Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18149/24.2T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: OBRIGAÇÃO EXEQUENDA
RECONHECIMENTO DE DÍVIDA E PROMESSA DE CUMPRIMENTO
RELAÇÃO FUNDAMENTAL
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
Nº do Documento: RP2025101418149/24.2T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 10/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Por não alegada no requerimento inicial da execução e sequer na contestação à petição de embargos, não só se precludiu a alegabilidade de sucessão na titularidade activa da obrigação exequenda (por cessão da posição contratal ou cessão de créditos, ainda que tácita) - outro entendimento não se mostraria conforme às regras do processo justo e equitativo, tributário do princípio do contraditório e da igualdade de armas -, como também tal matéria (constitutiva do invocado direito e subtraída ao conhecimento oficioso do tribunal) terá de ser havida como questão nova que à apelante é defeso suscitar perante o tribunal de recurso, pois sobre ela o tribunal a quo não teve oportunidade de se pronunciar (por não ter sido invocada).
II - O reconhecimento de dívida e promessa de cumprimento (art. 458º, nº 1 do CC) não constituem negócio jurídico constitutivo de obrigações, antes (não sendo indicada a causa da sua constituição) ‘negócio na base do qual se presume a existência de uma obrigação’.
III - A obrigação exequenda tem sempre uma causa material e relevante – seja presumida (quando não indicada no reconhecimento de dívida deve ser alegada pelo exequente no requerimento inicial), seja a indicada no título.
IV - Aludindo o reconhecimento de dívida à sua fonte (ao facto jurídico gerador da obrigação de prestar), será essa que cumprirá ao devedor demandado demonstrar ser inconcludente (não poder proceder, à luz do direito substantivo).
V - Apurado que a relação fundamental constitutiva da obrigação, indicada no título dado à execução (e também alegada no requerimento executivo), tem como titular activo pessoa diversa da exequente, é forçoso concluir não poder reconhecer-se-lhe o direito (o poder) de exigir a prestação.
VI - O venire contra factum proprium consubstancia modalidade da actuação ilegítima que, enquanto manifestação da tutela da confiança, visa impedir ‘pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior’ observada pelo exercente do direito (e/ou defesa).
VII - Porque assente na boa fé, que pressupõe a existência duma ‘específica relação inter-pessoal (embora não necessariamente negocial, ou sequer pré ou circumnegocial), fonte de uma legítima relação de confiança – ou pelo menos de uma legítima expectação de conduta – cuja frustração ou violação seja particularmente clamorosa, o venire tem enquadramento necessariamente relacional – o destinatário do comportamento significativo, justificador e gerador da confiança (que possa suportar um investimento de confiança), há-de ser já aquele que vem a ser surpreendido pelo comportamento posterior e contraditório do agente.
VIII - Não existindo, até Dezembro de 2023, entre exequente e executada, nenhuma específica relação interpessoal que fosse fonte de legítima relação de confiança (ou de legítima expectação de conduta), é de concluir que nenhum acto ou conduta da executada teve como destinatária a exequente no âmbito de relação interpessoal entre ambas, legitimando esta a confiar que aquela manteria posteriormente conduta concordante com a até aí observada.
IX - Não pode ter-se como comportamento contraditório ao observado em declaração de reconhecimento de dívida a recusa de pagamento manifestada pelo declarante ao reconhecido devedor com o fundamento de, à luz do negócio identificado no reconhecimento de dívida, o titular activo da obrigação ser um terceiro.
X - A parte vencedora não pode incorrer na litigância de má fé material ou substancial, traduzida na violação do dever de não formular pretensões infundadas – por definição, tal modalidade só ocorre quando (além dos demais requisitos) a pretensão deduzida pela parte não tem fundamento (quando é inconcludente e improcede).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 18149/24.2T8PRT-A.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Márcia Portela
Maria Eiró

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Apelante: A..., Ld.ª (embargada exequente).

Apelada: B... SAD (embargante executada).

Juízo de execução do Porto (lugar de provimento de Juiz 5) - T. J. da Comarca do Porto.


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A exequente A..., Ld.ª, instaurou execução para pagamento de quantia certa para haver coercivamente da executada B... SAD, a quantia global de 2.822.426,85€ (1.960.000,00€ correspondente a capital e 862.426,85 correspondente a juros vencidos) e legais acréscimos, dando à execução, como título executivo, documento autenticado de confissão de dívida e acordo de pagamento assinado pela executada, alegando no requerimento executivo:

- ser (a exequente) uma sociedade comercial por quotas, legalmente constituída, tendo por objecto a intermediação, aquisição de direitos de inscrição, representação e gestão de carreiras de profissionais desportivos, assim a consultoria para os negócios e a gestão,

- ser a executada uma sociedade anónima desportiva, vulgo SAD, que tem por objecto a participação nas competições profissionais de futebol, a promoção e organização de espectáculos desportivos e o fomento ou desenvolvimento de actividades relacionadas com a prática desportiva profissionalizada da modalidade de futebol,

- terem entre si, no dia 28 de Dezembro de 2023, ‘celebrado um documento particular denominado "Confissão de dívida e acordo de pagamento por documento particular autenticado", no âmbito do qual a Executada se reconheceu devedora à Exequente da quantia de €: 1.960.000,00 (um milhão novecentos e sessenta mil euros), referente ao contrato datado de 23.04.2019, respeitante ao jogador de futebol profissional AA’, conforme documento que junta e dá por reproduzido (e que constitui o título executivo),

- pelo mencionado documento particular, reconheceu a executada terem sido devidamente prestados todos os serviços contratados com a exequente, confirmando que os valores cobrados foram proporcionais a tal prestação de serviço, comprometendo-se a pagar-lhe a referida quantia (um milhão novecentos e sessenta mil euros) em quatro prestações mensais, vencendo-se a primeira até 30/09/2024 (e as demais nos meses seguintes de Janeiro, Maio e Setembro de 2025),

- não ter efectuado a executada o pagamento da primeira prestação acordada, vencendo-se assim todas as prestações acordadas, sendo devido além de todo o capital, os juros de mora (computando os vencidos em 862.426,85€).

Apresentou-se a executada a embargar, pretendendo a extinção da execução (no que releva, pois solicitou também a suspensão da acção executiva e também, subsidiariamente, a suspensão da presente instância de embargos até decisão de causa prejudicial), argumentando a i) ‘ilegitimidade substantiva da exequente e inexequibilidade extrínseca’ do título (acordo de pagamento), por a embargada ‘não corresponder ao credor da obrigação exequenda subjacente ao Contrato de Intermediação’ (por os serviços de intermediação terem sido contratados e prestados por terceiro, BB), a ii) ‘inexistência e/ou invalidade e, consequente, inexigibilidade da obrigação exequenda’ e, ainda, iii) o facto de os juros não serem devidos (com inexequibilidade do título executivo nesta parte).

Recebidos liminarmente os embargos, apresentou-se a embargada a contestá-los, sustentando ter ela, exequente, prestado os serviços de intermediação referidos no documento que serve de título executivo (negociou as condições e termos contratuais do contrato entre os clubes envolvidos na transferência do mencionado jogador profissional de futebol), acordando com a executada a remuneração, que por isso lhe é devida (tal qual os juros, pois ocorre mora). Alegou ainda o abuso de direito da embargante (na modalidade do venire contra factum proprium – argumenta que a executada embargante já pagou o IVA referente à factura que a embargada emitiu e lhe enviou) e pediu a sua condenação como litigante de má fé.

Cumprido o contraditório (a embargante pronunciou-se sobre a invocada matéria de excepção e quanto à pedida condenação como litigante de má fé), considerando o tribunal que o estado do processo o permitia, foi proferido saneador sentença que julgou procedentes os embargos e determinou a extinção da execução, considerando não ser de condenar a embargante como litigante de má fé.

Apela a embargada em vista da revogação de tal decisão e sua substituição por outra que julgue totalmente improcedentes os embargos e ordene o prosseguimento da execução (condenando ainda a embargante por litigância de má), concluindo as alegações com a formulação das seguintes conclusões:

(…)

Contra-alegou a embargante em defesa da sentença apelada e pela improcedência da apelação, concluindo:

(…)

Juntou, entretanto, a embargada apelante douto parecer jurídico, subscrito por Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, que mereceu pronúncia da embargante apelada.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir

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Do objecto do recurso.

Analisando as conclusões das alegações, constata-se que a apelante traz à apreciação da Relação as seguintes questões:

- a sua (apelante exequente) legitimidade substantiva para a execução, em atenção ao título dado à execução, quer ponderando

- a interpretação da declaração negocial constante do título (e apreensão do propósito da apelada se reconhecer como devedora e principal pagadora à apelante) - conclusões 3ª a 20ª,

- a cessão de posição contratual/cessão de crédito feita pela pessoa do legal representante da apelante para esta – conclusões 21ª a 44ª;

- a actuação da apelada em abuso do direito - conclusões 45ª a 78ª);

- a litigância de má fé da apelada – conclusões 79ª a final.

Esta delimitação do thema decidendum emanada das conclusões das alegações da apelante não se impõe a este tribunal em toda a sua extensão, pois que deve excluir-se do objecto do recurso a ponderação da existência de qualquer transmissão (do lado activo) da obrigação (cessão de créditos ou cessão da posição contratual).

Importante limitação ao objecto do recurso advém da sua própria natureza – é pacífico, doutrinal e jurisprudencialmente, que, salvaguardada a apreciação de matérias de oficioso conhecimento, os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas[1].

Como linear e cristalinamente decorre do art. 627º, nº 1 do CPC (e também, entre outros, dos arts. 635º, nº 2 e 3 e 636º do CPC), os recursos visam permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, o que tem directo reflexo na delimitação das pretensões que lhe podem ser dirigidas e no leque de competências susceptíveis de serem assumidas – a fase de recurso pressupõe que determinada questão foi já objecto de decisão, importando apreciar da sua manutenção, alteração ou revogação, estando a demanda do tribunal superior circunscrita às questões que já tenham sido submetidas à apreciação e decisão do tribunal de categoria inferior (excluída, claro está, a apreciação – e, por isso, arguição – de questões de conhecimento oficioso relativamente às quais existam nos autos elementos de facto suficientes)[2].

O ponto de partida do recurso é sempre uma decisão que recaiu sobre determinada(s) questão(ões) – ‘o objecto do recurso é constituído pela decisão judicial’, pois o seu fundamento é, em qualquer caso, constituído pela ‘apreciação crítica da decisão judicial, no confronto com o direito positivo ou, dito de outro modo, a violação da lei e, por conseguinte, a negação do direito subjectivo como fonte de sucumbência’[3].

A impugnação em que o recurso se traduz ‘não se identifica com uma originária petição de Justiça como a demanda, sendo diversamente uma contestação concreta contra um acto de vontade jurisdicional que se considera errado’ – os recursos são, no nosso sistema processual, ‘meios de impugnação destinados à eliminação ou correcção das decisões judiciais inválidas, erradas ou injustas por devolução do seu julgamento ao órgão jurisdicional hierarquicamente superior’[4].

O ordenamento jurídico adoptou um ‘modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso’ – a ‘diversidade de graus de jurisdição determina que, em regra, os Tribunais Superiores apenas devem ser confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios’[5], ficando vedada a apreciação de questões novas, seja em homenagem ao princípio da preclusão, seja por doutro modo se desvirtuar a finalidade dos recursos (que se destinam a ‘reapreciar questões’, já antes levantadas e decididas no processo, e não a provocar decisões sobre questões que não foram antes submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido, a menos que se trate de questões de oficioso conhecimento)[6].

Excluídas desta limitação do objecto do recurso em atenção à sua natureza ficam as questões de oficioso conhecimento – porque integram o poder cognitivo do tribunal ad quem, as questões de oficioso conhecimento estão sempre compreendidas no objecto do recurso (tal qual estavam compreendidas no poder de conhecimento oficioso do tribunal a quo – ‘constituem sempre objecto implícito de recurso, pelo que podem ser sempre alegadas no recurso, ainda que anteriormente o não tenham sido’[7]), como é o caso da inconstitucionalidade das normas, da nulidade dos negócios, do abuso de direito (ponderando, claro está, a factualidade alegada[8]) ou da caducidade em matéria de direitos indisponíveis[9] ou, genericamente, em matérias que a lei retira da disponibilidade das partes.

Na situação trazida pela apelação constata-se ser inovadoramente invocada nas alegações de recurso a sucessão entre vivos na titularidade da obrigação exequenda – melhor, pois tal importa ser realçado e destacado, a sucessão no lado activo da relação jurídica fundamental, que é a fonte constitutiva da obrigação, indicada no título dado à execução: alega-se agora ter a exequente embargada sucedido, por acto entre vivos (por cessão da posição contratual/cessão de créditos), na posição que no contrato indicado no título dado à execução como fonte da obrigação (contrato de 23/04/2029, celebrado entre a executada embargada e um terceiro) tinha o terceiro transmitente.

Sublinhe-se que a questão (a sucessão) se não reporta à simples ‘habilitação-legitimidade’ aludida no art. 54º, nº 1 do CPC (cuja finalidade é legitimar o exequente – estando em causa sucessão do lado activo da obrigação), a fazer no requerimento inicial com que se dá início à instância executiva[10] - o que agora se alega no recurso é que a relação jurídica fundamental, geradora do direito (e da faculdade de exigir a prestação que toda a execução necessariamente pressupõe), e indicada no título exequendo (no reconhecimento de dívida) como sendo contrato celebrado em 23/04/2019, tem agora como titular, no lado activo, a exequente embargada, por em tal posição ter sucedido (por cessão da posição contratual/cessão de créditos) à pessoa que em tal contrato tinha a posição de credor.

Transmissão (sucessão na titularidade activa da obrigação, por cessão de crédito ou por cessão da posição contratual) que a exequente embargante não alegou nem no requerimento inicial (devem ser alegados no requerimento inicial da execução os factos constitutivos do direito exequendo que o título, por si, não demonstre) – e alegou aí, ao invés (o que merece ser sublinhado), ter sido consigo (exequente) que a executada contratou os serviços prestados e cuja remuneração, no título dado à execução, se vinculou a pagar (reconhecendo-se devedora) – nem na contestação que deduziu à petição de embargos – veio aí renovar e enfatizar a versão trazida aos autos no requerimento inicial, alegando, de forma inequívoca (e incompatível com a existência de sucessão na titularidade activa da obrigação), ter sido ela, exequente, quem prestou os serviços de intermediação referidos no contrato a que se reporta (indicando-o como fonte da obrigação) o documento que serve de título executivo e quem, por isso, acordou com a executada a sua remuneração; ou seja, nem no requerimento inicial – como seria necessário –, nem na contestação dos embargos, alegou a exequente embargada ter sucedido na titularidade activa na relação jurídica negocial que é indicada como fonte da obrigação na declaração em que se consubstancia o título dado à execução.

Doutra forma: no requerimento executivo e na contestação deduzida nos presentes embargos, a exequente apelante apresentou-se como titular activo da obrigação exequenda por ser parte no negócio fonte da obrigação - ser o prestador do serviço cuja remuneração é tratada em tal contrato identificado como fonte da obrigação no título dado à execução, tendo a qualidade de credor justificada por ser parte no negócio.

A agora (nas alegações de recurso) invocada sucessão na titularidade activa da obrigação exequenda (por cessão da posição contratal ou cessão de créditos, ainda que tácita) traduz e constitui, pois, não apenas factualidade cuja alegabilidade se mostra precludida (por não alegada no requerimento inicial da execução e sequer na contestação à petição de embargos, ficou precludida, impossibilitada, a alegabilidade de tal factualidade constitutiva da sucessão no direito - outro entendimento não se mostraria conforme às regras do processo justo e equitativo, tributário do princípio do contraditório e da igualdade de armas), como questão nova que à apelante está defeso suscitar perante este tribunal ad quem (é matéria constitutiva do invocado direito, subtraída ao conhecimento oficioso do tribunal), pois sobre ela o tribunal a quo não teve oportunidade de se pronunciar (por não ter sido invocada) – os fundamentos constitutivos da pretensão e/ou defesa não invocados nos articulados em que se deduz a pretensão e a defesa não podem ser apresentados em sede de alegações ou contra-alegações de recurso.

Do exposto resulta que do objecto do recurso deve excluir-se tal enunciada questão – a eventual transmissão da titularidade activa do direito por cessão de créditos ou cessão da posição contratual – e, por isso, que apenas cumpre apreciar as demais acima identificadas.


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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto

A decisão recorrida considerou, com relevo para a apreciação dos presentes embargos, os seguintes factos:

1. O exequente alegou no requerimento executivo o que dele consta, com o teor que aqui se dá por reproduzido, referindo, em síntese e de relevante:

No dia 28 de dezembro de 2023, entre a Exequente e Executada foi celebrado um documento particular denominado "Confissão de dívida e acordo de pagamento por documento particular autenticado", no âmbito do qual a Executada se reconheceu devedora à Exequente da quantia de €: 1.960.000,00 (um milhão novecentos e sessenta mil euros), referente ao contrato datado de 23.04.2019, respeitante ao jogador de futebol profissional AA, cfr. documento 1 que ao presente vai junto e se dá por integralmente reproduzido.

2. O exequente apresentou, como título executivo, o documento autenticado junto como documento 1 do requerimento executivo, com o teor que aqui se dá por reproduzido, correspondendo ao seguinte:

“(…)




(…)”.

3. O contrato de 23.04.2019 a que alude a cláusula 1ª do título executivo corresponde ao documento escrito junto como documento 1 dos embargos, com o teor que aqui se dá por reproduzido, sendo o seguinte, na parte relevante, contendo as assinaturas dos identificados outorgantes, B... SAD, com assinatura sobre carimbo de administração, e BB:

“(…)




(…)”


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Constata-se que a matéria de facto elencada na decisão apelada padece de deficiência, que importa suprir.

Em sustento do invocado abuso do direito da executada embargante, alegou a exequente embargada, sem que tal merecesse impugnação daquela (não mereceu impugnação expressa nem a mesma resulta da valorização conjugada da posição assumida nos seus articulados, seja na petição de embargos, seja no articulado em que respondeu à invocada excepção), que a embargante pagou à embargada, relativamente ao negócio celebrado em 23/04/2019, o valor correspondente ao IVA na data de 08.08.2019, no valor de 450.800,00€ (quatrocentos e cinquenta mil e oitocentos euros).

A decisão apelada omitiu pronúncia sobre tal matéria, o que, considerando que se trata de facto juridicamente relevante (facto constitutivo da invocada excepção do abuso do direito por parte da embargante), revela a sua parcial deficiência – patologia a sindicar e suprir, mesmo oficiosamente, pela Relação[11], pois que se trata de matéria que deve ter-se assente por acordo das partes (matéria de excepção alegada pela embargada na sua contestação e não impugnada pela embargante no requerimento em que sobre a invocada excepção se pronunciou)[12] – e assim, aplicando-se as regras vinculativas do direito probatório material, deve tal matéria ser integrada na decisão (art. 662º, nº 1 do CPC ).

Assim, suprindo a deficiência da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto, considera-se provado (acordo das partes – facto alegado pela embargada e não impugnado pela embargante) facto com a numeração e redacção que segue:

4. A embargada pagou à embargada, relativamente ao negócio celebrado em 23/04/2019, o valor correspondente ao IVA na data de 08.08.2019, no valor de 450.800,00€ (quatrocentos e cinquenta mil e oitocentos euros).


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Fundamentação jurídica

A. Da (i)legitimidade substantiva da apelante exequente, face ao título dado à execução.

Entendeu-se na decisão apelada não ter a exequente embargada legitimidade substantiva para reclamar coercivamente da executada embargante o cumprimento da obrigação indicada no título dado à execução (um reconhecimento de dívida feito pela executada apelada à exequente apelante, em que é indicada a causa da obrigação), por não ser, face a tal indicada relação jurídica (contrato celebrado em 23/04/2019, entre a executada embargante e um terceiro, pessoa singular – contrato cujas declarações enformadoras se mostram descritas no facto 3 e que no título dado à execução é indicado como fonte da obrigação), a titular activa do direito (credor) a exigir a prestação.

Entendimento que merece concordância.

O direito de execução, enquanto direito do credor a executar o património do devedor ou de terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito[13], pressupõe a demonstração da aquisição de um direito ou poder a uma prestação[14] - a obrigação exequenda tem, sempre, uma causa materialmente relevante, uma fonte, que cria e faz surgir o dever de prestar e o direito de exigir a prestação; o objecto da acção executiva (que tem por finalidade a satisfação do interesse patrimonial contido na prestação não cumprida) é, sempre, um direito a uma prestação (contém a faculdade de exigir o cumprimento da prestação e o correlativo poder de aquisição dessa prestação)[15].

Direito à prestação cujas factos constitutivos e integradores são representados no título executivo – o título tem uma função de representação (representação dum facto jurídico), pois revela os factos integrantes da causa de pedir em que se funda o pedido de execução, quais sejam os ‘factos de aquisição do direito ou poder a uma prestação’ (e por isso que pode definir-se o título executivo como ‘o documento pelo qual o requerente de realização coativa da prestação demonstra a aquisição de um direito ou poder a uma prestação, segundo requisitos legalmente prescritos’)[16].

Quando o título executivo não contém alusão à causa de pedir (apenas a pressupondo), como no caso do reconhecimento de dívida e promessa de cumprimento (art. 458º, nº 1 do CC), o credor não fica dispensado de a invocar e alegar no requerimento executivo.

O reconhecimento de dívida e promessa de cumprimento (art. 458º, nº 1 do CC) não se apresentam, em rigor, como um ‘negócio jurídico unilateral constitutivo de obrigações’, mas apenas como ‘um negócio na base do qual se presume a existência de uma obrigação’ – não sendo indicada a causa da constituição da obrigação, o reconhecimento de dívida e promessa de cumprimento ‘têm como efeito a presunção da existência de uma relação fundamental, de uma fonte constitutiva de uma relação’[17].

Ficando o credor, no reconhecimento de dívida (um ‘título recognitivo privado por excelência’), ‘dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário’, certo é, no entanto, que ‘a obrigação exequenda respectiva não deixa de ter uma causa, material e processualmente relevante’, e é quanto a ela que o devedor pode (e a tanto deve ser admitido) defender-se, demonstrando não estar adstrito à prestação que lhe é exigida (a prova da inexistência de relação causal válida, a cargo do demandado, apenas tem de fazer-se relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor, e não a qualquer possível causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecido pelo devedor[18]).

Aludindo o reconhecimento de dívida à sua fonte (ao facto jurídico gerador da obrigação de prestar), será essa indicada causa que cumprirá ao devedor demandado demonstrar ser inconcludente (não poder proceder, à luz do direito substantivo) – essa será a relação jurídica geradora da obrigação.

No caso em apreciação, a fonte da obrigação é indicada no título dado à execução (e foi também alegada pela exequente embargada no requerimento executivo) –contrato ‘datado de 23/04/2019 e referente ao atleta AA’, tendo a executada mais declarado reconhecer que todos os serviços prestados no âmbito do referido contrato foram prestados e que os valores cobrados são proporcionais aos serviços prestados.

Constata-se, porém, que não existe integral identidade subjectiva entre os intervenientes (declarantes) no acto jurídico[19] em que se traduz o reconhecimento de dívida que constitui o título dado à execução e as partes no identificado negócio que constitui a fonte da obrigação (relação jurídica fundamental donde surge o dever de prestar e correspectivo direito à prestação) – se no reconhecimento de dívida a executada embargada assume o lado activo da relação, no contrato identificado como fonte constitutiva da obrigação a titularidade activa da relação é encabeçada por um terceiro (uma pessoa singular, ainda que seja sócio e gerente da exequente).

Na verdade, como resulta da respectiva análise, enquanto no reconhecimento de dívida (pelos respectivos outorgantes designado como ‘Confissão de dívida e acordo de pagamento por documento particular autenticado’) se identifica como outorgante, além da executada embargante (primeira outorgante, que expressamente declarou reconhecer-se devedora), a exequente embargada (segunda outorgante), sendo perante esta que a executada se confessou devedora (com fundamento no contrato que ali é indicado), no contrato de 23/04/2019 são declarantes (e outorgantes) a executada embargante (primeira outorgante, que nos termos do negócio é designado como ‘Clube’) e BB (segundo outorgante, aí designado como ‘Intermediário’).

Que o outorgante naquele contrato de 23/04/2019 é BB e não a sociedade exequente resulta da ponderação de que não só foi ele, a título pessoal, a assinar o documento em que foram vazadas as declarações de vontade enformadoras (não assinou o documento na qualidade de legal representante da sociedade de que é legal representante, nem tão pouco consta o carimbo da sociedade em qualquer ponto do documento, mormente no local destinado à assinatura dos outorgantes), como ser ele, pessoa humana, que é identificado como parte, ainda que ao descreverem-se os elementos que se tiveram por pertinentes à sua identificação, além de indicada a sua qualidade de ‘intermediário registado na Federação Portuguesa de Futebol’ se tenha também mencionado ter actividade organizada na empresa ‘A..., LDA’ (também intermediária registada na FPF).

Não questiona a embargada apelante na presente apelação que interveniente no referido negócio de 23/04/2019 seja o BB – e que assim seja ele, a título pessoal, o titular activo dessa relação jurídica (que é identificada como sendo a relação jurídica geradora da obrigação exequenda).

O que defende é dever valorizar-se a declaração emitida pela executada embargante no título dado à execução (correspondente à vontade real das partes) – de que a executada pretendeu e quis reconhecer-se como devedora à exequente e reconhecer esta como sua credora.

Inconcludência do argumento de patente evidência, ponderando que, como se disse, o reconhecimento de dívida e promessa de pagamento não constitui negócio constitutivo de obrigações, não é fonte do dever de prestar (e correspectivo direito de exigir a prestação) – constitutivo (ou gerador) da obrigação é a relação fundamental por ele indicada ou que o mesmo faz presumir.

Não se questiona que foi a exequente que a executada reconheceu como sua credora no reconhecimento de dívida que serve de título executivo – tal tem-se por seguro e indiscutido; o que se argumenta, diferentemente, é que a relação jurídica fundamental, fonte do dever de prestar indicada em tal reconhecimento de dívida, tem como sujeito activo (como credor) outrem que não a exequente.

Apurado que a relação fundamental constitutiva da obrigação, indicada no título dado à execução (e também alegada no requerimento executivo), tem como titular activo pessoa diversa da exequente, é forçoso concluir não poder reconhecer-se-lhe (à embargada apelante) o direito (o poder) de exigir a prestação – o titular do direito a exigir à embargante apelada o cumprimento da prestação e do correlativo poder de aquisição dessa prestação é pessoa diversa da exequente apelante.

B. Da actuação da embargante apelada em abuso do direito.

Sustenta a embargada apelante que a embargante apelada actua em abuso do direito, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé – sabe que a exequente apelante lhe prestou os serviços de intermediação contratados e contratualizados, que se vinculou a remunerar e que até já pagou parcialmente (pois pagou o IVA devido) e, bem assim, renovou o propósito de cumprir ao emitir o reconhecimento de dívida, o que se mostra contrariado com a ulterior (actual) recusa de cumprimento da prestação a que se vinculou, violando a confiança criada (situação enquadrável nas figuras do venire contra factum proprium e da inalegabilidade).

Manifesta a inconcludência da argumentação da apelante.

O argumento fundado na figura da inalegabilidade (assente também violação da boa fé, na confiança legítima gerada na contraparte, que determina não se poder reconhecer à parte a invocação/alegação de invalidades do negócio, mormente invalidades formais)[20] cai pela base – a razão para se concluir não ter a exequente o direito a exigir a prestação não assenta em qualquer invalidade (formal – que tampouco foi alegada – ou substancial) do título dado à execução e/ou do negócio que constitui a fonte da obrigação exequenda, antes assenta em não ser a exequente, à luz de tal negócio, fonte da obrigação a que o título se reporta, a titular do direito a exigir a prestação.

Também se não deteta que se mostre preenchida a figura do venire contra factum proprium – modalidade da actuação ilegítima que visa impedir ‘pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior’ observada pelo exercente do direito[21] (ou defesa).

Assente na boa fé, enquanto modelo de dever-ser, o venire contra factum proprium consubstancia uma manifestação de tutela da confiança que, verificados os respectivos pressupostos, determinará a paralisação, destruição ou neutralização da actuação abusiva[22].

Porque ‘não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório’, isto é, uma ‘«regra geral de coerência do comportamento dos sujeitos jurídico-provados, juridicamente exigível»’, sendo o indivíduo ‘livre de mudar de opinião e de conduta fora dos casos em que assumiu compromissos negociais’, encontra a ordem jurídica no negócio jurídico o mecanismo que possibilita a ‘formação da confiança na palavra dada e, consequentemente, na conduta futura dos contraentes’ (sendo certo que facilmente se intui, ponderada a necessidade de dar tutela às legítimas e fundadas expectativas das pessoas, que sob pena de cometimento de flagrantes injustiças em muitas situações concretas, o negócio jurídico não pode constituir o único modo de protecção das expectativas dos sujeitos na não contradição da conduta da contraparte, e por isso que se reconhece a existência de situações em que, ‘ainda antes do limiar da vinculação contratual, o agente deve ser obrigado a honrar os as expectativas que criou, podendo exigir-se-lhe, então, que actue de forma correspondente à confiança que despertou’)[23].

Porque fundada na boa fé, que pressupõe a existência duma ‘específica relação inter-pessoal (embora não necessariamente negocial, ou sequer pré ou circumnegocial), fonte de uma legítima relação de confiança – ou pelo menos de uma legítima expectação de conduta – cuja frustração ou violação seja particularmente clamorosa (o que implica, por isso, a lesão directa de alguém)’[24], o venire tem um enquadramento necessariamente relacional (constitui seu necessário requisito ou pressuposto) – o destinatário do comportamento significativo, justificador e gerador da confiança (que possa suportar um investimento de confiança), há-de ser já aquele que vem a ser surpreendido pelo comportamento posterior e contraditório do agente.

Na situação trazida em apelação, não pode concluir-se que o destinatário de toda a conduta observada pela executada até 28/12/2023 fosse a exequente – na verdade, a contraparte da executada do negócio de Abril de 2019 era um terceiro e só em Abril de 2023 a executada inclui na relação (relação interpessoal, nos termos referidos) a exequente (com o reconhecimento de dívida); até então (Abril de 2023), o destinatário da conduta observada pela executada (que poderia legitimamente fundar a criação duma confiança justificadora de investimento) seria o terceiro, contraparte da executada no contrato celebrado em 2019, sendo toda a actuação da executava havida até então indelevelmente marcada pela existência de tal vinculação.

Mesmo o pagamento do IVA feito pela executada não pode ser desligado de tal vinculação existente entre a executada e o terceiro – trata-se de imposto devido ao Estado em razão daquele contrato concreto (esse o contrato gerador da obrigação tributária), pago pela executada antes de se ter reconhecido, perante a exequente, como sua devedora (com causa naquele contrato de 2019), por isso quando a relação jurídica existente se circunscrevia, no seu âmbito subjectiva, à executada e terceiro contraparte naquele contrato de 2019 (só em Dezembro de 2023 foi constituída, pela executada, relação com a exequente, ao declarar reconhecê-la como sua credora).

Não pode, pois, considerar-se que com o pagamento do IVA, haja sido a exequente trazida à relação conformada pelo negócio celebrado em 2019 – tal relação continuava a ter como sujeito, no lado activo, o terceiro (exclusivamente), nada permitindo concluir pela existência da transmissão de tal posição para a exequente; a exequente, a essa altura, não tinha outra qualidade que não a de sociedade na qual o terceiro, contraparte da executada no negócio de 2019, tinha a sua actividade organizada (qualidade expressamente mencionada nesse contrato). Tal pagamento do IVA então realizado não pode interpretar-se (à luz das regras da impressão do destinatário – art. 236º do CC) senão como cumprimento de prestação cuja fonte emergia do contrato que tinha como titular activo o terceiro – e por isso que destinatário de tal conduta (de tal cumprimento), legitimado a nele fundar um investimento de confiança, seria o terceiro, não a exequente (a relação era então, relativamente à exequente, um inter alius).

Deve afirmar-se, assim, que até Dezembro de 2023 nenhuma específica relação interpessoal, fonte de legítima relação de confiança (ou de uma legítima expectação de conduta), existia entre a exequente e a executada – e por isso que nenhum acto ou conduta da executada existiu que tivesse como destinatária a exequente no âmbito de relação interpessoal entre ambas, legitimando esta a confiar que aquela manteria posteriormente conduta concordante com a até aí observada.

Por fim, tem de afirmar-se que o reconhecimento de dívida é, por si só, insuficiente para preencher a figura do venire – desde logo, porque tomando o reconhecimento como o factum proprium, a posterior (actual) recusa da executada apelada cumprir perante si, exequente, não pode ser considerada como comportamento posterior contraditório (traindo a confiança criada por aquele facto anterior), pois a exequente, conhecendo (e não podendo desconsiderar tal relevante aspecto) que o negócio identificado no reconhecimento de dívida como gerador da obrigação exequenda tinha como titular activo um terceiro (e que era perante esse terceiro que a executada, à luz do direito, estava obrigada a cumprir – que era esse terceiro o titular do poder de exigir a prestação), sempre tinha de contar, razoavelmente, com a possibilidade de tal vir a ser valorizado no futuro pela executada; depois, não pode considerar-se que da parte da exequente tenha existido qualquer investimento de confiança, ou seja, que a exequente tenha desenvolvido actividade, com base no reconhecimento da dívida (tido como factum proprium), cuja destruição (por força da posterior conduta) traduza uma evidente injustiça.[25]

De recusar, pois, que a executada apelada actue em abuso do direito.

C. Da litigância de má fé da executada embargante.

A decisão apelada (porque procedentes os embargos e não apurado que tivesse havido alteração da verdade dos factos) considerou não se verificarem os pressupostos para condenar a executada embargante como litigante de má fé, como fora solicitado pela exequente embargada.

Irresignada, defende a apelante dever concluir-se que a apelada, ao deduzir os presentes embargos à execução conhecia a respectiva falta de fundamento, consciente de que tudo quanto alegara não tinha correspondência com a verdade, sabendo que se reconheceu devedora perante si, exequente, por conta dos serviços que lhe foram prestados, não só sabendo da existência da dívida como também que é a apelante a titular do direito à prestação.

Pretensão cuja inconcludência se apresenta de linear clareza.

De arredar o preenchimento do tipo objectivo de litigância de má fé previsto na alínea b) do nº 2 do art. 542º do CPC, pois não demonstram os autos que a executada embargante (muito menos dolosamente ou com grave negligência) tenha alterado a verdade dos factos – os elementos revelados pelos autos não permitem afirmar (sequer minimamente) que a executada embargante tenha apresentado uma versão deturpada dos factos, em violação do dever de verdade.

Também a má fé material ou substancial traduzida na dedução de pretensão ou defesa que se sabe ou deve saber-se sem fundamento (alínea a) do nº 2 do art. 542º do CPC) se não verifica no caso concreto – mais do que a consideração de que tal modalidade de litigância de má fé (relacionada com o mérito da causa, pois a parte, ‘não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta’[26]) não se basta com a mera sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correcta interpretação da lei e aplicação do direito (o limite entre o que é razoável e o que é inverosímil no que concerne à interpretação e aplicação da lei e do direito nem sempre é claro - a ‘certeza jurídica é meramente tendencial’[27] -, não implicando a defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos ou de construção jurídica que se venha julgar como errada, por si só, litigância censurável, enquadrável na alínea a) do nº 2 do art. 542º, do CPC[28]), não podendo confundir-se a litigância de má fé com a ‘discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos’ ou a ‘defesa convicta e séria de uma posição’ que não se logra impor[29] [exige-se particular prudência e fundada segurança para se afirmar a litigância de má fé, devendo os elementos disponíveis nos autos revelar, de modo seguro e inequívoco, que a parte deduziu (se não propositadamente, pelo menos com grave desleixo e incúria) pretensão ou oposição inconcludente ou inadmissível; o direito à tutela jurisdicional efectiva impede se coloquem entraves irrazoáveis à introdução em juízo de pretensões ou meios de defesa, e do simples facto da posição da parte não obter reconhecimento (e de ser, na visão imparcial do tribunal, até manifestamente improcedente) não resulta que a parte haja litigado com má fé (a dedução de pretensão ou oposição que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, de per si, actuação dolosa ou gravemente negligente bastante para afirmar a litigância de má fé[30]) – a ‘lei confere uma vasta amplitude ao direito de acção ou de defesa, de maneira que, para além da repercussão no campo das custas judiciais, não retira do decaimento qualquer outra consequência a não ser que alguma das partes aja violando as regras e princípios básicos por que devem pautar a sua atuação processual’[31]], interessa ponderar que, no caso, a executada obteve (mais correctamente, obtém) vencimento (viu – vê – julgados procedentes os embargos, com a consequente extinção da execução, por ser de reconhecer que, como sustentava, a exequente não é, considerando a fonte da obrigação exequenda, a titular do direito à prestação) e, assim, falta desde logo pressuposto primeiro para o preenchimento de tal tipo de litigância de má fé (a pretensão deduzida é fundada).

A parte vencedora não pode incorrer na litigância de má fé material ou substancial[32] traduzida na violação do dever de não formular pretensões infundadas – por definição, tal modalidade só ocorre quando (além dos demais requisitos) a pretensão deduzida pela parte não tem fundamento (quando é inconcludente e improcede).

Não merece censura, pois, também neste segmento, a decisão apelada, pois não se pode concluir que a apelada litiga de má fé (seja por alterar a verdade dos factos, seja por deduzir pretensão que sabe ou deve saber infundada).

D. Síntese conclusiva

Do exposto resulta a improcedência da apelação e consequente manutenção da decisão apelada, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (em cumprimento do nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar o saneador-sentença apelado.

Custas da apelação pela apelante.


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Porto, 14/10/2025
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
João Ramos Lopes
Márcia Portela
Maria Eiró
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[1] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 395 e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, p. 119.
[2] Abrantes Geraldes, Recursos (…), p. 31 e pp. 119 e ss.
[3] Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos (Regime do Decreto-Lei nº 303/2007), p. 53.
[4] Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 71 e p. 74.
[5] Abrantes Geraldes, Recursos (…), pp. 119/120.
[6] Abrantes Geraldes, Recursos (…), pp. 119 e 120.
[7] Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos (…), p. 52.
[8] O ‘abuso do direito é constatado pelo Tribunal, mesmo quando o interessado não o tenha expressamente mencionado: é, nesse sentido, de conhecimento oficioso’, podendo o tribunal, ‘por si e em qualquer momento, ponderar os valores fundamentais do sistema, que tudo comporta e justifica’, mas só poderá fazer tal ponderação e apreciação com base em matéria alegada, pois que a aplicação do instituto depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos – Meneses Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, 2005, p. 373.
Dando nota de que a jurisprudência segue o entendimento de que a existência de situação de exercício abusivo é de conhecimento oficioso, Tatiana Guerra de Almeida, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa (coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença), p. 786, nota VI ao artigo 334º do CC.
[9] Abrantes Geraldes, Recursos (…), p. 31.
[10] É no requerimento inicial que devem deduzir-se os factos constitutivos da sucessão (segunda parte do nº 1 do art. 54ºdo CPC), até para possibilitar ao executado opor-se-lhe (e deduzir nos embargos a ilegitimidade) - Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 13ª Edição, pp. 75 e 76, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 4ª Edição, p. 132, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I (Parte Geral e Processo de Declaração), 2018, p. 86 e José Lebre de Freitas, A Ação Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª Edição, pp. 144 e 145.
[11] Abrantes Geraldes, Recursos (…), pp. 306/307.
[12] A regra estabelecida no art. 574º, nº do CPC (aplicável aos embargos de executado, ex vi art. 732º, nº 2 do CPC) vale para qualquer articulado em que seja concedida à parte a faculdade de se pronunciar sobre matéria que sirva de excepção à pretensão que invocara.
A parte (no caso, a embargante) deve responder à matéria de excepção alegada pela contraparte (no caso, a embargada), como imposto pelo art. 3º, nº 4 do CPC (seja na audiência prévia, no início da audiência final quando a causa não comporte a audiência prévia ou até em articulado a tal destinado); tal não se trata de mera faculdade, antes dum verdadeiro ónus, de modo que a falta de resposta à matéria de excepção terá como efeito a produção do efeito cominatório previsto no art. 574º, nº 2 do CPC [assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 21 e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, p. 100; também o acórdão desta Relação de 23/02/2015 (Manuel Domingues Fernandes), no sítio www.dgsi.pt e o acórdão desta Relação, proferido no processo nº 8300/19.0T8PRT.P1, de 15/12/2021, relatado pelo subscritor da presente decisão].
Como aduzido no acórdão proferido no referido processo nº 8300/19.0T8PRT.P1., «o facto de o legislador do CPC/2013 ‘ter suprimido a réplica como articulado de resposta do autor às excepções alegadas pelo réu não significa a supressão do ónus do réu de impugnar aquelas excepções’ – alterou-se a ‘forma como a resposta da contraparte à alegação da excepção pode ser realizada, mas permaneceu intacto o ónus de contestação da excepção por essa contraparte’, havendo por isso que aplicar, à impugnação das excepções (no início da audiência prévia ou final – ou, acrescentamos, em articulado ad hoc a tanto destinado), por interpretação extensiva, o disposto no art. 572.º, al. d), do CPC» (Miguel Teixeira de Sousa, ‘Questões sobre matéria de prova no n CPC’, comentário de 1/03/2014 no Blog do IPPC (blogippc.blogspot.pt), consultado em Setembro de 2025). «Assim, não se nos afigura - salvo o devido respeito - conforme às regras do processo justo e equitativo, tributário do princípio da igualdade de armas, o entendimento de que a falta de resposta à excepção invocada pelo réu não tem efeito cominatório» [Assim, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª Edição, p. 610 e Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, Volume I, p. 505 (expressamente referindo que o legislador não pretendeu impor ao autor o ónus de impugnar os novos factos alegados pelo réu, no momento previsto no art. 3º, nº 4 do CPC, devendo a factualidade excepcionada pelo réu ter-se sempre por controvertida)] - «impor ao réu, quanto a factos essenciais alegados pelo autor, o ónus de impugnação especificada, isentando este de desenvolver esforços probatórios quanto aos factos que alegou e não mereceram impugnação do réu, e não impor ao autor, relativamente aos factos essenciais individualizadores de matéria de excepção invocada pelo réu, um ónus idêntico, fazendo impender sobre o réu um esforço probatório que ao autor não se exige (e até o isentando da cooperação devida na obtenção da pronta e justa composição do litígio, impondo desnecessária discussão sobre matéria em rigor não impugnada), é solução que dá guarida à desigualdade de armas e que recusa a cooperação como princípio estruturante do processo civil.»
[13] Ferreira de Almeida, Algumas considerações sobre o problema da natureza e função do título executivo, RFD, 19 (1965), p. 317.
[14] Rui Pinto, A Acção Executiva, 2020, Reimpressão, p. 136.
[15] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 606.
[16] Rui Pinto, A Acção Executiva (…), p. 136.
[17] Fernando Oliveira e Sá, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em Geral, Universidade Católica Portuguesa (coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença), nota I ao artigo 458º, p. 215.
[18] José Lebre de Freitas, A Confissão do Direito Probatório, p. 390.
[19] O reconhecimento de dívida, não constituindo negócio jurídico, é um simples acto jurídico – assim o sustenta Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 15ª edição, 2018, p. 272.
[20] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, 2005, pp. 299 e ss., maxime 310 a 312. Cfr. também, a propósito (enquadrando tal comportamento, ao alegar a invalidade formal do negócio, como violador da boa fé), Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora (coordenação de Francisco Liberal Fernandes, Maria Raquel Guimarães e Maria Regina Redinha), 3ª Edição, Novembro de 2012, pp. 116/117.
[21] J. M. Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito – Ensaio de um Critério em Direito Civil e nas Deliberações Sociais, Reimpressão da edição de 1999, p. 59.
[22] A propósito das consequências da actuação abusiva, Tatiana Guerra de Almeida, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral (…), p. 788, nota XI ao artigo 334º do CC.
[23] Acórdão do STJ de 12/11/2013 (Nuno Cameira), no sítio www.dgsi.pt.
[24] Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil (…), p. 116.
[25] Cfr., além do citado acórdão do STJ de 12/11/2013 (Nuno Cameira), Menezes Cordeiro, Tratado (…), pp. 292 a 294 e acórdão do STJ de 2/03/2023 (Vieira e Cunha), no sítio www.dgsi.pt.
[26] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, p. 457.
[27] Acórdão do STJ de 4/12/2003 (Salvador da Costa), no sítio www.dgsi.pt.
[28] Acórdão do STJ de 13/01/2015 (Fonseca Ramos), no sítio www.dgsi.pt.
[29] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), p. 593.
[30] Acórdão do STJ de 18/01/2015 (Silva Salazar), no sítio www.dgsi.pt.
[31] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), Vol. I, p. 593.
[32] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), Volume 2º, p. 457.