Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | FILIPE CÉSAR OSÓRIO | ||
| Descritores: | INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE BENS APROVAÇÃO DE DÍVIDAS | ||
| Nº do Documento: | RP202510134831/24.8T8MAI-A.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - No inventário para partilha de bens em casos especiais previsto no art. 1135.º, do CPC, designadamente, por ter ocorrido a penhora de bem comum do casal (cfr. art. 740.º, do CPC), o regime aplicável consiste desde logo nas normas gerais do processo de inventário previstas nos artigos 1082.º, e ss. (ex vi artigos 1135.º, n.º 1 e 1133.º, n.º 1, do CPC) e nas especificidades previstas no art. 1135.º, do CPC. II - Este processo especial destina-se desde logo à aprovação das dívidas, desde que devidamente documentadas e a garantir ao cônjuge do executado a faculdade de poder escolher os bens com que deve ser formada a sua meação, sem prejuízo do credor poder reclamar fundamentadamente desta escolha (art. 1135.º, do CPC). III - É inadmissível à Requerente, cabeça de casal, a impugnação de dívida que ela própria relacionou na relação de bens. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 4831/24.8T8MAI-A.P1
(5.ª Secção Judicial, 3.ª Secção Cível) Comarca do Porto Juízo de Família e Menores da Maia – Juiz 1 Relator: Filipe César Osório 1.º Adjunto: Manuel Fernandes 2.º Adjunto: Carlos Gil Sumário: ……………………………… ……………………………… ……………………………… * * * ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO * I. RELATÓRIO – Inventário para partilha de bens em casos especiais 1. As partes: Requerente – AA Requerido – BB Credora Reclamante (Recorrente) – A... S.A. * 2. Objecto do litígio e desenvolvimento da instância: A Requerente instaurou contra o Requerido inventário para partilha de bens em casos especiais, especificamente, separação de bens em caso de penhora de bens comuns (cfr. art. 1135.º, do CPC), concluindo do seguinte modo: “Pelo exposto, 11º Nos termos do art.º 1135º do C.P.C., vem a Requerente, na qualidade do cônjuge do Executado do processo executivo n.º ... do Juízo de Execução do Porto – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, requerer a separação do bem comum do casal que se encontra penhorado. 12º A Requerente, nos termos do n.º 4 do art.º 1135º do C.P.C.,, vem escolher os bens com que deve ser formada a sua meação com as verbas n.º 1 a 27 do ACTIVO – sendo assim a totalidade dos bens móveis num valor de € 13.483,32. Nestes termos, vem requerer a V/ Ex.ª se digne ordenar a separação de bens comuns entre o Executado BB e a Requerente, nos termos do art.º 1135º do C.P.C. e para os efeitos do art.º 740º do C.P.C.”. Para o efeito, a Requerente alegou essencialmente que casou com o Requerido no dia 28 de setembro de 1985, segundo o regime de bens da comunhão de adquiridos, foi citada da Penhora do bem imóvel comum do casal, por Edital com data de 29/07/2024, para os fins previstos nos art.º 740º do C.P.C., no âmbito do processo n.º ... do Juízo de Execução do Porto. A Requerente, na qualidade de cabeça de casal, apresentou relação de bens como doc. n.º 7 (do R.I.), onde, para além do mais, relacionou o seguinte: “RELAÇÃO DE DIVIDAS (nos termos da al. d) do n.º 3 do art.º 1098º do C.P.C.) PASSIVO Verba n.º 1 Débito à Banco 1... (crédito para aquisição de habitação própria e cedido a A..., S.A.).................................€ 185.907,36 Junta: a) Cópia da Reclamação de Créditos da sociedade de titularização de créditos e sentença de graduação de crédito (doc. 8)” * O Requerido não deduziu qualquer oposição. * A Credora veio apresentar reclamação de créditos onde pede o seguinte: “a) Admitir a presente RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS; e b) Considerando-a procedente, por provada, verificar e reconhecer o crédito da ora Reclamante, acima referenciado, no montante global, à data de 06 de maio de 2023, de €196,832.22€ (cento e noventa e seis mil oitocentos e trinta e dois euros e vinte e dois cêntimos), acrescido dos juros de mora vincendos desde a data de insolvência, às taxas supra referidas, até efectivo e integral pagamento, calculados nos termos supra expostos; c) Graduar o crédito, conforme exposto pela Credora Reclamante.”. * A Requerente - Cabeça de Casal veio impugnar a reclamação de créditos invocando essencialmente a prescrição extintiva da dívida em causa e ainda a falta da Credora Reclamante em comunicar aos mutuários a integração dos mesmos no PERSI por qualquer meio (em suporte duradouro ou não), por isso, ficou a mesma sujeita aos efeitos dessa não integração, desde logo a impossibilidade de demandar os mesmos por via da ação executiva, para cobrança dos valores em dívida emergentes dos contratos, e correspondentes aos montantes indicados no requerimento executivo, face ao disposto no art.º 18º, nº 1, al. b), do D.L. 227/2012, de 25/10 e conclui pedindo o seguinte: “Vem a Requerente solicitar a V/ Ex.ª, caso venha a ser declarada extinta a dívida no processo nº ... (acima identificado), se digne considerar prescrita a dívida dos cônjuges a A..., S.A. e autorize a retirada da Verba n.º 1 do Passivo da Relação de Bens junta a estes autos – ou seja, não seja admitida a Reclamação de Créditos da ora Reclamante e, por consequência, seja retirado do Passivo da Relação de Bens o crédito para aquisição de habitação própria da A..., S.A.. no valor de € 185.907,36.” * A Credora Reclamante respondeu, a Requerente voltou a pronunciar-se e a Credora Reclamante respondeu novamente. * 3. Decisão em Primeira Instância: Foi proferida a seguinte decisão (em 18/05/2025) em primeira instância [transcrição]: * 4. Recurso de apelação: A Recorrente interpôs recurso de apelação, com as seguintes conclusões [transcrição]: «a) O tribunal a quo decidiu não se ter demonstrado que os contratos de mútuo reclamados pela recorrente tivessem sido resolvidos à data da entrada em vigor do Decreto Lei nº 227/2012 de 25.01, concluindo que a requerente e o requerido estavam em mora à data da entrada em vigor do regime legal do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, pelo que deveria ter sido cumprido este regime legal, o que não tendo ocorrido, acarretou a inexistência da condição prévia de admissibilidade e procedibilidade da ação executiva e, no presente caso, da reclamação de créditos da ora recorrente. b) A recorrente, nos seus requerimentos com as referências nºs 41639962 e 41850795 de 18/02/2025 e 11/03/2025 respetivamente, explicou nos autos, a propósito da questão da prescrição levantada pelos recorridos, que, para além da reclamação de créditos apresentes nos presentes autos, tiveram sido também reclamados créditos no processo nº ..., e intentada, em 30.04.2027, a ação executiva com o nº ..., que correu termos no Juízo de Execução 1 da Maia – Tribunal Judicial da Comarca do Porto, na qual a Banco 1..., S.A., credor originário, executou os créditos em ora apreço, tendo sido junto aos autos cópia do respetivo requerimento executivo. c) O tribunal a quo não valorou a aludida ação executiva com o nº ..., nem a fez constar nos factos provados. d) A ação executiva com o nº ..., cfr. requerimento executivo junto as autos com o requerimento nº 41850795 de 11/03/2025, deu entrada em 27.04.2007, tendo os executados, ora recorridos, sido citados em 28.08.2007, previamente à realização da penhora concretizada em 24.03.2010, facto que deveria ter sido apurado pelo tribunal a quo, à semelhança do que fez quanto ao processo com o nº ..., de modo a fazer a correta apreciação da resolução dos contratos. e) À data da citação para o processo nº ..., ainda não se encontrava em vigor o DL Nº 74-A/2017, qua apenas entrou em vigor em 01.01.2018, pelo que a jurisprudência aceitava que a citação tornava exigível a dívida vencida nos termos do artigo 781.º do Código Civil, mas apenas nas execuções ordinárias, em que tal acto precedia os actos de agressão do património do devedor, ou seja de penhora. f) Na execução com o nº ... a citação dos executados ocorreu em 28.08.2007, tendo a penhora apenas se concretizado em 24.03.2010, pelo que resolução da dívida ter-se-á verificado em 28.08.2007. g) Porém, o tribunal a quo, não apreciou os aludidos factos, tendo concluído, erradamente, que a dívida não se vencera e que estaria em mora à data da entrada em vigor do regime legal do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento. h) O tribunal a quo devia ter julgado os contratos resolvidos e a dívida vencida em 28.08.2007, data em que o Regime legal do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento não era aplicável, por não estar ainda em vigor, nem, tão pouco, sujeitos a tal regime, apenas previsto para as situações de mora no cumprimento dos contratos. i) Não sendo o aludido regime aplicável ao caso em apreço, tribunal a quo errou no julgamento da causa ao ter julgado verificada a exceção dilatória inominada insanável de inobservância do PERSI.». * 5. Resposta Não foram apresentadas contra-alegações. * 6. Objecto do recurso – Questões a Decidir: - Impugnação da decisão de facto; - Reapreciação jurídica da causa. * II. FUNDAMENTAÇÃO 7. Para além dos factos referidos no relatório antecedente, é o seguinte o teor da decisão de facto constante da sentença recorrida: «Com interesse para a decisão, da análise dos documentos juntos aos autos da consulta, na plataforma Citius, dos processos ... – e respetivos apensos – e ... considero provados os seguintes factos: a) Em 11.02.2007, “B..., Lda.” instaurou contra BB, entre outros, execução para pagamento de quantia certa, tendo em vista a cobrança coerciva da quantia de 13.540,73 €, processo que corre termos no Juízo de Execução do Porto - Juiz 3 sob o n.º ...; b) No dia 11.03.2021, A..., S.A. instaurou contra BB e AA, entre outros, execução para pagamento de quantia certa, visando a cobrança coerciva da quantia de 139.955,50 € (processo ..., do Juízo de Execução da Maia - Juiz 2); c) Deu à execução dois contratos de Mútuo com Hipoteca, celebrados entre a Banco 1... e os executados, alegando ainda que por Contrato de Cessão de Créditos, assinado em 20 de dezembro de 2019, a Banco 1... cedeu à exequente os créditos resultantes dos contratos celebrados com os executados; d) Em 07.04.2021, foi lavrado auto de penhora do imóvel inscrito na matriz predial sob o artigo ... da freguesia ..., concelho de Maia, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Maia sob o número .../...; e) Os executados foram citados por carta enviada em 12.04.2021, recebida em 19.04.2021, não tendo deduzido oposição; f) Em 28.02.2022, viria a ser proferido despacho de sustação da execução, nos termos do art.º 794º, n.º 4 do CPC e, em 05.04.2022, extinta a instância executiva; g) Por apenso ao processo ..., em 06.05.2024, “A..., S.A.” veio reclamar créditos contra o executado BB, pedindo que se verifique e reconheça “o crédito da ora Reclamante, acima referenciado, no montante global, à data de 06 de maio de 2023, de € 185.907,36 € (cento e oitenta e cinco mil novecentos e sete euros e trinta e seis cêntimos).acrescido dos juros de mora vincendos desde a data de insolvência, às taxas supra referidas, até efectivo e integral pagamento, calculados nos termos supra expostos;” e que o seu crédito seja graduado; h) Os créditos reclamados assentam em dois contratos celebrados entre os executados e a Banco 1... em 16.11.2000, cedidos à “A..., S.A.” por contrato de cessão de créditos de 20.12.2019, alegando a reclamante que os Executados faltaram ao pagamento das prestações contratadas e devidas ao mutuante, em 16/09/2006 e 16/10/2005, respetivamente; i) No referido processo (..., apenso de reclamação de créditos instaurado por “A..., S. A.”), em 16.07.2024, foi proferida a seguinte sentença: “Pelo exposto, declaro reconhecido o crédito reclamado e graduo-o nos termos seguintes relativamente ao bem imóvel penhorado nos autos principais: 1.º - O crédito do credor reclamante, com a limitação temporal prevista no art. 693º, nº 2, do CC, no que respeita aos juros; 2.º - O crédito exequendo.”; j) A decisão de 16.07.2024, proferida no processo ..., transitou em julgado; k) Por requerimento de 03.01.2025, o executado BB pediu, no processo ..., que: a) o crédito da Credora Reclamante A..., S.A. (incluindo capital e juros) seja considerado PRESCRITO, nos termos das alíneas d) e e) do art.º 310º do Código Civil; b) se julgue verificada a exceção dilatória inominada consistente na falta de integração do Executado no PERSI – ou seja, por falta de cumprimento do procedimento obrigatório do PERSI, nos termos do Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro (art.º 6º, n.º 6 e 7) e do Decreto-Lei n.º 227/2012 (art.º 18º, n.1, al. b)); c) em consequência, se absolva o Executado do pedido da Reclamação de Créditos em causa, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 278.º, n.º 1, al. e), 573.º, nº. 2, 576.º, nºs 1 e 2, 577º e 578º, do CPC.; l) Nessa sequência, em 07.02.2025, foi proferido o seguinte despacho: “Tendo sido o executado notificado nos termos do artigo 789.º do C.P.C., nada tendo vindo a impugnar, tendo sido proferida sentença, notificada ao executado, e transitada em julgado, notifique o executado para que esclareça o pretendido.”; m) Em 19.02.2025, o executado veio dizer que pretende que o Tribunal esclareça “que a sentença proferida neste apenso A não formou caso julgado material quanto à existência do crédito reconhecido e, por consequência, não precludiu a oportunidade de o Executado invocar a Prescrição Extintiva da dívida reclamada pela A..., S.A., nos termos dos art.º 301º, 301º, 303º e alíneas d) e e) do art.º 310º do Código Civil com o objetivo da absolvição do Executado ao pedido da Reclamante”; n) Em 13.03.2025, o Tribunal proferiu o seguinte despacho “Irei proferir decisão no processo principal, onde a mesma questão foi suscitada, considerando o trânsito em julgado da decisão proferida neste apenso.”; o) Nesse mesmo dia no processo ..., foi proferido o seguinte despacho: “Verifica-se que, por decisão proferida no dia 7-2-2025, foi indeferido o pedido de levantamento da suspensão e o prosseguimento dos autos para venda do bem imóvel penhorado no auto de penhora datado de 19-2-2018, considerando o teor despacho proferido no dia 3-10-2024, no Apenso C. A reclamação de créditos em causa tem por garantia a hipoteca registada sobre o imóvel penhorado no auto de penhora referido, pelo que deverão os autos aguardar nos termos já determinados no despacho proferido no dia 3-10-2024, uma vez que a presente execução se encontra suspensa relativamente ao bem em causa.” p) O despacho de 03.10.2024, proferido no processo ... tem o seguinte teor: “Atendendo ao teor da informação do Sr. AE constante do processo principal e face a certidão ora junta e que antecede, nos termos do artigo 740.º do C.P.C., susto a execução relativamente aos bens comuns.”. * Com interesse para a decisão, não se provaram os seguintes factos, em contradição com estes ou para além deles. - que a Banco 1... ou a credora reclamante resolveram e comunicaram a requerente e requerido a resolução dos contrato de mútuo acima referidos.». * 8. Impugnação da decisão de facto A Recorrente entende que não consta dos factos provados, mas deveria constar, a instauração de acção executiva em 2007, por tal resultar dos documentos juntos. Por se verificarem os pressupostos previstos no art. 640.º, n.º 1, do CPC, cumpre apreciar a impugnação da decisão de facto. Resulta objectivamente do teor dos documentos juntos no Requerimento datado de 11/03/2025[1] – designadamente, requerimento executivo e teor do registo predial – que foi efectivamente instaurada a execução referida e foi realizada penhora, posteriormente cancelada. Deste modo, procede a impugnação da decisão de facto, passando a constar como facto provado ainda o seguinte: «q) Em 27/04/2007 a Banco 1..., S.A. [na qualidade de credora originária], instaurou execução para pagamento de quantia certa contra AA e BB, para cobrança coerciva da quantia global de €117.777,52, acrescida de juros de mora, com fundamento em dois contratos de mútuo celebrados em 16/11/2000 (já mencionados nos factos provados), foi lavrada penhora registada em 09/02/2010 pela Ap. ..., que veio a ser cancelada em 15/12/2021 pela Ap... – processo n.º ... do Juízo de Execução 1 da Maia, Tribunal Judicial da Comarca do Porto.». * 9. Reapreciação jurídica: 9.1. Movemo-nos no âmbito de inventário para partilha de bens em casos especiais previsto no art. 1135.º, do CPC, designadamente, por ter ocorrido a penhora de bem comum do casal. Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns – cfr. art. 740.º, n.º 1, do CPC. Apensado o requerimento de separação ou junta a certidão, a execução fica suspensa até à partilha; se, por esta, os bens penhorados não couberem ao executado, podem ser penhorados outros que lhe tenham cabido, permanecendo a anterior penhora até à nova apreensão – cfr. art. 740.º, n.º 2, do CPC. Daqui resulta que na sequência da penhora de bens comuns do casal, pode o cônjuge do executado requerer, por apenso à execução, a separação de bens ou juntar certidão comprovativa de pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida. Portanto, se for requerida a separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal aplica-se o disposto no regime do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento, com as especificidades previstas nos números seguintes – cfr. art. 1135.º, n.º 1, do CPC. Então, o regime aplicável ao caso concreto consiste desde logo nas normas gerais do processo de inventário previstas nos artigos 1082.º, e ss. (ex vi artigos 1135.º, n.º 1 e 1133.º, n.º 1, do CPC) e nas especificidades previstas no art. 1135.º, do CPC[2]. Das normas gerais do inventário, com interesse para o caso concreto, destaca-se as seguintes: - O processo de inventário cumpre, entre outras funções, partilhar bens comuns do casal – art. 1082.º, n.º 1, al. d), do CPC; - Ao inventário destinado à realização dos demais fins previstos no artigo 1082.º aplica-se o disposto no capítulo III, e, em tudo o que não estiver especificamente regulado, o regime definido para o inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária [portanto, o capítulo II] – art. 1084.º, n.º 2, do CPC; - O processo destinado a fazer cessar a comunhão hereditária inicia-se com a entrada em juízo do requerimento inicial – art. 1097.º, n.º 1, do CPC; - O requerente deve juntar ao requerimento inicial, para além do mais, a relação de todos os bens sujeitos a inventário e relação dos créditos e das dívidas da herança, acompanhada das provas que possam ser juntas – art. 1097.º, n.º 2, al. c) e d), do CPC; - A relação de bens deve obedecer ao modo previsto no art. 1098.º, do CPC; - Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação podem, para além do mais, apresentar reclamação à relação de bens e/ou Impugnar os créditos e as dívidas da herança – cfr. art. 1104.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC. - Quanto à verificação do passivo dispõe o art. 1106.º, do CPC, o seguinte: 1 - As dívidas relacionadas que não hajam sido impugnadas pelos interessados diretos consideram-se reconhecidas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 574.º, devendo a sentença homologatória da partilha condenar no respetivo pagamento. 2 - Se houver interessados menores, maiores acompanhados ou ausentes, o Ministério Público pode opor-se ao seu reconhecimento vinculante para os referidos interessados. 3 - Se todos os interessados se opuserem ao reconhecimento da dívida, o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados. 4 - Se houver divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida, aplica-se o disposto nos n.os 1 e 2 relativamente à quota-parte dos interessados que a não impugnem e quanto à parte restante observa-se o disposto no número anterior. 5 - As dívidas vencidas, que hajam sido reconhecidas por todos os interessados ou se mostrem judicialmente reconhecidas nos termos do n.º 3, devem ser pagas imediatamente, se o credor exigir o pagamento. 6 - Se não houver na herança dinheiro suficiente e se os interessados não acordarem noutra forma de pagamento imediato, procede-se à venda de bens para esse efeito, designando o juiz os que hão de ser vendidos, quando não haja acordo entre os interessados. 7 - Se o credor quiser receber em pagamento os bens indicados para a venda, são-lhe os mesmos adjudicados pelo preço que se ajustar. E as especificidades do presente inventário para partilha de bens em casos especiais são as seguintes: - O exequente, nos casos de penhora de bens comuns do casal, ou qualquer credor, no caso de insolvência, podem promover o inventário e o seu andamento – cfr. art. 1135.º, n.º 2, do CPC. - Só podem ser aprovadas dívidas que estejam devidamente documentadas – cfr. art. 1135.º, n.º 3, do CPC. - O cônjuge do executado ou do insolvente pode escolher os bens com que deve ser formada a sua meação – cfr. art. 1135.º, n.º 4, do CPC. - Se usar a faculdade prevista no número anterior, são os credores notificados da escolha, podendo reclamar fundamentadamente contra ela – cfr. art. 1135.º, n.º 5, do CPC. - Se o juiz julgar atendível a reclamação prevista no número anterior, ordena a avaliação dos bens que lhe pareçam mal avaliados – cfr. art. 1135.º, n.º 6, do CPC. - Se a avaliação modificar o valor dos bens escolhidos pelo cônjuge do executado ou do insolvente, este cônjuge pode declarar que desiste da escolha, caso em que as meações são adjudicadas por meio de sorteio – cfr. art. 1135.º, n.º 7, do CPC. - As meações são igualmente adjudicadas por meio de sorteio se o cônjuge do executado ou do insolvente não tiver usado da faculdade de escolha dos bens que compõem a meação – cfr. art. 1135.º, n.º 8, do CPC. * 9.2. Considerando o regime geral e as especificidades descritas, das referidas disposições, com pertinência para o caso concreto em apreciação, resulta que este processo especial (estando em causa a separação de bens devido a penhora de bens comuns do casal) se destina desde logo à aprovação das dívidas, desde que devidamente documentadas e a garantir ao cônjuge do executado a faculdade de poder escolher os bens com que deve ser formada a sua meação, sem prejuízo do credor poder reclamar fundamentadamente desta escolha. Assim, atenta a natureza do presente processo especial de separação de bens, o juiz tem de verificar desde logo se o crédito em causa se mostra documentalmente provado e garantir ao cônjuge do executado a faculdade de poder escolher os bens com que deve ser formada a sua meação. Ora, no caso concreto em apreciação, no exercício das suas funções de cabeça de casal, no Requerimento Inicial, a Requerente apresentou na relação de bens como dívida precisamente a existência do crédito agora reclamado pela Credora, por isso, reconheceu assim a existência da dívida, não podendo agora reclamar contra uma dívida que ela própria relacionou e que, além disso, resulta de documento. Com efeito, a Requerente, na qualidade de cabeça de casal, juntou relação de bens, como doc. n.º 7 (do R.I.), onde relacionou o seguinte: “RELAÇÃO DE DIVIDAS (nos termos da al. d) do n.º 3 do art.º 1098º do C.P.C.) PASSIVO Verba n.º 1 Débito à Banco 1... (crédito para aquisição de habitação própria e cedido a A..., S.A.).................................€ 185.907,36 Junta: a) Cópia da Reclamação de Créditos da sociedade de titularização de créditos e sentença de graduação de crédito (doc. 8)” E o documento 8 (do R.I.) é composto precisamente pela Reclamação de créditos no montante global de €185.907,36, proferida no âmbito de acção executiva e pela sentença aí proferida que reconheceu e graduou esse crédito. Não obstante, na sua impugnação veio pedir, para além do mais, que “se autorize a retirada da Verba n.º 1 do Passivo da Relação de Bens junta a estes autos – ou seja, não seja admitida a Reclamação de Créditos da ora Reclamante e, por consequência, seja retirado do Passivo da Relação de Bens o crédito para aquisição de habitação própria da A..., S.A.. no valor de € 185.907,36.”. Ora, foi precisamente esta Requerente que relacionou no inventário esta dívida. Aliás, não só foi a própria Requerente do inventário e cabeça de casal que já relacionou, e por isso, reconheceu, a dívida activa, aliás, até juntou aos autos a sentença de graduação de créditos. Então, se foi a própria cabeça de casal que relacionou a dívida em discussão nos autos, em abstracto, apenas o outro interessado, o Requerido, poderia impugná-la, mas não o fez e, em concreto também não o poderia fazer, em virtude do efeito do caso julgado decorrente da sentença de graduação de créditos contra si proferida no âmbito da execução em causa. Por sua vez, não foi invocado qualquer facto superveniente à relação de bens. Nesta sequência, é inadmissível à Requerente, cabeça de casal, a impugnação de dívida que ela própria relacionou na relação de bens. Importa ainda salientar que se impõe um comportamento conforme aos ditames da boa fé, constituindo uma atuação abusiva a invocação/negação de uma dívida relacionada por si própria Cabeça de Casal (cfr. art. 334.º, do Código Civil). E o documento junto pela própria Cabeça de Casal respeitante aos autos de execução referidos na relação de bens para identificar a dívida, é de molde a implicar a prova não apenas da existência da dívida relacionada, como dos valores desta havidos por reconhecidos. A este propósito, em situação semelhante se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/11/2023[3] (Isabel Peixoto Ferreira, proc. n.º 252/21.2T8VLC.P1, www.dgsi.pt): «Tem-se por inadmissível a impugnação (ulterior ou superveniente) pela cabeça-de-casal que relaciona a dívida da herança da existência/realidade da mesma dívida. Apenas e só uma causa extintiva da dívida pode ser supervenientemente invocada/convocada. É o que resulta do regime legal da impugnação, mas ainda o que o impõe um comportamento conforme aos ditames da boa fé, constituindo uma atuação abusiva a invocação/negação de uma dívida relacionada por si própria.». Deste modo, porque não pode ser impugnada pela cabeça de casal a dívida que a própria relacionou na relação de bens, deve manter-se tal dívida assim relacionada e deve considerar-se aprovada em consequência da junção de documento bastante para o efeito (doc. n.º 8 do R.I.), mostrando-se assim prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela Recorrente. * 9.3. Em suma, impõe-se julgar procedente o recurso de apelação e revogar a sentença recorrida, aprovando-se a dívida relacionada e determinando-se o prosseguimento dos autos os subsequentes termos. * 10. Responsabilidade Tributária As custas do recurso de Apelação são da responsabilidade da Recorrida. * III. DISPOSITIVO Nos termos e fundamentos expostos, * Filipe César Osório Manuel Domingos Fernandes Carlos Gil ____________ [1] Consulta electrónica do processo de inventário. [2] Sobre o regime aplicável: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/09/2020 (Oliveira Abreu, proc. n.º 3860/10.3TJCBR-B.C1.S1, www.dgsi.pt). [3] https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/84f46234d16aeb0880258a89004e1c46?OpenDocument |