condenação. Assim, devem os factos provados e a motivação ser igualmente completados com a indicação em falta, tendo em conta o teor dos quadros constantes do ponto 9. da acusação. A análise das restantes questões suscitadas no recurso do Ministério Público mostra-se prejudicada pela necessidade de correcção da sentença recorrida nos termos expostos, já que da mesma pode decorrer alteração à qualificação jurídica dos factos e à escolha e medida das penas aplicadas. * III. Decisão: Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em: Quanto ao recurso do arguido BB a) – Julgar improcedentes as arguições de irregularidade e nulidades invocadas e, no mais, negar total provimento ao recurso; b) – Condenar o recorrente nas custas, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça devida (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa). Quanto ao recurso do Ministério Público a) – Julgar improcedente a arguição de nulidade por não declaração de perda de vantagens, mas determinar a alteração da al. d) do dispositivo da sentença recorrida, que deve passar a ter a seguinte redacção: “d) Declarar, face ao pagamento integral da dívida à Segurança Social e acréscimos legais, a inutilidade superveniente do pedido de perda de vantagens e de condenação solidária dos arguidos no pagamento da quantia de € 55.562,56 correspondente à vantagem da actividade criminosa pelos mesmos desenvolvida”; b) – Reconhecer verificada a nulidade da sentença, ao abrigo do disposto nos arts. 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, ambos do CPPenal, por falta fundamentação quanto ao elenco dos factos provados e/ou não provados e respectiva motivação nos termos supramencionados, e, em consequência, determinar a baixa do processo à 1.ª Instância para que o Tribunal a quo complete a fundamentação de facto da sentença, corrigindo as deficiências apontadas referentes aos pontos 9. (na parte relevante a apurar o exacto valor dos montantes retidos e não entregues no período da gerência do arguido BB), 10. e 11. da acusação, sem prejuízo de eventuais alterações em sede de direito, ao nível da qualificação jurídica e da escolha e determinação da pena, ou outras, que entenda decorrerem das correcções introduzidas à sentença, mostrando-se prejudicada a apreciação do demais que consta do recurso; c) – O Ministério Público está isento de custas (art. 522.º, n.º 1, do CPPenal). Notifique.
Porto, 09 de Abril de 2025 (Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página) Maria Joana Grácio Maria do Rosário Silva Martins Maria Luísa Arantes ________________________________ [1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção. [2] A transcrição de segmentos da motivação do recurso do arguido não reproduz as notas-de-rodapé para simplificação da exposição. [3] Relatado por José António Henriques dos Santos Cabral e publicado no DR n.º 94/2008, Série I, de 15-05-2008. [4] Realce a negrito da relatora. [5] Acessível in www.dgsi.pt. [6] Acessível in https://www.parlamento.pt/OrcamentoEstado/Documents/oe/2007/rel-2007.pdf. [7] Realce com sublinhado da relatora. [8] Acessível in www.dgsi.pt. [9] Realce a negrito da relatora. [10] Acórdão do TRC de 12-09-2018, relatado por Belmiro Andrade no âmbito do Proc. n.º 696/15.9T9CTB.C1, acessível in www.dgsi.pt. [11] Realce a negrito da relatora. [12] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos). [13] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos). [14] No acórdão do TRP de 02-12-2015, relatado por Artur Oliveira, no âmbito do Proc. n.º 253/06.0GCSTS.P1, acessível in www.dgsi.pt, perfilhou-se o entendimento, estabilizado, de que «[v]isando o recurso sobre a matéria de facto remediar erros de julgamento, estes erros devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros, sob pena de não o fazendo a impugnação não ser processualmente válida». [15] Realces a negrito da relatora. [16] Realce a sublinhado da relatora. [17] Realce a sublinhado da relatora. [18] Acessível in www.dgsi.pt. [19] Realce a negrito da relatora. [20] Acessível in www.dgsi.pt. [21] Proc. n.º 388/15.9GBABF.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos). [22] Cf. nesse sentido, entre muitos outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-09-2010, Proc. n.º 20/09.0PEPDL.L1.S1, da Relação de Coimbra de 26-10-2011, Proc. n.º 586/07.9GBAND.C1 e da Relação de Évora de 18-01-2013, Proc. n.º 10/09.2GBODM.E1, acessíveis in www.dgsi.pt. |